Já te dei tudo e não tive retorno. Só me resta a alma e essa não a dou a ninguém. Mesmo que tivesse essa opção, de que servia se ela está desfeita. Em alternativa só podia entregá-la ao diabo. Ou tenho outra hipótese, diz-me? Acenas que sim. Mesmo assim, queres a minha alma. Não compreendo. É algo imaterial. Não manipulável. Ainda por cima com uma password forte. Coisa cem por cento pessoal. Para que queres uma alma desfeita? Duvido até que o diabo a queira. Algo destruído. Um puzzle a que faltam já muitas peças. Ele quere-as inteiras porque o seu objetivo é destruir lentamente. Dizes que ele quer. É melhor seres tu a querer. Lá sabes as linhas com que te coses. E eu começo a desconfiar de ti. És tu? Quem queria que fosses? Sei lá. A dama de negro. Um jogo. Queres um jogo. A alma por um jogo. Neste momento estou bloqueado. Ela já jogou várias vezes comigo. Agora, tu… Só se me deres um avanço. Uma pequena vantagem. Sou melhor que tu no jogo que vais propor que façamos? Diz-me?, em que jogo posso suplantar-te se tu sempre manipulaste a nossa relação? Queres mesmo o jogo. Uma alma por outra alma.
Agora já não são os bispos que me prendem e vou pôr os peões ao ataque. Não contavas. Também tenho os meus truques.
Então o que se passa?, perguntas. Muito simplesmente hoje já não sei ser eu. Isso era dantes. Noutro tempo. Não sabias? Será este o avanço que te pedi e recusaste. Jogo sujo? Talvez. Estamos empatados.
Antes do jogo começar, enquanto pomos as peças no tabuleiro será mais clarificador para a situação lançar uma metáfora no tabuleiro onde vamos fazer um jogo de vida ou de morte. Um vai continuar a viver. O outro vai ter com o poeta atormentado com a doença que o ia minando, aos poucos, e que há muito que já cá não está, mas deixou para a eternidade todo o fel que lhe corroía a mente. A vida escorregava-lhe aos poucos e não podia fazer outra coisa senão ensaiar um diálogo macabro com a morte que se aproximava a passos largos, falando das caveiras do seu futuro. É macabro? Ele ou tu? Macabro por macabro, agora que somos só duas almas…
“O livro que aí vai - obra de um incoerente -
É um livro brutal, é um poema a esmo...
Pensei-o pela rua olhando toda a gente,
Escrevi-o no meu quarto olhando-me a mim mesmo.”
Gosto muito desta quadra. Claro que não percorro neste momento o mesmo caminho que este poeta das caveiras desgraçadamente percorreu. Nem por sombras. A minha doença é outra. Não é física. É mais profunda. As minhas raízes estão podres. Os neurónios sangram. As conexões interrompem a passagem dos impulsos. Espero um retorno que tarda em aparecer. A minha vida parou numa página tão negra, tão opaca, que não consigo ler para a frente.
Porque será que tudo o que começa bem dá sempre uma reviravolta brutal de cento e oitenta graus?
«Se tivesses agido de forma diferente...»
E é de ti que partem essas “confortáveis” palavras!
Deixa-me pensar. Quanto mais penso em nós mais pontos de razão acumulo. Não havia saída depois daquele dia da traição. Não sou santo, nem aspiro a tal. Claro que não havia saída possível. Já no caso deste jogo, admito que estás a querer que me desconcentre. Pensamento certo. Afinal é o que pretendes. Fizeste um xeque duplo da rainha à torre e ao rei. Fico em desvantagem. Sem apelo nem agravo. Mas a ira que sinto pode sair-te cara. Prepara-te para o ataque.
Sabes uma coisa? Não sabes, concluo de imediato. Nem sequer imaginas que estou a falar contigo neste momento. Sei onde posso chegar telepaticamente. Pequenas sugestões, pensamentos concordantes. Isso e um pouco mais.
Olha, estou a pensar em fazer uma nova formatação. É a última esperança que me resta. Ou então vou levar mais uma razia nos neurónios que sangram, ou retomar os erros iniciais, ou então, em última análise, começamos de novo como se fôssemos as tais duas almas gémeas predestinadas depois de termos passado por uma fase crítica de não assunção em que os ideais chocaram e a seguir andaram para trás.
Mas porquê formatar-me, se vou perder a identidade?
Valerá a pena corrermos o risco de montar um cavalo alado, que só nós vemos, à nossa espera no prado verde da esperança, para depois rumarmos às estrelas distantes, procurando novos números até que o destino nos possa fundir num só?
