sexta-feira, 2 de junho de 2023

Fragmentado

 


Sem nexo...
Que frio!, que solidão! Frio? É só o reflexo da solidão em que me encontro. Tanto me faz estar encurralado entre as quatro paredes do quarto como perder-me na multidão anónima da avenida mais movimentada do planeta. É assim que eu estou. Como me sinto.
Já fizeram a experiência da negação de tudo num dia cinzento em que o céu está azul?Nem o azul vira cinzento, nem o cinzento vira azul. Por vezes, cinzento-azulado. Talvez seja possível. É no que dão as formatações cegas para as quais se recorre quando se pretende apagar as recordações dos tempos azuis, tão válidas para virem à ribalta como as outras, as que verdadeiramente queremos apagar. Umas não podem existir sem as outras. Permanecem. Felizmente umas e infelizmente as outras.
Sabem uma coisa? Não sabem porque não são adivinhos. Mas, adiante. Já não sou o caçador dos amores impossíveis. Nem o eterno amante dos acontecimentos na "tela dos corações caídos". Nem o perdedor de apostas no último minuto. Ou assim. Todas essas merdas.
Era outro tempo. O tempo do vendedor gratuito de ilusões às mulheres que tinham saído feridas por amores frustrados. Mas não afirmo que as ilusões tinham um preço. Nem, tão pouco, dava abrigo às paixões ainda com sangue vivo a correr. Nem tão pouco ainda as descartava logo depois de me servir delas. Nem as usava até à exaustão.
Se afirmarem que estou a mentir, salto no próximo atalho e depois fico parado, à espera, com os sentidos ativados até ao máximo, não vá acontecer um falso alarme, sinal que não estou a dizer a verdade.
Por vezes é preciso parar, olhar e ouvir...
Os pântanos abundam por aí (quem não os sente?), sem outra lei que não a sua de serem simplesmente pântanos, criados à medida dos incautos e também dos que os desejam para se esconderem.
Que frio!, que solidão!
Esta viagem que estou a fazer pela imensidão aparentemente desgovernada dos neurónios, já dura há muitos anos e continua a ter linhas e linhas para serem percorridas.
Mas porque viajo tanto se estou sempre aqui?
Já lancei para o éter milhares de palavras. Nenhuma se perdeu. Estão lá todas, prontas a serem analisadas pelos pesquisadores silenciosos que chegam, de mansinho, à procura de despojos que hoje agarram, ligam e amanhã desmembram-se. É natural. Foi sempre assim. Mas pegar nos despojos e não conseguir uma palavra para formar, não é lógico, não é próprio de seres racionais. Assim como o "gosto" e o "não gosto" de uma certa rede social que todos sabemos qual é, e que também usava. Mas agora já não falo com os meus "amigos do gosto e não gosto", nem falo de mim, das histórias e assim. Mas não deixo de ser um deles, entenda-se, embora já não esteja com eles. Ficaram os tais despojos.
Tinha tantos amigos em rede! E agora que frio!, que solidão!
Quem são. Como são. O que pensam. Se chegaram, defecaram e foram-se. Se... muitas coisas mais.
Somos todos reais. De carne e osso. Emotivos ou frios. Sensíveis ou nem por isso. Somos racionais, mas nesta tela sem fim comportamo-nos como fantasmas modernos que já não usam correntes e assim não são denunciados. Deslizamos no mais alto ruído do silêncio na eterna pesquisa dos dados que guardamos, muitas das vezes quase certo para não voltarmos a eles.
E tem que ser assim? Não há volta a dar?
As linhas de viagem, que se ligam, cruzam e entrecruzam, já não são o que eram. Agora só vejo água a correr no leito de um rio. Gotas de água que não podem voltar atrás, imitando a vida ou a vida imitando-as. Mas o barco parou. Esse pode parar e voltar atrás, mas sem vontade própria. Ou por "vontade" exclusiva das águas que foram na corrida torrencial e já não voltam. Contemplo o leito agora seco do rio e traz-me desconforto. Até posso ser eu a contemplar-me como era ontem. Acontece. Por vezes acontece, mas não é sinal que a ausência das palavras signifique que o plano de viagem esteja adiado. Foi preciso parar para fazer outro.
Há mais alternativas. Mas não sei como fugir sem ser a fugir.
Recuando no tempo, se antes desta autoestrada neurónica existir não vislumbrei alternativa porque me queixo agora?
Ah! Touché. Afinal sempre vou lançar as palavras fragmentadas para o éter e ficar à espera das resposta que nunca virão. Gosto e sempre gostei de as lançar.
Porque havia agora de "deitar todas as canetas fora"?
O barco segue viagem, quer o rio leve água ou não, porque navega de metáfora em metáfora. E será sempre assim até que já não haja este rio diferente do outro que era.
Hoje faltam as ideias novas e repetem-se as outras, bolorentas.
Macaco de imitação!
Plágio! Fizeste plágio das tuas ideias!
E o sinal vem com o contador parado. Mas os visitantes hão de voltar. Nem que seja porque procuram as novas ideias.
Concordo que a nossa vida é feita de ciclos. Uns fecham-se. Outros abrem-se. E é bom sinal que assim seja. Não sei se o meu ciclo fechou ou está a abrir.
Qualquer que seja a situação, vou quebras as amarras que prendem o barco à margem, arregaçar as mangas e atirar-me às águas do leito seco. Entretanto as novas ideias estão a chegar, embora digam os iluminados que já não há novas ideias. Só remendos. Apenas se dão voltas às velhas, já gastas.
