Quando era jovem sonhava mais vezes acordado que hoje. Tinha uma vida longa à minha frente e, portanto, não pensava na morte. Por vezes até acreditava que era imortal. As desgraças só aconteciam aos outros porque estava protegido por um escudo impenetrável. O mesmo deviam pensar os rapazes e raparigas da minha idade, mas vi alguns serem levados pela roleta russa da morte, alguns porque corriam riscos até ao limite, mas outros porque estavam no local errado à hora errada.
O fio da vida encarregou-se de mostrar outra realidade bem diferente, algumas vezes injustamente amarga.
Talvez a minha visão da realidade tenha mudado radicalmente quando recebi a notícia da morte por afogamento num pego do rio da minha vila, a jusante do açude que o imortal Mário e o Armando, seu amigo inseparável de aventuras, tantas vezes tinham atravessado, correndo alguns riscos ignorados, principalmente em março quando as águas já não transbordavam de todo. Vindos do túnel, encaravam o açude e davam com a realidade de fios de água que ainda atravessavam o muro de piso irregular e escorregadio. Olhavam um para o outro em ar de desafio e resolviam atravessar, com sucessivos saltos, um atrás do outro, a represa para a outra margem do rio.
Estava um dia quente, convidativo a um banho nas águas, nesse tempo límpidas, do rio. Não sei muito bem como aconteceu. Provavelmente um dos rapazes nadava mal e, ao perder o pé, entrou em pânico e o outro foi no seu auxílio, acabando os dois no fundo lodoso do rio. Os colegas das duas escolas da vila estiveram presentes em peso, numa manifestação de mágoa e pesar pelo ocorrido.
Terá servido de exemplo a imprevidência dos dois amigos?
Eu e uns amigos alugámos um carro de praça, por sinal de seis lugares. Foi uma festa a curta viagem até à aldeia de onde eram naturais os malogrados rapazes. Festa que logo se transformou em choro convulsivo perante o choque que dois caixões de tampa aberta nos provocaram. A imortalidade caía por terra e a confirmar o confronto com o real, o regresso à vila foi feito no mais alto ruído do silêncio. Nunca mais esqueci esse infausto acontecimento que clareou a minha maneira de encarar uma verdade indesmentível que nos diz que só se vive uma vez.
Fazendo uma derivação, tenho uma dúvida surreal que diz respeito ao destino. E ponho-a já em cima da mesa. Diz respeito à vida que levo nesta Terra que me acolheu.
Será que é a única possível, ou existem mais versões de mim?
Não é a primeira vez que penso nesta hipótese que tem a ver com a existência de universos paralelos. Sou talvez um obcecado por este tema, mas não importa. Mais vale ser obcecado que agnóstico sem sequer admitir a existência de contraditório. Medo de existirem outras realidades? Não tenho tais limitações. Acredito que existem infinitas versões de mim. Ou melhor: quero acreditar que sim, porque uma outra parte de mim está do lado dos tais outros agnósticos. E é essa hipotética luta que me dá gozo. A ser possível a existência das outras versões de mim, decerto não são idênticas. Tentando explicar melhor, talvez eu seja idêntico em cem por cento, mas os destinos serão diferentes como é diferente o dia da noite. Levando ao extremo, um de nós até poderá ser descendente do outro e vice versa. E aí voltam os universos paralelos, perto uns dos outros, impenetráveis mas invisíveis. Como acreditar…?
Alguns cientistas, ao debruçarem-se sobre as fronteiras físicas do cosmos, começam a admitir que esses universos existem. Sendo assim, o meu sósia existe e trilha um caminho diferente para além do limite do universo que o acolhe.
Se pudesse ver todos os universo de uma só vez a que conclusão chegaria?
É lógico admitir que os meus destinos serão diferentes. Extrapolando, para o destino da Terra e dos seres vivos que a habitam e habitaram, existirá, por exemplo, um universo onde um asteroide falha a Terra e os dinossauros continuam a dominar todos os animais da Terra e o homem é hipótese a pôr de lado; noutro aconteceu o impacto, apenas sobreviveram os insetos e uma Terra completamente diferente terá continuado a abrigar a vida; ainda noutra, a vida na Terra foi, de todo em todo, impossível face a um conjunto de circunstâncias reunidas para determinarem a não oclusão dos seres vivos.
Segundo esses mesmos cientistas que arriscam a sua idoneidade ao saírem das normas, acrescento eu, os nossos destinos podem ser diferentes. Isto é: todos nós podemos estar a experimentar várias vidas diferentes.
