Consultei o relógio e fiz rapidamente as contas. Na realidade eram umas contas fáceis de fazer, pois baseavam-se na diferença entre dois números. Assim, desprezando os míseros segundos, concluí que estava à espera da Natália há mais de meia hora. Exatamente trinta e sete minutos.
«Não demoro muito, João» dissera ela. «Só se houver um imprevisto.»
«Meia hora?»
«Nem pensar. No máximo demoro vinte minutos.»
Admiti ser razoável dar-lhe uma margem de dez minutos. Nem mais um minuto. Longe iam os tempos das longas esperas por causa de um baile e de um embelezamento que tardava em ter um fim. Águas passadas. Espuma do tempo que não voltou. Uma história interminável que me levou ao desespero e consequente solidão. Não. A paciência já se tinha esgotado há muito.
Liguei-lhe a dizer que ia andando para baixo. Não me justifiquei com aquilo da falta de paciência.
«João, amigo não empata amigo. Apanha o cacilheiro e vai dar a tua volta por Lisboa. Quando estiver despachada, então contacto. Vê se tens o telemóvel ligado. Que não aconteça como da outra vez.»
Feitas as contas, quem tinha mais razão de queixa?
Levantei-me do banco de madeira pouco confortável. Estava situado estrategicamente à saída do edifício onde era o tribunal. Num gesto automático sacudi o pó invisível das calças de ganga, coçadas à moda, mas não com os rasgões da praxe que eram coisa para os mais novos. Depois, olhei outra vez para o interior do edifício.
«Ninguém à vista, João.» Admiti.
Desci a escadaria até ao passeio e tive a sensação estranha de me sentir mais livre que um passarinho que abandonou o conforto protetor do ninho. Não que eu e a minha amiga, que se chamava Natália, vivêssemos no mesmo ninho e eu dependesse dela e ela de mim. Nada disso. Cada um fazia a sua vida. Quanto ao resto não é preciso dizer.
Por um descargo de consciência levantei uma última vez os olhos para a porta do tribunal e decidi abandonar o meu posto de espera. Seguindo o passeio ia ter à rua principal onde já podia orientar-me melhor. Sempre eram mais de vinte anos de ausência e nesse tempo já tinha acontecido muita coisa, como, por exemplo, alguns prédios existirem onde tinham sido outros prédios de referência. Até porque a memória já há algum tempo estava pior que nunca e começava a pregar partidas daquelas que… sabem muito bem, ou se não sabem um dia saberão.
À minha esquerda, onde terminava o passeio estavam os inevitáveis contentores verdes do lixo. Por acaso o cheiro não incomodava tanto como isso e até dava para me aproximar um pouco mais. Sim. O que estava a ver eram duas molduras que me pareciam ser antigas. Dei mais umas passadas e confirmei. Antigas. Boa madeira e em ótimo estado. Contei os ornamentos que embelezavam a moldura maior. Oito. Todos prateados. O aspeto era o de um relógio muito antigo que me ofereceram em tempos e que nunca funcionou, pois não me dispus a isso. Os ornamentos do relógio eram de prata e aqueles parecia-me que não andavam longe disso. Logo veria. Quanto à outra moldura tinha enfeites dourados já com muita patine. A primeira tinha vidro e a segunda não. As rosáceas prateadas da grande encantaram-me. O raio da moldura era mesmo bonita. Não hesitei e tomei-as de assalto. Agora eram minhas. Só não compreendia o que esteve no pensamento de quem as desprezou e deixou ali, sobre o contentor verde do lixo, à mercê do acaso. E o acaso fui eu. No momento exato não esperei mais pela Natália e aconteceu que fui o primeiro interessado a chegar às molduras antigas. Um golpe de sorte.
«Agora que faço com isto?» perguntei aos meus botões.
A Natália não ia gostar deste achado. Estou mesmo a ouvi-la. As suas palavras sibilinas de censura:
«Não demoro muito, João» dissera ela. «Só se houver um imprevisto.»
«Meia hora?»
«Nem pensar. No máximo demoro vinte minutos.»
