Estávamos em 15 de janeiro de 1989. Ano muito estranho. Mais estranho que este foi o 1988. Uma coisa é certa e outra coisa não pode ser. A verdade é que nunca chegarei a saber porque estes dois anos foram como foram. Aconteceu um despertar para os casos insólitos, talvez reforçado pelo interesse obsessivo que se apossou de mim face ao que estava acontecer comigo. Mais que curiosidade foi o desejo que esses casos me levassem a tentar o contacto com uma mulher que a crueldade do destino levou para o azul constelado do céu e daí nunca mais voltou. Como acontece com todos os que partem nessa viagem. Ninguém volta.
As relações não conseguidas são aquelas que cravam espinhos indeléveis nos apaixonados e que, inexplicavelmente, com o correr dos anos tornam-se tão fortes e presentes que a espuma do tempo não consegue arrastar consigo.
Recordando a Esfinge e a Madalena, o meu real e o meu fictício confundiram-se de tal forma que ainda hoje (quantos são hoje?) pergunto-me, tantas foram as dúvidas, se a culpa de não acontecer uma ligação duradoura com uma dessas mulheres foi só minha. E porquê? Muito simples. Porque, à viva força, quis admitir que a mulher única, hipoteticamente perdida no constelado do céu, se intrometeu e bloqueou qualquer hipótese de êxito tanto na relação com a Esfinge como com a Madalena. Hoje são águas passadas com estas duas mulheres, mas a dúvida ainda persiste.
Quanto ao caso que envolveu a Esfinge não passou de um estranho jogo de cabra-cega. Ela aproximava-se e dava a sensação que queria ter uma relação comigo. Mas logo se afastava e deixava-me perplexo. Até nos sonhos fugia. E eu não conseguia chegar a uma conclusão. Nem lhe perguntei. E esse foi talvez o mal. Até que descobri que ela se drogava e mantinha uma ligação a três com o Artista e a companheira deste. Pressenti que ela corria perigo e podia tê-la ajudado. Não me amava, mas tinha uma certa atração por mim. Se insistisse talvez conseguisse afastá-la daquele ninho de perdição. Preferi desistir e ignorar o seu drama. Ainda hoje, quando me lembro da Esfinge, sinto um nó na garganta. Mas de nada serve o arrependimento. O que está feito, está feito. É impossível voltar atrás.
Não sei como aconteceu. Mas desconfio porque aconteceu. É mais uma das muitas coincidências que dão para pensar. Pareceu-me que a mulher única estava de regresso. Comecei a sentir uma proximidade invisível e todos os sinais apontavam para ela. Ao fim de tantos anos perdida na escuridão que existe para lá da porta ela estava de volta. Eram tantos os sinais!
A minha atenção aguçou-se quando começou a contar coisas ocorridas na altura do curso. Fiquei ainda mais atento e larguei de todo o trabalho. Pura intuição? Confesso que não sei dizer. Tratava-se de Évora e de uma época muito próxima daquela em que a Manuela (2) frequentara também o curso do Magistério Primário. Depois de ficar aprovada no sétimo ano do liceu, resolveu enveredar pelo ensino.
Pouco depois já estava junto delas a seguir a conversa e também a participar. Uma pergunta veio, inevitavelmente. E a resposta deu razão ao meu ato intuitivo de deixar o trabalho no computador. Na verdade, ela tinha-a conhecido. Eram do mesmo tempo. Soube da sua morte num almoço de encontro de colegas de curso. Lamentaram muito a morte dela.
Mostrei um certo espanto. Primeiro, era a constatação de mais uma coincidência. Depois, o facto de terem lamentado muito. Doença? Talvez não. Outra coisa, admiti.
«Ela era muito nova...»
Acidente? Doença? Suicídio?
Nesse momento começou o bloqueio. Não a conhecia muito bem. Desculpou-se, afirmando que marido é que tinha sido colega de curso da Manuela e, logicamente, falava mais com ela. Ia perguntar-lhe e depois dizia-me alguma coisa. E a conversa morreu ali porque, entretanto, a Sofia pediu-lhe informações sobre como corriam as componentes pedagógicas.
A partir daquele momento crucial acabariam os nossos contactos pelo telefone. Ela costumava falar comigo por causa de problemas de dinheiro relacionados com o distrito de que era coordenadora. Começávamos por aí, mas falávamos de outros assuntos e durante algum tempo. Havia uma química especial entre nós. Mas acabou. A partir daquele dia tudo acabou. Ela evitou telefonar-me e passei a receber os recados pelas minhas colegas.
