sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Aqueles longos dias na Nazaré



Nos tempos da minha infância os verões eram muito quentes e secos, por vezes impiedosamente quentes, e as quatro estações estavam bem definidas. Hoje a situação é outra e o principal culpado é o homem desde que a revolução industrial começou a dar os primeiros passos. Quer se queira, quer não, o progresso não trouxe só coisas boas. Como exemplo principal, aí temos em força as alterações climáticas motivadas pelo efeito de estufa com origem, por sua vez, na incúria e ganância do homem. O ano de dois mil e trinta é o limite. Mesmo que os países mais poluidores tomem medidas drásticas para impedirem que a poluição progrida, será um marco fatídico de não retorno. E dois mil e cinquenta talvez traga o fim da vida humana neste planeta azul que o homem tem vindo a maltratar cada vez mais. Quem vier atrás que feche a porta que já não deve existir para fechar. A metáfora não fará sentido.

Neste tempo recuado, sou um jovem introvertido, com o meu temperamento específico, a teimosia que herdei dos familiares por parte da minha mãe, e muito mais, como ser bom aluno e ter jeito para o futebol e para as canções latino-americanas. Como tal, é lógico estar potencialmente em vias de ser lançado no tal palco que traça o destino de cada um e que sonha alcançar o seu lugar ao sol, custe o que custar. Não será no futebol e muito menos nas canções. Aliás, estou longe de adivinhar o futuro que me espera. E depois, alguém lá em cima mal me quer, pouco ou nada.
Acabo de passar por uma situação algo complicada que me baralhou um pouco a vida. Um azar do caraças obrigou-me a repetir uma das secções do antigo quinto ano do Liceu. Digo azar porque com médias altas a Letras e a Ciências, mas com uma deficiência a Inglês e outra a Físico-Químicas tive que repetir o exame de uma da secções, neste caso Ciências. Com toda a naturalidade dispensei do exame oral mas fico coxo para enfrentar o futuro sétimo ano. E porquê? Muito simples. No primeiro e no segundo períodos frequentei o sexto ano e no terceiro período regressei ao quinto e enfrento de novo o incompetente Caça-Aviões no célebre problema dos comboios.
Nessa manhã a aula foi insípida e prolongou-se por quase uma hora no quadro preto. O Caça-Aviões debateu-se, atormentado, com o dito cujo problema dos comboios que não conseguiu resolver. Com velocidades diferentes, um partia do Porto e o outro de Lisboa e encontravam-se ao fim de uma hora e tantos minutos. Pretendia-se saber a que distância das duas cidades se daria o encontro dos ditos comboios. Para baralhar mais as coisas, o arguto Prudente tinha-se juntado ao professor no quadro e tentava semear confusão a seguir a confusão. O Caça-Aviões coçava a cabeça e a solução não aparecia. Até que a campainha tocou para a saída e o professor de Física, por sinal também diretor da Escola Secundária (e nesse cargo era pessoa eficiente, embora temperamentalmente violento), teve que render-se à evidência. Por outras palavras, deu-se por vencido.
«Na próxima aula acabamos. Podem sair.»
Foi então que o tímido Mário, que eu era, se aproximou do quadro, ele e a sua sebenta, e interpelou o professor.
«Creio que resolvi o problema por um sistema de equações, senhor diretor.»
O diretor virou-se para mim, deitou um olhar rápido para sebenta de folhas creme e disse:
«Também podia ter sido assim, Mário. Mas há outra maneira. Na próxima aula digo-te como é.»
E mais nada. Já o diretor estava noutra. Melhor dizendo: em fuga para a frente ou para qualquer outro sentido longe de mim e dos meus colegas.
Encolhi os ombros e saí da sala. No quinto ano o problema dos comboios não podia ser resolvido por um sistema de equações, embora estes fossem matéria dada na Matemática. Quanto ao outro processo de resolver o problema, sempre era verdade que havia. Mas o Caça-Aviões esqueceu-se de explicar-me como era a outra forma de chegar à solução, bem como à turma.