Admiti ser razoável dar-lhe uma margem de dez minutos. Nem mais um minuto. Longe iam os tempos das longas esperas por causa de um baile e de um embelezamento que tardava em ter um fim. Águas passadas. Espuma do tempo que não voltou. Uma história interminável que me levou ao desespero e consequente solidão. Não. A paciência já se tinha esgotado há muito.
Liguei-lhe a dizer que ia andando para baixo. Não me justifiquei com aquilo da falta de paciência.
«João, amigo não empata amigo. Apanha o cacilheiro e vai dar a tua volta por Lisboa. Quando estiver despachada, então contacto. Vê se tens o telemóvel ligado. Que não aconteça como da outra vez.»
Feitas as contas, quem tinha mais razão de queixa?
Levantei-me do banco de madeira pouco confortável. Estava situado estrategicamente à saída do edifício onde era o tribunal. Num gesto automático sacudi o pó invisível das calças de ganga, coçadas à moda, mas não com os rasgões da praxe que eram coisa para os mais novos. Depois, olhei outra vez para o interior do edifício.
«Ninguém à vista, João.» Admiti.
Desci a escadaria até ao passeio e tive a sensação estranha de me sentir mais livre que um passarinho que abandonou o conforto protetor do ninho. Não que eu e a minha amiga, que se chamava Natália, vivêssemos no mesmo ninho e eu dependesse dela e ela de mim. Nada disso. Cada um fazia a sua vida. Quanto ao resto não é preciso dizer.
Por um descargo de consciência levantei uma última vez os olhos para a porta do tribunal e decidi abandonar o meu posto de espera. Seguindo o passeio ia ter à rua principal onde já podia orientar-me melhor. Sempre eram mais de vinte anos de ausência e nesse tempo já tinha acontecido muita coisa, como, por exemplo, alguns prédios existirem onde tinham sido outros prédios de referência. Até porque a memória já há algum tempo estava pior que nunca e começava a pregar partidas daquelas que… sabem muito bem, ou se não sabem um dia saberão.
À minha esquerda, onde terminava o passeio estavam os inevitáveis contentores verdes do lixo. Por acaso o cheiro não incomodava tanto como isso e até dava para me aproximar um pouco mais. Sim. O que estava a ver eram duas molduras que me pareciam ser antigas. Dei mais umas passadas e confirmei. Antigas. Boa madeira e em ótimo estado. Contei os ornamentos que embelezavam a moldura maior. Oito. Todos prateados. O aspeto era o de um relógio muito antigo que me ofereceram em tempos e que nunca funcionou, pois não me dispus a isso. Os ornamentos do relógio eram de prata e aqueles parecia-me que não andavam longe disso. Logo veria. Quanto à outra moldura tinha enfeites dourados já com muita patine. A primeira tinha vidro e a segunda não. As rosáceas prateadas da grande encantaram-me. O raio da moldura era mesmo bonita. Não hesitei e tomei-as de assalto. Agora eram minhas. Só não compreendia o que esteve no pensamento de quem as desprezou e deixou ali, sobre o contentor verde do lixo, à mercê do acaso. E o acaso fui eu. No momento exato não esperei mais pela Natália e aconteceu que fui o primeiro interessado a chegar às molduras antigas. Um golpe de sorte.
«Agora que faço com isto?» perguntei aos meus botões.
A Natália não ia gostar deste achado. Estou mesmo a ouvi-la. As suas palavras sibilinas de censura:
«Apanhas tudo o que é lixo. Para que queres esta gaita? Sabes lá de quem eram as molduras!»
Que se lixe. São minhas, pronto.
Enquanto estava nestas cogitações dei com uma mulher a olhar para mim com uma expressão estranha e também para as molduras. Seria a dona? Deixou-as sobre o contentor enquanto foi ao café. Claro que não. Apenas estava curiosa.
«E então?» perguntei, algo agressivo. «Quer comprar?»
A mulher fez um ar agastado e afastou-se, resmugando.
Pouco depois já estava na rua principal e com as molduras dentro de um saco que comprei no primeiro minimercado que vi. Cada vez estava a gostar mais das molduras. Nem de propósito. Só por um mero acaso fui o primeiro a vê-las.
Que sorte a minha!