Alguns dias mais tarde, quando voltou a Lisboa deu-me o número do telefone de uma pessoa entendida e séria que iria ajudar-me. A conversa foi rápida. Ela queria mesmo evitar que eu fizesse mais perguntas relacionadas com a morte da Manuela.
Estranhamente viria a perder mais tarde o papel onde anotara o número do telefone da pessoa “entendida e séria” que me iria ajudar e assim fechava-se mais uma porta. Aliás era habitual.
As confusões começaram talvez um mês mais tarde. Não me lembro se já conhecia a Madalena. Talvez não. E que confusões eram? Diálogos impossíveis quase a apontar para alucinações.
29 de janeiro. Visitas.
«É esta a tua maneira de comunicar?
Não respondes. Quem quer que tu sejas, não respondes, embora julgue ser esta a via de poder chegar a ti. Nem sequer te oiço chorar. Diziam que choravas com pena de não me teres. Diziam. Como posso acreditar? O teu mundo deve ser demasiado belo para desceres ao meu. Ou estou enganado? Que queres de mim?, se és a pessoa?»
Não acabei a mensagem para ela. Ao mesmo tempo que escrevia a palavra “pessoa”, ouvi na rádio:
«Toda a gente é pessoa...»
O diálogo encaminhou-se noutro sentido.
«Se entendi, és tu. Imaginar que és outra, não passa de um grande equívoco. Estou surpreendido. Tenho seguido por muitos caminhos à procura da verdade que não encontro e sinto que cada vez tenho mais dúvidas. Só sei uma coisa: quando a crise chega em força, então sei que és tu. Aprendi a conhecer o teu estilo.»
Hoje a coisa tomou forma comparável à crise que estalou no verão passado e levou-me a escrever o “Promontório”.
«Eras tu e não quis acreditar. Os bloqueios. O frio. A sensação esquisita na cabeça. Olha uma coisa, prometo passar para o papel os teus pensamentos, mas não deixo, de maneira alguma, o computador. Façamos um pacto. Quando precisares de mim, aparece. De uma maneira inequívoca. Como hoje. Lamento por ter sido levado por caminhos que talvez não tenham sido os mais adequados. Desenterrei o passado e mergulhei profundo através do ansurdo de respostas negativas. Sempre que vinha à superfície para tomar fôlego, então mostravas-te e não acreditava no que era evidente.Toda a gente é pessoa, uma ova. Estou a ser levado noutra direção que não desejo. E aí está uma multiplicidade de pessoas sem rosto, mas com um nome. Tu conheces esses nomes. Quem havia de saber, senão tu? Tudo ficou desfeito. Nada pude fazer. Que queres de um promontório insignificante que só fala de gaivotas e copos rodopiantes? Também cantaste o falhanço do amor e eu não tenho outro amor para cantar. Bem sabes que não há amor como o primeiro. Estás a bater na porta errada. Para lá da porta só existe o deserto vermelho, a frustração de nada ser, o desencanto das noites sem história. Porquê? Porque ela já não está comigo. Voltando a ti, como queres os meus préstimos, se nada sou senão um homem desesperado a seguir os voos de ontem ligados a gaivotas sem rumo? Devo renascer das cinzas? Isso acontece todos os dias. De um monte de cinzas fazer uma obra de arte é o mesmo que construir o amor sem o ter verdadeiramente. Paixão. Só posso falar de paixão e da proximidade perigosa do ódio. Paixão e ódio nada têm a ver com o amor. Esse, perdi-o. Já não sei falar de amor. Apodreço, aos poucos, neste cárcere maldito de transição. A minha tragédia é estar cada vez mais morto. Bateste na porta errada. Não vês o letreiro? Nado-morto. É o meu cartão de visita. Sei que construíste um mundo quase perfeito e tens todo o tempo para construir mundos ainda mais perfeitos ou à maneira disso que conheces. Com pouca luz ou com toda a luz. Não percebo por que razão me procuras. Eu, um construtor de impossíveis! A não ser que me ensines a viver no antimundo, na má formação de um castelo intemporal. Sem ameias. Sem defesa visível. Sem espaço. Meu bom amigo, julgo que não tenho essa matéria prima. Nem posso ir buscar tal matéria. Porquê? Porque não existe. E se existe no virtual, então está do teu lado. O antimundo é teu e a antiperfeição está ao teu alcance. Não te posso valer. Não consigo. Sou um inábil. Deixei murchar a rosa vermelha. O rasto de sangue do espinho cravado fundo já foi apagado pelas últimas chuvas. Há quanto tempo choveu? A resposta é lógica. Chove sempre. No meu coração que ainda bate enquanto não chega o último amanhã. Mas esse amanhã pode já ser hoje. Porque hoje nada tenho para dar-te. Só números. E de números sei que não gostas. A propósito de números, onde estão aqueles olhos de amêndoa que se esconderam? Aí o jogo é outro. Para amar ou criar é preciso sofrer. E o sofrimento virá trazer de novo feridas antigas que não sararam. É isso que queres na ribalta. A minha cabeça. O sentimento de culpa sem saber de que me acusam. Estou na encruzilhada. À espera. Também tu estás à espera. Ou estou enganado?»