Focando-me em mim, fico a imaginar o que estou a fazer hoje neste momento em qualquer um dos universos invisíveis e impenetráveis, bem perto do meu.
Com tudo isto a baralhar-me a razão, pergunto se é possível acontecer o esquecimento total de uma vivência, fazendo tábua rasa de tudo o que me foi acontecendo e passar a seguir outro fio da vida onde eu e os meus semelhantes somos os mesmos e o dia a dia é diferente a partir de um ponto fixo, sendo assim diferentes os meus desempenhos e os dos que estão ligados ao meu destino. Não é mesmo que admitir que estão ocorrendo eventos diferentes onde eu, a personagem principal, vai seguindo vários rumos. Na primeira hipótese entra em cena o fenómeno da eternidade "aos saltos" com sucessivos apagões na memória. Nada tem a ver a hipótese dos universos paralelos com as tais múltiplas vivências.
Não liguem à primeira hipótese que não passa de uma mera divagação mais que inconsistente, ou melhor, uma manobra de diversão. Prefiro admitir, ou sonhar (sonhar, fica melhor) que, uma vez a minha vida esvaziada nesta Terra de passagem, terá continuado noutro universo paralelo. E assim por diante.
Estou num beco sem saída. Não sei se me deixei desenraizar do simbolismo, a minha arma mais poderosa, ou se a própria imaginação já não tem força para galgar as escarpas ultrapassadas no passado e alisá-las.
Nunca sentiram o desespero inconformado dos eternos caminhantes que não encontraram a estrada ideal?
Para eles há circunstâncias atenuantes. O espaço sideral que os atrai é infinito e lá longe moram as estrelas de acesso impossível. Mas os que se deixam ficar para trás, inertes, esses nunca chegarão, nem mesmo em sonho, às estrelas. É talvez o que se passa comigo.
E contigo?
Não te escondas. Querias triunfar e, ao mesmo tempo, refugiar-te no obscurantismo. A antítese é perfeita e, como perfeita que é, nunca resultará. O obscurantismo está contigo. Não. Não triunfaste. Fugiste para dentro de ti. Lá fora fiquei eu e ficaram as outras vidas que ignoraste nos teus passeios de conceção.
Já não te conheço, nem tu te conheces, o que é lógico neste último caso.
Onde querias chegar, se nunca chegaste...?
Era uma vez um contador de histórias que deixou algumas histórias incompletas porque era especialista em cortar pedaços do fel que não revelava. Optava por máscaras. Simbolismos que foram ultrapassados pelo tempo.
Mário, inveterado contador de histórias, porque nunca foste à procura da tua verdadeira história que existe algures, quiçá fora do mundo virtual que tentas impingir, a todo o custo, aos teus leitores?
“Os universos paralelos fazem parte do imaginário de muitos de nós e inspiraram os escritores de ficção científica.
Admite-se a possibilidade de existirem outros mundos no espaço, talvez uma cópia do nosso sistema solar, do próprio universo, onde tudo é igual ou ligeiramente diferente.
Mas onde se localizam esses universos que não podemos ver?
Talvez não se vejam porque estamos em dimensões diferentes. Mas a questão principal não é se existem, mas se há um, dois, três ou quatro tipos diferentes de universos.
Comecemos a divagar. Quer acreditemos ou não, o nosso universo pode encontrar-se num mar repleto de universos paralelos.
Imaginemos um outro universo paralelo onde possamos, ao mesmo tempo que vivemos a nossa vida, estar a viver também outra ligeiramente diferente. É difícil imaginar que pode haver réplicas exatas de nós na vastidão do espaço. É uma questão de crença. Esta ideia faz parte de uma cultura popular em termos de ficção.
É quase uma certeza adquirida acreditarmos que tudo o que vemos não é tudo o que existe. Só porque não podemos ver algo, concluir que esse algo não existe é ilógico. O avestruz enterra a cabeça na areia. Não vê, assim não existe para ele o que não vê.
Os nossos ancestrais desconheciam a existência das galáxias, muito menos das supernovas e dos buracos negros e a verdade é que existem.
Os cientistas admitem a existência de quatro tipos de universos paralelos no espaço.
Os primeiros existem no mesmo espaço em que estamos e localizam-se tão longe que não os podemos ver ou tocar. Não passam de uma extensão do nosso próprio universo. Fazem parte do nosso espaço. Se for verdade que o universo é infinito, apenas com a enorme probabilidade matemática deve haver algures uma cópia do nosso universo incrivelmente longe.
Segundo a teoria da inflação o espaço é infinito.