Chegou então o tempo de pensar no motivo que levou uma pessoa desconhecida a abandonar aquelas molduras. Uma coisa era certa. Não as deitou para o lixo e isso queria dizer muita coisa, como, por exemplo, respeito pelos primeiros donos das molduras. E a reforçar, as fotografias tinham sido retiradas.
A pessoa rasgou-as, ou decidiu guardá-las religiosamente no seu baú das recordações (isto para não falar no álbum, ou nos ficheiros de imagens do computador).
Voltei a consultar o relógio. Se ainda estivesse à espera da Natália já tinha passado uma hora. Portanto, decidi bem e na hora, pois a decisão levou-me à feliz descoberta daquelas molduras com ornamentos metálicos.
Tinha chegado à rua dos restaurantes quando o telemóvel tocou.
«Olha, João, tenho que ir a Setúbal buscar um processo. Queres ir comigo? Aproveitamos para comer aqueles chocos fritos de que tanto gostas.»
Preferia antes ir ao Analídeo e ao seu peixe grelhado.
Ainda existia o Analídeo?
«Porque não vens cá abaixo degustar comigo um arroz de marisco descascado?»
«É perda de tempo, João.»
«Encontramo-nos por aí…»
«O quê?»
«Quando calhar.»
«Ah sim. Amigo não empata amigo.» Repetiu.
Senti-me mais livre que um passarinho. Daqueles que abandonaram o ninho à procura da primeira aventura que, no meu caso, não era a primeira nem a segunda. Mal adivinhava que a minha vida preparava-se para enfrentar mais um futuro próximo que não tinha planeado. Por enquanto só isto. Não vou adiantar mais.
Conforme disse, estava na rua dos restaurantes. O tempo quente convidava para almoçar na esplanada.
Tudo na mesma. Afinal nada mudara com o passar dos anos. Só que os escudos tinham sido substituídos pelos euros.
Depois de confirmar que as ementas e os preços dos pratos eram muito próximos uns dos outros, sentei-me numa mesa ao calhas.
«O senhor está só?»
Coincidência ou não já me tinham feito a mesma pergunta, mas noutro contexto interpretativo. Nesse tempo estava só. Mesmo muito só. Definitivamente só. Mas agora era diferente. Havia a Natália. Um horizonte que tardava em mostrar-se.
Não respondi à pergunta do empregado. Limitei-me a fazer um gesto afirmativo.
Enquanto ia lendo a ementa, o empregado retirava, paulatinamente, os talheres, o prato e tudo o resto destinado à minha não companhia em frente.
«Olhe, amigo, estou indeciso entre o arroz de marisco e a feijoada de chocos. O que recomenda?»
«Caldeirada.»
Franzi o sobrolho e reli a ementa.
«Mas...»
«Acabadinha de fazer. Safio sem espinhas, raia, tamboril e cação. Não está na lista, mas tínhamos uma encomenda para oito pessoas e faltou uma.»
Mais uma vez em rota de colisão com o imprevisível. Primeiro foram as molduras.
«Concorda, senhor?»
«Ainda bem que faltou um cliente porque gosto muito de caldeirada. Quando é bem feita, claro.»
«E esta é. De certeza que vai apreciar.»
«Demora muito?»
«Conforme disse, está acabada de fazer. É só o tempo de porem na travessa. Bebe tinto ou branco?»
«Tinto. Da casa.»
«Temos em jarro ou garrafa…»
«Pode ser em jarro.»
Não vou descrever como decorreu a degustação da caldeirada.
Seguiu-se melão com presunto, regado com vinho do Porto. Melão maduro, doce e picante. Como eu gosto.
«Café?»
«Sim. E já agora, transmita as minhas saudações ao chefe da cozinha.»
«Transmitirei, senhor.»
Foi então que aconteceu o terceiro momento imprevisível, a confirmar que não há dois sem três.
«Dá-me licença que tome um café consigo?»
Olhei para o intruso. Não consegui esconder uma certa desconfiança. Entretanto o empregado tinha-se retirado discretamente. Quanto ao outro não sabia ao que vinha. Certamente não era só para beber um café comigo. Devia haver outra razão. O melhor era meter-me em silêncio e aguardar pela palavra de quem ficara do lado do jogo.
