Deixa-me em paz com a minha solidão. Pelos vistos a formatação deu resultado. Criou resistências Continuas cá dentro. Mas é diferente. Procuras daquilo que não podes encontrar. Memórias. Ficaram as tuas. Das minhas não me lembro. Quanto aos sentimentos, também estão esquecidos. Todos. Tudo o que te dei e teve retorno. As próprias imagens foram apagadas. Não me lembro. Restam fragmentos e mesmo esses estão envoltos em neblina. Não posso dizer que me lembro, como se fosse ontem. Lamento. Esqueci-me de ti. Da cor dos teus olhos. Dos supostos beijos ao luar. Da cor do teu vestido quando nos encontrámos pela primeira vez. De quem nos afastou. Das outras mulheres que te substituíram. Sim. Esqueci-me de tudo e sabes porquê. Lamento. Formatei-me.
Estou saturado de ouvir que a idade não perdoa. Queres que faça um esforço. Não vou olhar para ti frontalmente porque não sou capaz de descobrir-te entre as muitas mulheres que passaram. Umas, passaram simplesmente. De outras, lembro-me... mas confundo-as. Talvez que esteja senil.Tudo mudou. Neste momento estou de volta ao tabuleiro onde joguei mais que uma vez o tradicional jogo de xadrez de um só rei e de uma só rainha. A tal história que se repete, mas que agora vai mostrar outras estratégias. Ou talvez não. Não sei se são melhores que as outras. Só sei que neste momento aquilo que julgo ser a memória voltou. Mas só para o nosso jogo que será o último. Agora já não são os bispos que me prendem e impedem que monte o cavalo da coragem. Aquele belo cavalo alado das utopias. Mas não foi contigo que aconteceu. Se fosses tu, nunca terias passado por mim com os cabelos soltos ao vento. Não te zangues comigo. Eu sou assim. Filho do vento que nunca descansa. Mas volto sempre para ti. Em pensamento, porque não pode ser de outra forma. E assim sou fiel. Onde moras? Ah!, novo engano. Também não és tu. Fugiste porque tinhas medo dos teus dons. Quis imitar-te e tu aproveitaste-te. Naquele dia, vi-a. Ela deixou que a visse. Mas assustou-se e nunca mais quis repetir a experiência.
Olha, para não cometer mais erros, como te chamas, sorriso meigo?
O jogo não pode parar. Os peões estão, destemidamente, ao ataque. Mandados por quem? Não sei. Tenho que recuar. Eu?, recuar perante estes simples peões? Quem os envia deve ser senhor de grande poder. Talvez Deus. Deus, não. Ironia. Nunca falou comigo. Não me conhece. Portanto, está fora de causa.
Então o que se passa?
Muito simplesmente, já não sei se sou eu e admito não saber quem és. Talvez seja mais clarificador para esta situação complicada lançar uma metáfora no tabuleiro onde me puseste a jogar o tal jogo de um só rei e de uma só rainha, embora cheio de peças que vão ser sacrificadas.
O poeta atormentado com a doença que o ia minando, aos poucos, há muito que já não está cá, mas deixou para a eternidade todo o Fel que lhe corroía a mente. A vida escorregava-lhe aos poucos e não podia fazer outra coisa senão ensaiar um diálogo macabro com a morte que se aproximava a passos largos, falando das caveiras e de uma especial, traçada no seu futuro.
“O livro que aí vai - obra de um incoerente -
É um livro brutal, é um poema a esmo...
Pensei-o pela rua olhando toda a gente,
Escrevi-o no meu quarto olhando-me a mim mesmo.”
Claro que não percorro neste momento o mesmo caminho que o poeta desgraçadamente percorreu. Nem por sombras. A minha doença é outra. É mais profunda. As raízes estão podres. Os neurónios sangram. As conexões interrompem a passagem de impulsos. Espero um retorno que tarda em aparecer. A minha vida parou numa página tão negra, tão opaca, que não consigo ler para a frente.
Porque será que tudo o que começa bem dá, em qualquer momento, uma reviravolta brutal de cento e oitenta graus?
Deixa-me com a minha solidão que hoje não tenho alternativa, pois agi como agi. Se tivesse acontecido de forma diferente...
Xeque duplo da rainha à torre e ao rei. Fico em desvantagem. Sem apelo nem agravo. Mas não faz mal. De qualquer forma perdia o jogo.
Sabes uma coisa? Não sabes, concluo de imediato. Nem sequer imaginas que estou a falar contigo neste momento. Sei onde posso chegar telepaticamente. Pequenas sugestões, pensamentos concordantes. Isso e pouco mais. Ou não?
Olha, fazer uma nova formatação de mim é a última esperança que me resta. Ou vou levar mais uma razia nos neurónios que sangram, ou retomar os erros iniciais, ou então, em última análise, começamos de novo como se fôssemos as duas almas gémeas predestinadas, bla,bla,bla, depois de termos passado por uma fase crítica de não assunção em que os ideais chocaram.
Mas porquê formatar-me, se vou perder toda a nova identidade e esquecer-me que não sei quem és tu?
Valerá a pena correr o risco de montar o cavalo alado errado, abandonando assim de vez o prado verde da esperança, que seguirá rumo aos milhões e milhões de estrelas distantes, de sermos duas agulhas em milhões de palheiros à procura dos nossos números que o destino prometeu um dia fundir num só?
«Os beijos que trocámos ainda são doces e a crise é passageira, acredita. Fica por cá.»