Como já disse, saí-me bem nas provas escritas que tive que fazer no Passos Manuel, perto da Calçada do Combro. Com toda a naturalidade, dispensei da oral, mas o desgaste intelectual e psicológica ficou latente. Contudo, jovem como era, umas férias retemperadoras seriam o remédio que nem sequer precisava de ser santo. Pois não. Só que entrou em cena outra variável. Eu e a minha irmã recebemos um convite dos pais do Sérgio para fazermos férias na Nazaré, aliás um sonho de uma meia dúzia de anos que agora se tornava realidade. E a presença do Sérgio, o meu herói dos tempos de criança, herói sem pés de barro, era um fator a ter em conta, pelo que disse logo que sim. Recuando mais no tempo, convém lembrar as duas irmãs de Sérgio, que praticamente me viram nascer. Foram elas que me contaram histórias de bruxas, princesas encantadas e dos jovens aventureiros vindos do nada para salvarem das garras das bruxas as ditas princesas encantadas, depois casarem com elas e serem felizes até uma eternidade limitada.
Como é natural os objetivos das duas partes nada tinham a ver um com o outro. Nessa altura, o Marinho adorava essas histórias que tinham muito de românticas, embora a minha tenra idade apontasse mais as baterias para o místico das fadas, duendes e outras entidades afins. Mas, por coincidência ou não, no futuro seria o eterno romântico de vivências amorosas que nunca tinham o fim desejado. Porquê? Se fosse dotado de clarividência nos meus talvez quatro anos de existência teria feito essa pergunta. Ficaria para mais tarde. Quanto às amiguinhas apenas pretendiam, com a sua santa paciência, que o Marinho comesse a sopa toda e não ficasse no prato qualquer vestígios do peixe cozido e das batatas, quiçá da cenoura que fazia os olhos bonitos.
Chegou agosto e lá fomos todos para a Nazaré. Os vizinhos e nós. Ah!, já me esquecia. O três cães caçadores, da história verídica "Perdiz Estufada", que não conheciam o que era uma perdiz, bem como o "Mar Lindo", outro cão, de cor branca com escassas malhas pretas arredondadas, que fora a última adoção da família. Quanto aos muitos gatos ficaram em casa e quem tratou deles foi a minha mãe.
Havia também um coelho domesticado, de seu nome Tótó, que corria em liberdade pela casa e pelo quintal, em paz e sossego com os cães e os gatos. Fez a alegria de todos até que um dia foi dado com desaparecido e causou um desgosto imenso à família. Não sei se foi antes ou depois da ida para a Nazaré. Pouco interessa. O mais importante é que nunca mais se soube do paradeiro do lapin Tótó. A desconfiança centrou-se na Palmira, a mulher a dias dos vizinhos do primeiro andar, uma mulher horrível que tossia muito e escarrava, com intensidade, das escadas de serviço para o quintal, o bastante para me enojar e também fazer o diagnóstico clínico que a dava como tuberculosa. Essa mulher era mãe da Dorinda, uma personagem mal cheirosa e piolhosa que se fez minha amiga no tempo em que apanhava no quintal, com a boina que já não tinha os três vinténs, as pobres borboletas brancas, portadoras, segundo diziam, de boas notícias. Pobres, talvez não. Procurava com cuidado as borboletas aprisionadas debaixo da boina para não as deixar fugir, agarrava-as por uma das asas, mirava-as, via um pó branco soltar-se ao vento, depois emocionava-me com a sua beleza e deixava que partissem em liberdade (1).
E foi num desses dias de caça que aconteceu o célebre encontro com a Dorinda mal cheirosa.
Voltando…
O prédio que nos esperava, de cor amarela, resumia-se a um rês-do-chão. Havia três quartos e um deles foi destinado ao Sérgio e a mim. Quando se entrava, um grande hall que era mais sala que hall, mostrava tudo o que havia para ver. Os três quartos, a casa de banho e a cozinha. Essa sala improvisada funcionava como sala de jantar.
Desde o primeiro dia fizemos vida à parte. O Sérgio não queria que fôssemos tomados como artistas de circo. E estava-se mesmo a ver. Quatro cães levados pela trela por três jovens que tentavam controlá-los...
