segunda-feira, 5 de junho de 2023

Formatação

  

As mulheres que foram do meu tempo e que hoje lembram os frutos já secos, pendentes das árvores, olham-me na distância e tentam enviar as últimas mensagens, desesperadas. 
Respondo ou ignoro? 
Se lhes responder, digo que sou eterno. Doutro mundo. Melhor ainda. Viajei no hiperespaço à velocidade da luz e voltei ainda mais novo. Agora posso virar-me para os frutos bem vivos, prontos a serem colhidos pelo “apanhador de histórias”, embora me pareça que estão mais longe do que o puro ato de estender o braço. Cada vez mais longe. Afinal usei uma máscara que não me escondeu de todo.
Não desisto. É difícil o contacto, mas não impossível.
Revejo-me por dentro e por fora e faço uma apreciação imparcial. Não gosto do que vejo por fora, mas sinto-me bem por dentro. Só por isso e mais nada, não consigo evitar um sorriso enigmático. Estou bem vivo, pronto a enfrentar o desafio de alto risco de uma nova madrugada que, mais tarde ou mais cedo, me vai falar de impossíveis mas que vou ultrapassar. E será sempre assim, até que chegue o sinal do último crepúsculo.
Nem que seja por um dia, tudo me diz que vou tomar uma decisão, até porque gosto do novo desafio que já tenho na minha frente. De seguida, enfrento o desafio. “Que será, será” e, se não for, outro desafio virá. O meu rio espreguiça-se em meandros e mais meandros e parece cada vez mais distante da foz. Só pode ser por um motivo convincente. Esse tal que era inevitável. Acabei de formatar-me da cabeça aos pés. Ponto final. Mas atenção. Foi só um dos meus eus que não eu mas eu. Portanto, ainda estou por cá. E luto. E desafio moinhos de vento. Continuo e continuarei na luta de todos os dias. Contra a evidência.
Não quero formatações equívocas e inúteis. Escuta-me, quem quer que sejas. Deixa-me com a minha solidão. Já te dei tudo. O que te dei não tem retorno. Só me resta a própria alma. Quanto à alma, está desfeita. Em alternativa só podia entregá-la ao diabo, bem sabes.
Neste momento estou bloqueado. Volta ao campo o tradicional jogo de xadrez de um só rei e uma só rainha, história que se repete mas com outras estratégias. Já não são os bispos que me prendem. Os peões estão, destemidamente, ao ataque.
Então o que se passa?
Muito simplesmente, já não sei ser eu. Sou o outro que está escondido.
Talvez seja mais clarificador para a situação lançar uma metáfora no tabuleiro que me bloqueia (espero) de momento.
O poeta atormentado com a doença que o ia minando, aos poucos, há muito que já não está cá, mas deixou para a eternidade todo o fel que lhe corroía a mente. A vida escorregava-lhe aos poucos e não podia fazer outra coisa senão ensaiar um diálogo macabro com a morte que se aproximava a passos largos, falando das caveiras do seu futuro.

“O livro que aí vai - obra de um incoerente -
É um livro brutal, é um poema a esmo...
Pensei-o pela rua olhando toda a gente,
Escrevi-o no meu quarto olhando-me a mim mesmo.”



Anos 90. Corredoura. Banco de José Duro...


