sexta-feira, 11 de outubro de 2024

O mistério do King Kong

 


Colocou sobre o balcão duas notas de cinquenta euros.
«Por favor, troca-me por notas dez?»
Recebeu as notas, agradeceu e encaminhou-se de imediato para a zona do Fort Knox.
O empregado não respondeu e começou a contar as notas. Depois colocou-as no topo da máquina de contagem automática. Quase de imediato caíram na base dez notas de dez euros.
Não encontrou diferenças em relação à última visita que fez. Lá estavam as máquinas. E os jogadores, alguns seus conhecidos e outros que pisavam pela primeira vez aquele espaço e que eram mais candidatos a bons prémios que os utentes habituais, explorados até à medula, menos uma minoria que, contada, não chegava para os dez dedos das mãos. Também estavam os mirones, os calistos que desejavam uma máquina e os não calistos, estudiosos do sistema. O ruído abusivo provocado pelo bater em dois dos doze quadrados atrás dos quais se escondiam números mágicos que podiam dar acesso, quem a mais de dois mil euros. Os fiscais que surgiam do nada para chamarem a atenção para um utente que bateu no visor em vidro de um modo mais vigoroso e também para conversarem com uns tantos utentes mais chegados, o que levantava suspeitas dos mais desconfiados que até podiam ter razão. E, como complemento, a mão que levava mais uma nota para o interior da máquina, a esperança, o desespero, o grito de vitória dos ganhadores fortuitos e dos habituais, a máquina que abria com o utente certo e fechava também com o utente certo.
«Aí temos os prisioneiros do Fort Knox...» Pensou.
Uma expressão feliz que espelhava bem o desespero daqueles que queriam sair do vício e não conseguiam porque pensavam que no dia seguinte o sol ia brilhar e tudo seria diferente.
Ao contrário de muitos utentes, continuava a pensar da mesma forma relativamente a qualquer espécie de jogo. O objetivo era ganhar e não jogar até ao anúncio do fecho do casino. Se não tivesse ido reclamar várias vezes ao gabinete da inspeção talvez que lhe dessem mais margem para ganhar.
Também gostava muito de observar e também muito viram os seus olhos a propósito das observações que fez. A esse respeito, disse uma vez a um chefes de sala que dava mais prejuízo ao casino não estando a jogar. Via muita coisa que era óbvio não ver, entenda-se, se estivesse a jogar.
Entretanto, os inspetores que zelavam pelos interesses cegos do Estado e não desciam à praça para verem no sítio próprio aquilo que os olhos de Mário e outros viam e eles teimavam em não acreditar ou não querer acreditar.
Maldito jogo que levava à falência muitos utentes incautos seduzidos pela malícia (leia-se manha) do software (leia-se sereias em terra). Primeiro, vinham os prémios bons. Segundo, os menos bons. Terceiro, o desastre irreparável porque, sem se aperceberem, já tinham caído nas malhas do vício.
Mas continuavam a teimar.
«Talvez amanhã seja diferente. Talvez depois.»
«E agora?, com que dinheiro vou pagar as minhas dívidas se os meus cartões de crédito (leia-se uma praga) já atingiram o plafond
Depois, a lavagem ao cérebro que fiscais e chefes de sala faziam aos desgraçados utentes:
«Teve azar. O jogo é aleatório, sabe?»
Os próprios inspetores apostavam na patranha do ouro dos loucos (leia-se pirite) que se fazia passar pelo ouro genuíno. Para eles, o jogo era aleatório.
Mas seria mesmo o que pensavam?

Vejamos o caso do agressor das palavras. A ida ao cofre era aparentemente proporcional ao valor frequente da aposta. Tudo bem, mas havia máquinas que estavam muito tempo sem abrir por mais que o utente se esforçasse em apostar alto, ao mesmo tempo a máquina não compensava este percalço oferecendo boas linhas ou bónus. Quando ia cofre, escolhia dois dos doze quadrados com números de cinco a sessenta. Para progredir, o agressor das palavras tinha que ter sorte, assim rezavam as leis do jogo aleatório. Abaixo de um certo valor o bónus progressivo acabava. Tudo bem, se a escolha dos números fosse aleatória. Mas não era.
Por que raio de razão o cinco saía muitas mais vezes que o sessenta quando tinham a mesma probabilidade de saírem?
Só esta pergunta dispensava a exaustão de explicar a mecânica deste jogo quando o agressor das palavras assaltava o cofre. Portanto, havia viciação à partida. Ponto final.