Multiverso é uma palavra mais adequada que universo (um), dado que se admite que existem mundos que não podemos ver nem tocar. Deverá haver múltiplas cópias e, se for verdade, há cópias infinitas de cada vida com todos os desfechos (destinos) possíveis a acontecerem. Tudo o que for possível acontece noutros universos. Todas as outras possibilidades a partir dum dado momento da vida de uma pessoa ou do universo ocorrem algures. Hitler ganhou a guerra. A bomba atómica não foi descoberta e Hiroxima não foi destruída.
Para o universo ser infinito, tem que ser plano. Ou está ligeiramente curvado e não se dá por isso.
Num segundo cenário pode haver múltiplos universos à deriva, em forma de bolha de sabão.
Vivemos todos numa megabolha?
Seria uma experiência estranha poder assistir a um multiverso de universos, uns a surgirem e outros a desaparecerem, talvez colidindo entre si. Da calamidade surge a existência e assim uma região do espaço pode surgir de forma alucinante e gerar outros universos.
Talvez o nosso universo tenha surgido do choque com outro.
Com o interminável rodopiar de dados todos os números possíveis e todos os tipos de universos e todos os desfechos possíveis acabarão por acontecer num destes universos formados.
Numa terceira hipótese muitos universos paralelos podem ocupar o mesmo espaço e o mesmo tempo do nosso universo, mas como estão em dimensões diferentes são invisíveis. Sob o risco de cairmos num paradoxo, até o impossível é provável num dos universos paralelos existentes.
Pode haver criaturas que, vindas dessas misteriosas dimensões extras, entrem nos nossos mundos. Para baralhar mais, tudo é possível acontecer, está a acontecer, ou já aconteceu, ou vai acontecer noutro universo e numa outra dimensão de espaço e tempo.
Em risco de extinção num futuro longínquo poderá a humanidade abrir um portal para um universo paralelo?
Admite-se ainda a existência de um outro tipo de universo em que as leis da Física e da Matemática são diferentes.”
Ela morreu com a mesma idade que Jesus tinha quando foi supliciado na cruz. Claro que não é coincidência. Apenas a constatação de um facto se o segundo dado estiver certo. Entrando no campo nebuloso do determinismo, o fado de cada um, se estava condenada a morrer cedo, também o desenlace da relação amorosa com o grande amor da sua vida não se desviaria no tempo por um segundo que fosse. Seria sempre mais do mesmo morrer cedo com um tumor maligno da mama ou uma rotura irreparável de um vaso sanguíneo.
Com esta morte trágica (ou talvez antes), o horizonte mútuo obscurecido e mesmo apagado terá levado Mário a um outro destino, um novo baralhar de cartas com sucessivos e movediços jogos em que a lei do bluff passou a imperar. Foram meras simulações de destinos auspiciosos que o levaram sempre a um beco sem saída e que ainda estavam a acontecer nos tempos atuais, mas agora com fortes probabilidades de se inverter a situação de círculo vicioso. Mas isso é outra história.
Voltando atrás e admitindo a hipótese de existirem não dois mas múltiplos mundos paralelos, certamente que num desses o futuro fosse favorável ao sonho azul dos dois enamorados.
Haveria um mundo, entre o número infinito de mundos possíveis, onde Mário e ela tivessem uma ligação amorosa conducente a um desenlace feliz. Como nas histórias cor-de-rosa da Coleção Azul, por exemplo no caso de “John Chauffeur Russo” que após vicissitudes muito sofridas se chegou a um desenlace feliz.
O "jogo do mata" entre o jovem Mário, a sua namorada e mais uns tantos companheiros poderia ter tido um desfecho diferente noutro mundo.
Aconteceu numa tarde muito quente de setembro de 1959, nas proximidades da Quinta Branca, algures na serra de S. Mamede. Mário e Manuela eram adversários. Alguém escolheu as equipas ou foram eles que decidiram não estar do mesmo lado do campo.
O desejo forte de se superiorizarem um em relação ao outro, num frente a frente entre um "homem-leão" e uma "mulher-carneiro", teve como corolário o abandono sucessivo dos outros jogadores.
O "mata" era um jogo do ringue muito simples. Os dois oponentes colocavam-se de um e doutro lado duma linha previamente traçada e logicamente tinham que ser em igual número. O objetivo consistia em atirar o ringue para o outro lado da linha de modo a atingir um jogador da outra equipa. Este podia agarrar o ringue, mas morria (saía do jogo) se não o segurasse bem, permitindo que caísse. Ou então desviava-se de forma a não ser tocado. O jogo acabava quando não havia mais jogadores de um dos lados do campo.
