Leonardo, o homem do rosto largo, desce calmamente uma rua que vai entroncar na longa alameda de várias vias, algumas delas pedonais. Não precisa de apressar o passo. Tem sempre a sua Cleópatra de eleição à disposição, qualquer que seja a hora a que chegue.
Vai bem disposto, apesar de sentir uma ponta de azia provocada pelas iscas à portuguesa que comeu ao almoço na tasca do seu bairro. A culpa não foi do carrascão servido em jarro, áspero e agressivo até dizer basta, porque bebe-o todos os dias ao almoço. As iscas, sim, essas foram envinagradas em demasia. Segundo o Fausto, o dono da tasca, ficam mais saborosas com aquele toque avinagrado. Não discorda. O pior é o resto. A porra do estômago é que paga as favas. E ele já não tem vinte anos. Nem trinta. Nem quarenta. Upa, upa.O céu está azul, mas a nortada fria que dura há seis dias perturba a massa cinzenta do Leonardo. E não só a nortada. Segundo ele, desde que o homem foi à Lua nunca mais o tempo foi o mesmo. Há quem diga, e já viu um programa na televisão, que tudo não passou de uma encenação e pura aldrabice. Desse assunto não sabe. Mas que eles mexeram no tempo, lá isso mexeram. Ninguém lhe tira a ideia da cabeça. E a reforçar o pensamento, acena com a cabeça. O corpo é que paga com a maldita da sinusite que lhe dá luta sem descanso. Pressente que vai instalar-se em breve um ferrão sobre os olhos. Mas só quando sair do casino, pois lá dentro a adrenalina é tanta que não sente nada. Esquece tudo e mais que fosse.
«Ah!, mas este tempo já não é como era dantes. Tenho quase a certeza que os astronautas foram à Lua só para mexerem na merda do tempo.»
«Que é isso, senhor Leonardo! Não diga uma blasfémia dessas. Nem merece ter o nome que imortalizou a Mona Lisa! Falemos mas é do Pinóquio (1). Acha, como ele, que está tudo bem no reino de Jerusalém, ou o homem tem andado a mentir ao povo?»
«Quero que se lixem todos. O Pinóquio, o Tareco e o Zé Povinho.»
Fez um gesto largo de deixa para lá, parecido com o que fazia quando lhe surgiam os três faraós. A mania que ele tinha de falar sozinho em voz alta trazia consequências imprevisíveis como aquela de fazer as perguntas e de alguém, que até podia ser ele, dar as respostas. Tinha forçosamente de meditar sem deixar fugir os pensamentos.
Lá está o porteiro junto à porta giratória. Paciência, tem que ouvir os salamaleques do costume. Às vezes até lhe parece que o porteiro está a mandá-lo ir para a outra banda. E até é capaz de ser verdade.
«Como está o senhor? Bardamerda.»
Mas se apertar com ele, nega até ao fim. A não ser que use instrumentos de tortura daqueles que eram usados na Idade Média.
«Boa tarde, senhor Leonardo.»
Conforme previu, foi cumprimentado cerimoniosamente pelo porteiro.
«Ficou-se por aqui. Vá lá...»
Aliás, toda a gente do casino o conhece. Senhor Leonardo para aqui, senhor Leonardo para ali. Boa sorte, senhor Leonardo. Isso não. Muita merda, como é vulgar desejar no teatro. Saber jogar também é uma arte. E ele é um intérprete de primeira água a representar o seu papel. Sempre dominador. Sempre vitorioso. Lá sabe porquê e ninguém sabe senão ele. Ponto final.
Chegou o momento de substituir os óculos de sol. O melhor é deixar os primeiros no alto da cabeça. Por vezes a luminosidade do monitor cansa-lhe a vista.
«Ah... já chegou, senhor Leonardo.»
«Claro. De certeza que não foi a minha tia. Qual é a máquina que está melhor, ó Onofre?»
«A do meio. Mas esta não está má.»
«Tens instruções?»
«Pianíssimo, a princípio.»
«Muito me contas, animal. Bem sabes que é assim que começo.»
Passa-lhe uma nota de cinquenta euros para as mãos e faz um gesto para se afastar.
«Tens o cu quente, alma danada.»
«Credo, senhor Leonardo.»
Levanta-se e puxa de um maço de notas. Introduz uma de cinquenta e depois uma de vinte e faz as primeiras jogadas de pé, optando por jogar cinquenta créditos de cada vez.
«Isso não é jogar baixo. Mas o senhor lá sabe as linha com que se cose.»
«Ainda estás aí? Ala almoço que se faz tarde.»
«Bom, não está cá o chato do costume.» Fala para dentro. «"Eu se fosse a si sacava o ticket.", disse o gajo uma vez. Afinal de contas de quem é o dinheiro?»
Vai fazendo a ondulação do costume. De cinquenta passa para vinte e cinco e cinco créditos e mantém-se assim durante algumas jogadas. Depois muda bruscamente para cento e vinte cinco. Em cheio. Aparecem quatro escaravelhos!
Põe mais uma nota de cinquenta e guarda o maço no bolso das calças.
«Agora já posso sentar-me.»
Pouco depois faz o gesto largo do costume e solta uma exclamação. Aí está. Quatro faraós. Já tardavam.
«Linda menina. Deste-me quatro e só precisava de três para ir ao bónus...»
Olha para trás. Os mirones do costume. E lá está o tal. Todo o cuidado é pouco. Tem ar de ser da inspeção. Mas não. Os inspetores não podem jogar. Ou podem desde que estejam em missão? Que se lixe! Ninguém vai topar o seu jogo.
O bónus não correu mal. Já tem dez mil créditos. Pensa que é altura de passar para os setenta e cinco créditos.
«Aí vem o cofre» diz para o lado. «Normalmente, a seguir a um bónus vem o cofre. Vamos ver até onde consigo chegar. Isto de bater ao de leve ou com força nos quadrados é uma treta.»
Vira-se para o parceiro do lado.
«Não vou passar do cobre» diz. «Mas ontem fui à platina...»
«O estúpido nem sequer comentou» pensa. «Olhou-me com um sorriso amarelo. É sinal de inveja. Pelo sim pelo não, vou fazer figas. E até trouxe uma cabeça de alho. Nunca se sabe o que anda para aí de inveja.»
De facto não passou do cobre. Mas o seu truque de ir pondo notas era infalível. De vez em quando a quimera do Fort Knox fazia-o sonhar.
«Senhor Leonardo deseja tomar alguma coisa?»
Voltou-se para trás.
«Olá, Leonor. Traz-me uma água com gás. Mas natural, não te esqueças.»
«Eu sou a Vanessa.»
«Pois. Vocês são todas parecidas umas com as outras» desculpou-se. «E bonitas. Se tivesse outra idade, olaré...»
Carregou na tecla de reapostar.
«Ora, senhor Leonardo. O senhor está muito bem conservado.»
Foi surpreendido pelo terceiro som a assinalar mais um faraó e esqueceu a Vanessa.
«Três cabeças!» exclamou, entusiasmado.
O homem do rosto largo continuava a ter a sorte do seu lado e entretanto a máquina do meio já não era a que dava mais rendimento.
«Os sacanas da porra! O bónus não foi grande coisa.»
«Pois é» disse o jogador da Cleópatra 2, a quem o jogo não estava a correr de feição. «Bem gostava de saber como é que eles controlam isto. Uma coisa é certa. Têm câmaras em todas as máquinas.»
Leonardo interrompeu o jogo e virou-se para o seu interlocutor:
«Não me diga!»
«Desconfio que sim. Aliás, fala-se muito disso, das câmaras e de outras merdas...»
«O meu amigo sabe ou desconfia?»
«Senhor Leonardo, aqui tem a sua água com gás.»
«Obrigado, Vanessa.»
«Sou a Luísa. A Vanessa foi para o segundo piso.»
«Ah sim. Toma lá, filha.»
A moeda era a gorjeta porque ele era um dos muitos utentes que não pagavam. Além de dar prejuízo ao casino, bebia e comia de graça. Alguém tinha que pagar as favas.