Então aconteceu uma coisa inesperada...
«Você procura uma desculpa para meter conversa comigo. Não o conheço de parte alguma.»
«O livre arbítrio tem uma componente condicionante. Incrível!»
«Incrível é o que está a acontecer. Este diálogo é absurdo. Se nem sequer existo, como pode haver diálogo?»
«Tanto faz, fracasso ou não. Apenas quero dizer que este diálogo não aconteceu, nem está a acontecer. Abortou à nascença, antes de ser desejado.»
«Nunca houve diálogo.»
«Como assim?»
«É melhor terminarmos.»
«Desculpe se me ausentei. Pensando bem, é melhor não terminarmos. Afinal parece que somos personagens imaginárias. Talvez. Então Deus fracassou connosco.»
«Sabes muito bem que não fui eu quem fugiu. A rosa vermelha estava à entrada do túnel de luz. Fugiste por aí, sim (3).»
«E foi por isso que a rosa vermelha desapareceu?»
«Tu.»
«Eu?»
«Tu és a rosa. Tens e terás sempre muitos nomes. Já deste conta que te apanhei. Não precisas de disfarçar mais.»
«A rosa indicou o caminho pelo túnel que tinha a luz mais intensa. Limitei-me a obedecer. Mas não entendo uma coisa: quem ia ao encontro da rosa?»
«Andamos sempre à procura de qualquer coisa que nunca existiu. Portanto, nunca a encontramos. A não ser o eco.»
«Quer dizer que é tarde. Mas trata-me por tu. Como dantes.»
«É tarde para te reencontrar, pois vais usar muitos nomes. Neste momento já não te chamas Esfinge.»
«Pois não. Foi melhor assim. A Esfinge profanou o teu laboratório secreto. Já não tem razão de existir.»
«Como o nosso diálogo é um absurdo, vou imaginar que vestiste uma nova roupagem e já regressaste do túnel que tinha muita luz. Estamos falando um com o outro, mas ainda não sei como vai acontecer amanhã.»
«E se eu voltasse ao túnel? Não quero que sofras mais!»
«Impecável. Quase humana. Eu existo e tu és uma peça que vai completar o puzzle que me há de levar...»
«Ao túnel?»
«De túnel em túnel.»
«Com que fim?»
«Olha, imagina que é tudo uma questão de cores. Ainda não sei o que fazer com as cores.»
«Que cores são essas?»
«Se houve a rosa branca, da fresta por onde a outra, que podias ser tu, via a noite e o dia...»
«... e também a rosa vermelha que deixou pétalas espalhadas no ar ensanguentado...»
«Começas finalmente a entender. Estamos a ser manipulados por um Ser que nos fez enlouquecer de amor, ciúme e bom senso. Eu, um simples mortal. Tu, uma faceta que foi de ti própria.»
«Não será o contrário?»
«Como queiras. Olha, agora são onze horas da manhã. Imagina que o tempo não já existe e estás noutra dimensão. Terás daqui a momentos um encontro irreal. A peça do puzzle passo a ser eu e tu procuras as cores. Um dia, descobres uma cor e acontece que essa cor sou eu. Que sentes?»
«Não sei.»
«É a primeira cor.»
«O primeiro amor!»
«Ou isso. Não a vais esquecer. Nunca esquecerás. Entretanto, virão outras cores. Se quiseres, novas descobertas. Novas roupagens. Mas elas nunca mais terão a vivacidade da primeira. A real. Aquela que nunca mais virá!»
