sexta-feira, 11 de outubro de 2024

O brasileiro

 



A notícia correu célere entre os utentes do Fort Knox. Num abrir e fechar de olhos um estrangeiro tinha arrecadado mais de vinte e três mil euros numa máquina Unicorn.
«Só podia ter sido um estrangeiro!»
Foi o comentário do Vítor.
«Como foi que aconteceu, Vítor?»
«Quem lhe disse que assisti?»
Podia ter sido o Zé dedilhador, aparentemente um dos principais beneficiados naquelas andanças tortuosas do Fort Knox. Ou o invejoso do Palrador, a jogar baixo e a ter êxito originado por misterioso benefício. 
«Ora, deixe-se de histórias. O meu amigo tinha que estar presente. Só lhe falta dormir cá.» Comentei.
Confessou, algo mordaz, que já pensara nisso. Uma cama no casino dava jeito.
«Como foi que aconteceu? Muito simples. O homem começou logo de início a jogar a aposta máxima, portanto quinhentos créditos gastos cada vez que fazia rodar os cilindros ou o que quer que seja. Foi jogando e perdendo, como é habitual acontecer, por exemplo, com o doutor...»
«Qual doutor?» lembrou-se. «Ah, o doutor. É um bom profissional como médico, mas um péssimo jogador.»
«E então?»
«Então, de repente surgiram os cavalos e leões. A cavalaria pesada. E pimba! Os mais de vinte e três mil euros.»
«Deviam estar a dormir na central.»
O olhar alongou-se, parecendo perder-se para os lados do John Wayne, um tipo de máquina que foi muito concorrida, pois prometeu muito a princípio, como acontece com todas as máquinas novas. Mas foi só um momento. Virou-se de imediato para mim.
«Nem de propósito!»
«Nem de propósito, o quê?»
«Falai no diabo e ele aparece logo.»
Ah, o diabo. A besta. 666 créditos de prémio ou acumulação.
Sempre que acontecia aquele número nos bónus, prémio ou valor acumulado, era sinal que o jogo ia correr mal. O melhor que tinha a fazer era desistir e voltar outro dia. Ou então fazer um pacto com o diabo.
Mas o diabo era outro. Então aquele era o estrangeiro. Não acontecia todos os dias uma proeza como ele conseguiu. Dar a volta ao software de uma máquina que estava sempre artilhada para fornicar quem quer que fosse. Arriscou forte e arrecadou.
«Apresento-lhe o estrangeiro.» Disse o Vítor, apontando para o homem no momento em que este se preparava para ocupar uma máquina.
Vestia uma camisa branca com riscas pretas, de mangas curtas e aparentava andar pelos cinquenta anos.
«Mas que faz ele aqui?» perguntou o Palrador que se tinha aproximado dos dois. «Esta história não se vai repetir...»
«Pois não.» Pensei.
«Nunca se sabe.»
«Eu não acredito, Mário.» Disse. «Nesta altura eles já foram informados e fecharam as máquinas dos cavalos!»
Em princípio tal decisão ia contra a lógica do aleatório, tal como esse acontecimento era na sua essência, mas com uma inspeção aprisionada nos gabinetes tudo era possível de admitir.
Mas logo se viraram para a esquerda. Tinham acabado de ouvir o grito de guerra do Zé dedilhador ao entrar no cofre, que se traduzia num bater constante com a ponta dos dedos nos quadrados castanhos que escondiam os números mágicos de acontecer ou não acontecer a ascensão ao nível seguinte. Um predestinado para o êxito, este Zé dedilhador. Diziam as má línguas que, quando da inauguração deste casino, viera doutro juntamente com alguns chefes de sala.
«Vai ver que papa o ouro. Ou eu não me chame Vítor. A pontuação aponta nitidamente para isso.»
«Um dos que ganha.» Pensei. «Se ao menos ele me emprestasse a receita...»
Entretanto o estrangeiro foi intersetado pelo Palrador e ficaram a falar uns momentos.
«Curioso. Este gajo conhece meio mundo.»
Confirmação, teria dito a vidente que se chamava Ema. Entretanto o  tinha ido ao ouro.
«Você é bruxo, Vítor?»
Sorriu e não deu resposta.
«Estão a dar conta do mesmo que eu?»
«O que se passa, Mário?» perguntou o Vítor.
«Ou me engano ou as máquinas fecharam.»
Parece que ficaram com medo dele.» Disse, convencido que o jogo estava morto.
Um cenário bastante desagradável à vista. Longe iam os tempos em que eu e o Raul ganhávamos num dia e perdíamos no outro. Nessa altura havia ainda um cheirinho a aleatório. Agora as queixas dos utentes eram frequentes e os empregados não tinham outro remédio senão engolirem sapos vivos, falarem da teoria da conspiração, ou baterem logo heroicamente em retirada.
«Não me fale disso nem da famigerada teoria da conspiração.» disse um dia a um fiscal. «É disco falhado. Trate mas é de comunicar as queixas a quem de direito.»
O empregado agastou-se e perguntou-me:
«E porque não se queixa à inspeção?»
«Acha que não me queixei?»
Fui interrompido nos meus pensamentos por uma voz esganiçada.
«Já não joga mais?»
Valia a pena continuar a jogar?
O estrangeiro jogava a quinhentos. Premia displicentemente a tecla da aposta máxima, mudando, uma vez por outra para a tecla de reapostar, o que era o mesmo. A cadência assemelhava-se à de um relógio com segundos mais prolongados. Parecia que jogava a botões. Não reagia à saída de um bom prémio, uma ida ao cofre, ou a uma sequência de jogadas nulas.
Vi introduzir nota de cem a seguir a nota de cem sem que a situação se alterasse.
«Muda de máquina, parvo. Ou vai-te embora.» Pensei.
«Já sacou um ticket de oitocentos euros.»
«E quantas notas verdes ele pôs?»
«Não sei.»
«Nem eu, mas certamente muitas. Vou dar uma volta até ao piso de cima. Não gosto de ver um jogo de futebol até ao fim quando já conheço o resultado. Isto não é um jogo de futebol, mas não deixa de ser um jogo de resultado previsível.»
Balanço de uma noite de jogo para o estrangeiro a remar contra a maré: quase quatro mil euros ficaram no casino. Se ele continuasse nos dias seguintes lá se iam à viola os mais de vinte mil euros do jackpot de cavalos e leões.
Cala-te e usufrui.
Um buraco negro engole tudo o que se aproxima da sua zona de influência. É uma viagem sem regresso para qualquer incauto. Mas, como tudo na vida... a "vida" de um buraco negro também terá um fim!