«Seja bem aparecido, Mário!»
Reconheceu logo a voz antes de se voltar para cumprimentar o Vítor, preparador, guardador de máquinas e senhor de muitos segredos obscuros ligados ao casino e a alguns utentes. Compreendia porque não conseguiam anular o Vítor, já que vontade não lhes faltava.
«Viva, está tudo bem consigo, amigo Vítor?»
«Tudo. E o meu amigo? Há muito tempo que não o via por cá.»
«Aconteceram umas coisas. E como está isto?»
«Cada vez pior. Eles dão os prémios a quem querem.»
Mário acenou com a cabeça. Sabia ao que o Vítor se estava a referir.
«Mais do mesmo, não é?»
«Claro. E o que lhe aconteceu, senhor Mário? Já não vem cá há quase um ano...»
«Problemas de saúde e não só. Sim. Vai para oito meses. E novidades?»
«Há novidades e das frescas, além das do costume. Os que continuam a perder. Os que ganham sempre. E os que ganham bons prémios e deixam cá tudo.»
Mário interrompeu-o.
«Portanto, eles sabem muito bem a quem devem dar jackpotes.»
«Bruxo! E depois,» voltou-se para o lado onde jogavam no momento o Abutre e o Zé dedilhador «em relação às pessoas que nós conhecemos de ginjeira, já imagina o que se passa...»
«Pois. E essas novidades?»
«Primeiro, como ficou o seu caso da última reclamação?»
«Ah sim. Tinha uma certa esperança em função da promessa que a inspetora me fez. E afinal essa mulher desiludiu-me. Ou foi pressionada ou voltou atrás por motivos que desconheço. O seu relatório sobre a máquina incidiu no comportamento estatístico ao longo de um ano, que considerou ser normal, e não no que se passou de facto durante aquelas malditas doze horas.»
«Essa mulher é velhaca.»
«Na melhor das hipóteses.»
«Pensa que…?»
«É isso que está a imaginar. Entretanto adoeci e desisti da ideia que tinha em encostá-la às cordas. Mas não está esquecido. Tenho memória de elefante.»
«E ataca de novo quando chegar a ocasião. Acho bem. Mas vamos às novidades. São duas. Uma passou-se com russos há já um tempo. Sabia desse caso?»
«Não. Conte-me.»
«Depois. Agora vamos aos ucranianos...»