«Embora esteja sempre consigo, em cada momento irreal. Prefiro ser a Esfinge.»
«A Esfinge está gravada no sítio da memória apagada. E profanou o meu laboratório secreto. Sabe tudo de mim e eu nada sei dela. A Esfinge é mais um enigma que outra coisa. E eu gosto de decifrar enigmas.»
«Semelhantes àqueles dos relógios que “falam”?»
«Não fujas ao diálogo. »
«Não fui eu quem criou este diálogo absurdo. Já esqueceste que a situação que nos envolve agora não tem o mínimo fundamento?»
«Por ser absurdo... quero ver o teu próximo rosto.»
«Não. Sou ainda uma rosa vermelha que profanou o teu laboratório secreto.»
«Lembra-te que já não és a Esfinge. Quero ver-te noutro rosto. Um rosto sempre diferente, mas moldado por uns olhos tristes.»
«E castanhos?»
«Castanhos.»
«As tuas associações são circulares. Voltas sempre ao mesmo. Ligas dois seres como quem mistura a areia com o cimento. Acreditas, ou mentes a ti próprio, que o passado e o presente se podem confundir. Pobre de ti, que estás cego! A vida tem sido um equívoco. Desta vez forjaste um encontro. Mas só uma rosa vermelha estava à tua espera na entrada do túnel.»
«Tens pena de mim. De alguém que nutre por ti um sentimento estranho.»
«Não. Será que posso beliscar-te?»
«Para quê?»
«É para ter a certeza que existes...»
«Claro que não existo. Lembra-te que o nosso encontro de ontem foi um absurdo.»
«A propósito de absurdos… que horas são?»
«É quase meio dia.»
«Curioso.»
«Sim?»
«Posso também ter segredos. Julgavas que só tu tinhas o privilégio de esconder um segredo?»
«Sei tudo de ti.»
«Do meu segredo?»
«Sou um teu prolongamento.»
«Estive à entrada do túnel. A responsabilidade foi só tua. Só me esforcei por seguir um sinal.»
«Que túnel?»
«Consegui baralhar-te!»
«...»
«Se sabes tudo de mim, qual é o segredo?
«...»
«Apanhei-te. Agiste na inversa. Querias entrar cá dentro e forjaste a situação do túnel. A guerra é longa. Uma “longa guerra azul”. Sou do azul e o laboratório profanado tem nova fechadura. E escuta: também não entro no túnel sem saber a verdade da rosa vermelha. Está tudo adiado...»
«Então, adeus.»
«É para sempre?»
«Enquanto estiveres desse lado.»
Quem quer que ela fosse, tentou escorregar por dentro de mim e acabou mergulhando no boqueirão que a levou outra vez ao mundo das trevas. Tentou e não conseguiu. Mas penso que não vai desistir. Há de voltar com outras roupagens. Talvez para bloquear-me. Em caso extremo, para destruir-me de vez.
Este ser camaleónico atrai-me. Volta ciclicamente, como um vírus trazido para a Terra por um cometa. Felizmente que acredito que há muito ainda por explicar. Nestes curtos segundos (o tempo existe nos diálogos?) saio do mundo dos números e entro noutro absurdamente lógico por ser ilógico. E aqui vale tudo. Não há mensagens de erro, mas sim outras mensagens que falam de um amor impossível, de um ser estranho que chegou a uma terra estranha que está escondido para cá da porta proibida, onde a luz não existe e não posso vê-lo. Então tenta, desesperadamente, encaminhar-me para uma realidade harmónica que ainda não consegui atingir. Continuo às escuras, mergulhado nas trevas do tempo que me foge. É esse o meu drama. Devo insistir ou é perigoso? Algo me diz:
«Uma outra tentativa e abraças o infinito!»
Uma só gota mataria a sede milenária que me atormenta. Ela sabe muito bem da minha sede por tudo o que está para além do entendimento humano. Mas quem é ela, se não é quem julgo que seja? Talvez seja um ser extraterrestre degenerado que procura as suas origens, ou uma partícula do Todo-Poderoso rumo à identidade final..."
E que querem eles de nós?
Dias mais tarde…
«À espera... Também tu estás à espera...»
«Porquê? Porque é que havia de esperar se nunca prometeste vir?»
«Aí está o grande equívoco. Eu prometi vir. E cheguei. Tu é que não me viste. És cego para o meu mundo e pouco ou nada sentes.»
«Cego, sim. Mas dizem que sou um sensitivo.»