O homem estava agora meio sorridente, meio sério. Tive que ser eu a lançar a primeira carta.
«Conhecemo-nos de algum sítio do qual não estou a recordar-me?»
Não devia ter mais de quarenta anos. Vá lá, no máximo quarenta e cinco. Talvez fosse um aluno dos meus últimos anos de professor.
«Desculpe. Faz favor de sentar-se. E também mandam as regras da boa educação que se explique ao que vem.»
Se era pedir dinheiro que tirasse o cavalo da chuva. Mas não. O homem tinha bom aspeto. A razão devia ser outra. No entanto, nunca se sabia.
«Obrigado. Não. Não fui seu aluno.»
O homem lia pensamentos?
Não acusei o toque. Não podia ser de outra maneira. O homem tinha sido meu aluno.
«Estou intrigado.»
«Eu também estaria.»
Demorou algum tempo a destapar um pouco do véu. Metáfora infeliz. Não era mulher.
«Em boa verdade trata-se das molduras.»
«Ah!»
Era sorte a mais ficar com elas. Antigas. Do princípio do século passado. Assim, a hipótese do homem ter ido ao café e deixado as molduras em cima do contentor do lixo ganhava força. Contudo, como foi que me descobriu?
«Não as roubei. Que fique bem claro.»
«Pois não.»
«Então?»
Devia ter esperado um pouco. Mais cinco minutos, menos cinco minutos que falta fazia num homem como eu, reformado, que tinha todo o tempo do mundo? Até podia ser o tempo da Natália aparecer. Não, aqui estava equivocado. Ela ia atrasar-se muito. Até parecia que estava escrito.
Entretanto apareceram os cafés.
«Espero que não tenham muita robusta.» Disse o homem.
«Sim.»
Voltei-me para o empregado.
«Pode trazer a conta?»
«Está já pago, senhor.»
«Não compreendo.»
«Se não se importa, fui eu quem pagou.» Afirmou o desconhecido.
«Mas... Então, obrigado. Não era preciso.»
«Claro que era e já passo a explicar. Anda tudo à volta de uma aposta que fiz com um amigo. Primeiro, precisávamos de escolher a pessoa-objeto.»
«Como assim?» perguntei, algo agastado.
Girava tudo à volta das duas molduras.
«Apostei em como ele não era capaz de lhe roubar as molduras. Mas, evidentemente, primeiro tinham que ficar na sua posse. Esperámos pacientemente que o senhor descesse a escadaria do tribunal. Pelas vezes com que consultou o relógio via-se que estava impaciente e parecia esperar por alguém. Só pedíamos a todos os santinhos que esse alguém não aparecesse tão cedo.»
Tinham razão. Esperava que a Natália se despachasse. O tempo passava e ela não aparecia. Então perdi a paciência e desisti de esperar por ela.
«Estou a entender. No momento em que comecei a descer as escadas, um dos senhores colocou as molduras no topo do contentor. Foi assim que aconteceu?»
Acenou afirmativamente com a cabeça e eu impacientei-me. Queria saber mais.
«Depois foi tudo muito simples. O meu amigo ficou para trás e eu comecei a segui-lo.»
«Agora é que não compreendo. Quem devia seguir-me era ele, não acha?»
Qualquer coisa não batia certo.
«Foi assim que combinámos. Na hipótese de entrar em contacto consigo ele ganhava oportunidade para roubar as molduras acaso se distraísse.»
«O seu amigo foi pouco esperto e o senhor pouco honesto com ele ao avisar-me que posso ser roubado. Fazem muitas apostas?»
«Sim.»
«E claro que é você quem ganha mais vezes ou todas as vezes. A partir de agora é impossível alguém me tirar as molduras. O saco de plástico está bem preso entre as minhas pernas. Pensou bem em fazer a aposta. De certeza que vai ganhar que eu não me deixo roubar. Salvo seja, claro.»
Limitou-se a sorrir.
«O seu amigo vai tentar roubar-me. Será que tenho hipótese de vir a conhecê-lo?»
«Depende.»
«Por favor, explique-se melhor.»
«Só se ele falhar e o senhor der conta.»
Perguntei ao desconhecido quanto tempo duraria a aposta. A resposta foi imediata. A aposta acabava mal chegasse à outra margem do rio.