«Obrigada, senhor Leonardo.»
«Carinha laroca!»
«Velho gaiteiro.» Pensou esta.
Esqueceu o diálogo com o parceiro do lado e continuou a jogar e a ganhar, mas numa ascensão lenta. Sabia fazer a coisa do sobe e desce. Por exemplo agora devia baixar para vinte e cinco porque a máquina parecia ter entrado numa fase de estagnação.
Consultou o relógio. Seis e meia da tarde. Altura ideal para suspender o jogo e contactar o Onofre para o substituir.
Voltou às nove da noite...
«Então?»
«Tenha cuidado, senhor Leonardo, que a máquina está má.»
«Deste cabo dela, não foi?»
«O senhor Leonardo disse para jogar baixo.» Desculpou-se.
«Sai daí e vai-te curar.»
Recomeçou o jogo. Nem um prémio nas primeiras jogadas.
«Eu avisei-o. E ainda por cima está a jogar a cento e vinte cinco...»
«Fort Knox! Queres ver como se tira o ouro, ave agoirenta?»
Mais quatrocentos e trinta euros.
«Rendo-me.» Disse o Onofre.
«Quem se rendeu foi a minha dama. Eu sei muito bem como se deve lidar com esta preciosidade.»
Referia-se à máquina.
Uns meses depois Leonardo desapareceu misteriosamente, sem deixar aviso ou rasto. Talvez tivesse chegado a hora da maldição lançada por Cleópatra VII, a mulher-faraó do antigo Egito que, com astúcia terá usado o amor para fortalecer o país. Mais tarde, sem argumentos de defesa e independente como era, preferiu suicidar-se a submeter-se ao poderio de Roma.
Quem viu mais que uma vez o estilo de jogo de Leonardo, um dia julgou ter descoberto o segredo do seu êxito. Viu, mas enganou-se.
«Boa tarde, senhor Leonardo.»
Conforme previu, foi cumprimentado cerimoniosamente pelo porteiro.
«Ficou-se por aqui. Vá lá...»
Aliás, toda a gente do casino o conhece. Senhor Leonardo para aqui, senhor Leonardo para ali. Boa sorte, senhor Leonardo. Isso não. Muita merda, como é vulgar desejar no teatro. Saber jogar também é uma arte. E ele é um intérprete de primeira água a representar o seu papel. Sempre dominador. Sempre vitorioso. Lá sabe porquê e ninguém sabe senão ele. Ponto final.
Chegou o momento de substituir os óculos de sol. O melhor é deixar os primeiros no alto da cabeça. Por vezes a luminosidade do monitor cansa-lhe a vista.
«Ah... já chegou, senhor Leonardo.»
«Claro. De certeza que não foi a minha tia. Qual é a máquina que está melhor, ó Onofre?»
«A do meio. Mas esta não está má.»
«Tens instruções?»
«Pianíssimo, a princípio.»
«Muito me contas, animal. Bem sabes que é assim que começo.»
Passa-lhe uma nota de cinquenta euros para as mãos e faz um gesto para se afastar.
«Tens o cu quente, alma danada.»
«Credo, senhor Leonardo.»
Levanta-se e puxa de um maço de notas. Introduz uma de cinquenta e depois uma de vinte e faz as primeiras jogadas de pé, optando por jogar cinquenta créditos de cada vez.
«Isso não é jogar baixo. Mas o senhor lá sabe as linha com que se cose.»
«Ainda estás aí? Ala almoço que se faz tarde.»
«Bom, não está cá o chato do costume.» Fala para dentro. «"Eu se fosse a si sacava o ticket.", disse o gajo uma vez. Afinal de contas de quem é o dinheiro?»
Vai fazendo a ondulação do costume. De cinquenta passa para vinte e cinco e cinco créditos e mantém-se assim durante algumas jogadas. Depois muda bruscamente para cento e vinte cinco. Em cheio. Aparecem quatro escaravelhos!
Põe mais uma nota de cinquenta e guarda o maço no bolso das calças.
«Agora já posso sentar-me.»
Pouco depois faz o gesto largo do costume e solta uma exclamação. Aí está. Quatro faraós. Já tardavam.
«Linda menina. Deste-me quatro e só precisava de três para ir ao bónus...»
Olha para trás. Os mirones do costume. E lá está o tal. Todo o cuidado é pouco. Tem ar de ser da inspeção. Mas não. Os inspetores não podem jogar. Ou podem desde que estejam em missão? Que se lixe! Ninguém vai topar o seu jogo.
O bónus não correu mal. Já tem dez mil créditos. Pensa que é altura de passar para os setenta e cinco créditos.
«Aí vem o cofre» diz para o lado. «Normalmente, a seguir a um bónus vem o cofre. Vamos ver até onde consigo chegar. Isto de bater ao de leve ou com força nos quadrados é uma treta.»
Vira-se para o parceiro do lado.
«Não vou passar do cobre» diz. «Mas ontem fui à platina...»
«O estúpido nem sequer comentou» pensa. «Olhou-me com um sorriso amarelo. É sinal de inveja. Pelo sim pelo não, vou fazer figas. E até trouxe uma cabeça de alho. Nunca se sabe o que anda para aí de inveja.»
De facto não passou do cobre. Mas o seu truque de ir pondo notas era infalível. De vez em quando a quimera do Fort Knox fazia-o sonhar.
«Senhor Leonardo deseja tomar alguma coisa?»
Voltou-se para trás.
«Olá, Leonor. Traz-me uma água com gás. Mas natural, não te esqueças.»
«Eu sou a Vanessa.»
«Pois. Vocês são todas parecidas umas com as outras» desculpou-se. «E bonitas. Se tivesse outra idade, olaré...»
Carregou na tecla de reapostar.
«Ora, senhor Leonardo. O senhor está muito bem conservado.»
Foi surpreendido pelo terceiro som a assinalar mais um faraó e esqueceu a Vanessa.
«Três cabeças!» exclamou, entusiasmado.
O homem do rosto largo continuava a ter a sorte do seu lado e entretanto a máquina do meio já não era a que dava mais rendimento.
«Os sacanas da porra! O bónus não foi grande coisa.»
«Pois é» disse o jogador da Cleópatra 2, a quem o jogo não estava a correr de feição. «Bem gostava de saber como é que eles controlam isto. Uma coisa é certa. Têm câmaras em todas as máquinas.»
Leonardo interrompeu o jogo e virou-se para o seu interlocutor:
«Não me diga!»
«Desconfio que sim. Aliás, fala-se muito disso, das câmaras e de outras merdas...»
«O meu amigo sabe ou desconfia?»
«Senhor Leonardo, aqui tem a sua água com gás.»
«Obrigado, Vanessa.»
«Sou a Luísa. A Vanessa foi para o segundo piso.»
«Ah sim. Toma lá, filha.»
A moeda era a gorjeta porque ele era um dos muitos utentes que não pagavam. Além de dar prejuízo ao casino, bebia e comia de graça. Alguém tinha que pagar as favas.
«Obrigada, senhor Leonardo.»
«Carinha laroca!»
«Velho gaiteiro.» Pensou esta.
Esqueceu o diálogo com o parceiro do lado e continuou a jogar e a ganhar, mas numa ascensão lenta. Sabia fazer a coisa do sobe e desce. Por exemplo agora devia baixar para vinte e cinco porque a máquina parecia ter entrado numa fase de estagnação.
Consultou o relógio. Seis e meia da tarde. Altura ideal para suspender o jogo e contactar o Onofre para o substituir.
Voltou às nove da noite...
«Então?»
«Tenha cuidado, senhor Leonardo, que a máquina está má.»
«Deste cabo dela, não foi?»
«O senhor Leonardo disse para jogar baixo.» Desculpou-se.
«Sai daí e vai-te curar.»
Recomeçou o jogo. Nem um prémio nas primeiras jogadas.
«Eu avisei-o. E ainda por cima está a jogar a cento e vinte cinco...»
«Fort Knox! Queres ver como se tira o ouro, ave agoirenta?»
