sexta-feira, 2 de junho de 2023

A última carta

 

Escrevo-te esta carta na solidão do meu quarto. Sei que a vais receber, embora estejas , do lado errado da vida. Não interessa por ser a última carta. Também recebeste as outras. Pressinto que sim, embora não saiba explicar como conseguiste. Se o carteiro encontrou a morada do remetente (estou a brincar), se estavas a ler a mesma enquanto eu escrevia. É a hipótese mais certa de admitir como prova, embora seja um sensitivo e por isso devia ter dado conta. Não adianta especular. Recebeste as outras e também vais receber esta. Mas não quero que respondas, a não ser que a confirmação venha perfumada por um leve odor a rosas.

Quem me dera poder voltar atrás para esclarecer melhor o que se passou naqueles malditos dias de agosto daquele ano longínquo e nos dois dias de setembro que deixámos fugir sem uma simples explicação. Bem sei que é impossível voltarmos a ter aquele encontro em que nos sentimos felizes durante uma mão cheia de minutos. A seguir os sentimentos esconderam-se.
Aconteceu há muitos anos. E se tivesse acontecido ontem era o mesmo. O que passou ficou para trás. Para sempre. Aconteceu e jamais será como foi. Mesmo assim, teimo em deixar no papel sinais indeléveis que são um reforço para a ligação forte que ainda nos une, embora continues a existir do lado errado da vida.
Acredito que te lembras daquela tarde amena de setembro em que subimos o monte da Senhora da Penha. Atingimos de mãos dadas o cume onde ainda está a cruz. Depois, sentámo-nos à sombra de uma árvore, gozámos o ar puro das alturas e abarcámos com a vista a magnífica paisagem que tínhamos na frente e em volta. Não me recordo das palavras trocadas, mas a doçura do teu olhar triste ainda hoje a tenho gravada na memória.
Em que pensavas para estares tão triste?, pergunto hoje, embora não te veja?
Tal como agora em que estamos aqui, ligados por um cordão invisível, o pensamento era livre. Livre e indecifrável. Lá no alto do monte não consegui adivinhar em que pensavas no momento, mesmo quando as nossas mãos se uniram de novo e uma sensação estranha me percorreu o corpo. Tinha a certeza que te amava e que tu também me amavas. Mas não bastou a existência do nosso amor. Hoje acredito que havia forças invisíveis que apostavam em separar-nos. A Simone era a força negra que lutava na sombra para nos afastar porque queria-me para si. Ao mesmo tempo, do teu lado, o homem que mais odiavas e com quem vieste a casar também lutava para conquistar-te. 
E o nosso anjo da guarda, onde estava?
Fecho os olhos para recordar a tarde em que foste rezar à igreja do Senhor do Bonfim. Também não deu certo e tinha tudo para dar certo.
Fecho os olhos para recordar. Chamo por ti num sussurro e só o silêncio da noite me responde. Nem sequer te oiço chorar com pena de não me teres. Dizem que choras mas não te oiço chorar.
Tenho uma fotografia tua na frente. Fui eu quem a tirou. Estás muito séria a olhar para mim. Tens um objeto pontiagudo a apontar para um dos seios. Não é real. Foi introduzido pelo fotógrafo para esconder uma amiga tua que estava ao teu lado.
Poucos meses mais tarde ignorei a mensagem do teu olhar triste e parti para uma viagem sem horizonte, alucinado pelo desejo de alcançar tudo o o que de novo estava a ter na minha frente pela primeira vez. Perdi-me em Lisboa. 
Nesse ano, em meados de outubro surgiu mais uma variável que viria a perturbar a minha rotina de vida. Entrei para a Faculdade de Ciências, concretizando um sonho antigo e também o do meu pai que se sacrificou para que tivesse um outro futuro, bem diferente do seu.
Perdi-me em Lisboa, sim. A capital deslumbra­va-me. Era o começo de uma vida diferente. A liberdade. A independência. O desejo de cortar todos os cordões umbilicais.
A ida para a Faculdade em nada alterou a nossa relação, pelo menos enquanto existiu um compromisso mútuo de confiança. A maior parte do tempo de namoro passou-se com trocas de cartas, de cá para lá e de lá para cá, quase todos os dias. Tudo corria bem. O amor que nos unia era forte e capaz de resistir a ataques vindos de qualquer lado que fosse. Nunca nos cansámos de escrever, mas claro que roçámos muitas vezes a banalidade e por essa razão tentei dar a volta, inventando histórias que pedia para continuares. Nunca o fizeste. Confessaste que não tinhas jeito. E eu danava-me, mas era só no momento. Gostava muito de ti. Eras a mulher única e não queria perder-te. Seríamos os eternos enamorados. Até ao fim do fim. Mas perdi-te. Bem me enganei. A maldição caiu forte sobre nós quando aluguei um quarto na rua de S. Bento. Aí conheci uma jovem algarvia chamada Rosa Maria. Nunca aconteceu nada entre nós, mas eu falava muito dela nas cartas que continuávamos a trocar. Então o ciúme roeu a nossa relação e foi o principal responsável pela separação. 

A carta já vai longa. Lembro-me também da primeira noite que fomos ao cinema. Quando me sentei ao teu lado e olhei furtivamente para ti, vi tudo o que nos unia e falámos desse tudo. Sem palavras. Só com a magia dos olhares trocados.
Como estavas bonita nessa noite!
Perdi-te. Por mais que tente, não vou conseguir descobrir onde estás.
A tua voz tinha um timbre engraçado. E eu brincava contigo sempre que te ouvia falar. 
Um dia partiste para o outro lado da porta...
Porque é que inventaste paixões ardentes com “esfinges e meninas bonitas” que deram em nada?
Queimámos as cartas. Só há cinzas do passado. Absolutamente nada. Apenas esta carta que te escrevo, que é mais um retrato do que fomos que uma carta, há de perdurar para lá das cinzas. Bem sei que é um absurdo amar-te ainda. É um absurdo amar uma mulher que existe no invisível. Perdi-te mas continuas viva no meu coração. Não sei como és, ou se és. Nem posso chegar a ti. Por isso, grito:
«Está alguém nesta sala?»
«...»
A Madalena foi a grande hipótese de te ter minha outra vez e fugiste. Aqueles olhos eram os teus. Não podes negar. Negar! Mas de que forma? Só há silêncio à minha volta.
Quando eu, a Marta e a Madalena ocupámos no restaurante uma mesa que ficou livre e logo a Madalena começou a rir de forma descontrolada, deixando ver um misto de ódio e revolta, qualquer coisa estranha estava para acontecer. E aconteceu. Ela ficou muito séria e confessou ter descoberto qual era o seu papel. A Madalena era médium e acredito ter permitido que “entrasses”. Então “vi-te”, os nossos olhos fixaram-se um no outro com doçura e partimos de imediato para longe como dois namorados que se queriam muito. 
Foi a última vez que te “vi” (1). Nunca mais me procuraste nos olhos de outra mulher. Nem em sonhos.
Fecho os olhos para imaginar como eras. Não consigo. Não consigo, meu amor. 
É tempo de acabar esta carta que te escrevo.
Será a última. 
Até amanhã, ou até à eternidade?

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