domingo, 13 de outubro de 2024

O exorcista de si


Em tempos, por volta de 2007, tive um blogue intitulado "Histórias no Casino Novo". Por razões que não interessa explicar, resolvi passar todas as histórias para o blogue principal, incluindo as da maioria dos meus outros blogues. Mas, se algum dia me arrepender, voltará tudo à estaca zero. De qualquer fora, elas continuam a ter existência, retratando algumas passagens da vida de Mário no casino e não só. Creio que ele não me explicou porque ficou em suspenso a última história e talvez nunca venha a explicar. É lá com ele, naturalmente dono e senhor da sua vida e das verdades e não verdades que passaram e continuam a passar nos seus olhos no casino.

Ainda, uma breve explicação para a renitência de Mário em não me dar elementos para a conclusão da tal última história a que dei o nome de "Os jogadores de bluff". Ou melhor, uma tentativa de explicação visto que ele não me dá os dados, justificando-se que nestes últimos tempos a inspiração tem estado ausente, omitindo, no entanto, o verdadeiro motivo. Uma paixão que vem dos seus doze anitos, daquelas que deram forte e perduraram com o passar dos tempos. Uma paixão que vem contrariar a frase "paixão leva-as o vento". A filatelia.
«Mas o te prende desta vez na coleção de selos que te faz perder muito tempo?»
«Como sabes que ando embrenhado nos selos?»
«Disse-me um dedo de adivinha.»
«Não sejas parvo. Bom, desisto. Eu e um amigo temos um projeto de classificação de "Ceres". Há muitas variedades para serem analisadas, não falando nos erros.»
«Erros?»
«Sim. É corrente nesse tipo de selos que já têm mais que um século. Pelo menos os primeiros a serem emitidos. Mas não quero aborrecer-te com estas obsessões pelos selos.»
Previ que aquela fase ia durar mais algum tempo.
«Então, deixo a segunda parte da história em suspenso e avanço para aquela que me contaste há dias?»
«Mas não sabes o fim. É um caso antigo muito triste que não te vou contar. Quanto à outra história também fica nas tuas mãos.»
Por vezes o Mário tinha daquelas coisas.
«Deixa por minha conta.»
«Tens já alguns dados que vão dar-te espaço de manobra. Boa sorte.»
«Bem preciso.»

Naquela noite decidiu que ia jogar numa das três Cleopatras do Fort Knox. Gostava de jogar nessas máquinas, embora soubesse que só as máquinas do Unicorn Enchanted podiam dar, num raro momento de sorte para o jogador, um bom prémio. Mas ele não andava atrás dos prémios. Ou dizia que não andava.
A máquina não estava má de todo, embora "comesse" sistematicamente os prémios que ia retribuindo. Digamos que dava apenas para entreter.
Não se fez velho porque lembrou-se do homem que jogava em quatro máquinas da zona dos cifrões e nas dos quatro jogos, um deles da sua preferência, os aviões. Sem se aperceber, o homem estava a cair na boca do lobo. Pelo que tinha visto e também pelas informações do Francisco, sabia como acabava a sua tentativa ambiciosa de enriquecer. A lógica dizia que nunca daria bons resultados aquela forma de jogar, apesar do aparente êxito dos primeiros dias. O sistema habitualmente instalado era implacável. A não ser que...
Seria que o nosso homem se entregava a uma "lavagem" de dinheiro? Era lá com ele. Mais um menos um...
Carregou no botão para retirar o ticket, levantou-se e despediu-se mentalmente duma máquina não alinhada com os seus desígnios.
«Adeus.»
«O senhor falava com quem?»
Virou-se para trás.
«Ah... é o amigo Urbino. Esta máquina não está boa nem está má.»
Apeteceu-lhe dizer "antes pelo contrário". Ficou-se por um olhar interrogativo, apertando a sua pele de rã, segundo aprendera no liceu, nua e viscosa. Ou estava nervoso ou então sofria de hipertiroidismo. Mas não. O Urbino era um homem forte, a atirar para o gordo e os seus gestos nada tinham de brusco.
«Como gosta de jogar alto, vou dar-lhe uma dica. Já experimentou as máquinas dos cifrões
O que lhe foi dizer!
«Eu só gosto das Cleopatras
«Pronto, pronto.»
Aquele homem estava com os azeites, mas não quis saber porquê. Até porque não era com ele. Só não queria que os azeites aquecessem porque para fatalidade ruim já bastava o que lhe estava a acontecer há anos. Não sabia como tinha acontecido. Bastava pensar na frase "primeiro estranha-se e depois entranha-se".
«Albarde-se o burro à vontade do dono...» Pensou.
«Disse alguma coisa?»
«Não, meu amigo.»
«Pois eu vou até lá.» 
«Olhe só uma coisa…»
O homem já não o ouviu. Pouco depois estava sentado em frente à máquina e esperava que a nota de cinquenta euros que enfiara na ranhura fosse convertida em créditos.
«Não vale a pena ficar a ver. Já sei o que vai acontecer.»
O comportamento da máquina, incluída em todas que seguiam a norma do jogo aleatório, era sempre o mesmo. Jogava a cento e vinte e cinco créditos cada vez que premia a tecla de reapostar e acumulava créditos que, rapidamente, ultrapassavam os 50000 (mil euros). Por essa altura devia mudar drasticamente de estratégia. Mas não. Nada de tirar o ticket e pôr outra nota.
Como um touro encostado às tábuas, avançava de repente para a aposta máxima. Dez euros cada batida. Uma barbaridade só própria de uma pessoa que se atirava às feras. Era o momento do ou tudo ou nada. Só tirava o ticket acima dos cem mil créditos. Um erro fatal.
Mário já ia a caminho das máquinas encostadas à parede oposta.
«Aquele Urbino é mesmo masoquista. Ou pouco inteligente.» Pensou. «Até parece que tem gosto em perder.»
O curioso no meio de tudo isto é que se empenhava muito em dar conselhos aos outros jogadores, fazendo lembrar os médicos fumadores que metiam medo aos pacientes sobre os malefícios do tabaco e que fumavam que nem chaminés.
As máquinas dos cifrões não o seduziram porque estava lá o tal maduro que jogava em quatro ou mais.
Resolveu voltar ao Fort Knox.
«Curioso!»
O Urbino não estava nas Cleopatras.
«Então...»
Queria entender. O homem tinha-as trocado por um Unicorn.
Para quê a conversa fiada do amor pelas Cleopatras?
«Que se passa com o Urbino?» perguntou ao Vítor, que estava próximo.»

