segunda-feira, 5 de junho de 2023

Contraciclo

 


E
la amava as oliveiras. Sempre que via uma oliveira, corria a abraçá-la.
Porquê?
Talvez noutra encarnação tivesse sido uma oliveira.
Quem podia confirmar?
Eu tinha uma atração fatal por ela. E ela dizia-me que era proibido falar de paixão. Muito menos de amor.
«Só posso dar-te amizade. Recentemente saí muito ferida de uma relação, sabes? Não quero repetir o erro.»
Que sabia eu, cego que estava de paixão?
«Quem sabe... amanhã? Só Deus sabe.» 
«Mas Deus não fala comigo...»
«Depois eu digo-te. Se Ele me disser. Hoje só posso dar-te amizade. Aceitas?»
E foi assim que aconteceu. Ela só tinha amizade para me oferecer. E eu aceitei. Na esperança que um dia me pudesse dar mais que amizade.
Já passou. Não aconteceu. Ainda hoje penso nesta relação de amizade e considero-a muito estranha. Entre outras evidências, estávamos ao telefone até altas horas da madrugada e ela era a principal responsável. E quando lhe chamava a atenção para as horas, retorquia: 
«Queres mandar-me embora?» 
Só podia ser coisa de namorada que amuava. E para mim, um argumento de peso a ter em conta. Ela tinha mais que amizade por mim e não se decidia porque ainda estava insegura. Mas os dias de incerteza começavam a pesar. Admitia que não ia dar e talvez fosse melhor desistir e refugiar-me no meu galho, à espera de outros dias. E assim fiz. Assim fiz porque aconteceram outros dias. Diferentes.
Foram muitos os sinais contraditórios que recebi e que me confundiram. Não sei se agiu propositadamente numa estratégia de dizer que não quando queria dizer sim. Ora esticava a corda, ora lhe dava uma folga razoável. As nossas conversas continuavam a prolongar-se noite fora. Eu do lado de cá. Ela do lado de lá.
«Olha que já passa das cinco da manhã!»
«Queres mandar-me embora?»
Mais uma vez o nevoeiro a esconder a verdade!
E eu, do lado de cá, ficava confuso. E ela, do lado de lá, tinha a certeza que era só amizade. Talvez.
Mas porquê perdermos horas a fio num diálogo que acabaria, fatalmente, de pender para o lado do insípido, bloqueado que estava o tema "amor", mas que parecia mostrar-se perto de uma linha vermelha flexível?
Era proibido explanar temas que afinal estavam sempre no ar nas nossas conversas. Eram proibidos os avanços, mas ela deixava que avançasse até muito perto da tal linha vermelha flexível. Deixava que sonhasse, que a paixão aquecesse ao rubro, lentamente, mas longe de se fazer em cinza.
«Não, Mário. Eu disse sempre que não, entendes?»
«Pareceu-me que querias dizer sim!»
Talvez ela tivesse razão. Mas nunca a ouvi dizer nunca.
«Amanhã, quiçá depois...»
Então era assim:

«Hoje é talvez não e só Deus sabe se é nunca!»
O tempo correu. As nossas conversas, eu do lado de cá e ela do lado de lá, começaram a durar menos tempo. Cada vez menos tempo. A ligação ia quebrar-se em breve. E o meu sonho corria o risco de fazer-se em nada.

E ela?, afinal sabia o que queria?
Até que pensei, mas não disse logo a seguir. Nem depois:
«Esgotaram-se as palavras.»
Verdade. As palavras não iam voltar.
Então o meu silêncio imperou e ela pareceu concordar. Talvez estivesse noutra amizade. Talvez sim, talvez não.
E eu?, entretanto que foi feito de mim?

Um dia, quando menos esperava, o telemóvel tocou e vi o seu nome no visor.
Ops!, que surpresa!
Queria mais amizade?
«Olha, Mário, estou numa ação de formação de Matemática e sinto-me perdida. Preciso da tua ajuda. Podes vir...?» 
Estava desempregada e andava de ação de formação em ação de formação. 
A ir ter com ela seria a quarta vez que passava dois ou três dias em sua casa sem que nada acontecesse. Na proximidade, já não era primeira vez que eu, ela e a amizade fazíamos um trio perfeito e inquebrantável. Ou talvez desta vez fosse a vez (1).
Nem sequer pensei mais porque não houve quarta vez. Coisas da vida que dá muitas voltas. Afinal, o fogo sempre se fez em cinzas e estas foram para longe, levadas por um certo vento de mudança.
«Tenho pena, mas não posso.» 
E para mim: 
«É demasiado tarde.»
Estávamos de novo em contraciclo. Era a minha vez de dizer não! 

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