quinta-feira, 1 de junho de 2023

A assombração

  

Q

uase fim do inverno. As andorinhas ainda não voltaram, talvez ludibriadas pelas temperaturas baixas e pelas chuvadas torrenciais que não têm dado tréguas. Não me lembro de ocorrência parecida nos últimos quarenta anos. 
Quando jogava o berlinde com o Armando Slimpas, fora das vistas do famigerado Orelhudo (1), e interrompíamos forçosamente o jogo,  por razões óbvias, até ao dia seguinte, ou então quando fazia os trabalhos de casa iluminado pela luz vacilante do candeeiro a petróleo dado que a luz elétrica falhava com frequência nessa época de chuvadas impiedosas, desse tempo em que era rapaz não podia fazer grandes juízos de valor senão confirmar que chovia quase sempre a bom chover e que as estações do ano estavam bem marcadas.
Contra toda a lógica, o Sol continua a ser barrado por tanto cinzento nebuloso a cobrir a atmosfera e até parece que o tempo fez um pacto com o meu estado de alma. Definitivamente será assim até ao fim de fevereiro. E tudo isto em contraciclo com a outra quase certa evidência. O clima em mudança. O aquecimento global. O efeito de estufa. A subida das águas dos mares. Isso e muitas mais coisas.
Agora, março adentro, o Sol parece menos envergonhado, mas ainda está longe de ganhar a batalha. As previsões da meteorologia apontam para mais do mesmo, pelo menos durante os primeiros dez dias do mês. Chuva na terra e neblina na alma. Sim. A alma também continua cinzenta.
Também chove dentro de ti, Mário!
Tanta chuva! Não há volta a dar a tanta chuva.

Felizmente que não sofro de reumatismo, o que seria muito grave porque a humidade dentro de casa tem rondado os noventa por cento. Quer chova ou não durante a noite, as vidraças do avançado aparecem de manhã sempre cobertas de gotículas de água irritantes que não deixam ver para o exterior o que quer que seja. Manhãs cinzentas. Longas manhãs cinzentas. Nada a fazer quando a alma fica opaca. Nada a fazer senão deixar que a chuva pare. É só uma questão de tempo até que o vento mude e empurre as nuvens para longe.

Então e a alma, Mário? Chove sangue, Mário! Quando julgavas que o céu estava azul, começou a chover sangue. Equívocos. Já tinhas idade para não caíres em enganos.
Nem tanto. Não passa de uma metáfora mal conseguida.


Mas voltando ao tempo, é verdade que houve tempos em que os invernos eram rigorosos, mas havia também a primavera amena de renascimento e esperança, depois o calor do verão e as inevitáveis paixões escaldantes passageiras. À noite as pessoas passeavam na avenida, vestindo camisas e blusas de manga curta. E eu não era exceção. Jovem, de sangue na guelra, pouco me importava se arrefecia um pouco mais. A esperança aquecia-me a alma e qualquer desamor que enfrentasse era nuvem passageira. Tinha muitos dias à frente para voltar a repetir os mesmos erros ou para seguir na minha estrada à procura de momentos mais auspiciosos. O próprio correr do tempo ajudava a sarar as feridas e a preparar-me para mais desaires.