Mais quatrocentos e trinta euros.
«Rendo-me.» Disse o Onofre.
«Quem se rendeu foi a minha dama. Eu sei muito bem como se deve lidar com esta preciosidade.»
Referia-se à máquina.
Uns meses depois Leonardo desapareceu misteriosamente, sem deixar aviso ou rasto. Talvez tivesse chegado a hora da maldição lançada por Cleópatra VII, a mulher-faraó do antigo Egito que, com astúcia terá usado o amor para fortalecer o país. Mais tarde, sem argumentos de defesa e independente como era, preferiu suicidar-se a submeter-se ao poderio de Roma.
Quem viu mais que uma vez o estilo de jogo de Leonardo, um dia julgou ter descoberto o segredo do seu êxito. Viu, mas enganou-se.
Entretanto continua a saga no casino, onde a corrupção cheira mal. É velha. Já vem de longe, talvez trazida por utentes e funcionários doutros tempos e doutros lugares.
Jogava numa das slots do famigerado jogo do pau, um jogo que já dera bons resultados e que agora fazia parte na lista negra. Mas, por qualquer motivo, nessa noite estava, ao mesmo tempo, no sítio certo e no sítio errado. Difícil de entender, mas lá tinha as minhas razões.
Perante um jogo insípido, com prémios não compensavam o investimento para uma máquina de dez cêntimos, o melhor que tinha a fazer era ir para casa. Sim, nem mais um toque na tecla de reapostar.
A atenção virou-se para um homem, que já conhecia de vista e que considerava, segundo os dados que me deram, ser um dos suspeitos que "lavavam dinheiro" ou beneficiavam do sistema. Jogava numa máquina de vinte cêntimos, de má memória para o indivíduo que agarrou numa cadeira e "zás" partiu os monitores de duas ou talvez três máquinas, mas de boa memória para mim porque tirava um prémio chorudo, daqueles que acontecem poucas vezes na vida de um utente perseguido pelo azar ou por outro motivo não identificado. Apostava continuamente "9x 10" (nove linhas e dez apostas por linha) e foi esse risco à vista que me fez suspender o jogo e concentrar-me no que se passava. No jogo (havia mais uns tantos de opção, entre eles o dos cifrões...), com motivos egípcios, ia-se a bónus quando surgiam três ou mais livros, coisa que não estava a acontecer ao nosso jogador. O companheiro, sentado à sua esquerda, também era um dos frequentadores habituais do casino. Usava uma bengala. Raramente jogava. Andava na casa dos setenta e tais e tinha todo o ar de ser um daqueles agiotas que faziam a vida emprestando dinheiro aos desgraçados que já não conseguiam sair dos tentáculos do polvo. Via-o normalmente sentado em frente a uma das máquinas da Star Wars, mas de costas voltadas para o monitor. Era aí que lanchava, tomava o seu café, dormitava e assistia aos jogos da Sport TV.
Voltando ao nosso homem, um duro a jogar, parecia que nessa noite a sorte não estava com ele. A confirmação veio quando pouco depois se levantou e tomou a direção do balcão, mesmo em frente ao conjunto de quatro máquinas. Vi-o levantar dinheiro. Logo a seguir voltou à máquina. Meteu uma nota de cinquenta euros na máquinas e disse algumas palavras para o velho da bengala que traduzi como:
«Joga nessa máquina, Chico.»
Em resposta este acenou afirmativamente com a cabeça e recebeu das mãos do outro uma nota de cinquenta. Então era isso. Ia também jogar.
Mas qual era a sua intenção ao jogar fraco?
Minutos depois tive a resposta. Parou o jogo e disse qualquer coisa ao duro da história. Este também interrompeu as jogadas de 9x10 (dezoito euros por cada jogada numa máquina de vinte cêntimos a linha) e ficaram a cochichar. Por coincidência ou não, passava em frente na altura um mecânico. Bastou um simples gesto do velho para este se dirigir a eles.
Sentado na minha cadeira giratória e jogando pausadamente, estava mais em cima do jogo do outro do que no meu.
O mecânico ouviu-os com atenção e, quando se calaram, retirou a caixa preta da máquina onde o velho jogava e levou-a consigo.
Primeiro acontecimento insólito porque, aparentemente, não havia nada de anormal na máquina do velho. Quanto muito tinha jogado uma dúzia de vezes e não me pareceu que tivesse ocorrido qualquer avaria. Entretanto o outro continuou a jogar em alto risco.
Voltou pouco depois e repetiu a operação em mais duas máquinas, restando apenas uma máquina com a caixa. Não queria acreditar no que viram os meus olhos. E o mais estranho de tudo é que a máquina onde o jogador investia dezoito euros por cada toque na tecla de reapostar fora a única que tinha ficado com a caixa. Uma cena surrealista, para não dizer outra coisa mais acutilante. Aquilo não podia estar a acontecer!
O curioso é que o homem levantou-se para ir levantar mais dinheiro. Apesar da aparente ajuda do mecânico, a coisa continuava a correr-lhe mal. Pelas pancadas secas nas teclas, agora mais vigorosas, via-se que estava exasperado, pelo que receei pela integridade da máquina.
Mesmo assim não resultava?
Eu tinha deixado de jogar e seguia com atenção o que se passava na minha frente a pouco mais de cinco metros. Passados vinte minutos o mecânico voltou e pôs as três caixas no sítio e foi-se embora sem uma palavra, ficando para mim tudo muito mais estranho. Entretanto o jogador continuava a jogar forte e a perder. Só o bónus o podia salvar. Com a máquina fechada tudo levava a crer que desta vez, contra o que era hábito, não se ia safar. Por isso, resolvi abandonar o local e ir para os lados do Fort Knox. Também se passava aí muita coisa estranha que precisava de ser investigada, como, por exemplo, o caso do homem do rosto largo.
Perdi pouco tempo porque o nosso homem não estava presente e também não me apetecia jogar. Aliás, precisava de ter muito cuidado porque a minha teoria da conspiração dizia-me que fazia parte da lista negra e assim, tudo o que tentasse no jogo para obter algum rendimento, era de imediato bloqueado.
Resolvi voltar à zona das máquinas de vinte cêntimos e constatei que eles já não estavam presentes no local. Por um descargo de consciência aproximei-me mais e ainda bem que o fiz. Afinal o jogador e o velho estavam agora na máquina em oposição àquela onde este último jogara uma dúzia de vezes. E o que via era elucidativo. Tinha entrado no bónus e as coisas corriam bem. Jogando com um fator multiplicativo dez e, em virtude do bónus oferecer um fator multiplicativo três, significava que cada aposta premiada beneficiava de um fator multiplicativo trinta.
Procurando não dar nas vistas, segui a curta distância o evoluir do jogo. Os três livros apareceram no decorrer do bónus ainda por mais duas vezes. Com tal ocorrência certamente que o homem passava num ápice de vencido a vencedor.
Não ia esquecer-me desta noite.
As histórias de Mário voltam a passar pelos mesmos terrenos perigosos de ontem. É um déjà vu mais detalhado, pelo que o autor deixa um advertência que funciona como um sistema de segurança para o que der e vier. Continuam a ser tal como as viveu, como lhe foram contadas, ou como as criou. E uma coisa é certa: o que viram os seus olhos, às vezes tem tanto de fictício como a Branca de Neve não ser prima dos sete anões...
Como de costume as três Cleopatras estavam ocupadas. Sem dúvida que eram as máquinas mais pretendidas. E havia motivos para tal. O software era mesmo do outro mundo. Em caso extremo essas máquinas dialogavam connosco e, nesses momentos, levavam-nos quase sempre pela certa. Não se podia estar muito tempo numa dessas máquinas, mas a atração era fatal. Uma espécie de destino a cumprir, o facto de não saber deixar a máquina no momento certo.
Coloquei-me a uma distância razoável do trio das Cleopatras para não ser considerado abutre pelos jogadores.