Éramos sempre os primeiros a chegar à praia. Só por volta do meio-dia chegavam as duas irmãs do Sérgio, bem como a Olinda. O casal ficava em casa. Ele a ler o jornal. Ela a preparar o almoço que nunca começava antes das três da tarde, o que para mim era um sério problema pois transtornava a minha vida cheia de rotinas. Com o passar dos dias comecei a ficar estranho, irritadiço, crítico inclemente, com uma crescente perda de apetite.
Voltando à praia, dávamos longas caminhadas à beira-mar, às vezes aventurávamo-nos um pouco na turbulência das ondas, evitando, engolir "pirolitos", o que nem sempre era possível. Como mais velho que era, o Sérgio era também um pouco mais aventureiro. Quanto à minha pessoa, de máquina fotográfica em punho, não perdia uma ocasião para fotografar à distância uma ou outra jovem do meu agrado. Numa dessas sessões fotográficas tirei um instantâneo que foi gáudio de todos. Uma dessas jovens levou em cheio com uma onda e o calção de banho quase se foi mar adentro. Com toda a sorte do mundo, apanhei-a de costas, com o rabo muito branco ao léu. Por sinal era uma das miúdas que seguíamos à distância. Até lhes tínhamos dado uma alcunha: as meninas sans doute. Embora fossem portuguesas, quando nos cruzávamos com elas rara era a vez que não ouvíamos uma delas dizer:
«Sans doute.»
Talvez a propósito de um comentário como: 
«Hoje o dia está mais quente que ontem, não achas?» «E a resposta: 
«Sans doute.»
Havia também a menina cheia e com essa até fizemos um campeonato para concluirmos com qual dos dois ela mais trocava o olhar. A alcunha tinha a sua lógica. A miúda era avantajada para a idade nos seios e tal causava-nos um inusitado interesse a pender para o erótico.
«Avanças tu ou avanço eu?» perguntou o Sérgio.
Limitei-me a sorrir.
«Olha que escrevo uma carta à Manuela!»
«Pois escreve. Mas precisas de ter a morada…»
«Vem aí o circo!»
Eram as irmãs do Sérgio com a Olinda. E os inseparáveis cães. Já eram conhecidas como as meninas do circo.
«Já nos viram?»
«Não, Sérgio. Raspemo-nos. Rápido!»
«Vamos.»
Não me lembro quem ganhou o campeonato dos olhares e se o vencedor recebeu algum prémio. Eu, não. De certeza. Quanto ao Sérgio, se conseguiu alguma coisa ficou no segredo dos deuses. Por vezes, cada um seguia o seu rumo. A ter acontecido só podia ter sido num desses momentos. Aposto no Sérgio que era oito anos mais velho que eu e tal fazia a diferença. Até porque entretanto eu navegava noutra onda que se chamava Manuela. Não tardaria muito tempo que chegasse setembro. E em setembro ia encontrar-me com a Manuela pela primeira vez. Até lá, havia apenas a troca de cartas, mas como se fôssemos apenas dois bons amigos.
«Tu gostas mesmo dela!»
«Da menina cheia
«Claro que não, sonso. Sabes muito bem de quem estou a falar. Gostava muito de ler uma das vossas cartas…»
«Tira o cavalinho da chuva. Olha, vamos para a praia?»
«E elas?»
«Estão com os cães. Descansa que primeiro têm que levar os animais para casa.»
«Tens razão, Mário. Mas hoje ainda não podes ir ao mar.»
«É verdade.»
Lembrei-me do que aconteceu na véspera, de manhã, quando fazia a barba na casa de banho. Falávamos sobre não sei de quê e voltei-me para trás. Nesses tempos ainda fazia a barba com navalha.
«Não percebi o que disseste.»
E virei-me para a frente com intenção de continuar a tarefa diária. Mas esqueci-me que tinha a navalha no local onde já não estava o queixo mas ia voltar a estar. E zás! Fiz um corte profundo que me levou à farmácia, já que o sangue não dava mostras de estancar.
Chegados à praia, o Sérgio opinou:
«Vamos dar uma volta a ver o ambiente?»
«Vai tu. Não sei porquê, mas hoje doem-me as pernas.»
O Sérgio não deu conta que eu, Mário, estava a mentir.
«Não demoro. Vou ver o ambiente.»
«Certo.»
«Se encontrar a mulher dos bolos queres uma arrufada? Como de costume o almoço é tarde e tu és todo de horários. Precisas de qualquer coisa para enganar a fome.»
«Se não te importas…»