Que se lixe. São minhas, pronto.
Enquanto estava nestas cogitações dei com uma mulher a olhar para mim com uma expressão estranha e também para as molduras. Seria a dona? Deixou-as sobre o contentor enquanto foi ao café. Claro que não. Apenas estava curiosa.
«E então?» perguntei, algo agressivo. «Quer comprar?»
A mulher fez um ar agastado e afastou-se, resmugando.
Pouco depois já estava na rua principal e com as molduras dentro de um saco que comprei no primeiro minimercado que vi. Cada vez estava a gostar mais das molduras. Nem de propósito. Só por um mero acaso fui o primeiro a vê-las.
Que sorte a minha!
Chegou então o tempo de pensar no motivo que levou uma pessoa desconhecida a abandonar aquelas molduras. Uma coisa era certa. Não as deitou para o lixo e isso queria dizer muita coisa, como, por exemplo, respeito pelos primeiros donos das molduras. E a reforçar, as fotografias tinham sido retiradas.
A pessoa rasgou-as, ou decidiu guardá-las religiosamente no seu baú das recordações (isto para não falar no álbum, ou nos ficheiros de imagens do computador).
Voltei a consultar o relógio. Se ainda estivesse à espera da Natália já tinha passado uma hora. Portanto, decidi bem e na hora, pois a decisão levou-me à feliz descoberta daquelas molduras com ornamentos metálicos.
Tinha chegado à rua dos restaurantes quando o telemóvel tocou.
«Olha, João, tenho que ir a Setúbal buscar um processo. Queres ir comigo? Aproveitamos para comer aqueles chocos fritos de que tanto gostas.»
Preferia antes ir ao Analídeo e ao seu peixe grelhado.
Ainda existia o Analídeo?
«Porque não vens cá abaixo degustar comigo um arroz de marisco descascado?»
«É perda de tempo, João.»
«Encontramo-nos por aí…»
«O quê?»
«Quando calhar.»
«Ah sim. Amigo não empata amigo.» Repetiu.
Senti-me mais livre que um passarinho. Daqueles que abandonaram o ninho à procura da primeira aventura que, no meu caso, não era a primeira nem a segunda. Mal adivinhava que a minha vida preparava-se para enfrentar mais um futuro próximo que não tinha planeado. Por enquanto só isto. Não vou adiantar mais.
Conforme disse, estava na rua dos restaurantes. O tempo quente convidava para almoçar na esplanada.
Tudo na mesma. Afinal nada mudara com o passar dos anos. Só que os escudos tinham sido substituídos pelos euros.
Depois de confirmar que as ementas e os preços dos pratos eram muito próximos uns dos outros, sentei-me numa mesa ao calhas.
«O senhor está só?»
Coincidência ou não já me tinham feito a mesma pergunta, mas noutro contexto interpretativo. Nesse tempo estava só. Mesmo muito só. Definitivamente só. Mas agora era diferente. Havia a Natália. Um horizonte que tardava em mostrar-se.
Não respondi à pergunta do empregado. Limitei-me a fazer um gesto afirmativo.
Enquanto ia lendo a ementa, o empregado retirava, paulatinamente, os talheres, o prato e tudo o resto destinado à minha não companhia em frente.
«Olhe, amigo, estou indeciso entre o arroz de marisco e a feijoada de chocos. O que recomenda?»
«Caldeirada.»
Franzi o sobrolho e reli a ementa.
«Mas...»
«Acabadinha de fazer. Safio sem espinhas, raia, tamboril e cação. Não está na lista, mas tínhamos uma encomenda para oito pessoas e faltou uma.»
Mais uma vez em rota de colisão com o imprevisível. Primeiro foram as molduras.
«Concorda, senhor?»
«Ainda bem que faltou um cliente porque gosto muito de caldeirada. Quando é bem feita, claro.»
«E esta é. De certeza que vai apreciar.»
«Demora muito?»
«Conforme disse, está acabada de fazer. É só o tempo de porem na travessa. Bebe tinto ou branco?»
«Tinto. Da casa.»
«Temos em jarro ou garrafa…»
«Pode ser em jarro.»