Reparei no homem que jogava na Cleopatra 1. O toque seco na tecla branca de reapostar lembrava-me alguém e pensei de imediato que não era possível. Por certo estava a fazer uma grande confusão.
«Já reparaste no homem que joga na primeira Cleopatra?» perguntei.
«É curioso!»
Ela pensava o mesmo que eu.
«O cabelo está diferente. Muito liso e comprido atrás.»
«Parece postiço» argumentou. «Mas aquele levantar de braço e o toque seco na tecla...»
«Vou aproximar-me mais.»
Ato contínuo dei dois passos e vi-o de perfil.
Fiquei de novo ao lado dela.
«Tenho os pêlos eriçados e não é caso para menos.»
«Então?»
«É mesmo ele!»
«Não pode ser! O homem está morto. Ouvi a conversa que as outras fizeram com a mulher dele.»
Sugeri que fôssemos verificar. Entretanto, como que por milagre, tinham vagado quase ao mesmo tempo as outras duas máquinas.
A minha companheira ficou ao lado dele e eu na outra máquina.
«É mesmo!» sussurrou.
Jogava a vinte e cinco linhas e parecia que o jogo não lhe corria bem. A confirmar a suposição ouvi alguns palavrões após cada batimento na tecla. Parecia revoltado com a falta de jogo. Quanto ao nosso jogo também não estava a correr de feição. A sua querida Cleopatra 3 só dava para equilibrar o jogo.
O bónus surgiu. Resultado? Nada de especial. Nós também fomos ao bónus. As máquinas não estavam de feição.
Teve mais dois ou três bónus e os resultados voltaram a ser fracos. O homem estava mesmo zangado.
«Queres mudar comigo?»
Nunca consegui dizer que não à minha companheira de jogo. E, neste caso, podia observar melhor o homem. Estava abatido, sem o vigor dos outros tempos. O rosto menos largo, mais magro. Os mesmos óculos. Talvez a ausência de cabelo disfarçada com o postiço. O levantar caraterístico do braço direito quando ia ao bónus, mas nada de bater no vidro com o dedo onde hipoteticamente tinha o anel de rubi. Aliás, o homem não tinha qualquer anel nos dedos, tanto na mão direita como na esquerda. Estes estavam manchados. Pela certa uma doença de pele.
«Mas... não está morto?»
Voltou-se para mim. Em boa verdade não lhe tinha perguntado nada. Talvez tivesse adivinhado o meu pensamento. Talvez fosse um fantasma.
A mudança de máquina fez-me mal. Comecei a perder. Caso curioso, o homem estava agora mais calmo, calado, porventura absorto nos seus pensamentos. Portanto, nada de palavrões. Mas que estava indisposto com a máquina, lá isso estava.
Então aconteceu um caso inédito numa fase em que os créditos tinham chegado a zero. Desistiu de jogar.
«Ruim até ao fim!» exclamou, olhando para mim.
Afastou-se e fiquei a pensar que era a primeira vez que via a Cleopatra vencer aquele homem. Não era a sua preferida, mas para o caso tanto fazia. Ele levava de vencida qualquer máquina do Fort Knox. Quebrava-se assim o mito do homem do rosto largo que eu supunha chamar-se Leonardo. Aquilo que podia ter acontecido aconteceu mesmo. Afinal o nosso homem estava vivo.
Quando decidi dar-lhe vida em mais uma das minhas histórias, será que alguém me transmitiu a notícia daquilo que seria aos meus olhos no dia seguinte um facto consumado?
Estavam de volta os tempos dos fenómenos paranormais, ou aconteceu apenas um caso isolado de premonição?
Quanto à notícia da sua suposta morte, talvez que tivesse havido um mal entendido. A viúva a que se referira a minha companheira de jogo era outra, de outro morto que não ele, Leonardo, que estava vivinho da costa. Talvez que o seu afastamento se devesse a uma doença prolongada em que foi submetido a um tratamento radical que lhe provocou a queda do cabelo.
Bem-vindo ao clube dos vivos, Leonardo, campeão dos campeões dos jogos de azar. Espero que voltes mais vezes ao casino e recuperes o esplendor dos outros tempos. Amém.
E se tivesse acontecido de outra forma o reencontro com o homem do rosto largo?
Era uma coisa incrível ter o presumível morto na minha frente.
Vi-o antes que me visse. A apresentar a sua prova de vida e eu, boquiaberto, a não querer acreditar.
«Mas... não está morto, senhor Leonardo?»
Pergunta parecida com esta:
«O seu marido como está? Continua morto, não é verdade?»
Leonardo limitou-se a sorrir.
«Desculpe lá, senhor Leonardo.»
«Não faz mal. Havia de ver a sua cara. Parecia que acabava de ter uma assombração.»
E não era caso para menos.
«Pois foi. Correu por aí o boato que senhor tinha morrido. Afinal, ainda bem que está vivo e bem vivo.»
«Sim. Como a sardinha. Mas fui eu que indiretamente espalhei o boato. Convinha-me, sabe?»
«Não sei, não.»
«Ah pois.»
«Mas passou-se alguma coisa?»
«Nada de especial. Simplesmente apeteceu-me.»
Gosto estranho, confesso. Havia qualquer coisa nebulosa que ele queria esconder. Ah! Já sabia. Constou-lhe que suspeitavam dele e ausentou-se. Talvez o amigo que lhe guardava a máquina.
«Desculpe a curiosidade. Esteve fora do país?»
«Costumo ir todos os anos a Las Vegas a um campeonato de póquer. Sou um jogador profissional.»
«Quem diria? Os prémios são bons?»
«Nem imagina!»
«E teve tempo para dar umas bicadas nas máquinas?»
«Há sempre tempo para tudo.»
Podia ter acontecido assim:
«Viva, senhor Leonardo. Seja bem aparecido.»
«Muito obrigado. Constou por aqui que eu tinha morrido.»
«É verdade. Mas está bem vivo. E pelo que vejo, continua a dominar a sua Cleopatra preferida.»
Fez com o braço direito o gesto largo da ida ao bónus.
«A minha bela amante, salvo seja. Exato. É como está a ver. Mas podia dar mais qualquer coisa esta semítica.»
«Como de costume sempre insatisfeito. Mas olhe que ela sentiu saudades suas. Não voltou a ser a mesma. Eu que o diga.»
«Tem perdido?»
«Alguma coisa. É o preço de gostar de jogar nestas máquinas. Os Unicorn dão mais hipóteses quando se acerta em cheio. Três cavalos e dois leões é o máximo. Já tirei um jackpot há três anos. Ganhei pouco porque tive azar nas dobras.»
«Estava a jogar a quanto?»
«A setenta e cinco créditos. Ganhei cerca de mil e trezentos euros.»
«Foi pena. De facto podia ter sido mais do dobro. É uma oportunidade rara fazer três cavalos e dois leões. Tem razão quando refere o jogo dos Unicorn. Mas não se pode fugir a uma atração fatal como esta, não é?»
Enquanto premia ritmadamente a tecla de reapostar referiu-se outra vez ao boato da sua morte que se espalhou no Fort Knox. De certa forma a culpa foi sua, admitiu.
«A história é um pouco complicada. O meu amigo está disposto a ouvi-la?»
«Claro que estou.»
Entretanto assisti ao seu gesto triunfal e exuberante de ir ao bónus.
«Vamos ver o que vai dar. Estou a jogar a cento e vinte cinco.»
Bem vi. Por sorte tinha mudado no momento de cinquenta créditos para cento e cinquenta.
Fez uma pausa na história e assistimos ao desenrolar do bónus.
«Dobrou!» exclamei, entusiasmado, como se estivesse a ser eu o beneficiado.
Mais quinze jogos grátis. Continuou, enquanto o bónus se desenrolava.
«Entretanto comecei a jogar nas slots, a estudá-las, tentando tirar o melhor partido delas. Conforme disse há pouco, não jogo por vício mas para tentar ganhar. Sempre, se possível.»
«O que é difícil.»
«Sim?»
«Ganhar.»
«Não tanto assim. Requer atenção, calculismo e frieza. Apenas isso.»