Mário tinha a força consigo e a arte de saber esquivar-se à trajetória fatal do ringue. Quanto à Manuela era favorecida pela experiência num jogo específico das raparigas e também por alguma leveza e engenho. Assim, estavam reunidos os ingredientes para uma final emocionante.
Por acaso ele ganhou. Arriscou algumas vezes, talvez mais por exibicionismo, ao agarrar o ringue em rota de colisão com o seu corpo, quando podia esquivar-se com relativa facilidade. Ela tentou fazer o mesmo para não ficar atrás. Após luta assanhada, a certa altura Manuela não conseguiu segurar o ringue que vinha rodando e deslocando-se, veloz, após um arremesso com força inusitada. Facto consumado. Fim da refrega.
Ai dos vencidos!
Ficaram a olhar um para o outro após aquela luta que mais parecia de vida ou de morte. Ele, exibindo um ar triunfante, inchado como peru. Ela, muito séria, vencida mas não convencida como era apanágio de homens e mulheres do signo Carneiro.
Mas o que estaria em jogo?, o futuro?
Talvez houvesse de ambas as partes uma marcação de terreno. Um sinal indicador de que lado estava o poder.
E se ele tivesse perdido?
Certamente não ganhou o jogo noutro universo paralelo e talvez tudo tenha sido diferente. Por exemplo, submeteu-se à sua vontade, para não falar da teimosia, e foi mais condescendente, ignorando a fatalidade de poder vir a ser pássaro numa gaiola dourada. Se ela gostava assim, que assim fosse. Psicologicamente talvez essa gota de água, que era a vitória contra Mário, fosse benéfica para dela. Não lhe custava nada aprender a perder quando era preciso e ceder com o objeto amado. Afinal tinham jurado amor eterno e ele não queria perder esse amor tão desejado. Mas não chegava para ela vencer a doença que a tomaria repentinamente de assalto na flor da juventude.
Talvez que nesse mundo houvesse um relógio diferente e o rio da sua vida fluísse mais lentamente.
Mário abriu os olhos. Sentia-se atordoado. Aquela história dos universos paralelos era interessante, mas muito escorregadia e inconsequente. Se eles existiam era lógico que os visse, o que na realidade nunca aconteceu. Até agora.
Encolheu os ombros e esticou as pernas…
«Não te demores.» Disse a mãe.
«Talvez ainda tenha tempo para ir buscar os bichos-da-seda.» Considerou, já na posse da garrafa cheia de vinho tinto.
Se bem o pensou, assim o fez. Até porque a casa do Luís não ficava longe.
Toca de correr a bem correr.
Agora trazia os dois braços ocupados. Numa mão segurava a garrafa. Na outra, a caixa de sapatos com furos na tampa para que as lagartas (larvas) não morressem asfixiadas.
Já é tarde. Desta vez é que vai levar com o cinto.
Acelera a corrida tentando lutar contra o tempo. Ninguém o apanha porque é mais veloz que um gamo. Cada metro que corre é um ganho de tempo. Mesmo assim dava jeito correr à velocidade da luz durante uns segundos para talvez chegar ainda antes de ter saído de casa com destino à taberna. Coisa que não foi pensada por ele porque ainda é o Marinho (quase Mário) e nunca ouviu falar de Einstein.
Última curva para atingir o prédio onde mora. Tempo de desacelerar para as coisas não correrem mal. E vai conseguir chegar a tempo. Ou ele não se chame Mário.
Ah!, uma cova no passeio!
Sem saber como vê-se caído no chão, choramingando. A caixa de sapatos já não tem tampa. As folhas de amoreira aparecem espalhadas em volta. Os bichos-da-seda desaparecidos. E, principalmente, uma bonita garrafa bojuda feita em fragmentos. E, pior ainda: sem vinho.
Apesar de tudo não se feriu nos vidros. Apenas umas ligeiras esfoladelas, coisa a que já está habituado. Mas a garrafa que já não é garrafa e o vinho que mancha o passeio... esse é o problema sem solução. Ou melhor: solução tem e não é nada boa. Chora, chora Marinho (quase Mário) que hoje vais levar com o cinto! Chora chora que quanto mais choras menos mijas...
Agora é que dava jeito ter à mão de semear um desses mundos paralelos onde nada disto ia acontecer.
Mário mergulha outra vez no centro das histórias. Não se trata de um mergulho profundo até às memórias adormecidas que guardam emoções e sentimentos já esquecidos e que não convém ativar, nem tão pouco os que continuam em estado de hibernação. Sabe onde está guardado o ficheiro que guarda a história que pretende liberar.
A improvisada sala de explicações é outra vez o ponto de partida para uma viagem ao passado que as engrenagens impiedosas do tempo não corroeram em definitivo.