Não vou descrever como decorreu a degustação da caldeirada.
Seguiu-se melão com presunto, regado com vinho do Porto. Melão maduro, doce e picante. Como eu gosto.
«Café?»
«Sim. E já agora, transmita as minhas saudações ao chefe da cozinha.»
«Transmitirei, senhor.»
Foi então que aconteceu o terceiro momento imprevisível, a confirmar que não há dois sem três.
«Dá-me licença que tome um café consigo?»
Olhei para o intruso. Não consegui esconder uma certa desconfiança. Entretanto o empregado tinha-se retirado discretamente. Quanto ao outro não sabia ao que vinha. Certamente não era só para beber um café comigo. Devia haver outra razão. O melhor era meter-me em silêncio e aguardar pela palavra de quem ficara do lado do jogo.
O homem estava agora meio sorridente, meio sério. Tive que ser eu a lançar a primeira carta.
«Conhecemo-nos de algum sítio do qual não estou a recordar-me?»
Não devia ter mais de quarenta anos. Vá lá, no máximo quarenta e cinco. Talvez fosse um aluno dos meus últimos anos de professor.
«Desculpe. Faz favor de sentar-se. E também mandam as regras da boa educação que se explique ao que vem.»
Se era pedir dinheiro que tirasse o cavalo da chuva. Mas não. O homem tinha bom aspeto. A razão devia ser outra. No entanto, nunca se sabia.
«Obrigado. Não. Não fui seu aluno.»
O homem lia pensamentos?
Não acusei o toque. Não podia ser de outra maneira. O homem tinha sido meu aluno.
«Estou intrigado.»
«Eu também estaria.»
Demorou algum tempo a destapar um pouco do véu. Metáfora infeliz. Não era mulher.
«Em boa verdade trata-se das molduras.»
«Ah!»
Era sorte a mais ficar com elas. Antigas. Do princípio do século passado. Assim, a hipótese do homem ter ido ao café e deixado as molduras em cima do contentor do lixo ganhava força. Contudo, como foi que me descobriu?
«Não as roubei. Que fique bem claro.»
«Pois não.»
«Então?»
Devia ter esperado um pouco. Mais cinco minutos, menos cinco minutos que falta fazia num homem como eu, reformado, que tinha todo o tempo do mundo? Até podia ser o tempo da Natália aparecer. Não, aqui estava equivocado. Ela ia atrasar-se muito. Até parecia que estava escrito.
Entretanto apareceram os cafés.
«Espero que não tenham muita robusta.» Disse o homem.
«Sim.»
Voltei-me para o empregado.
«Pode trazer a conta?»
«Está já pago, senhor.»
«Não compreendo.»
«Se não se importa, fui eu quem pagou.» Afirmou o desconhecido.
«Mas... Então, obrigado. Não era preciso.»
«Claro que era e já passo a explicar. Anda tudo à volta de uma aposta que fiz com um amigo. Primeiro, precisávamos de escolher a pessoa-objeto.»
«Como assim?» perguntei, algo agastado.
Girava tudo à volta das duas molduras.
«Apostei em como ele não era capaz de lhe roubar as molduras. Mas, evidentemente, primeiro tinham que ficar na sua posse. Esperámos pacientemente que o senhor descesse a escadaria do tribunal. Pelas vezes com que consultou o relógio via-se que estava impaciente e parecia esperar por alguém. Só pedíamos a todos os santinhos que esse alguém não aparecesse tão cedo.»
Tinham razão. Esperava que a Natália se despachasse. O tempo passava e ela não aparecia. Então perdi a paciência e desisti de esperar por ela.
«Estou a entender. No momento em que comecei a descer as escadas, um dos senhores colocou as molduras no topo do contentor. Foi assim que aconteceu?»
Acenou afirmativamente com a cabeça e eu impacientei-me. Queria saber mais.
«Depois foi tudo muito simples. O meu amigo ficou para trás e eu comecei a segui-lo.»
«Agora é que não compreendo. Quem devia seguir-me era ele, não acha?»
Qualquer coisa não batia certo.
«Foi assim que combinámos. Na hipótese de entrar em contacto consigo ele ganhava oportunidade para roubar as molduras acaso se distraísse.»