«Só?»
Pareceu ignorar a minha pergunta irónica.
«Está bem, abelha» pensei. «É uma coisa complicada parar o jogo quando se está ganhando. Nem sempre se consegue.»
Eram pontos de vista diferentes.
«Ganhei cerca de duzentos euros quando joguei pela primeira vez nas Cleopatras e fiquei logo fã delas. Podia ter sido fatal porque voltei ao casino no dia seguinte e perdi. Mas tinha a sorte pelo meu lado e, com o passar do tempo, fui ganhando mais do que perdia. Acabei por encontrar uma tática que o meu amigo Mário já conhece, visto que joga com frequência ao meu lado e julgo que é um bom observador.»
«Pois conheço a tática. O Leonardo tem sempre êxito. Boas linhas. Bons créditos no bónus. Frequentes idas ao cofre, algumas com ouro e platina. Mas comigo o método pega poucas vezes. Se jogasse forte como o Leonardo joga tinha que ir pedir para a porta da igreja.»
Riu-se.
«Conforme sabe não ultrapasso os cento e vinte cinco créditos. E tome atenção que começo sempre a jogar a vinte e cinco.»
«A tomar o pulso à máquina. Compreendo.»
«Pois. Agora deve estar curioso em saber porque ganho quase sempre.»
«Quase sempre ou sempre?» perguntei, num sussurro.
«Sim, estou muito curioso. Mas antes queria perguntar-lhe uma coisa que muito me espanta: como consegue ter disponível a sua máquina preferida?»
Fez o habitual gesto largo com os braços como quem queria dizer que a minha pergunta tinha resposta fácil.
«Muito simples, meu amigo, Tenho um amigo viciado no jogo a quem dou umas gratificações. Esse fulano coloca-se na primeira fila encostado à porta do casino, minutos antes de serem abertas as portas. Depois é só correr e tomar de assalto a minha querida máquina.»
«Foi o que pensei. Mas a segunda pergunta é mais complicada. Digamos, impertinente.»
«Sou todo ouvidos.»
Fiz um compasso de espera tentando criar um momento de suspense.
«Como consegue ganhar sempre?»
Tamborilou com os dedos junto às teclas de aposta máxima e de reapostar. Depois, ajeitou uma madeixa que lhe caía para a testa. Em boa verdade, Leonardo tinha uma cabeleira farta para a idade e sempre bem penteada, com ondulações.
«Deve ter uma ideia de quanto ganho por dia, não tem?»
Pois tinha. O Leonardo começava com dois mil e quinhentos créditos, jogava de início a vinte e cinco e cinquenta créditos, ia alimentando a máquina com notas de vinte euros e subindo a parada até aos cento e vinte cinco créditos. Depois fazia uma espécie de carrossel, com subidas e descidas nas apostas. A partir dos quinze mil créditos deixava de alimentar a máquina e a subida continuava até níveis de sessenta mil a oitenta mil créditos. Aí sacava o ticket. Devia ganhar em média mil euros cada vez que ia jogar ao casino.
«Claro que tenho uma ideia. Mas só não entendo uma coisa…»
«Sim?»
«Afinal como consegue ganhar sempre?»
Julguei que tinha encostado às cordas o Leonardo.
«Tem algum palpite?»
«Devo atacar forte?» pensei.
«Talvez tenha um conhecimento cá dentro e divida com ele os lucros. Ou, talvez um objeto que controle a máquina a partir de uma série boa. Ou então consegue bloquear a série em questão durante um tempo suficiente para tirar o lucro que costuma tirar.»
«Em primeiro lugar não divido os meus lucros com ninguém. A ser assim, o lucro reduzia-se drasticamente.»
«Então...?, sempre achei que o meu amigo ia ao bónus com frequência exagerada. Isto em comparação com os outros que apostam o mesmo que o Leonardo.»
Lembrei-me de uma tarde em que ele teve que abandonar de repente a sua máquina e tomei o seu lugar. Até que a dita máquina fechasse ainda ganhei uns bons euros.
«O seu pensamento é lógico. Então em que está a pensar?»
Não respondi. Fiquei a olhar para ele. Sabia muito bem que estava a pensar na segunda hipótese.
Estendeu a mão direita na minha direção. O anel que tinha no dedo anelar encheu-me o olho. Não o anel. Sim a pedra vermelha.
«Parece um rubi.»
«E é.»
«Mas custou-lhe uma pipa de massa!»
«Sabe uma coisa: o casino já pagou umas tantas pedras destas.»
Não estava a compreender.
«Acredito. Mas que tem esse anel para o caso?»
Como resposta tirou o anel do dedo anelar e passou-mo para as mãos. Pude observá-lo melhor. Havia qualquer coisa estranha no interior do rubi.
«Que lhe parece?»
«Não sei. Vejo uma inclusão. À primeira vista desvaloriza o rubi. É o que me parece.»
«É certo. E se lhe disser o que é essa inclusão?»
«Se é o que penso, está tudo explicado.»
«E o que é que pensa? Aí temos outra vez o cofre!»
Ficou a dez pontos do ouro.
«Bom. Talvez seja a solução para as minhas dúvidas.»
«Pois é. Esta inclusão que está a ver não passa de magnetite disfarçada com uma capa quase ao tom do rubi.»
Passou-me pela cabeça uma ideia louca. Quando saíam dois faraós ele costumava estender a mão direita na direção do monitor, dando com o anel uma pancada seca no vidro. Resultando: parava com frequência um terceiro faraó na quarta ou quinta coluna. Assim se justificava que tivesse muitas vezes bónus em apostas de cento e vinte e cinco.
«Bem engendrado.»
«Já adivinhou a cena. A inclusão de magnetite travava as duas últimas colunas. E eu estava atento à passagem dos faraós.»
«Empresta-me o seu anel?»
Sorriu.
«Estou a brincar, meu amigo. Mas até dava jeito, confesso.»
Fez um gesto para tirar o anel do dedo.
«Quer mesmo?»
«Grato. Claro que não. Mas ainda uma terceira pergunta...»
«Sim?»
«Afinal porque se ausentou e lançou o boato da sua morte? Perdeu um rendimento certo nestes meses em que esteve ausente.»
«Pois foi. Mas há mais marés que marinheiros. A partir de uma certa altura senti-me observado. Creio que a minha querida Cleopatra que tanto estimo saiu fora das normas estatísticas. Retirei-me por uns tempos e agora estou de regresso só para ver como param as modas. Se as coisas não estiverem como eu gosto, então saio de cena.»
«Compreendo. Como está a máquina?»
«Parece normal. Até agora ainda não me chatearam. Pelo sim pelo não, vou continuar por uns tempos, mas baixando os lucros.»
«Oxalá.»
«Porquê esse ar de dúvida? Não vai denunciar-me, pois não?»
«Claro que não. Mas há uma coisa abominável que o Leonardo ainda não sabe.»
«Que coisa?»
Baixei o tom da voz.
«Além de câmaras, eles têm escutas nas máquinas. Provavelmente, se ouviram a nossa conversa, podem já vir a caminho...»
«Não me diga!»
Baixei mais o tom da voz.
«É o que dizem por aí.»
«Então vou bater em retirada. Desta vez morro por mais uns seis meses.»
Levantou-se.
«Deus lhe dê muitos anos de vida.» Sorri e rematei: «Nessa segunda vida, claro.»
«Obrigado, meu amigo. Parto, mas vou deixar uma recordação para si.»
«Não me diga!»
Premiu um botão à esquerda para retirar o ticket.
«Este anel é para si. Mas a pedra não é verdadeira. Aproveite bem o que está incluso nela.»
«Obrigado, mas não posso aceitar.»
«Porquê, meu amigo?»
«Porque eles já devem vir a caminho.»
«Ah sim.»
Num gesto rápido pôs o anel no bolso direito do meu casaco.
«Desta forma ou de outra gostava de o ter ajudado. Cuide bem de si e não deixe de jogar à profissional. Jogar para ganhar e não jogar por jogar.»