Foi no mínimo surrealista o que aconteceu na noite na noite em que Mário entregou a reclamação mais desenvolvida em mãos. Isto depois de ter feito na véspera um resumo na folha de reclamações. 
Em vez de encontrar um inspetor no gabinete, encontrou três. Nada mais nada menos que três inspetores, em amena cavaqueira, provavelmente só isso. Só não estava presente a inspetora que o tinha recebido, por coincidência a pessoa com quem mais lhe interessava falar.
Com que então o trabalho burocrático absorvia-os de tal forma que não havia hipótese de descerem à praça!
«Estou a ver três ou um?» perguntou aos seus botões.
Interromperam a sua atividade burocrática e viraram-se para Mário. Impávido e sereno, explicou que entregava em mão a reclamação porque a carta registada tinha voltado para trás.
«Como assim?» perguntou um dos inspetores, aproximando-se dele.
«Bem gostava de saber, senhor inspetor. O certo é que a carta foi devolvida. Ou o carteiro não foi diligente ou algo aconteceu para além do entendimento humano.»
«Bom, não se preocupe. Antes de juntar a carta à sua reclamação, vou tirar uma cópia e assino para confirmar a receção. Está bem?»
«Certo.»
Enquanto o inspetor procurava num dossier a reclamação, Mário recordou-se da noite em que conheceu pela primeira vez a sala da inspeção e foi recebido por uma inspetora que não sabia sequer ler um ticket (número de máquina, etc.) e disse, em resposta a uma proposta sua para descer à praça e verificar no local as cenas que estavam acontecendo, que estava sozinha no gabinete e mergulhada em papéis. Quanto à hipótese de saber quantas vezes tinha ido ao bónus, nada feito. Tecnicamente era impossível.
Entretanto o inspetor continuava a procurar a reclamação para a juntar à carta.
«É estranho! Devia estar aqui...»
Pois devia.
«Talvez a senhora inspetora saiba onde está a reclamação.»
«Tem razão. É provável que esteja com ela. Se quiser passar por cá num destes dias, garanto-lhe que vai ver a sua reclamação.» Disse.
«Não se preocupe. O mais importante é conseguir confirmar uma coisa que aconteceu naquele dia.»
Dia amaldiçoado.
«Sim?»
«A senhora inspetora que me recebeu afirmou que era possível saber quantas vezes eu tinha ido ao cofre naquele dia da reclamação.»
«Disse cofre?»
«Sim. Na nossa gíria dos jogadores, ir ao cofre é o mesmo que entrar no bónus progressivo.
Só dias mais tarde, quando Mário voltou ao gabinete, é que soube do aparecimento da folha da reclamação. Afinal esta sempre estava na posse da inspetora.
«É pena a senhora inspetora não estar presente.»
Sim, azar o seu.
«Posso ajudar nalguma coisa?» perguntou o inspetor.
Mário abanou negativamente a cabeça.
«Não, muito obrigado. Era só com ela.»
Preferiu não falar daquilo que considerava ser o trunfo principal. O número de vezes que foi ao cofre naquela noite demoníaca. Ah! Mas falar da sorte do Zé dedilhador era coisa que não podia perder. Da tal noite em que ele tirou, pelo menos, quatro bons prémios.
«Foram quase dez mil euros!» Disse, ao mesmo tempo que não perdia de vista o olhar incrédulo do inspetor.
«Não me diga!»
«Sabe?, o mais escandaloso é que quase todos os utentes habituais do Fort Knox já falam do sortudo à boca cheia.»
Desta vez a carta que escreveu era muito mais incisiva. O fracasso da última reclamação tinha-lhe aberto os olhos.
Resumindo, começou por descrever a ocorrência que o fez saltar fora dos carretos perante um chefe de sala mais que convencido que o aleatório era um facto consumado. Devia ter dito fenómeno porque facto estava mais ligado a manipulação, palavra que os responsáveis do casino não gostavam de ouvir.
«Tenho confiança nos meus subordinados.» Dissera um deles.
Durante doze horas, coisa nunca observada por ele, a máquina não lhe deu acesso ao prémio progressivo do Fort Knox. E mais. Na sua ausência, uma pessoa das suas relações deu continuidade ao jogo sempre sem qualquer resultado quanto à ida ao cofre. Depois, com outros utentes, um deles jogando forte, tudo permaneceu na mesma. Portanto, foram doze horas sem hipótese de acesso ao bónus progressivo, bónus esse com prémios desde mais de vinte euros ("cobre") até mais de dois mil euros ("platina"). Tudo podia ter acontecido nesse intervalo de tempo, mas nada aconteceu porque a máquina nunca abriu.
Porquê?
Boa pergunta. Doze horas era obra para um acontecimento aleatório em que as máquinas foram abrindo com uma cadência normal, menos a sua, porque esta, na melhor das hipóteses, talvez estivesse desligada do sistema.
A máquina da jogadora dos sete e nove, essa nunca se desligou do sistema. Antes pelo contrário. Gostava muito dela.