«O seu amigo foi pouco esperto e o senhor pouco honesto com ele ao avisar-me que posso ser roubado. Fazem muitas apostas?»
«Sim.»
«E claro que é você quem ganha mais vezes ou todas as vezes. A partir de agora é impossível alguém me tirar as molduras. O saco de plástico está bem preso entre as minhas pernas. Pensou bem em fazer a aposta. De certeza que vai ganhar que eu não me deixo roubar. Salvo seja, claro.»
Limitou-se a sorrir.
«O seu amigo vai tentar roubar-me. Será que tenho hipótese de vir a conhecê-lo?»
«Depende.»
«Por favor, explique-se melhor.»
«Só se ele falhar e o senhor der conta.»
Perguntei ao desconhecido quanto tempo duraria a aposta. A resposta foi imediata. A aposta acabava mal chegasse à outra margem do rio.
Levantei-me para cumprimentar o meu interlocutor.
«A companhia está desfeita a companhia. E obrigado pelo almoço.»«De nada. Tive muito gosto.»
Havia ainda a hipótese de ser roubado no barco.
Peguei no saco de plástico e franzi o sobrolho. Estava quase tão leve como uma pena. E havia razão para isso.
«Não me diga!»
«Ai digo digo.»
E adivinhei que o amigo dele aproveitou a oportunidade para roubar as molduras quando me levantei para despedir-me do apostador que tinha feito batota.De certeza que tinha visto o outro roubar as molduras. E com que pinta! Só deixou o saco.
«Foi mesmo agora! Viu o ladrão seu amigo?»
«Confesso que não.» Deve ter mentido. «Como vê, perdi a aposta. Até à vista, meu amigo.»
«Ai digo digo.»
E adivinhei que o amigo dele aproveitou a oportunidade para roubar as molduras quando me levantei para despedir-me do apostador que tinha feito batota.De certeza que tinha visto o outro roubar as molduras. E com que pinta! Só deixou o saco.
«Foi mesmo agora! Viu o ladrão seu amigo?»
«Confesso que não.» Deve ter mentido. «Como vê, perdi a aposta. Até à vista, meu amigo.»
A aposta que eles tinham feito não era bem como ele me contou. Mas, paciência. Afinal ganhei um almoço.
«As malditas das molduras eram mesmo bonitas!»
«As malditas das molduras eram mesmo bonitas!»
«Pois eram.»
E afastei-me na direção do cais.
«Coisa estranha! Não senti nada. E pimba! Lá se foram as molduras.»
Estava um barco a partir e tive que dar uma corrida para não ter que esperar meia hora. A Natália nem ia acreditar nesta história das apostas.
O barco tinha dois pisos e escolhi o de cima. Estava quase vazio. Andei poucos metros por causa dos balanços.
«É melhor sentar-me num destes bancos corridos antes que caia.» Pensei.
E se bem o pensei, assim o fiz.
«Essa agora!»
No banco da frente estavam as duas molduras antigas e bonitas que tinham os enfeites metálicos.
Havia tantos bancos vazios e logo em frente àquele em que me sentei…?
Alguém deu-me com um spray e a seguir colocou as molduras no banco em frente. Quando voltei a estar consciente, lá estavam elas. Só podia…
Mas foi mesmo assim que aconteceu?
E afastei-me na direção do cais.
«Coisa estranha! Não senti nada. E pimba! Lá se foram as molduras.»
Estava um barco a partir e tive que dar uma corrida para não ter que esperar meia hora. A Natália nem ia acreditar nesta história das apostas.
O barco tinha dois pisos e escolhi o de cima. Estava quase vazio. Andei poucos metros por causa dos balanços.
«É melhor sentar-me num destes bancos corridos antes que caia.» Pensei.
E se bem o pensei, assim o fiz.
«Essa agora!»
No banco da frente estavam as duas molduras antigas e bonitas que tinham os enfeites metálicos.
Havia tantos bancos vazios e logo em frente àquele em que me sentei…?
Alguém deu-me com um spray e a seguir colocou as molduras no banco em frente. Quando voltei a estar consciente, lá estavam elas. Só podia…
Mas foi mesmo assim que aconteceu?


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