Apertámos as mãos e o mítico homem do rosto largo saiu de cena.
O tempo passou e não voltei a ver no casino o meu amigo Leonardo.
Quando me lembro dele, vem-me à ideia uma coisa muito simples. O que parece ser não é e o que não é parece ser.
Ah!, já me esquecia. E o anel?
Usei-o durante uns tempos, seguindo a tática do seu antigo dono. Quanto ao resultado, nicles, bofes, batatoides.
Jogava numa das slots do famigerado jogo do pau, um jogo que já dera bons resultados e que agora fazia parte na lista negra. Mas, por qualquer motivo, nessa noite estava, ao mesmo tempo, no sítio certo e no sítio errado. Difícil de entender, mas lá tinha as minhas razões.
Perante um jogo insípido, com prémios não compensavam o investimento para uma máquina de dez cêntimos, o melhor que tinha a fazer era ir para casa. Sim, nem mais um toque na tecla de reapostar.
A atenção virou-se para um homem, que já conhecia de vista e que considerava, segundo os dados que me deram, ser um dos suspeitos que "lavavam dinheiro" ou beneficiavam do sistema. Jogava numa máquina de vinte cêntimos, de má memória para o indivíduo que agarrou numa cadeira e "zás" partiu os monitores de duas ou talvez três máquinas, mas de boa memória para mim porque tirava um prémio chorudo, daqueles que acontecem poucas vezes na vida de um utente perseguido pelo azar ou por outro motivo não identificado. Apostava continuamente "9x 10" (nove linhas e dez apostas por linha) e foi esse risco à vista que me fez suspender o jogo e concentrar-me no que se passava. No jogo (havia mais uns tantos de opção, entre eles o dos cifrões...), com motivos egípcios, ia-se a bónus quando surgiam três ou mais livros, coisa que não estava a acontecer ao nosso jogador. O companheiro, sentado à sua esquerda, também era um dos frequentadores habituais do casino. Usava uma bengala. Raramente jogava. Andava na casa dos setenta e tais e tinha todo o ar de ser um daqueles agiotas que faziam a vida emprestando dinheiro aos desgraçados que já não conseguiam sair dos tentáculos do polvo. Via-o normalmente sentado em frente a uma das máquinas da Star Wars, mas de costas voltadas para o monitor. Era aí que lanchava, tomava o seu café, dormitava e assistia aos jogos da Sport TV.
Voltando ao nosso homem, um duro a jogar, parecia que nessa noite a sorte não estava com ele. A confirmação veio quando pouco depois se levantou e tomou a direção do balcão, mesmo em frente ao conjunto de quatro máquinas. Vi-o levantar dinheiro. Logo a seguir voltou à máquina. Meteu uma nota de cinquenta euros na máquinas e disse algumas palavras para o velho da bengala que traduzi como:
«Joga nessa máquina, Chico.»
Em resposta este acenou afirmativamente com a cabeça e recebeu das mãos do outro uma nota de cinquenta. Então era isso. Ia também jogar.
Mas qual era a sua intenção ao jogar fraco?
Minutos depois tive a resposta. Parou o jogo e disse qualquer coisa ao duro da história. Este também interrompeu as jogadas de 9x10 (dezoito euros por cada jogada numa máquina de vinte cêntimos a linha) e ficaram a cochichar. Por coincidência ou não, passava em frente na altura um mecânico. Bastou um simples gesto do velho para este se dirigir a eles.
Sentado na minha cadeira giratória e jogando pausadamente, estava mais em cima do jogo do outro do que no meu.
O mecânico ouviu-os com atenção e, quando se calaram, retirou a caixa preta da máquina onde o velho jogava e levou-a consigo.
Primeiro acontecimento insólito porque, aparentemente, não havia nada de anormal na máquina do velho. Quanto muito tinha jogado uma dúzia de vezes e não me pareceu que tivesse ocorrido qualquer avaria. Entretanto o outro continuou a jogar em alto risco.
Voltou pouco depois e repetiu a operação em mais duas máquinas, restando apenas uma máquina com a caixa. Não queria acreditar no que viram os meus olhos. E o mais estranho de tudo é que a máquina onde o jogador investia dezoito euros por cada toque na tecla de reapostar fora a única que tinha ficado com a caixa. Uma cena surrealista, para não dizer outra coisa mais acutilante. Aquilo não podia estar a acontecer!
O curioso é que o homem levantou-se para ir levantar mais dinheiro. Apesar da aparente ajuda do mecânico, a coisa continuava a correr-lhe mal. Pelas pancadas secas nas teclas, agora mais vigorosas, via-se que estava exasperado, pelo que receei pela integridade da máquina.
Mesmo assim não resultava?
Eu tinha deixado de jogar e seguia com atenção o que se passava na minha frente a pouco mais de cinco metros. Passados vinte minutos o mecânico voltou e pôs as três caixas no sítio e foi-se embora sem uma palavra, ficando para mim tudo muito mais estranho. Entretanto o jogador continuava a jogar forte e a perder. Só o bónus o podia salvar. Com a máquina fechada tudo levava a crer que desta vez, contra o que era hábito, não se ia safar. Por isso, resolvi abandonar o local e ir para os lados do Fort Knox. Também se passava aí muita coisa estranha que precisava de ser investigada, como, por exemplo, o caso do homem do rosto largo.
Perdi pouco tempo porque o nosso homem não estava presente e também não me apetecia jogar. Aliás, precisava de ter muito cuidado porque a minha teoria da conspiração dizia-me que fazia parte da lista negra e assim, tudo o que tentasse no jogo para obter algum rendimento, era de imediato bloqueado.
Resolvi voltar à zona das máquinas de vinte cêntimos e constatei que eles já não estavam presentes no local. Por um descargo de consciência aproximei-me mais e ainda bem que o fiz. Afinal o jogador e o velho estavam agora na máquina em oposição àquela onde este último jogara uma dúzia de vezes. E o que via era elucidativo. Tinha entrado no bónus e as coisas corriam bem. Jogando com um fator multiplicativo dez e, em virtude do bónus oferecer um fator multiplicativo três, significava que cada aposta premiada beneficiava de um fator multiplicativo trinta.
Procurando não dar nas vistas, segui a curta distância o evoluir do jogo. Os três livros apareceram no decorrer do bónus ainda por mais duas vezes. Com tal ocorrência certamente que o homem passava num ápice de vencido a vencedor.
Não ia esquecer-me desta noite.
As histórias de Mário voltam a passar pelos mesmos terrenos perigosos de ontem. É um déjà vu mais detalhado, pelo que o autor deixa um advertência que funciona como um sistema de segurança para o que der e vier. Continuam a ser tal como as viveu, como lhe foram contadas, ou como as criou. E uma coisa é certa: o que viram os seus olhos, às vezes tem tanto de fictício como a Branca de Neve não ser prima dos sete anões...
Como de costume as três Cleopatras estavam ocupadas. Sem dúvida que eram as máquinas mais pretendidas. E havia motivos para tal. O software era mesmo do outro mundo. Em caso extremo essas máquinas dialogavam connosco e, nesses momentos, levavam-nos quase sempre pela certa. Não se podia estar muito tempo numa dessas máquinas, mas a atração era fatal. Uma espécie de destino a cumprir, o facto de não saber deixar a máquina no momento certo.
Coloquei-me a uma distância razoável do trio das Cleopatras para não ser considerado abutre pelos jogadores.
Reparei no homem que jogava na Cleopatra 1. O toque seco na tecla branca de reapostar lembrava-me alguém e pensei de imediato que não era possível. Por certo estava a fazer uma grande confusão.
«Já reparaste no homem que joga na primeira Cleopatra?» perguntei.
«É curioso!»
Ela pensava o mesmo que eu.
«O cabelo está diferente. Muito liso e comprido atrás.»
«Parece postiço» argumentou. «Mas aquele levantar de braço e o toque seco na tecla...»
«Vou aproximar-me mais.»
Ato contínuo dei dois passos e vi-o de perfil.
Fiquei de novo ao lado dela.