"Portanto, afastando a hipótese de existir um acontecimento aleatório (será um acontecimento aleatório uma máquina não "abrir" durante doze horas, isto é, não dar acesso ao fabuloso cofre do Fort Knox, uma das principais fontes de receita do casino e que alimenta, atualmente, os "buracos" da zona nascente e o deserto que é o piso de cima?), gostava de saber o que pensam V. Exas deste caso...?"

De seguida, questionando na carta o que tinham a dizer os responsáveis pelo software das máquinas: se a máquina se desligou do sistema e porquê, se o chefe de sala a quem foi reclamar antes de ir à inspeção, e com o qual manteve uma quente e pública discussão, tomou alguma atitude, como por exemplo, mandar desligar a máquina e pedir para se averiguar o que se estava a passar com ela. Gostava também de saber se teria havido manipulação maliciosa, pois que ele era um daqueles utentes que habitualmente perdiam no casino, talvez por ser uma voz que não se calava perante o que achava ser uma evidente injustiça.
Não perdeu muito nessa noite, nem se sentiu injustiçado como das outras vezes em que reclamou. Foi diferente. Perturbou-o a discussão pública que teve com o convencido chefe de sala que o atendeu na altura. Perturbou-o a teimosia da máquina em manter-se afastada do cofre durante doze horas.
Reforçando as convicções de máquina fechada, ou uma avaria pontual, considerou como prova dos nove curiosamente ver um especialista em abrir as máquinas sentir-se impotente perante aquela aberração. Tentou, insistiu e desistiu. Enfim, o dito acontecimento aleatório estava a ir longe de mais, como naquele dia em que a platina saiu duas vezes ao mesmo utente, ou, dias atrás, saíram em curto espaço de tempo duas platinas na mesma máquina. E as máquinas do Fort Knox eram vinte.