Foste tu que falaste?
Um cavalo perdido. Alvo. Alado. Comprometi de vez o desfecho do jogo. Por tua causa. Víamos a linha do horizonte cada vez mais próxima e agora estamos presos mais uma vez nas nossas limitações. Não nos podemos manter no mesmo sítio sob pena de destruição do sonho que nos uniu, e ainda une, nem podemos passar para lá da linha onde nos espera o desconhecido porque tu não queres e mesmo que quisesses continuávamos a enfrentá-lo.
Mas estou a falar de cor. Se me recordo vagamente de ontem, hoje não me lembro de ti.
«Vou contar-te uma passagem da mitologia grega...»
Que tem a ver...?
”O pai de Ícaro, Dédalo, um talentoso artesão ateniense, tentou deixar o seu exílio na ilha de Creta, onde ele e o seu filho estavam presos nas mãos de Minos, o rei para o qual ele havia construído o Labirinto para confinar o Minotauro, metade homem, metade touro. Dédalo estava exilado porque deu à filha de Minos, Ariadne, um novelo de linha de modo a ajudar Teseu, um inimigo de Minos, a sobreviver ao Labirinto e derrotar o Minotauro.
Dédalo confecionou dois pares de asas, usando penas e cera, para ele mesmo e seu filho. Antes de deixarem aquela ilha, Dédalo avisou ao seu filho não voar tão rente ao sol, pois o calor derreteria a cera, nem tão rente ao mar, pois a humidade deixaria as asas mais pesadas levando-o a cair no mar. Graças à enorme liberdade que voar deu a Ícaro, este cruzou curiosamente o céu, mas durante o processo ele veio rente ao sol, que derreteu a cera. Ícaro manteve-se batendo as asas mas logo acreditou que já não lhe sobrava qualquer pena daquelas e que ele estava batendo apenas os seus próprios braços. E assim, Ícaro caiu no mar...”
«Então?»
«Então o quê? Ah... Penso que é uma lição, mas a carapuça não me serve.»
«Porquê?»
«Porque não quero sair do meu exílio. Foi voluntária decisão que tomei. E não posso ultrapassar os limites de segurança Porque queria esquecer-me de ti e não conseguia, a certa altura podia aproximar-me demasiado do astro-rei. Então...»
«Formataste-te, já sei.»
Ontem, a probabilidade de nos encontrarmos na mesma órbita do acontecer era mínima e conseguimos. A nova será essa a multiplicar pelo mesmo número. Ainda muito mais baixa. Mesmo assim, quero apostar porque tenho fé. Juro que, embora de pés levantados, não chegarei à lua e muito menos ao sol. Nem sonho como o Ícaro, se é que sonhou ou foi um acidente. Mas prometo tentar lembrar-me de ti.
«Deixa-te de promessas vãs. Já o fizeste ontem e vai repetir-se. Porque não hoje ou amanhã? Tolo! Deixa-te ficar quietinho no esquecimento e apaga também a tua solidão imaginária que é só um estado negro de espírito. Apenas isso. Tu és tu e sempre foste assim. Se queres fazer tábua rara de tudo e de todos, formata-te mais uma vez. Mil vezes. Até que o amanhã seja um novo dia terreno, sem estrelas distantes, sem cavalos alados, sem “Ícaros” com asas de penas, cera e tudo isso. E assim, amanhã, quando o sol voltar, vamos continuar a ser os mesmos, unidos, como tu costumas dizer, “até que a morte nos separe”.»
Quero acreditar em ti. Mas porque será que este cinzento, que me turva a vista e a razão e mostra-me sonhos e só sonhos, teima em atormentar-me a alma?
«Afinal ainda tens alma? Parabéns. Não consigo imaginar como conseguiste esse milagre.»
Preferi o silêncio.
«Não respondeste. Deixa então que entre nos teus segredos apagados e que os decifre, um a um, até que abra aquele que conservou o teu esquecimento.»
Autorização concedida. E como vais conseguir?
«Muito simples. Desfazendo a formatação as vezes que forem necessárias até que te recordes de mim.»
Não sei o que faço aqui. Apetece-me dizer que estou só, mas não entendo o que é isso de estar só. Vejo tanta gente a passar na frente. Gente que não olha para mim. Nem sequer um. Será que sou invisível aos seus olhos? Só hoje ou há muito tempo. Hoje. O que é hoje?
«Hoje é o dia em que vamos dormir juntos!»
Uma das pessoas parou. Não a conheço e parece que foi ela a dizer que "vamos dormir juntos".
Desculpe, mas tenho que perguntar. Acha boa ideia dormirmos juntos?
«E com beijos doces, línguas molhadas. E tudo isso.»
Que estranho! Ela não me diz nada...
«Ainda bem.»
Ainda bem? Leu-me o pensamento.
«Vou dar-te tudo. Companhia. Amor. Ciúme. Futuro. Mas não percas a rainha de vista.»
Já me esquecia. Estou num tabuleiro de xadrez já com poucas peças em jogo. Não sei o que fazer. Nunca joguei isto. E qual é a rainha?
«A rainha está bem à vista. Apressa-te a jogar.»
Deve ser para aqui. Pronto, joguei. E ela está a rir-se.
«Vejo que ainda não perdeste o jeito.»
Fala como se me conhecesse. E, coisa curiosa, parece que gosto da sua presença.
Será que ainda existirás amanhã?
«Não é que a última formatação não produziu o mínimo efeito?»

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