«Tenho os pêlos eriçados e não é caso para menos.»
«Então?»
«É mesmo ele!»
«Não pode ser! O homem está morto. Ouvi a conversa que as outras fizeram com a mulher dele.»
Sugeri que fôssemos verificar. Entretanto, como que por milagre, tinham vagado quase ao mesmo tempo as outras duas máquinas.
A minha companheira ficou ao lado dele e eu na outra máquina.
«É mesmo!» sussurrou.
Jogava a vinte e cinco linhas e parecia que o jogo não lhe corria bem. A confirmar a suposição ouvi alguns palavrões após cada batimento na tecla. Parecia revoltado com a falta de jogo. Quanto ao nosso jogo também não estava a correr de feição. A sua querida Cleopatra 3 só dava para equilibrar o jogo.
O bónus surgiu. Resultado? Nada de especial. Nós também fomos ao bónus. As máquinas não estavam de feição.
Teve mais dois ou três bónus e os resultados voltaram a ser fracos. O homem estava mesmo zangado.
«Queres mudar comigo?»
Nunca consegui dizer que não à minha companheira de jogo. E, neste caso, podia observar melhor o homem. Estava abatido, sem o vigor dos outros tempos. O rosto menos largo, mais magro. Os mesmos óculos. Talvez a ausência de cabelo disfarçada com o postiço. O levantar caraterístico do braço direito quando ia ao bónus, mas nada de bater no vidro com o dedo onde hipoteticamente tinha o anel de rubi. Aliás, o homem não tinha qualquer anel nos dedos, tanto na mão direita como na esquerda. Estes estavam manchados. Pela certa uma doença de pele.
«Mas... não está morto?»
Voltou-se para mim. Em boa verdade não lhe tinha perguntado nada. Talvez tivesse adivinhado o meu pensamento. Talvez fosse um fantasma.
A mudança de máquina fez-me mal. Comecei a perder. Caso curioso, o homem estava agora mais calmo, calado, porventura absorto nos seus pensamentos. Portanto, nada de palavrões. Mas que estava indisposto com a máquina, lá isso estava.
Então aconteceu um caso inédito numa fase em que os créditos tinham chegado a zero. Desistiu de jogar.
«Ruim até ao fim!» exclamou, olhando para mim.
Afastou-se e fiquei a pensar que era a primeira vez que via a Cleopatra vencer aquele homem. Não era a sua preferida, mas para o caso tanto fazia. Ele levava de vencida qualquer máquina do Fort Knox. Quebrava-se assim o mito do homem do rosto largo que eu supunha chamar-se Leonardo. Aquilo que podia ter acontecido aconteceu mesmo. Afinal o nosso homem estava vivo.
Quando decidi dar-lhe vida em mais uma das minhas histórias, será que alguém me transmitiu a notícia daquilo que seria aos meus olhos no dia seguinte um facto consumado?
Estavam de volta os tempos dos fenómenos paranormais, ou aconteceu apenas um caso isolado de premonição?
Quanto à notícia da sua suposta morte, talvez que tivesse havido um mal entendido. A viúva a que se referira a minha companheira de jogo era outra, de outro morto que não ele, Leonardo, que estava vivinho da costa. Talvez que o seu afastamento se devesse a uma doença prolongada em que foi submetido a um tratamento radical que lhe provocou a queda do cabelo.
Bem-vindo ao clube dos vivos, Leonardo, campeão dos campeões dos jogos de azar. Espero que voltes mais vezes ao casino e recuperes o esplendor dos outros tempos. Amém.
E se tivesse acontecido de outra forma o reencontro com o homem do rosto largo?
Era uma coisa incrível ter o presumível morto na minha frente.
Vi-o antes que me visse. A apresentar a sua prova de vida e eu, boquiaberto, a não querer acreditar.
«Mas... não está morto, senhor Leonardo?»
Pergunta parecida com esta:
«O seu marido como está? Continua morto, não é verdade?»
Leonardo limitou-se a sorrir.
«Desculpe lá, senhor Leonardo.»
«Não faz mal. Havia de ver a sua cara. Parecia que acabava de ter uma assombração.»
E não era caso para menos.
«Pois foi. Correu por aí o boato que senhor tinha morrido. Afinal, ainda bem que está vivo e bem vivo.»
«Sim. Como a sardinha. Mas fui eu que indiretamente espalhei o boato. Convinha-me, sabe?»
«Não sei, não.»
«Ah pois.»
«Mas passou-se alguma coisa?»
«Nada de especial. Simplesmente apeteceu-me.»
Gosto estranho, confesso. Havia qualquer coisa nebulosa que ele queria esconder. Ah! Já sabia. Constou-lhe que suspeitavam dele e ausentou-se. Talvez o amigo que lhe guardava a máquina.
«Desculpe a curiosidade. Esteve fora do país?»
«Costumo ir todos os anos a Las Vegas a um campeonato de póquer. Sou um jogador profissional.»
«Quem diria? Os prémios são bons?»
«Nem imagina!»
«E teve tempo para dar umas bicadas nas máquinas?»
«Há sempre tempo para tudo.»
Podia ter acontecido assim:
«Viva, senhor Leonardo. Seja bem aparecido.»
«Muito obrigado. Constou por aqui que eu tinha morrido.»
«É verdade. Mas está bem vivo. E pelo que vejo, continua a dominar a sua Cleopatra preferida.»
Fez com o braço direito o gesto largo da ida ao bónus.
«A minha bela amante, salvo seja. Exato. É como está a ver. Mas podia dar mais qualquer coisa esta semítica.»
«Como de costume sempre insatisfeito. Mas olhe que ela sentiu saudades suas. Não voltou a ser a mesma. Eu que o diga.»
«Tem perdido?»
«Alguma coisa. É o preço de gostar de jogar nestas máquinas. Os Unicorn dão mais hipóteses quando se acerta em cheio. Três cavalos e dois leões é o máximo. Já tirei um jackpot há três anos. Ganhei pouco porque tive azar nas dobras.»
«Estava a jogar a quanto?»
«A setenta e cinco créditos. Ganhei cerca de mil e trezentos euros.»
«Foi pena. De facto podia ter sido mais do dobro. É uma oportunidade rara fazer três cavalos e dois leões. Tem razão quando refere o jogo dos Unicorn. Mas não se pode fugir a uma atração fatal como esta, não é?»
Enquanto premia ritmadamente a tecla de reapostar referiu-se outra vez ao boato da sua morte que se espalhou no Fort Knox. De certa forma a culpa foi sua, admitiu.
«A história é um pouco complicada. O meu amigo está disposto a ouvi-la?»
«Claro que estou.»
Entretanto assisti ao seu gesto triunfal e exuberante de ir ao bónus.
«Vamos ver o que vai dar. Estou a jogar a cento e vinte cinco.»
Bem vi. Por sorte tinha mudado no momento de cinquenta créditos para cento e cinquenta.
Fez uma pausa na história e assistimos ao desenrolar do bónus.
«Dobrou!» exclamei, entusiasmado, como se estivesse a ser eu o beneficiado.
Mais quinze jogos grátis. Continuou, enquanto o bónus se desenrolava.
«Entretanto comecei a jogar nas slots, a estudá-las, tentando tirar o melhor partido delas. Conforme disse há pouco, não jogo por vício mas para tentar ganhar. Sempre, se possível.»
«O que é difícil.»
«Sim?»
«Ganhar.»
«Não tanto assim. Requer atenção, calculismo e frieza. Apenas isso.»
«Só?»
Pareceu ignorar a minha pergunta irónica.
«Está bem, abelha» pensei. «É uma coisa complicada parar o jogo quando se está ganhando. Nem sempre se consegue.»
Eram pontos de vista diferentes.
«Ganhei cerca de duzentos euros quando joguei pela primeira vez nas Cleopatras e fiquei logo fã delas. Podia ter sido fatal porque voltei ao casino no dia seguinte e perdi. Mas tinha a sorte pelo meu lado e, com o passar do tempo, fui ganhando mais do que perdia. Acabei por encontrar uma tática que o meu amigo Mário já conhece, visto que joga com frequência ao meu lado e julgo que é um bom observador.»