Voltando à minha primeira carta de reclamação, esta foi arquivada "por ser imprecisa quanto ao objeto".
Será que alguém averiguou, descendo à praça, se os vários indícios apresentados, que continuam atuais, tinham razão de ser?, por que motivo são sempre os mesmos a ganhar e outros os mesmos a perder?
Referindo-me agora à qualidade da tiragem do ar na zona norte do "forte", mantenho o que disse. Só quem não vai ao espetáculo é que não tem oportunidade de aplaudir, manter-se em silêncio, ou assobiar. Tecnicamente pode estar tudo perfeito e quero acreditar que sim; mas no palco, onde se vive o espetáculo, principalmente à sexta à noite, ao sábado e véspera de feriados?
Se a ASAI não podia intervir, então que empresa idónea avaliava a qualidade do ar, por exemplo, sábado à noite?
Era muito bom, e o que mais desejava, que estivesse em campo uma equipa de observadores idóneos que não olhassem só para as máquinas, mas principalmente para as pessoas que "as máquinas escolhiam". Por exemplo, para os "sortudos" homem do rosto largo dedilhador, jogadora dos sete e dos nove, etc. Por exemplo também, os "azarentos" como ele que perdiam quase sempre.
«Protesta baixinho. Ou ainda melhor, cala-te e usufrui. Depois, "retribui" aos deuses.»
Quem falou?
Só ao fim de sete meses Golias se dignou responder à reclamação de David. Uma resposta que dava muito pano para mangas, mas Mário já não estava nada virado para continuar a alimentar uma situação há muito bloqueada num beco sem saída.

"Os planos de pagamento dos prémios têm de assegurar que, pelo menos, 80% dos montantes jogados sejam devolvidos em prémios aos jogadores".Foram analisados contadores contabilísticos, eventos e anomalias, não tendo a signatária encontrado qualquer comportamento que confirmasse as suspeitas por V. Exa. alegadas na referida reclamação."

Mário deve ter rido a bom rir em sentido figurado perante uma resposta que tinha muito de geral e nada de particular. Ainda dava mais para rir aquela dos oitenta por cento em prémios a devolver pelas máquinas. De certeza que tal nunca aconteceu, nem estava a acontecer, nem aconteceria. Uma treta. Melhor dizendo: um embuste. Ainda melhor: uma marca de carimbo que assentava para a sua reclamação e para as muitas que foram feitas e não tiveram pernas para andar por causa da obstrução do sistema. Em termos futebolísticos, o clássico catenaccio dos italianos.
Quanto a percentagens, era premente fazer a pergunta que se impunha: qual a percentagem de processos arquivados?
Segundo a inspetora que tomou a seu cargo dar resposta à reclamação de Mário "era possível saber o historial num dia sobre o número de vezes em que uma máquina acedeu ao bónus progressivo". Pois era. No momento não tinha disponível essa informação. Mais tarde, teria. Certo. Certíssimo.
Ia desistir de lutar contra Golias?
Não tinha saudades do jogo. Tinha saudades, sim, do tempo em que foi a voz incómoda que nunca se calou, lutando contra as anomalias que se verificavam com frequência nas máquinas onde jogava e também onde jogavam os que tinham o vício de perder e os outros que tinham o vício de ganhar. Essa voz que nunca se calou, não derrotou ninguém todo-poderoso; desmoralizou muito, incomodou, enervou os intocáveis, mas não conseguiu atirá-los ao tapete. Talvez porque David só venceu uma vez Golias e o relato dessa história foi 
contada num livro que não admite contestação. A Bíblia!
Os dias que estão a passar no seu ritmo habitual não são longos dias azuis nem cinzentos. São dias.
Depois de um interregno de meses que teve como causa um problema de saúde, Mário continuou a lutar contra aquele "estado de coisas" dentro do Estado que tinha profissionais fiscalizadores que se limitavam a assobiar para o lado.
E que corresse o marfim! Aleluia!
Mário acredita que o monstro já chegou à inspeção e devorou-a com grande apetite, tal como fazem todos os buracos negros que se prezam. Mas acredita também que esses mesmos buracos negros, atingidas condições restritivas, também se devoram a si próprios se já não tiverem mais nada nem ninguém para continuarem a devorar.


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