King Kong. O gorila gigantesco que se apaixonou por uma mulher e só teve doçura para ela. Uma história dramática que correu no cinema na juventude de Mário e que teve mais que uma reposição.
Mas não era o filme que interessava rever. Sim o duelo entre um ucraniano e uma máquina em que jogava no momento na zona do King Kong.
«Veja com os seus próprios olhos e tente descobrir o que se passa. Não vai acontecer nada de especial, mas, pelo menos, ficamos a saber.»
«Certo. Até talvez haja um milagre. Coisas que não era possível acontecerem há tempos atrás são agora bem reais. Veja o caso Sócrates, a monstruosa fraude no BES, os célebres vistos dourados, os negócios ruinosos na Caixa.»
«É verdade. Mas acredita...?»
«Os tempos estão mudados. A comunicação social traz tudo a lume. O pior é esta justiça lenta e quase propositadamente ineficaz. E novos casos virão. E repetir-se-á tudo.»
O mundo do Vítor era outro. Não fez cerimónia em interrompê-lo.
«Então vou à minha vida. Até já, senhor Mário.»
Jogar a cinco e a sete e ir ao cofre. Guardar uma máquina para a Natércia, jogando baixo o tempo que for preciso. Ou ajudar um utente na escolha dos números da sorte. Aliás, já tinha "dado" platinas e ouros a amigos. Essa era a parte que interessava ao carismático Vítor.
Concentrou-se no jogo do ucraniano. Em face do que ouviu, não se admirou que jogasse a um crédito. Contudo, aquele estado de coisas não ia durar muito. E aí residia o mistério. Um grande mistério. De um momento para o outro passava do inverno para o verão, metaforicamente falando.
O jogo era monótono. Muitas vezes sem prémio. Uma vez por outra com um prémio fraco. Precisava de estar atento ao momento da mudança. Para tal também tinha que dar atenção ao outro ucraniano que estava ao seu lado e olhava mais para a sua esquerda do que propriamente para o jogo do amigo.
Porquê?
Pergunta que se impunha.
«Olha o amigo Mário!»
Mau mau...
Quem lhe havia de sair na rifa! Agora, que precisava mais do que nunca de estar atento, surgia-lhe aquela prenda no caminho.
«Viva, Daniel.»
Daniel, o indiano.
«Há muito que não o via. Aconteceu algum azar?»
«Apenas uma ausência forçada.»
«E que está aqui a fazer nos "macacos"?»
«Estou a ver se vale a pena jogar. E o Daniel?, tem ganho alguma coisa?»
«Ganhava, sim, mas se conseguisse sair desta engrenagem. Mas são muitos anos. Quem entra nesta merda só sai para dentro do caixão.»
Uma personagem típica bem talhada para enfeitar o Fort Knox. Não havia ninguém mais invejoso que este Daniel. Criticava os que jogavam baixo, os que jogavam alto, os que batiam no vidro, os que, no caso do Abutre, saltavam para as máquinas, os que ganhavam, os que perdiam, os forasteiros que eram bafejados pela sorte, etc. Só não invejava os que comiam de graça porque ele também era um dos contemplados.
«Vou ver se arranjo uma máquina.»
«Então, vá...»
«Hoje joga?»
«Ainda não sei. As máquinas estão boas?»
«Aconselho-o a jogar baixo.»
Entretanto o ucraniano não atava nem desatava.
O Vítor era um prisioneiro muito especial do Forte. Digamos que o seu emprego era ali. O casino não lhe pagava ordenado, mas ia com relativa frequência ao cofre, mesmo jogando a cinco e a sete! Também já tinha tirado várias platinas e ouros. Ao mesmo tempo, guardava as máquinas para utentes que jogavam invariavelmente a aposta máxima e o casino lucrava e muito. Tinha que dar-lhe uma compensação. Enfim, o nosso homem levava uma vida cheia dentro do vazio em que provavelmente vivia. Ainda era novo, mas, que Mário soubesse, já tivera a sua maré cheia no próprio Fort Knox.
Uma noite uma mulher ainda jovem apareceu e ele cedeu-lhe a máquina. Uma vez. Duas. Três. Passaram a jogar lado a lado. Ele, a cinco e a sete. Ela, mais que isso. Em pouco tempo a amizade nascida do jogo transvasou para algo mais poderoso. Amor ou paixão. Se era amor, o Vítor não tinha futuro para ela, ou não estavam na mesma rota do acontecer por outro motivo qualquer. Foi bom enquanto durou. E lá se foi a maré. Mário ainda quis acreditar que ela voltava e tudo se recompunha. Mas não aconteceu.
O jogo continuava monótono porque o ucraniano assim queria. E já tinha passado um quarto de hora.
De repente, o ucraniano começou a jogar a aposta máxima. Dez euros em cada batida ritmada. Sem pressa. De pessoa que sabia o que estava a fazer. E se sabia!
Coincidência ou não, o conterrâneo do ucraniano deixou de olhar para a esquerda precisamente depois de dar um toque discreto nas costas do jogador. E tudo mudou. Tal como acontecia numa prova de ciclismo em plena montanha, uma mudança brusca de ritmo tipo Anquetil ou Armstrong e fugia o ciclista para não mais ser apanhado.
«E agora?» perguntou num sussurro.
A resposta veio pouco depois quando o ucraniano viu a máquina bloquear com um jackpot de mais de três mil euros.
Tudo depois de um toque subtil do amigo nas suas costas e de uma mudança brusca na estratégia do jogo.
Mário não quis ver mais nada e foi ter com o Vítor.
«Aconteceu como você previu.»
«De quanto foi o jackpot
«Mais de três mil euros.»
«Ainda é pouco.»
«Já não me interessa. Tanto faz três mil ou cinco mil. Ou até mais. O que queria era ter uma certeza.»
«E teve. Notou alguma coisa especial?»
«Duas coisas. Um toque discreto do companheiro nas costas e depois a velha calma dos Cabrais quando viu a máquina bloqueada.»
O Vítor apontou o indicador direito na direção de Mário.
«Aí está. O sinal para avançar. Reparou se o outro estava ao telemóvel?»
«Tenho a certeza que não estava. O aviso só pode ter partido de alguém à sua esquerda.»
«Como assim?»
«O segundo homem esteve quase sempre virado para a esquerda.»
«Portanto, ignorou o jogo. Agora só nos resta ver o filme do outro lado. Havia um terceiro cúmplice agarrado ao telemóvel. De certeza. E só podia vir de dentro.»
Esteve quase vinte minutos a adormecer a máquina e depois seguiram-se cinco minutos a jogar à Benfica.
«Não tarda que abandonem o casino de bolsos cheios. Entretanto os prémios vão faltar no Forte e noutras máquinas.»
«E o que podemos fazer?» perguntou Mário.
«Nada. Eles são muito discretos. Mais dois ou três dias e eis que desaparecem como fumo.»

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