Vou contrariá-los? Talvez.
Quantos são hoje? Plágio.
Que bom que é... Plágio.
Quero pensar só em ti para te ter sempre comigo! Plágio meu. Vou multar-me.
Estejam atentos, amigos e amigas invisíveis do meu mundo sem nexo. Hoje quis que fosse assim. Amanhã o barco real terá água real para poder navegar e oxalá o rio não esteja seco lá mais para diante...
Gostava tanto!
Gostava tanto de ter saltado de ontem para um amanhã longínquo e esquecer-me de mim.
É que hoje sinto-me em dia não. Como um peixe fora de água. Bom, é uma metáfora que está muito batida. Preciso de encontrar outra. Estou saturado dos dias azuis em que me sinto cinzento. Façam também desaparecer esses dias estafados.
Mas hoje não é como todos os dias que se repetem?
Estou triste? Talvez. Nostálgico? Talvez. Mágico? Faz-me rir só de pensar. Se fosse mágico, não tinha perdido o que já foi meu.
Então, vamos por partes. Preciso de ter uma coisa que me faça sair do marasmo. É um absurdo, se nem sequer desejo ser senhor do imprevisto que me espera depois de saltar o muro que me prende a vontade de sentir à solta as emoções. Por exemplo, assaltar um banco e sair sem uma nota para recordação. Balear uma sombra e correr a apanhar a bala. Esventrar um corpo invisível. Ver o meu duplo a passear no jardim, ir ao seu encontro e descobrir que sou eu e o duplo está a ver-me do sítio onde eu estava. Chamar a loucura e tratá-la por tu após cortes fatais nas sinapses dos neurónios. E tudo mais. É no tudo mais que reside o fundamental.
Não se assustem com este jogo de palavras. Estou para aqui a chamar cá para fora os pensamentos poluentes que ajudam a passar o tempo que se escoa. O tais pensamentos que deslizam como patins sobre uma crosta fina e escorregadia de gelo e cujo destino é o que esperamos que seja.
Sinto-me nervoso por estar calmo. O ócio faz-me stress. Quando o vento assobia a canção da tempestade, fico indiferente porque não passa de um assobio que sibila e foge de mim. Para o largo. Bem longe, porque tenho uma tempestade mais forte cá dentro.
Não gosto desta vida fútil. Não me motiva. Nem sequer me amedronta se, alguma vez, vir no céu o cogumelo da bomba a anunciar o que já soubemos como foi porque aconteceu duas vezes e pode acontecer amanhã onde sabemos.
E quando estou assim, a força escura está comigo. A energia que leva as galáxias para longe umas das outras até que o fim vem e elas ficam no frio as envolve. Não há outro motivo que não seja o de rodar a chave e fechar o universo, porque outro será gerado e assim, até que eu e o ócio nos sentemos à mesa das negociações, a propor e a receber, a olhar-nos um para o outro, esperando que um dos dois se decida na proposta final.
Estou tão farto desta imitação de viver que até o vício foge de mim. O afeto esconde-se. O ódio pede licença para entrar. Só entra se vier do amor que gerou um dia e ficou perdido algures, lá muito para trás.
Como se salta de ontem para amanhã?
Todo este cenário que me envolve é insuportável. Tenho que tomar uma decisão. Que decisão? Beber um copo de água porque tenho sede e imaginar que estou a ser envenenado, lentamente, com arsénico. Até que a loucura se instale de todo.
A propósito, há loucura cá dentro. À solta. É isso. E com toda esta tempestade louca a instalar-se, o que sinto é o sinal que ela veio para ficar, porque estou a viver dia após dia um viver que não passa de um sonho a contar uma história num tempo curto que não sei determinar.
Finalmente uma ideia válida. Algo visionário que veio do sonho que culmina com um desejo:
... gostava tanto de ser a flor do cato que abre só por um dia no deserto que é eterno, que tem o cato que mostra a flor só por uma dia, que me teve ontem, que me tem hoje e que me terá sempre...
... e mais ainda: gostava tanto de renascer ao crepúsculo para sentir saudades de viver só um dia no último dia do ano que me resta; um dia especial, só para ti, se é que não estiveste dentro do sonho que vivo cá dentro, que não dura sequer uma hora e é toda a minha vida...
... já agora, porque as palavras estão a esgotar-se; vem ter comigo mesmo que sejas um sonho; vem, nem que seja por um momento e afasta de mim este tédio que me consome, senão consumo-o eu...
Esta tristeza não tem cura porque não fala comigo e assim não sei o porquê do meu mutismo e não posso afastá-la. Bem como a loucura que simulo estar a possuir-me. E por tudo isto, vem, amor ou ilusão de amar! Vem ter comigo, mesmo que não seja por tudo isto.
Gostava tanto só de te rever!
O resto...?
Não passa nem passou da porra de uma monotonia desarmónica. 
Atalhos entre caminhos paralelos.
A última coisa que me passaria pela cabeça era acreditar numa frase que não é da minha autoria, e não sei de quem, que diz “não vais conhecer o amor se não te entregares a ele”.
Foi o que tentei fazer e deu no que deu. A verdade está cada vez mais distante e o que se passa é, na realidade, o resultado de um puro ato de magia. Infelizmente mais nada. Aconteceu e não volta acontecer.
Aqui estamos. Lado a lado. Cada um com a sua verdade. Cada um a tentar adivinhar o pensamento do outro. Estamos lado a lado. Não frente a frente. Não de olhos nos olhos. Um, com vontade de dizer “até amanhã, meu amor, dorme bem”. O outro... bom, é melhor não dizer.