«Mandei-te mensagens. Não as recebeste ou não quiseste receber. Preferiste o silêncio. A fuga. Mas eu apareci. Não acreditaste!»
«Não sabia até onde o teu interesse por mim poderia ir. Sou vulnerável. Eu sei. Eu tu? Numa noite, numa só noite, e no mesmo sonho, estiveste a meu lado por três vezes. Nua. Havia mais pessoas. Todas vestidas. E só eu via a tua nudez. Julgo que isto deve ter um significado. Mas que significado posso dar? Não sei. Os meus sonhos só se concretizam mais tarde. São sonhos premonitórios, mas a alguma distância. O que tiver de acontecer, nunca acontecerá nos dias imediatos. Há como que uma trama que se vai desenrolando ao longo do tempo.»
«Mas porquê aparecer nua e só aos teus olhos?»
«Porque sei que és vulnerável ao amor. Sei que, mais tarde ou mais cedo, vais ser dominada. Tu, que és uma égua à solta...»
«Acertaste. Não quero perder a minha liberdade!»
«Talvez seja esse o teu mal. As pessoas que pensam que são livres, não deixam de estar metidas dentro das gaiolas douradas da liberdade.»
«Não entendo.»
«É verdade. Estás numa gaiola dourada, julgando que és livre. E os teus pensamentos?, consegues controlar os pensamentos?»
«Tocaste na ferida. Os meus pensamentos não podem ser evitados. Brotam como as águas de uma fonte. Águas inesgotáveis. Os meus pensamentos livres dirigem-se para ti. Estou presa a ti, embora me vejas a fugir. É esse o meu drama. Ao mesmo tempo, o desejo de eternidade engana-me porque ninguém é eterno. O meu corpo não é eterno. O teu corpo não é eterno. As vidas passadas é que continuaram. Só que não temos conhecimento delas. Não sabemos quem fomos, nem quem seremos.»
«Esfinge... que raízes nos agarram e nos alimentam?»
«Estamos outra vez num diálogo absurdo. Não sou quem julgas que sou.»
«Eu gosto dos absurdos!»
«Só há um absurdo.»
«Quando falo de absurdos é porque tudo na vida, é absurdo. Por exemplo, este silêncio que se fez. O diálogo em que afinal só há uma voz. A conversa que tivemos naquela tarde de julho, não terá sido um absurdo por não me ter aproveitado?»
«E naquele dia estava indefesa...»
«Eu sei. Fui atrás do teu último chamamento. Tudo o que aconteceu foram acenos de duas galáxias que queriam fundir-se numa só, ao mesmo tempo que estavam, tragicamente, obedecendo ao big bang que as afastava cada vez para mais longe. Foram os avanços e recuos sucessivos, os absurdos, as confusões, esse nome que te dei... Esfinge; foram as mensagens que deixei e que não leste ou ouviste. Na verdade, o absurdo é pensar em ti e nem sequer saber se pensas em mim. Se tens sentimentos. Se não passas de uma Esfinge. Enigmática. Frígida. Ou se és uma hidra que devora cá dentro...»
«...»
«Não respondes. Mas existes, embora te chame Esfinge. Ainda há pouco telefonei-te e atendeu uma senhora idosa. Afinal, foi ela que te deu a mensagem. Adivinhou quem estava a telefonar, embora eu disfarçasse a voz...»
«...»
«Continuas a não responder porque neste momento já não és a Esfinge! És a outra que se esconde atrás de ti.»
«...»
«Amei-te muito! Foi há muitos anos. Não sei quantos mais “amanhãs” virão. Porque não te tenho, todos os dias vou morrendo um pouco. Na órbita do acontecer só vejo fugas, voos circulares de gaivota, paguros desorientados que já não ocupam casas alheias, mulheres de vermelho que me perturbam. É obsessão? Acredito que seja. Deixa que veja o teu olhar triste de adolescente. Só um segundo. Para ter a certeza. Sei que estás à espera, mas não respondes.»
«...»
«Olha, vou acabar com este diálogo. O teu silêncio não me deixa outra saída. Continuas teimosamente silenciosa.»
«…»
O seu silêncio é um sinal de que ainda não chegou a hora. Não passou de mais um ensaio. Talvez tenha sido o ensaio geral. Tenho o pressentimento amanhã será o dia da estreia.
Amanhã é quando?
Quando a porta se abrir. Se é que se vai abrir alguma vez...
(2) Manuela

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