«Pois conheço a tática. O Leonardo tem sempre êxito. Boas linhas. Bons créditos no bónus. Frequentes idas ao cofre, algumas com ouro e platina. Mas comigo o método pega poucas vezes. Se jogasse forte como o Leonardo joga tinha que ir pedir para a porta da igreja.»
Riu-se.
«Conforme sabe não ultrapasso os cento e vinte cinco créditos. E tome atenção que começo sempre a jogar a vinte e cinco.»
«A tomar o pulso à máquina. Compreendo.»
«Pois. Agora deve estar curioso em saber porque ganho quase sempre.»
«Quase sempre ou sempre?» perguntei, num sussurro.
«Sim, estou muito curioso. Mas antes queria perguntar-lhe uma coisa que muito me espanta: como consegue ter disponível a sua máquina preferida?»
Fez o habitual gesto largo com os braços como quem queria dizer que a minha pergunta tinha resposta fácil.
«Muito simples, meu amigo, Tenho um amigo viciado no jogo a quem dou umas gratificações. Esse fulano coloca-se na primeira fila encostado à porta do casino, minutos antes de serem abertas as portas. Depois é só correr e tomar de assalto a minha querida máquina.»
«Foi o que pensei. Mas a segunda pergunta é mais complicada. Digamos, impertinente.»
«Sou todo ouvidos.»
Fiz um compasso de espera tentando criar um momento de suspense.
«Como consegue ganhar sempre?»
Tamborilou com os dedos junto às teclas de aposta máxima e de reapostar. Depois, ajeitou uma madeixa que lhe caía para a testa. Em boa verdade, Leonardo tinha uma cabeleira farta para a idade e sempre bem penteada, com ondulações.
«Deve ter uma ideia de quanto ganho por dia, não tem?»
Pois tinha. O Leonardo começava com dois mil e quinhentos créditos, jogava de início a vinte e cinco e cinquenta créditos, ia alimentando a máquina com notas de vinte euros e subindo a parada até aos cento e vinte cinco créditos. Depois fazia uma espécie de carrossel, com subidas e descidas nas apostas. A partir dos quinze mil créditos deixava de alimentar a máquina e a subida continuava até níveis de sessenta mil a oitenta mil créditos. Aí sacava o ticket. Devia ganhar em média mil euros cada vez que ia jogar ao casino.
«Claro que tenho uma ideia. Mas só não entendo uma coisa…»
«Sim?»
«Afinal como consegue ganhar sempre?»
Julguei que tinha encostado às cordas o Leonardo.
«Tem algum palpite?»
«Devo atacar forte?» pensei.
«Talvez tenha um conhecimento cá dentro e divida com ele os lucros. Ou, talvez um objeto que controle a máquina a partir de uma série boa. Ou então consegue bloquear a série em questão durante um tempo suficiente para tirar o lucro que costuma tirar.»
«Em primeiro lugar não divido os meus lucros com ninguém. A ser assim, o lucro reduzia-se drasticamente.»
«Então...?, sempre achei que o meu amigo ia ao bónus com frequência exagerada. Isto em comparação com os outros que apostam o mesmo que o Leonardo.»
Lembrei-me de uma tarde em que ele teve que abandonar de repente a sua máquina e tomei o seu lugar. Até que a dita máquina fechasse ainda ganhei uns bons euros.
«O seu pensamento é lógico. Então em que está a pensar?»
Não respondi. Fiquei a olhar para ele. Sabia muito bem que estava a pensar na segunda hipótese.
Estendeu a mão direita na minha direção. O anel que tinha no dedo anelar encheu-me o olho. Não o anel. Sim a pedra vermelha.
«Parece um rubi.»
«E é.»
«Mas custou-lhe uma pipa de massa!»
«Sabe uma coisa: o casino já pagou umas tantas pedras destas.»
Não estava a compreender.
«Acredito. Mas que tem esse anel para o caso?»
Como resposta tirou o anel do dedo anelar e passou-mo para as mãos. Pude observá-lo melhor. Havia qualquer coisa estranha no interior do rubi.
«Que lhe parece?»
«Não sei. Vejo uma inclusão. À primeira vista desvaloriza o rubi. É o que me parece.»
«É certo. E se lhe disser o que é essa inclusão?»
«Se é o que penso, está tudo explicado.»
«E o que é que pensa? Aí temos outra vez o cofre!»
Ficou a dez pontos do ouro.
«Bom. Talvez seja a solução para as minhas dúvidas.»
«Pois é. Esta inclusão que está a ver não passa de magnetite disfarçada com uma capa quase ao tom do rubi.»
Passou-me pela cabeça uma ideia louca. Quando saíam dois faraós ele costumava estender a mão direita na direção do monitor, dando com o anel uma pancada seca no vidro. Resultando: parava com frequência um terceiro faraó na quarta ou quinta coluna. Assim se justificava que tivesse muitas vezes bónus em apostas de cento e vinte e cinco.
«Bem engendrado.»
«Já adivinhou a cena. A inclusão de magnetite travava as duas últimas colunas. E eu estava atento à passagem dos faraós.»
«Empresta-me o seu anel?»
Sorriu.
«Estou a brincar, meu amigo. Mas até dava jeito, confesso.»
Fez um gesto para tirar o anel do dedo.
«Quer mesmo?»
«Grato. Claro que não. Mas ainda uma terceira pergunta...»
«Sim?»
«Afinal porque se ausentou e lançou o boato da sua morte? Perdeu um rendimento certo nestes meses em que esteve ausente.»
«Pois foi. Mas há mais marés que marinheiros. A partir de uma certa altura senti-me observado. Creio que a minha querida Cleopatra que tanto estimo saiu fora das normas estatísticas. Retirei-me por uns tempos e agora estou de regresso só para ver como param as modas. Se as coisas não estiverem como eu gosto, então saio de cena.»
«Compreendo. Como está a máquina?»
«Parece normal. Até agora ainda não me chatearam. Pelo sim pelo não, vou continuar por uns tempos, mas baixando os lucros.»
«Oxalá.»
«Porquê esse ar de dúvida? Não vai denunciar-me, pois não?»
«Claro que não. Mas há uma coisa abominável que o Leonardo ainda não sabe.»
«Que coisa?»
Baixei o tom da voz.
«Além de câmaras, eles têm escutas nas máquinas. Provavelmente, se ouviram a nossa conversa, podem já vir a caminho...»
«Não me diga!»
Baixei mais o tom da voz.
«É o que dizem por aí.»
«Então vou bater em retirada. Desta vez morro por mais uns seis meses.»
Levantou-se.
«Deus lhe dê muitos anos de vida.» Sorri e rematei: «Nessa segunda vida, claro.»
«Obrigado, meu amigo. Parto, mas vou deixar uma recordação para si.»
«Não me diga!»
Premiu um botão à esquerda para retirar o ticket.
«Este anel é para si. Mas a pedra não é verdadeira. Aproveite bem o que está incluso nela.»
«Obrigado, mas não posso aceitar.»
«Porquê, meu amigo?»
«Porque eles já devem vir a caminho.»
«Ah sim.»
Num gesto rápido pôs o anel no bolso direito do meu casaco.
«Desta forma ou de outra gostava de o ter ajudado. Cuide bem de si e não deixe de jogar à profissional. Jogar para ganhar e não jogar por jogar.»
Apertámos as mãos e o mítico homem do rosto largo saiu de cena.
O tempo passou e não voltei a ver no casino o meu amigo Leonardo.
Quando me lembro dele, vem-me à ideia uma coisa muito simples. O que parece ser não é e o que não é parece ser.
Ah!, já me esquecia. E o anel?
Usei-o durante uns tempos, seguindo a tática do seu antigo dono. Quanto ao resultado, nicles, bofes, batatoides.
(1) Estamos no tempo de um certo primeiro ministro megalómano. Já sei que adivinharam quem era.

Sem comentários:
Enviar um comentário