Eu sei o que penso neste momento, mas não sei o que pensas. E o mesmo se deve passar contigo. Isso preocupa-me, porque, nessas condições estamos a ver-nos em caminhos paralelos. Provavelmente à procura de um atalho que nos leve ao encontro um do outro.
Mas haverá atalhos entre caminhos paralelos? 
História romântica  que devia acontecer amanhã.
Não sei onde estou. Chegou a noite. As duas noites. A minha do costume e a repetida noite estrelada. Morna, como é habitual descrever. Mas sinto frio cá dentro. Um frio que me gela até aos ossos. É terrível este frio estranho numa noite morna e estrelada que podia convidar ao sonho e há algo que me bloqueia e fragiliza. Os escaninhos da memória, onde se escondem metros e metros de filmes que não quero recordar, agitam-se e estão prontos a soltarem segredos de há muito. Foram mais que longas horas à espera. Sonhos que começaram e não acabaram. Sonhos que não passaram de ondas a desfazer-se em espuma na praia dos desencontros dos desencantados.
É uma injustiça ver a minha onda a afastar-se para lá da linha do horizonte, a perder-se para sempre. Oxalá não seja a última porque a solidão mata. Não quero ficar sozinho com a minha solidão.
Então quem devia estar comigo à beira-mar, esperando pela onda?
Olho o céu da noite. Estrelado, já disse. De súbito, foi aquecido pelo riscar efémero de uma estrela cadente. Coisa rara. As estrelas cadentes são raras nesta época. E muitos são os desejos que ficam por concretizar-se se não houver uma estrela cadente, um asteroide imprudente que entrou na zona de influência gravítica da Terra.
«Pede um desejo!» diz uma voz
Olho em volta. Só estou eu e a voz. Quem me dera que o desejo se realize. Mas não importa o desejo, pois sinto-me ausente nesta praia dos malditos, numa maldita noite que vai parir o dia de amanhã, vazio, que nada traz para mim porque é vazio. A não ser a sucessão monótona dos dias e das noites em que nada de especial , ou quase nada, acontece. Simplesmente acontece. Admitindo o quase:
«Então o que vai acontecer?»
Tanto pode ser mau, como não ser bom. Bom. Quero o bom. Que bom que é não ser quem vai acordar amanhã. E tenho sorte porque amanhã é o dia do outro. Ao menos, esse não se enamora nas noites estreladas ou coisas parecidas, nem precisa de esperar pela onda que não vem e tem sempre tudo o que quer e eu o que não quero. Também deve ser monótono. Deixemo-lo em paz. Por enquanto.
Agora a noite começa a estar fria. É normal esta transição. Sinal que o tempo continua a passar e ainda está comigo porque a minha onda ainda não chegou, nem está para chegar. Não espero nada de novo, como já é hábito. Mas como não tenho planos, mesmo que a noite esteja cada vez mais fria vou ficar por aqui feito masoquista.
Ah!, se ela pudesse estar agora comigo, à beira-mar, a ouvir também o ruído das ondas! Muito juntos, como um só, esperando pela onda que nunca virá!
Mas quem é ela, senão uma figura de estilo, se houve tantas elas?
Também é melhor não pensar nela, se é que existe, porque cansou-se de esperar. Não pela onda.
Olho para dentro e vejo o outro eu que não eu mas eu. O do costume. Pois. Agora percebo. Descobri o seu segredo. Julga-se mago das palavras, mas não passa de um simplório manipulador e ladrão dos meus pensamentos. Assim, obrigado. Também eu conseguia. Com esse trunfo, tem tudo o que quer e às vezes não quer. Fomiga as abelhas e rouba o mel.
E se tentasse ser como ele?
Não quero. Prefiro lutar para ter hoje o que vou perder amanhã. E é lógico. Como acontece aos outros, um dia vou chegar à conclusão que fica cá tudo menos eu.
Por momentos deixo de ver o profundo negro do céu salpicado por milhões de estrelas, muitas delas invisíveis ao alcance dos meus olhos. Mesmo que sinta frio, é bom estar aqui, à beira-mar. O outro eu ausentou-se. Talvez tenha farejado uma nova paixão. E, sorte a minha, deixou sobre a secretária a esferográfica e o papel. É um ser à moda antiga. Foge do computador como o soldado amanuense das armas. Mas tem uma virtude. Manipula menos as palavras. Não que faça mal. E, às vezes, até dá jeito virar de pernas para o ar um texto. Baralhar as cartas do jogo sujo e distribuir de novo para ficar tudo na mesma. Ou mais sujo. 
As histórias. Vejam este sorriso de vencedor. Finalmente vou conhecer o seu segredo. Descobrir o centro donde vêm suas as histórias. Se ele tira partido delas, também posso aproveitar-me. Ou não me chame eu.
Cá estão as histórias que ainda não saíram. Vou lê-las, separar o trigo do joio. Há muito trabalho pela frente. Ou julgo eu que há.
Mas que fui fazer, se só vejo joio?
Ah!, estas, não as quero. Afinal entrei no sítio negro da memória. Logo ia acontecer o imprevisível. Azar o meu. Não quero ficar aí. Tenho que fugir a sete pés.
Mas onde estão as histórias que ainda não foram contadas?
«Estão aqui. Eu sou o seu guardião. Desculpa. Digo que estou a sorrir de gozo porque sei que não me vês. Que história querias ter nas tuas mãos? Tenho soluções para tudo.»
«Mas quem és tu, voz?»
«Adivinha.»
