sexta-feira, 9 de junho de 2023

Não se esqueceu de tudo

Se alguma vez aconteceu, não me lembro. Se não me lembro, sou fraca cabeça de memória.
Se não aconteceu, então sonhei. Se sonhei, não me lembro. Se não me lembro, talvez não tenha acontecido nem sonhado.
Se talvez não tenha acontecido nem sonhado, como vou lembrar-me?
Como vou lembrar-me?
Memofante...
Não! Mais cápsulas, não! Não quero mais remédios para recordar o que, provavelmente, porque não me lembro, me aconteceu ou está a acontecer. Se foi ontem, já não interessa porque é passado. Não posso trazer o passado de volta, nem o que traga à força, acorrentado. Nem eu nem ninguém. A máquina do tempo, que me lembre ainda não foi inventada. O passado é passado. Passou, e pronto. Está tudo dito. Mas já agora... estou curioso. Há qualquer coisa que me está a escapar.
Porra! O homem da bata branca... Ala almoço que se faz tarde! Corre, Anacleto!, que nunca mais terás um neto...
Foi por um triz. Finalmente respiro ar puro. Avenida do Brasil. Gosto (bom dia, facebook!). Não me lembro porquê, mas gosto. Hoje está frio.
Que sol é este que já não me aquece?
Ah! Não sou esquecido de todo. Estou a lembrar-me de um caso. Deste caso, lembro-me. Mau sinal lembrar-me dos casos que já deviam estar esquecidos.
Um dia vi um cliente do Júlio, no separador central do cruzamento da avenida de Roma com a avenida do Brasil, a pedir dinheiro aos condutores parados no semáforo.
«Para que quer o dinheiro?» perguntou uma mulher.
«É só para tomar uma bica no café em frente.»
E apontou para o sítio onde estava o café.
A mulher teve pena dele e deu-lhe o dinheiro exato para a bica. Nessa altura, quarenta e cinco cêntimos.
Entretanto o homem foi pedir dinheiro ao condutor seguinte.
«Então não vai tomar a bica?» perguntou a benemérita, irritada por ter caído na esparrela que nem uma patinha.
O cliente do Júlio levou as mãos à cabeça e respondeu:
«É verdade. Já me esquecia...»
E atravessou a correr a estrada em direção ao café.
«Uma bica, Joaquim.»
E o Joaquim trouxe-lhe a bica numa chávena de abatanado.
Saboreou a bica e disse:
«Está bem tirada. Só é pena estar fria.»
«Não gostas do vinho gelado, Anacleto?»
Voltando à vaca fria... afinal o que é que aconteceu de tão importante para não me lembrar e estar preocupado?
Que eu me lembre, tenho os impostos em dia. Ter os impostos em dia é o mais importante neste país. Pode lavar-se dinheiro à vontade, comprar vistos Gold, levar a massa para paraísos fiscais. Enfim, tudo isso que sabemos que é legal. E agora reparo. Aquela esta gente está a olhar para mim com cara de caso. Não sou o Donald, o tal que, dizem à boca cheia, noutros tempos, atirava-se a todas as mulheres, solteiras, casadas, viúvas, etc, pernetas, feiosas, marrecas, anoréxicas, etc., antes de ocupar o cargo que ocupa.
Ah! Se conseguisse lembrar-me do cargo que ocupa...
Cheira-me a palhaçada. Ele diz que não disse, mas afinal o que diz é para esquecer.
A propósito... nem sou a Madonna que prometeu certas coisas, se ele perdesse... como devo dizer...?, aos eleitores americanos que votassem na Hillary!
Do que as pessoas são capazes por uma causa justa, por assim dizer...
Cruzes canhoto. E logo havia de ser ela a sacrificar-se daquela maneira!
É passado, já me esqueci. Não digam a ninguém mas o Donald deu a volta por cima (uma dica do futuro). para mal dos nossos pecados.
Mas esta gente não tem mais nada para fazer?
Não param de olhar para mim. Uns riem. Outros, mostram um ar contristado. Hum! E outros apontam o indicador em ar de acusação.
Que mal fiz?
Já disse que tenho os impostos em dia.
Que tenho de especial?
Esqueci-me do casaco lá dentro. Só isso. Pode acontecer a qualquer alma de Deus. Não é justo estarem a gozar comigo!
Mas... Ah!, também me esqueci da camisa e das calças. Por isso tenho frio. Finalmente descobri porque tenho frio. As bóxeres (ou os bóxeres?), valha-me santo Ambrósio! Também as perdi.
Tinha tanta pressa de sair dali que talvez me tenha esquecido de mais alguma coisa em cima da cama-confessionário, depois de esmurrar o sacana do doutor que me ofendeu e fugir antes que me caçassem.
Agora me lembro. Tudo porque me injuriou:
«Você está louco! Cuspiu a cápsula, seu grande cabrão...»
Ele sim, é que estava louco. Os olhos de peixe a saltarem das órbitas diziam tudo.
Que bem lhe assentou aquela murraça!
Eu não sei... mas aquilo dos olhos pega-se?
Voltando...
Quero lembrar-me de uma coisa que, provavelmente não aconteceu. Por mais voltas que dê à cabeça, não consigo lembrar-me. E aquelas caras indispostas que olhavam para mim de um modo estranho...
Que se lixe. O que interessa é saborear este "ar puro" que se respira na avenida do Brasil. O resto são tretas.

Mas deixa-me ver o resto. Ah! Nem tudo correu mal. Não me esqueci dos sapatos. Felizmente. Estes Puppies custaram-me os olhos da cara. Nunca me iria perdoar… 

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