Por analogia lembro-me dos meus longos dias azuisDesconhecia o motivo porque os considerara azuis e, ainda por cima, longos. Essa história que contei tinha a ver com tudo menos com o azul. Foi mesmo um tempo muito cinzento.
Então porquê?
Só havia uma explicação. A história foi-se desenvolvendo ao longo de um janeiro muito azul, anormalmente quente e seco e também sem vento. Ocorreu quando estava a cumprir o serviço militar e relacionou-se com um caso anormal  (talvez fosse uma fenda no tempo) que nada teve a ver com a minha santa tropa que tive em plena guerra colonial. E se nada teve de real, talvez a explicação se encontrasse ligada ao estado de espírito marcado pela decisão mais estúpida que tomei na sua vida. Mas isso são águas passadas. De qualquer forma, a Manuela suicidou-se e a Patrícia dos olhos claros, que nunca existiu, cansou-se de olhar para mim como alguém que lhe poderia dar um futuro estável, pelo menos uma viagem num lago de águas mansas. Como consequência também suicidei o próprio futuro azul e promissor e hoje tenho apenas rastos da passagem de muitas Patrícias. Talvez me canse um dia. Mas isso é outra história que o meu amigo imaginário, de nome Ernesto, não se cansa de pedir para contar. Talvez um dia, quando a história fizer história. Ou talvez nunca. O mais certo é ser nunca.
O que interessa no momento é falar do clima. Dos dias cinzentos. Do frio e da chuva intensa, dois dados importantes para bloquearem o instinto das andorinhas que voltam todos os anos ao mesmo beiral.
Há uma alteração drástica no clima. Estão aí o aquecimento global, o recuo constante dos glaciares, a subida implacável dos mares, o aumento da frequência dos ciclones de nível quatro e cinco, a concentração do dióxido de carbono emitido pela combustão do carvão e do petróleo, para não falar do ozono enfraquecido, do metano e óxido nítrico, e ainda de mais suspeitos.
Repetindo, em fevereiro choveu e fez muito frio. As andorinhas não voltaram ainda e a minha alma sangrou de novo ao ver tanto cinzento à volta.

O mês de março também não trouxe sinais positivos. De novo chuva, cinzento e um horizonte cada vez mais apertado. E também as inevitáveis recordações dos tempos de infância em que fui feliz ou antevi a felicidade a passar muito perto, mais que à distância de estender o braço.

Acabámos de jantar já depois das nove. A noite estava agradável para fazer a minha primeira exploração pela cidade.
Ficou combinado que íamos até ao Rossio. Saímos todos ao mesmo tempo, mas resolvi logo apressar o passo, não sem antes combinarmos que às onze, o mais tardar roçando as onze e meia, nos encontrávamos na esplanada do Facha.
«Não te afastes ainda, Mário, sem saberes onde é o local do encontro.»
«No Facha, tia. Eu depois pergunto onde fica.»

Chegado ao Rossio, parei por momentos para apreciar o enorme plátano, o cartão de visita da cidade. Era na verdade grandioso. Depois, fui subindo para onde vi as pessoas encaminharem-se. O célebre Passeio de que muitas vezes o Justino me falou.
«Chama-se Passeio porque as pessoas costumam passear ali.»
A meio, do lado direito, vi uma esplanada literalmente cheia de clientes que se dessedentavam e cavaqueavam animadamente. Observei o conteúdo das mesas e vi garrafas de pirolitos, cervejas, gasosas, laranjadas. Poucos tomavam café. Observei com mais pormenor e vi ainda pratos com bolos e outros com tremoços e amendoins (alcagoitas, no Alentejo). Para mim, o único líquido capaz de matar a sede era a água. Cerveja não bebia ainda. Mas não tardaria a acontecer.
Havia também um plátano no centro da esplanada, de dimensões mais modestas que outro. De dia devia ser um bem precioso para bloquear a passagem dos raios solares que tanto agrediam a pele das pessoas nos dias soalheiros e quentes alentejanos.
E um capilé fresquinho? Muito obrigado pela sugestão, Mário. Contudo tu estás a ser "amigo da onça".
Por motivos óbvios pensaria nisso nos próximos dias se gerisse bem o capital disponível que, em boa verdade, não era muito. Até porque se aproximavam os dias de feira com os tradicionais carrosséis, pistas de carrinhos de choques e de corridas, poço da morte, robertos, não podendo esquecer as guloseimas como o torrão que quase estoirava com os dentes e as farturas bem embebidas em óleo refervido e cobertas de açúcar loiro que eram de comer e chorar por mais. O pior vinha depois. As malditas dores de barriga.
Era muita coisa para pouco dinheiro.
Quanto ao inevitável poço da morte, gostava muito das exibições dos profissionais das motos desafiando o equilíbrio sobre os cilindros rolantes. Mas arrepiante, arrepiante era tudo o que se passava no interior do poço, rotulado com muito realismo de poço da morte.
Que estava a fazer parado em frente à esplanada já que tinha decidido não fazer a mínima despesa?
Continuei Passeio acima, ainda com as imagens de tudo o que vira na esplanada e a antevisão da feira das cebolas que estava para breve, dando conta que a iluminação era ótima e assim podia apreciar bem as pessoas que passeavam para baixo no momento em que subia, especialmente, claro, as raparigas. À medida que subia e a cascata ficava mais próxima, o ajuntamento de pessoas crescia, formando pequenas bolsas de obstrução a quem queria deslocar-se, pois conversavam animadamente em grupo e não deixavam a mínima margem de manobra. A culpa era da noite que estava morna.
Comecei a ficar farto de impasses e choques e mudei de estratégia. Ia procurar um lugar sentado nos muitos bancos que via, dispostos em espinha. Assim, olhei em volta. Ingenuidade a minha. Não vi um único lugar disponível. Mas vi outra coisa bem mais agradável quando descobri, num dos muitos bancos existentes e ocupados pelas pessoas, um rosto que logo me hipnotizou. Fixei-a e soltaram-se as feromonas.
Era ela!
Mas ela quem?
Nunca a tinha visto nesta encarnação.
Como sabia que era a desejada?
Simples pressentimento. Não sei explicar.