«Sou tu. Eu.»
Só me faltava mais esta! Fingiu que se ausentava e apossou-se de novo da esferográfica e do papel que lhe roubei e agora quer bloquear-me aqui, no centro das histórias que não estão para sair e sem ter acesso às outras. Agora vai manipulá-las à sua imagem. Antes continuar na estafada praia dos desencontros dos desencantados, bla, bla, bla, a ver o céu da noite, estrelado, aquele céu que inspira todos os sonhos impossíveis, do ser prisioneiro de mim próprio.
«Tenho uma história para ti. Queres ouvir?»
Admito que sim, que quero, mas interrogo-me se não a rejeitou porque a mesma não tinha um final feliz.
«E que história é?»
«Depois vês. Mas aviso-te. Ou esta história ou nada.»
Agora vem com chantagens. Ou a história ou nada.
«Não vou jogar no escuro.»
Chego bem para ele, mas não basta. Lidar com entes invisíveis é coisa difícil. Mas não impossível. Já não é a primeira vez.
«Então, ficas com nada.»
Deixei de ouvir a voz. Eu. Afinal era o outro eu. O manipulador. O guardião das histórias.
Será que vou arrepender-me por não aceitar a história?
E amanhã, o que me espera o amanhã, onde o tempo parou para esperar por mim, quando entrei no centro das histórias? 
A doçura da mulher mestiça.
Agora os olhos perdem-se na distância. Oiço o eco da voz, vejo uns olhos negros e profundos, sinto o contacto suave de um corpo mestiço. O convite erótico de uma mulher envolta num lençol de banho que vai deixar cair.
Afinal sei qual é a história. Já foi contada!
Na tela dos corações caídos, mundo do eterno virtual, estamos juntos um momento. Eu e o seu olhar profundo, o contacto da sua pele mestiça e a voz doce que me sussurra sonhos de ontem para amanhã. Doce Selma, que tesão! Que saudade!
O outro eu enganou-me. Mais uma paixão levada pelo vento; e se este sopra do sul traz de volta tempestades interiores que deixam feridas profundas. 
Não as quero, mas este é talvez o meu destino. Tê-las iguais às que já foram contadas.
Fico a pensar.
«Então?»
É isso. Vou voltar à beira-mar, onde estive no tempo das palavras. Por outras palavras, onde tenho estado sempre. Mas, uma coisa... o tempo que teimava em voltar do tempo que ontem parou, não o quero. Só desejo contar uma história de hoje para amanhã. A única hipótese que me resta é esperar pela onda certa que não virá. 
Então e a alma?
Admitindo que existe, onde mora a alma?
Se ela existisse tinha a solução para esta dúvida que me atormenta. O que vivemos e sonhámos são só recordações no presente e não existirão no futuro senão recordações. Muita coisa que nos aconteceu ficou na memória. Na minha memória. Só na minha memória, porque um dia decidiste que devia ser assim. Só eu a recordar a nossa história. Mas atraiçoei-te. Lancei-a para a nuvem.
Desconheço a causa da tua partida. Não quis dizer fuga. Prefiro admitir que tudo aconteceu porque tinha que acontecer.
Foi grande o desejo que sempre tive de beijar os teus lábios. Quis o destino que só ficasse a saudade de um sonho que não passou de uma ilusão. Não sei o que foi feito do nosso sonho.
Há um abismo profundo a separar os caminhos de ontem e de hoje. Há mil promessas que ficaram por cumprir. Lamento muito. Nunca te esqueci. Continuo a imaginar uns olhos tristes e longínquos a fitarem-me em segredo, talvez na contemplação hipnótica de um deus quase deus para ti e que afinal parece que tinha pés de barro. É triste admitir. Tardiamente estou a retratar-me. Perdoa-me. Fui levado por impulsos externos que não consegui controlar. Mas não só. Hoje é doloroso viver no presente e não estares comigo. Tão doloroso que chego a pensar que me esqueci de ti. Talvez por isso, para manteres ardente a chama, julgo que ainda me envias miragens. Tão perfeitas e tão diferentes que sou arrastado na torrente das dúvidas que, mais tarde ou mais cedo, desaguam num imenso estuário virtual. Nada bate certo. Tenho saudade dos teus beijos. Mas será que alguma vez nos beijámos? Bem sei que é um paradoxo e tu não podes responder. Os teus lábios estão frios. Sei que estão frios, embora não os possa sentir. Não te vejo, não te vejo! Tudo me diz que estás próxima. Talvez à minha volta. Mas tenho dúvidas evidentes. Perdi-te só por minha culpa. Hoje só resta a recordação. Ainda ontem, quando nos encontrámos, eras a rapariga do vestido branco e eu o rapaz da camisola azul. Como te amava! Tu, não sei. Talvez gostasses de mim e não me amasses. Sempre te vi jovem. Quero acreditar que nunca foste a mulher que outro depois beijou. Sou um ingénuo. Mas nada me impede de sonhar que ainda és minha. Que um dia virás ao meu encontro, tal como o destino nos aproximou naquela noite morna de setembro. Lembras-te? Esse encontro foi real. Bem sei. Não deu em nada. Só mais tarde aconteceu o verdadeiro encontro em que fizemos promessas de amor eterno. Mas promessas que foram esquecidas porque nada é eterno. O nosso corpo não passa de um invólucro. Sim, estamos de passagem. Então e a alma?, dirás se conseguir ouvir-te. Talvez a alma de cada um seja eterna. Que bom que era poder destruir este presente que está esburacado pelo rebentamento de quimeras, de rosas sem perfume que enfeitam desejos não realizados, desencantamentos provocados por visões que não passaram de outra coisa senão visões. Tinha tanta coisa para te dizer! Tanto amor para te dar. Mas estás longe. Demasiado longe para chegar a ti. Talvez demasiado perto para ter a certeza que estás perto porque estou cego para o teu mundo. Desconheço quem nos afastou de repente. Lembras-te?, eras uma estrela que brilhava no céu só para mim. O nosso mundo perdia-se na imensidão e, paradoxalmente, mais ninguém cabia nele. Hoje és uma estrela que deixou de brilhar e a minha caminhada já não tem rumo. Desisti. Creio que desisti. Quem me dera ter desistido de continuar a desistir!