momento de nostalgia

O Sérgio afastou-se e meti-me dentro da barraca. De repente senti-me nostálgico. Não ia ter êxito com a Manuela.
Quero pensar só em ti para te ter sempre comigo…
Era isso. A Manuela. As cartas trocadas, que já revelavam alguma coisa, não eram tudo. Precisava de estar com ela frente a frente. De ver o seu sorriso. A expressão do seu olhar triste. De ver de perto o seu cabelo em rabo de cavalo. De o acariciar, quiçá. Isto se ela deixasse.
E como iria reagir a Manuela? Que química nos podia unir ou afastar?
Não. Nessa manhã tinha um pressentimento que as coisas iam correr mal.
Se pudesse adivinhar!
«Vá lá, Mário» pensei. «Nada de pessimismos. Vai tudo correr bem, acredita.»
«Que cara é essa, amigo? Assim, perdes a menina cheia.»
«Ah!, és tu» ignorei o comentário. «Demoraste pouco tempo.»
«O sol está forte.»
«Também acho.»
«Estavas a pensar na Manuela?»
«Por acaso até estava.»
«É bonita.»
«Como sabes?»
«Não me mostraste a fotografia?»
«É verdade. Hoje estou nas nuvens. Tenho a impressão que o ar da praia faz-me mal. Qualquer coisa não bate certo.»
«Só ainda chegámos há cinco dias!»
«Tens razão. Naturalmente este mal estar que sinto é o resultado da pressão dos exames. Dei o litro e dispensei da oral. Agora vêm as consequências de tanto desgaste a trabalhar no duro.»
O Sérgio propôs que fôssemos até ao Sítio e aceitei a sugestão. Até porque elas estavam a chegar à praia. Elas e o barulho, com os cães a ajudarem à festa. Só sabiam falar alto. Então em casa era um pandemónio. Ninguém se entendia e então falavam cada vez mais alto. Os cães ladravam. A dona Francisca zangava-se com o marido e proibia-o de beber vinho tinto às refeições porque manchava a toalha quando se punha a ler o maldito jornal e ao fechá-lo dava uma traulitada no copo e arroz queimado.
«A partir de hoje, só bebes vinho branco.»
E ia com muita sorte. A mãe do Sérgio podia ter sentenciado água.
«Achas bem, Marinho?» perguntou o senhor Álvaro.
Que responder? Tinha que agradar a gregos e troianos.
«Sempre é vinho, senhor Álvaro.»
«Tens razão, filho» concordou. «Mas agora reparo numa coisa. Onde está a Laurinda?»
«Perguntas bem, pai» disse a Alcina. Olha, a mãe sabe.»
«Francisca?»
«Ora. Já sabes como ela é. Zangou-se comigo por dá cá aquela palha e está metida no quarto. Não sou eu quem a vai chamar para o almoço. A propósito, o almoço está pronto. Todos para a mesa.»
«Finalmente! Já passa das três e meia...» pensei, num desabafo.
Continuando…
«Acreditas na treta do D. Fuas de Roupinho?»
«É uma lenda, Sérgio. As lendas valem o que valem.»
«Pois. Sempre queres ir? É quase meio dia. Estamos por lá uma ou duas horas e ainda voltamos mais que a tempo para o almoço.»
Já no Sítio…
«Temos sorte. Há feira…»
«Será que têm matraquilhos?»
«Vamos ver.»
De repente tudo mudou.
«As meninas sans doute
«Onde, Mário?»
«Ali à frente. Não vês, cegueta?»
«Mas que vais fazer?»
Uma delas deixou cair no chão um lenço, daqueles que as mulheres, jovens ou não jovens, usavam à época. Foi esse o motivo da minha corrida. À distância, o Sérgio viu baixar-me para apanhar o lenço e entregá-lo à jovem. Entretanto trocámos algumas palavras que, naturalmente, não conseguiu ouvir. Tudo aconteceu em escassos segundos, mas foi o bastante para imaginar que eu tinha marcado alguns pontos.
«Sortudo!»
«Nem por isso.»
«Porquê?»
«Porque sim.»
«Ainda não namoras a Manuela. Vamos convidá-las para andar no carrossel.»
«Vais tu.»
«Tu tens mais lata que eu.»
«Prefiro uma boa matraquilhada.»
«Seja. Não se pode ter tudo.»
«A menina cheia
Como resposta tive o sorriso misterioso do Sérgio.