O cavalo alado. É isso. Ainda bem que dei conta do erro que acabas de cometer. Um cavalo que deixaste sem defesa. Nem parece teu. Ficaste baralhada com o que disse há pouco. Sou um louco? Sim, concordo. Tenho ideias loucas. Mas daí a ser louco vai um passo de gigante. Destruíste-me a alma. E tu, como ficaste?
«Os beijos que trocámos eram doces. Ainda podemos ultrapassar esta crise, acredita.»
Não.
Um cavalo perdido. Comprometi a tua vitória.
Deves ficar mais cautelosa. Não esperava outra coisa de ti. Agias sempre assim nos momentos cruciais porque não tinhas a cabeça e os pés nas asas do sonho.
Vou embalar-te com uma passagem da mitologia grega...
Que tem a ver?, perguntas. Espera e verás.
”O pai de Ícaro, Dédalo, um talentoso artesão ateniense, tentou deixar o seu exílio na ilha de Creta, onde ele e o seu filho estavam presos nas mãos de Minos, o rei para o qual ele havia construído o Labirinto para confinar o Minotauro, metade homem, metade touro. Dédalo estava exilado porque deu à filha de Minos, Ariadne, um novelo de linha de modo a ajudar Teseu, um inimigo de Minos, a sobreviver ao Labirinto e derrotar o Minotauro.
Dédalo confecionou dois pares de asas, usando penas e cera, para ele mesmo e seu filho. Antes de deixarem aquela ilha, Dédalo avisou ao seu filho não voar tão rente ao sol, pois o calor derreteria a cera, nem tão rente ao mar, pois a humidade deixaria as asas mais pesadas levando-o a cair no mar. Graças à enorme liberdade que voar deu a Ícaro, este cruzou curiosamente o céu, mas durante o processo ele veio rente ao sol, que derreteu a cera. Ícaro manteve-se batendo as asas mas logo acreditou que já não lhe sobrava qualquer pena daquelas e que ele estava batendo apenas os seus próprios braços. E assim, Ícaro caiu no mar...”
Penso que é uma lição. Não queiras ir mais além. Não desejes a minha alma porque nunca estará ao teu alcance. Já a dei. Menti-te. Esse teu ar de preocupada ofusca-te a razão. Pronto. Outro cavalo. Não te distraias. Xeque duplo à rainha e ao rei. Adeus, rainha. Acho que estás a fazer de propósito porque anseias a minha presença a qualquer preço.
«A probabilidade de nos encontrarmos na mesma órbita do acontecer era mínima e conseguimos.»
Mas para quê? Sabes que não resultou.
«Tolo! A tua solidão é imaginária. Um estado de espírito. Formata-te. Faz trinta por uma linha, mas acredita sempre que amanhã é um novo dia terreno, sem cavalos alados nem as parvoíces dos “Ícaros” com asas de penas, cera e tudo isso. Amanhã, quando o sol voltar, vamos continuar a ser os mesmos, unidos, como tu dizias, “até que a morte nos separe”.»
Queria acreditar que sim, mas não consigo. Porque será que este cinzento que me envolve continua a atormentar-me a alma?
«Ainda estamos no dia de hoje! Logo à noite, antes de nos deitarmos, vou desejar, como sempre, que tenhas um sono descansado.»
Como os anjos, já sei. Ah!, e se não conseguir adormecer? E se a noite me cobrir com o seu manto eterno, o mesmo manto das caveiras do desditoso poeta?
«Deixa o infeliz José Duro no seu mundo. Que posso fazer mais por ti?, deitar-me já a teu lado, beijar-te e beijar-te... até adormeceres?»
Foi o que desejei sempre. Que te deitasses a meu lado.
«Mas nós já dormimos juntos!»
Com beijos doces e tudo mais...?
«Sim.»
Não me lembro. Talvez porque nunca foste sincera. Deixa-me em paz. Já te dei muito. E tu, só ilusões.
«Prometo.»
Não acredito em promessas. Essas, leva-as o vento. Noutros tempos, o prometido era devido. Perdeste a rainha há três jogadas atrás. É um mau sinal. O fim do jogo está na próxima encruzilhada. Continuo a acreditar que queres perder. E se queres perder, então não és tu quem pensava que eras.
«Adivinha…?»
Não preciso de adivinhar uma coisa evidente, dama de negro. Que bom que é sentir-me triste e escrever palavras a esmo na solidão do meu quarto. Palavras que sempre me enganaram a mim mesmo. Prefiro a solidão à tua presença.
Será que existes ainda amanhã, se a ideia desta formatação louca for para a frente?
Se assim for, formato-me outra vez. Tantas as vezes que forem necessárias para me afastar de ti. Até que nunca mais te veja. Nem sequer a tua sombra.
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