Talvez os teus lábios soubessem a morangos silvestres. Lábios que ficaram gravados nas cartas que me escreveste. Só ficou o odor do teu batom. Mas estou zangado contigo. Não por causa daquela treta do batom nas cartas. Sim porque partiste sem sequer dizeres adeus.
Sinto a tua proximidade. Não te vejo. Imagino que estás aqui. Dá-me um sinal por mais ténue que seja. Nem que seja uma miragem. Quero acreditar que estás ao meu lado. Ter a sensação que és tu. Que me tocas e não sinta o frio do toque, embora acredite que sinto. Não vai acontecer porque aconteceu e eu não senti. Assunto arrumado.
Onde estás?
Só o ruído do silêncio me responde. Quem nos destinou e deixou que falhássemos foi castigado pela teoria do big bang. Bem feito!
No céu brilhava uma estrela que era a minha luz. Mas um dia partiste sem um aviso, levada pelo vento sul das tuas tempestades interiores e ficaste perdida no constelado do céu onde agora moras com outras estrelas impossíveis de alcançar. Mas antes da tua viagem fatal, ouvi dizer que se apaixonaram por ti. Ouvi dizer que me esqueceste. Não acredito. Não quero acreditar. De qualquer forma, mais uma vez digo que morreu o sonho que construímos e logo destruímos. Agora só há presente e esquecimento. O presente de uma vida diferente e o esquecimento de uma estrela que brilhava no céu. Agora já não há nada que possa fazer. Voltar atrás é impossível. E assim, nunca mais te verei, nem poderei simular o que sinto e me faz crer que és parte só minha. 
Há quem diga que te ouve chorar com pena de não teres sido minha em vida. Não comento o que não consigo atingir. Ah... se eu pudesse ouvir-te! Se não houvesse o vazio a calar os teus lamentos e a neutralizar os meus impulsos!
Será que é proibido ver-te e ouvir-te? Não haverá uma janela de oportunidade? Por exemplo, um portal que encurte as distâncias inatingíveis...
O que sentem as almas? Como comunicam? Onde estás agora e para onde vais quando não estás agora...? Nada do que possa ser dito será dito. Tudo bem. Seja. Mas diz-me ao menos onde moras para ir ao teu encontro e assim saber finalmente porque decidiste partir. 
Se a tua alma existe e já não falas comigo, não tem lógica dizer que ainda hoje te procuro. 
Quem espera por mim...?
Foi há muito. Era jovem, irreverente, mas introvertido. O meu mundo estava disponível para lá caber só quem eu quisesse. Havia sempre um pequeno espaço para o sonho e onde o amor podia ficar. Havia. Só que trazia consigo uma magia especial que me trocava as voltas. Quando o amor batia à porta e eu sorria, feliz por acolhê-lo, logo a paixão se antecipava. A paixão de sempre. Cúmplice das nuvens passageiras que deixavam um rasto de sabor a fel.
Mesmo assim, um dia ofereci-te uma rosa vermelha. Retribuíste com um sorriso sedutor. Olhei de uma forma especial, admirado e hesitante em aceitar esse sorriso diferente dos outros sorrisos que me cativaram.
Mas serias tu a dona do sorriso? Talvez tivesse perguntado.
O manto vermelho da paixão guardou o momento do sorriso diferente e perguntaste  a ti própria se estava a chegar um novo acontecer. Um amanhecer que nunca tinhas conhecido e que te excitava. Ao mesmo tempo, em mim corria o tempo do rio fogoso e inconstante que iniciava a sua viagem turbulenta, sem regras, na procura natural da sua afirmação.
Talvez tivesse acontecido no mês de todos os enganos e foi esse o engano. O setembro das promessas vãs que foi o começo do tempo da paixão que levou ao estigma do ciúme.
Como estavas bonita nas noites quentes! Esses teus lábios rubros eram cúmplices arrebatados das tais noites quentes e inebriantes. Mas essas paixões que vieram depois não eram como as andorinhas que voltavam sempre ao mesmo beiral. Longe disso. Abafadas pelo vento suão, acabavam por vestir mantos ardentes que se consumiam num instante e faziam-se em cinza fria.
De desencantamento em desencantamento tornei-me arquiteto de paixões. Aprendiz de lições mal estudadas recomecei a viver na ânsia de encontrar outro amor. Mas não havia amor como o primeiro. Como o teu. Assim, vieram os tais desencantamentos. Nada impediu que fosse o coveiro de esperanças perdidas. O poeta que nunca rimou. O beiral de ninhos desfeitos. Todas essas tretas do costume que conheceste como eu conheci.