Consulta o relógio. Três da tarde. Não tem muita margem de manobra. Dentro de meia hora vai dar uma explicação de Matemática ao Alvinho. Não é esse o seu nome, mas batizou-o assim por qualquer motivo de que não se recorda. É mais importante recordar que o seu explicando, já a ultrapassar os vinte anos, que usa o cabelo todo penteado para trás e colado com brilhantina, imitando o mais que popular “penteadinho”, lhe deve o mês que passou e não sabe o que vai acontecer no fim do mês que se aproxima. Certamente que não fica de mãos a abanar. Nem que procure na terrinha onde ele mora, a casa dos pais. Suspeita que o explicando já estafou na borga o dinheiro do mês de explicações.
Como queimar a meia hora que falta?
Levanta-se e vai até à janela. O calor aperta. Não sabe se deve fechar a janela ou continuar a mantê-la aberta. Resolve fechá-la e logo o silêncio faz ruído em excesso. Conclui que não é bom. Mesmo nada bom. Traz à ribalta outros silêncios abafados.
Momento efémero. O silêncio vai-se e a sala enche-se de escuridão. Só a lâmpada do candeeiro de bicha concentra a luz sobre uma zona do tampo em vidro da secretária.
Já não está só. O seu amigo Zé Pardal, sentado à direita, aguarda, pacientemente, uma oportunidade para intervir. Mário sente a pressão do olhar e levanta os olhos das folhas.
«Queres alguma coisa?»
«Que estás a estudar?»
«Para tua informação, Análise Química I.»
Por sinal, um bom petisco. Ainda por cima o regente da cadeira é uma múmia paralítica, espécie de morto-vivo. Pressente que vai ter grandes dificuldades na oral. Isto é: se for admitido à oral. O homem é mesmo fera.
O Zé Pardal deixa de espreitar as folhas e levanta-se. A curiosidade aguçada leva-o a espiolhar os frascos de compostos químicos que o amigo comprou ao Travassos.
«Queres que te dê a provar cianeto de potássio?»
«Sempre pensei que eram lérias, mas agora vejo que tu não brincas em serviço. Já fizeste mais alguma experiência?»
«Claro que não. Olha lá... a tua amiguinha já fez as pazes contigo?»
«Nunca mais me falou.»
«Pois é. E tem toda a razão. Acho que devias pedir-lhe desculpa.»
«Achas?» perguntou, ao mesmo tempo que pegava numa moldura que estava sobre a secretária.
«É muito gira!»
«Já me disseste uma vez. Mas não mexas que infetas...»
«Foste muito estúpido em perder uma mulher destas!»
De repente tudo muda. Mário está só na mesma sala, agora profusamente iluminada pela luz do dia. O Zé Pardal, o caso dos gatinhos envenenados com o cianeto e a raiva declarada da Guidinha já não estão presentes. Mário sabe, de uma vez por todas, onde há de ir procurar ao centro das histórias. Não precisa de sair da sala, nem sequer de se levantar. Tem na sua frente a gaveta onde guarda as cartas de amor que recebeu da Manuela. Estão alinhadas pelas datas.
Consulta outra vez o relógio. Quase quatro e o estúpido do Alvinho sem aparecer. Vai faltar à explicação e não avisou. Tanto melhor. Conta como explicação. Não lhe perdoa porque já não é a primeira vez nem a segunda que reincide.
«Vamos lá» sussurra. «Coragem!»
Coragem?, abrir uma gaveta que nem sequer está fechada à chave?
Mas as cartas já foram destruídas numa fogueira e as cinzas deitadas no quintal, em meia dúzias de pazadas.
«Que fizeste da tua vida, Mário? Ainda ontem corrias a bom correr até à estação para deitares na caixa do correio da última hora mais uma carta para a Manuela!»
Ficou a olhar a gaveta vazia.
É mau sinal quando as estrelas empalidecem. Um aviso de morte iminente, tal como a superstição de estar para acontecer coisa ruim quando se deixa cair um cartão, por mais fino que seja, e este fica equilibrado na vertical, contra toda a lógica.
O combustível nuclear duma estrela consome-se em milhões de anos e esta mergulha na noite fria e longa. É tudo uma questão de tempo. Tantas vezes se deixa cair um cartão que este fica na vertical e não é bom. Nada bom.
Mas foi com um cartão de Boas-Festas que a estrela de Mário e Manuela se acendeu. Só que essa estrela cedo chegou à fase de supernova.
Foi tão grande aquele amor que se consumiu de repente sem que dessem por isso?
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