Claro que não percorro neste momento o mesmo caminho que este poeta desgraçadamente percorreu. Nem por sombras. A minha doença é outra. É mais profunda. As raízes estão podres. Os neurónios sangram. As conexões interrompem a passagem de impulsos. Espero um retorno que tarda em aparecer. A minha vida parou numa página tão negra, tão opaca que não consigo ler.
Porque será que tudo o que começa bem dá sempre uma reviravolta brutal de cento e oitenta graus?
Deixa-me com a minha solidão que hoje não tenho alternativa!
Se tivesses agido de forma diferente...
E é de ti que partem essas “confortáveis” palavras que me fazem reagir. Ainda estou no campo de batalha.
Xeque duplo da rainha à torre e ao rei. Fico em desvantagem. Sem apelo nem agravo.
Sabes uma coisa...?, não sabes, concluo de imediato. Nem sequer imaginas que estou a falar contigo neste momento. Sei até onde posso chegar telepaticamente. Pequenas sugestões. Pensamentos instantaneamente concordantes. Isso e pouco mais. Quanto ao resto, sou um canal. Recebo informações tardias e depois sinto-me impotente para agir. Já aconteceu. É demasiado tarde.
Olha, de facto a formatação é a última esperança que me resta. Ou vou levar mais uma razia nos neurónios que sangram, ou retomar os erros iniciais, ou então, em última análise, começamos de novo como se fôssemos as duas almas gémeas (mas as almas gémeas não existem!) predestinadas depois de termos passado por uma fase crítica de não assunção em que os ideais chocaram e andaram para trás.
Mas porquê formatar-me, se vou perder a identidade?
Valerá a pena correr o risco de montar um cavalo alado, que só eu vejo à espera no prado verde da esperança, rumo às estrelas distantes, procurando os nossos novos números que o destino fundirá num só?
Se sim, também te deves formatar.
Os beijos que trocamos ainda são doces e a crise é passageira, acredita. Definitivamente, não.
Quais beijos?
Tens razão.
Um cavalo que cai no tabuleiro...
És mais cautelosa. Também não esperava outra coisa de ti. Dizes sempre não nos momentos cruciais. Não tens como eu a cabeça e os pés nas asas do sonho. Talvez tenhas razão. Contudo, vemos a linha do horizonte cada vez mais próxima e estamos presos nas nossas limitações. Não nos podemos manter no mesmo sítio sob pena de destruição do sonho que nos uniu e ainda une, nem podemos passar para lá da linha onde nos espera o desconhecido e tu não queres dar o passo.
Vou lembrar-te uma passagem da mitologia grega...
Que tem a ver...?
Ouve... 
”O pai de Ícaro, Dédalo, um talentoso artesão ateniense, tentou deixar o seu exílio na ilha de Creta, onde ele e o seu filho estavam presos nas mãos de Minos, o rei para o qual ele havia construído o Labirinto para confinar o Minotauro, metade homem, metade touro. Dédalo estava exilado porque deu à filha de Minos, Ariadne, um novelo de linha de modo a ajudar Teseu, um inimigo de Minos, a sobreviver ao Labirinto e derrotar o Minotauro.
Dédalo confecionou dois pares de asas, usando penas e cera, para ele mesmo e seu filho. Antes de deixarem aquela ilha, Dédalo avisou ao seu filho não voar tão rente ao sol, pois o calor derreteria a cera, nem tão rente ao mar, pois a humidade deixaria as asas mais pesadas levando-o a cair no mar. Graças à enorme liberdade que voar deu a Ícaro, este cruzou curiosamente o céu, mas durante o processo ele veio rente ao sol, que derreteu a cera. Ícaro manteve-se batendo as asas mas logo acreditou que já não lhe sobrava qualquer pena daquelas e que ele estava batendo apenas os seus próprios braços. E assim, Ícaro caiu no mar...”
Que tem a ver, repito?
Julgo que é uma lição. Talvez. A probabilidade de nos encontrarmos na mesma órbita do acontecer era mínima e conseguimos. A próxima será essa a multiplicar pelo mesmo número. Ainda muito mais baixa. Mesmo assim, quero apostar porque tenho fé. Juro que, embora de pés levantados, não chegarei à lua e muito menos ao sol. Vou fundir-me contigo antes que aconteça a tragédia do filho de Dédalo. 
Não acreditem. Se a mitologia grega vale o que vale, então o meu sonho acordado também não tem valor. 
E agora chega o momento de ouvir uma voz que só eu conheço:
«Tolo! Fica quieto e, se quiseres, pensa na tua solidão imaginária que é só um estado de espírito de hoje. Formata-te. Faz trinta por uma linha, mas acredita sempre que amanhã é um novo dia terreno, sem cavalos alados nem “Ícaros” com asas de penas e cera. Amanhã, quando o sol voltar, vamos continuar a ser os mesmos, unidos, como tu dizes, "até que a morte nos separe".»
A voz que só eu conheço é capaz de ter razão. Quero acreditar que sim. Mas porque será que este cinzento que me envolve continua a atormentar-me a alma?
«Ainda estamos no dia de hoje! Logo à noite, antes de nos deitarmos, vou desejar, como sempre, que tenhas um sono descansado.»
Como os anjos, já sei. Ah!, e se não acordar? E se a noite me cobrir com o seu manto eterno, o mesmo manto das caveiras do desditoso poeta?
«Deixa em paz o poeta que desejava encontrar-se com a morte. Que posso fazer mais por ti?, deitar-me já a teu lado e beijar-te até adormeceres?»
Foi o que desejei sempre. Deitar-me a teu lado.
«Mas nós já dormimos juntos!»
Não é verdade. Quando foi? Nunca! Deixa-me de vez com a minha solidão. Tu não existes. Deito-me com a solidão e com ela levanto-me.
Perdi a rainha. O fim do jogo está próximo.
«Tens razão. Eu já não existo em ti há muito. Desde o tempo em que as folhas das árvores, amarelecidas, caíram por terra e desistiram de viver. Mas esse acontecimento é cíclico!, imagino que sim. Pois é. Não sei que te diga mais. Olha, então abraça lá a tua solidão e trata de ser feliz. Se não conseguires, estrangula-a.»   
Não! É bom sentir-me só e escrever palavras após palavras na solidão do meu quarto. Palavras que sempre me enganaram a mim mesmo porque eu quis que fosse assim.
«Seja como desejas. Mas será que ainda existes amanhã se a ideia da formatação for para a frente?»
Não sei. E mesmo que me fosse revelado era demasiado tarde. Acabei de entrar em formatação.

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