Num dia cinzento ou azul, tanto faz, porque há sempre um dia no tempo que se esvai, vi-te esvoaçar, graciosa, em volta do meu beiral. E logo me encantei porque nesse dia vestias um manto diferente. O manto da esperança. Mas sabia que a esperança era coisa vã. Mesmo assim, fiquei atento. E deixei no ar um pouco de sedução. Pelo sim, pelo não. Talvez também tivesses feito o mesmo, porque continuaste a esvoaçar em volta do meu beiral. Foi então que cometi um erro. Não sei explicar porquê, mas queria ver se os teus olhos continuavam tristes depois de sentires o calor de um abraço. Foi um erro sem explicação. Fugiste sem dizer porquê. E o poeta dos sonhos ardentes que tinha aberto o manto azul do amor, fechou a porta e deixou lá fora a paixão que foi levada por duas ou três nuvens passageiras.
Por coincidência ou não, há sempre um amanhã previsto nas estrelas. Um amanhã que revolve os destinos perdidos e permite, por vezes, dar cartas de novo para mais um jogo imprevisível. Um certo amanhã que tardou em chegar e era urgente que chegasse. Depois de muitas viagens inconsequentes, o meu rio começava a perder a fogosidade dos primeiros tempos. Agora era o tempo de me encontrar numa planície serena onde podia espraiar, calmamente, os novos sonhos, começando a rasgar percursos sinuosos, mais seguros. 
Nunca acreditei que era só amizade.
Apareceram novos avisos no ar. Paixão ou amor. Talvez só amizade. Talvez. Pelo sim pelo não é melhor fechar a porta que guarda o manto ardente e procurar sinais que trazem a esperança de um novo despertar. Quando sinto a mudança abro a porta e ensaio magia. Mesmo com magia não sei o que me espera. Sorris para mim. Pareces outra. És bela e graciosa. Mas no sorriso em que me envolves e nas palavras que teces nasce a dúvida e tarda a certeza.
«Só te dou a minha amizade porque o amor escondido no meu coração demora a acordar. Não digo nunca, mas hoje não te amo. Hoje é assim. Amanhã que será será...»
És mesmo outra. Esse sorriso que me mostras contrasta com as palavras que oiço. Não entendo. Quero acreditar que mentes, mas és constante nas tuas convicções. Nada te faz demover. A verdade acima de tudo. Nada mais que a verdade. Detestas a mentira.
«A amizade é real. Só ela.»
«Só amizade não chega.»
Mas como o nunca continua nunca, todos os dias que acordo e abro a porta para o amor entrar e logo a seguir volto a fechar porque quem bate à porta é a amizade. Não é como a paixão. Num dia não, noutro dia sim!
Agora o teu sorriso já é outro porque não podes mais disfarçar. Estás feliz. Estou feliz. Abro-te os braços. Olho em volta. Estamos sós. Virados para o amanhã. Agora já sou crepúsculo, mas não interessa. Há todo o tempo do mundo no crepúsculo. Um ano é mais que uma eternidade. Uma vida a correr para um novo amanhecer da noite que amanhã será ainda mais noite. É mau viver na utopia dos loucos tempos da paixão. Ter que perguntar aos ventos quando é o tempo de voar sem fim, para lá do fim, e estar sempre sem chegar...
Foi bom renascer. Amar madrugada adentro. Sonhar que abri a porta e entraste e sorriste. Que digo sim e dizes sim. Que te abraço e te entregas. Mas a porta está ainda fechada. Alguém tem que a abrir. Tu ou eu. Deves também aceitar o desafio.
«Não há fantasmas lá dentro. Vem comigo.»
«Tens a certeza?»
«Decide-te porque a porta vai fechar.»
Hesitas e desespero. A noite longa não tarda. Já não tenho o tempo comigo. Eu sei. É difícil e fácil. Difícil dizer sim e fácil dizer não.
«Não quero ser aquela mulher de branco!»
Ela sabe da mulher de branco. Contei-lhe um dia.
«E continuas a admitir só amizade?»
«Sim. Por enquanto.»
Um sinal de esperança. Mesmo assim...
«É muito vago.»
A luta contra o tempo falhou e a porta fechou-se de vez. 
Mas quem vou ver quando atravessar o túnel que tem a luz mais intensa?
E se ninguém espera por mim?
«Por enquanto vou andando por aqui.» 
Mais um fragmento de mim. Tenho muito fragmentos que apontam para pistas que não passam de becos sem saída. ela ia passando por ali, mas não voltei a encontrá-la. Mentiu? Não. E então? A resposta é fácil de entender. Enquanto ela passava por ali, eu estava aqui...
Quantos são hoje, amigo que amavas o tédio e querias beber porque não tinhas sede?
Assaltou-me uma dúvida, que classifico como metafísica. Interferiu com força no fio do pensamento. No caso do fio do pensamento não sei bem se há uma sequência lógica ou se o aleatório é e será sempre o seu rei e senhor. Bom. Fiquemos pelo fio do pensamento, sequencial ou não. Acho que tem razão de ser aquilo em que pensei e é muito simples de explicar. Preciso de recuar no tempo. Tenho que conseguir.