A jovem levantou-se do banco e esperou pelas outras pessoas. O seu olhar alinhou-se com o meu. Sim. A expressão dos olhos, muito triste, impressionou-me e a primeira ideia que tive é que era muito infeliz. Depois, parecia mergulhada no passado porque o seu olhar estendia-se sem horizonte. O que mais me chocava era o seu ar de circunstância, à espera dos outros e sem sequer descobrir que estava a ser observada.
Olhos, tristes, muito tristes, belos como nunca tinha visto!
Só depois dei conta que era muito jovem. Admiti que não devia ter mais que treze anos. E eu tinha quinze.
Disparate o meu quando pensei que aquela jovem parecia mergulhada no passado. Estava presente na minha frente. Bem viva.
Observei-a com mais detalhe. Era bonita, de rosto alongado, traços finos. Cabelo comprido, apanhado numa única trança.
Hipnotizado por aquele momento único, continuei a minha observação. Assim, olhei para o vestido. Era branco e com a baínha um pouco abaixo do joelho. O peito estava ainda em embrião.

Treze anos, Mário?
E eu fiz quinze em agosto...
Voltei a fixar-me na expressão do seu olhar.
Tanta tristeza, porquê?

Dorme, dorme... que ela também já está a dormir e deixa-te de ilusões que não vai sonhar contigo, pela simples razão de que nem sequer deu pela tua presença hoje à noite, meu grande paspalhão. Toca mas é a dormir! Amanhã é outro dia e, se calhar, vais logo esquecer o "grande amor da tua vida".

Quantos outros grandes amores terás na tua vida, meu pinga-amor?
Serás sempre o eterno romântico! Sonhos cor-de-rosa, Mário (2).

Como é lógico, nunca mais pude voltar àqueles dias de setembro e a outros. De facto, passaram muitos amores pela a minha vida. Concordo contigo, Ernesto, meu bom amigo imaginário. Passaram, mudando apenas de nome. Grandes amores de um pobre "caçador de amores impossíveis" que tentou rever neles o grande amor da sua vida que nunca teve senão num sonho que ainda hoje vive nele e que é o grande mistério da sua vida.
Porquê?
Será que ela nunca chegou a partir?
Houve tempos em que senti a sua presença, em que a vi nos olhos de outra mulher. Tempos conturbados em que estive no limiar da realidade, em que talvez tenha sido o "fictício" de quem ela falou. Nem quero pensar que estava de pés levantados, pronto a partir para o espaço imaginário. Foram tempos complicados. Tempos que, felizmente (ou infelizmente?) já passaram, sim. Tudo passou. O tempo de ontem. O segundo de hoje. Tudo. Tudo... mas ela ficou. 
Mais uma vez:
Porquê?
Conheci-a há muitos anos. Em setembro. É incrível como o tempo que foi ontem ainda está presente, como um vírus que se duplica em cada dia que passa. 
Deixo só para ti esta recordação...


VEM...


 
 

(1) Os verdes anos de Mário contador de histórias_Orelhudo...
(2) Manuela

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