Décimo dia. Festa na praia ao cair da tarde. Bolos e salgados. Mãe e filhas fizeram várias amizades. O senhor Álvaro nem por isso. Limitou-se a estar presente. Ele e o imprescindível jornal. Pior ainda para nós. Gente velha? Bree!
«Marinho!»
«Sim, dona Francisca?»
«Vem lanchar. E tu também, filho.»
Olhamos um para o outro.
«Estás a pensar o mesmo que eu?» perguntou o Sérgio. «Talvez.»
Mas o olhar severo e tirânico da mãe do Sérgio fez abortar uma decisão que parecia ser quase inabalável.
Seria que o Sérgio, que não era nem bruxo, nem cartomante, nem vidente, sabia de alguma coisa?
Lá fui, contrariado. A mesa estava posta com gosto. Havia de tudo. Pastéis de bacalhau, croquetes, rissóis, carne assada, batatas fritas, doces variados, entre os quais rolo de chocolate e pudim flan, bebidas frescas não alcoólicas.
O ataque não se fez esperar. bem como os sorrisos que vieram logo a seguir.
Sorrisos? Mas porque sorriam?
A resposta veio quando escolhi um pastel de bacalhau como introito. Estavam mesmo bonitos os pasteis!
«Que é isto?»
Azar dos Távoras!
Algodão em rama. Brincadeira parva. O pastel tinha no interior algodão em rama.
«Não estamos no Carnaval.» Pensei.
Disfarçadamente pus de parte o suposto pastel de bacalhau. Não contando com os sorrisos iniciais todos comiam com gosto. Era imperativo atacar antes que a marabunta desse volta a tudo.
Olhei em volta e não vi o meu amigo. Encolhi os ombros.
«Mais fica. Vejamos então. Aqueles croquetes estão a olhar muito para mim e estou a gostar disso» pensei, deixando escapar um esgar de gozo. «Será que querem ser comidos?»
Pior a emenda que o soneto. O croquete estava salgadíssimo e fiz tantas caretas de desagrado que não evitei de novo o estalar de risos. Risos e não sorrisos, para bom entendedor.
Foi então que fiquei enjoado e não comi mais nada.
Nessa noite só bebi água.

Décimo oitavo dia. Estou exausto e com os nervos à flor da pele. Decidi que vou regressar a casa dos meus pais. Não consigo suportar mais o barulho que ressoa nas paredes da casa resultante de subidas sucessivas de decibéis, de zangas passageiras entre pais e filhos, do ladrar dos cães em brigas uns com os outros, talvez por causa do intruso chamado "Mar Lindo" que entrou nas suas vidas caninas, das dores de barriga repentinas e com uma casa de banho para sete pessoas. Ah!, já me esquecia das festas que repetiram aquela cena do croquete carregado de sal, já que os convidados quiseram retribuir com outra festa parecida que tinha mais paródias. Desta vez armadilharam os doces. Enfim, o meu estado de espírito chegou aos limites. Sinto-me mais que exausto. Talvez que um esgotamento esteja à porta e, se for assim, não é nada bom e vou ter o setembro comprometido.
Era tão agradável passar o mês de agosto na Nazaré, enfrentar as ondas altas e fornecedoras gratuitas de pirolitos, dar passeios com o Sérgio atrás das raparigas, ficar sentado numa esplanada a beber uma groselha e a ver passar raparigas cujos destinos nunca conseguiria descobrir. Mas aquele croquete salgadíssimo fez transbordar a taça. Uma brincadeira sem importância que encarei como sendo de mau gosto. Não. Só me sentia esgotado, com o moral em baixo porque não estava bem. E quem não está bem, então muda-se.

Foi ao décimo oitavo dia que a Olinda, os meus amigos e o "Mar Lindo" me acompanharam até ao autocarro que tinha como destino a estação ferroviária. Todos lamentaram a decisão drástica que tive, mas concordaram com os meus argumentos. Precisava de descansar porque os exames tinham-me roubado as forças. E não foi ali, na Nazaré, que aqueles, que me pareceram longos dias de férias, foram longos e felizes dias de férias. O meu sonho saiu furado. Talvez que um dia voltasse a passar férias na Nazaré e então tudo acontecesse de forma diferente (1).



Entretanto os meus primos passaram o agosto em minha casa. Depois, em setembro, seguíamos todos para Portalegre, comendo os deliciosos ovos verdes pelo caminho e ouvindo as mais que conhecidas histórias da nossa avó, incluindo a do sapateiro mouco, chifrudo assumido.

Finalmente ia conhecer a Manuela pessoalmente.
E depois?, onde nos encontrávamos?
Ela chegava de autocarro. Ainda não sabia o dia, mas comunicava-me com antecedência.
Disse logo que a ia esperar.
Pensei nos seus olhos tristes, perdidos para lá do horizonte, onde eu não estava.
Que tragédia escondiam?
Ficou tudo bem combinado nas últimas cartas que trocámos. Sabia da hora da sua chegada e, claro, também do local onde parava o autocarro.

(1) "Mais puro que uma borboleta de asas brancas"

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