Quando era jovem considerava-me imortal porque tudo o que acontecia aos outros passava sempre ao meu lado e o que me acontecia não beliscava minimamente a minha integridade física. Podia espetar um ferro no joelho e resolver o problema com um lenço atado ao mesmo e deixar o tempo passar e resolver. De facto aconteceu e por sorte não houve infeção. A ferida sarou naturalmente. Com o relógio a correr, já com os quinze anos feitos, em plena Lisboa, quando os elétricos amarelos ainda abundavam e circulavam pelas suas ruas, quase tão lentos como tartarugas, mas desempenhando sofrivelmente o papel para o qual estavam destinados, e porque o tempo era outro e o povo era sereno e não tinha outro remédio senão resignar-se, dado que todo o inconformado que levantava a voz era silenciado de imediato... ia a dizer que uma vez atravessei a linha, junto ao agora extinto cinema Monumental, tal como era à época, sem ver que vinha muito próximo um desses elétricos que não era o desejado ("Um Elétrico Chamado Desejo"). Era já noite avançada e não se vislumbrava vivalma nas proximidades. Não me lembro para onde voara o pensamento. Só sabia que estava longe daquele local e sentia-me talvez feliz. Adiante, vamos ao que interessa. Um toque estridente de aviso que me trouxe instantaneamente à realidade. Dei um salto para trás, o elétrico passou e saí do incidente sem uma beliscadura. Na altura, conforme já disse, era imortal e parece que o acontecimento passou ao lado. Talvez não tenha sido bem assim, porque ainda hoje (quantos são hoje, amigo?) me arrepio quando entra no palco do consciente tal recordação. Em boa verdade não podia voltar a distrair-me porque, com o passar dos anos e a tomada de consciência em relação às tragédias que ocorriam à minha volta, comecei a convencer-me que só se vivia uma vez, admitindo que talvez não fosse tão imortal como pensava ser. Foi a fase do aleatório que ainda hoje perdura na minha mente e que penso ser regra geral que atinge todos os mortais, isto não tendo em conta as interferências de Deus e aí entramos nos terrenos escorregadios da metafísica. Mas deixemos as dúvidas sobre o aleatório, bem como os desígnios divinos, e continuemos levados pelo implacável fio do tempo. Portanto, passaram-se muitos anos e claro que, de há muito tempo a esta parte, tenho a certeza que ninguém é imortal e que também como os outros estou condenado a morrer. Quanto à alma...?
Voltando aos tempos da minha juventude quero agradecer, mas não sei muito bem a quem, a boa sorte que esteve sempre do meu lado, no sítio certo e no momento certo Doutra forma já estaria fragmentado há muito, como podia ter ficado no caso do elétrico. Nada disso aconteceu talvez teria que passara por muitas fragmentações até que a última chegasse. Karma? Não confirmo, nem desminto. Porquê? Porque não sei. A única verdade é que ninguém fica cá eternamente. A dúvida reside no dia e, por vezes, no acaso da pessoa estar no sítio errado, na hora errada, no minuto errado e assim por diante até à ínfima unidade de tempo. Definitivamente, já lá vai esse tempo do ingénuo menino e moço que era eu e que tinha a certeza de ser imortal, admitindo, convicto, que o pior dos piores só acontecia sempre aos outros.
Em certos momentos todos arriscamos a vida. O jogo de póquer, outro tipo de risco, é um paradigma metafórico de quem aposta até ao extremo e tem dois simples pares, por vezes sendo surpreendido por alguém que desconfia que há bluff na costa e convence-se que tem um jogo superior. Então, põe na mesa as fichas necessárias para ver o jogo do adversário. E ganha, claro. Ou perde. Certos momentos da vida são como um jogo de póquer e todas as consequências que esse jogo traz consigo. Mas com o inevitável decorrer dos anos, tornamo-nos mais sensatos e vamos fazendo menos bluff e tentamos evitar o encontro fatal com a morte, embora sabendo que ela virá um dia ter connosco, de mansinho ou com violência. Nunca se sabe. Só temos uma hipótese que é tentar enganá-la, de modo a ela vir noutro dia e quanto mais tarde, melhor. Depois, novo adiamento da chegada. E outro. Apuramos os sentidos, pensamos ainda mais em sobreviver, mas continuamos a deixar que o rio da vida nos arraste. Os amigos que conhecemos desde a infância passam por nós, alguns inevitavelmente levados pela força fatal da corrente, outros rumando por diferentes canais que os levam para longe. Quanto às mulheres que amámos, esses também não são eternas. Ou o nosso amor por elas não é eterno, ou o seu amor por nós volatiliza-se com facilidade. São estas despedidas sucessivas que nos deixam cada vez mais sós, desesperadamente à espera que algo de trágico aconteça. Tudo isto para dizer que se passa também comigo o que está a atormentar os outros. Também não quero que o dia da tragédia chegue e agarro-me a uma falsa missão que tenho ainda para cumprir e que não sei qual é, mas vai dar-me mais uns tempos para ficar por cá. E há outra coisa em que penso, obcecado. O tal dia em que vai acontecer a mudança e, principalmente, no mistério já muito falado dos casos estranhos de quase morte. Segundo a maioria dos relatos, alguém estará à espera daquele que parte para o outro lado da porta, ou atravessa o túnel que tem a luz mais intensa. Alguém que talvez vá receber com carinho, com palavras de amor, o seu ente querido. Será ele (ou ela) quem o vai conduzir pelos prados verdejantes e floridos que talvez possam existir, nem que se pareçam com os nossos. Quero acreditar que nesses prados cobertos por flores vamos finalmente abraçar a coisa amada e que no momento do encontro o tempo pára? Ou tudo acaba depois da morte?
Devemos acreditar nos relatos de pessoas que estiveram clinicamente mortos e voltaram do túnel de luz onde encontraram os entes queridos porque ainda não tinha chegado a sua hora?
Quero acreditar que tudo à volta do ser que está de chegada a esses prados verdejantes, floridos, suspensos em nuvens que imitam algodão, ou assim, é harmonia, beleza, bem-estar... enfim felicidade como nunca sentida. Só posso sonhar, porque nunca lá estive, ou então não me lembro como é o tal prado verdejante onde não há maledicência, nem inveja, nem violência, e como são os entes que nos envolvem com a sua bondade. Não sei se o prado está suspenso em misteriosas nuvens de algodão, ou se é coisa tão virtual como uma tela dos corações caídos onde também já tive as minhas ilusões perdidas. Por enquanto, é um mistério insondável projetado para além da morte e que só posso descobrir partindo da premissa que é tão bom que nunca estarei de regresso para contar como foi àqueles que vivem mergulhados na mesma dúvida que hoje caiu sobre mim.
E quem espera por mim nesse momento de passagem para o outro mundo?
Os entes muito queridos que fui perdendo ao longo da vida, ou só aquele alguém que, um dia, me amou muito, mais que muito e, porque fui quem fui, não consegui fazer mais por ela do que fiz?
Repito. Não estarei cá outra vez para contar como foi, mas acredito que, à medida que o destino dá voltas e reviravoltas como um berlinde multicolor lançado pelas mãos de uma criança qualquer, também assim a hipótese que admiti para ontem já é a hipótese que admito ser mais lógica hoje.
«Quem dos dois partir primeiro ficará à espera do outro...» Disse-me ela um dia ou então sonhei.
Se é verdade o que ouvi, ela estará à minha espera. Quando chegar, vamos viver na eternamente naquele belo prado suspenso em nuvens de algodão onde encontraremos de certeza todos os outros entes que nos quiseram bem.
E os inimigos?
É uma dúvida importante. Logo veremos se há lá inimigos e se a saga do homem continua tal como foi. Isso é que é o karma. Um filho de Deus, feito à Sua imagem, continuando a matar e a odiar, mentindo que ama e assim. 
Hoje já não sou quem fui e não vou explicar porquê. Ou, se quiser explicar, vou só dizer... porque sim. Sei o que quero, com quem vou e para onde vou. Pela primeira vez na vida não acredito que esteja a viver um amor impossível, nem serei jamais um caçador dos ditos amores. Se falar deles, estou a reportar-me ao passado ou a relatar tal como me foi contado.
E já que estou falando de amores impossíveis, só desejo ardentemente tornar real uma coisa impossível. Como acontece com a maioria dos mortais, há uma fase dolorosa na vida porque apareceu o ente das despedidas. Um ente que surge de um momento para o outro. Passa a fazer parte do nosso dia. É invisível. Não fala. Não chora. Não ri. Brinca connosco às escondidas. Traz jogos diferentes. Alimenta-se dos pensamentos que nos ocorrem. Faz doer. Dói muito ter essa fase por companheira. 
Agora aquele. Ou aquela Conhecem-no? Conhecem-na? Pergunta ingénua a minha. Optemos por ela. Claro que todos a conhecem e querem vê-la bem longe. Muitos não conseguiram. Sem que dessem por isso, aproximou-se, instalou-se, envolveu-os com a sua habitual calma de morte. O seu silêncio. O seu abraço ternurento e a tender para o mortal que os confundiu. Era tudo o que desejavam no momento. Sim, porque para ela os envolver com o seu abraço tentacular teve que acontecer um momento especial. Um momento certo porque foi sempre infalível na escolha desses momentos especiais. 
Infelizmente também a vou conhecer num desses momentos especiais, bem como deixar-me envolver pelo seu abraço. Não sei ainda se acontecerá no momento certo, ou se numa curva apertada do destino. Uma daquelas curvas apertadas, onde a força centrífuga se superioriza. Não sei como e quando será. Só sei que vai acontecer. 
Cuidado! Estejam atentos. Não deixem que se aproxime o momento. Não se deixem prender em palavras sedutoras, nos silêncios calculados entre diálogos que não passam de monólogos. É ela que chega. O modelo exemplar de sedução. Quero deixar um aviso antes que seja tarde. Atenção às suas matreirices. Ao odor pútrido que exala. Mantenham-na à distância. É tão perigosa como inevitável. Inevitavelmente insistente até ter o que quer. 
E aí está ela a bater outra vez à porta. 
Digam:
«Não estou.» Pode ser que desista, por momento. Tem muitas missões para cumprir. 
Agora, imaginemos que vou partir...
Parti. Foi a melhor solução. Vou então ver o que acontece do outro lado de lá. O meu rio não chegou à foz, mas decidi. A imagem é sedutora. Cá estão os prados verdejantes, suspensos em nuvens fofas que imitam algodão. Adeus, para os que cá ficam que eu vou à procura de quem espera por mim.
Conhecem-na?
Não é essa. É a o outra. Estou a referir-me à outra. A tal que vive à custa dos que se sentem abandonados. Sem esperança. Tristes, sempre muito tristes. Prontos a receberem um abraço amigo. Deixem-se abraçar por todos os que lhes querem bem: Nunca por ela. 
Não se deixem abraçar porque ela chama-se morte!
 
Morto-vivo. Se queres morrer, então morre. Mas depressa, porque tens pouco tempo contigo!
Cansa-te a vida? Então vive, mas devagar porque tens muito tempo!
Que chatice! Acordas todas as manhãs.
Olha, finge que morreste. É a única solução. Só assim vais conseguir recordar que morreste muitas vezes! Se não acontecer como imaginas, por favor... fragmenta-te. Mas lança as memórias para longe. Só assim começarás uma nova vida rumo a mais uma fragmentação. É uma porra porque isto é cíclico. Mas não posso deixar de fazer uma pergunta:
Quem roubou o meu primeiro destino?

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