O Vítor era o preparador e guardador de máquinas para certos utentes. Ganhava bons prémios jogando muito baixo, o que parecia ser um absurdo. Além disso, os "patos" que "recrutava" para as máquinas e ofereciam milhares aos cofres do casino e do Estado davam chorudas gratificações a este fiel utente de jogo baixo. Mário estava convicto que o Vítor era colaborador do casino. Um dos mais de trinta que tinham missões específicas no casino, segundo o Francisco.  
«Não sei, amigo Mário. Ele pediu-me a máquina e eu dei-lhe. Aquele homem não tem juízo. Não há viciados de tão longa duração como este.»

«E beneméritos do casino. Chega a ter mil euros na máquina e não tira o maldito ticket
«Albarde-se o burro…»
Claro. Tirou as chaves de casa que estavam sobre a ranhura da máquina treze e deixou que o Urbino se sentasse. Ou ele não fosse o Vítor, guardador de máquinas. A esse respeito as pessoas protestavam e os fiscais assobiavam para o lado. Não sabia porquê, mas os próprios chefes de sala não tomavam medidas que se impunham. Mas um dia tudo teve um fim e o Vítor acabou por ser expulso do casino devido a um ticket que sacou indevidamente de uma máquina.

Um homem que conhecia todos os segredos e mais alguns deixar-se cair numa ratoeira?
Mário tinha outra opinião. O Vítor fora apenas transferido para outro casino do grupo.
«E o Urbino já foi ao ouro.» Informou o Vítor.
«Está a jogar a quinhentos.»

«A aposta máxima!» pensou. 
«Com sessenta mil créditos não tira o ticket. Daqui a pouco são favas contadas. O homem não tem dois dedos de testa.» 
«É o costume.» 
E assim foi. Minutos depois os mil e não sei quantos euros voaram. Tudo rápido. Tudo natural para vítimas como ele. 
Coçou a cabeça e meteu outra nota de cinquenta.
Mário queria entender o que ia naquela cabeça.
E mais uma. E assim sucessivamente, até que saiu da máquina, algo alucinado. 
«Devia ter tirado o ticket...» Comentou. 
Olhou frontalmente para o Mário, tão frontalmente que este pensou que ia ser injuriado. O homem transpirava por todos os poros e estava lívido. Acabou por dizer: 
«Tem razão.»
Estavam muito próximos e Mário descobriu a proximidade do álcool. Um fósforo aceso e os dois iam pelos ares. E mais outros nas proximidades.
«Vou confessar-lhe uma coisa. Pertenço a uma associação espírita há mais de dez anos e sei como são essas coisas. Mas não posso evitar.»
Mário ficou suspenso. Não entendia o que tinha a ver ele ser espírita com o que se passava constantemente no jogo naquele modo estúpido de jogar. Nunca via aquele homem ganhar porque ele e o casino pareciam estar em sintonia. O casino dava e depois tirava. Ele comportava-se como um árabe a ver arder a casa e a acreditar que já estava escrito no destino e não valia a pena atacar o fogo.
Com Mário o caso era simples. Se começasse a jogar a cento e vinte e cinco créditos numa máquina, por exemplo do Fort Knox, o resultado era sempre o mesmo. A máquina engolia os créditos num ápice. Por isso nunca insistia em jogar alto. Mas com o Urbino era diferente. A máquina começava logo a largar créditos. Comportamento estranho de software. Como se a máquina tivesse inteligência para as suas séries agirem como agiam para a pessoa que se destinavam! 
O jogador Mário tiraria partido (quando tirava) das bonificações da máquina e o Urbino ficava sempre à espera de mais. Sempre mais. E depois dava no que dava. 
«Devia ter tirado o ticket…» 
«Tem toda a razão.»
«E...?»
«Não consigo explicar. Senti uma coisa que me prendeu a perna à cadeira. E não entendi que era um sinal dos espíritos para sair da máquina.»
«Antes pelo contrário» disse Mário. «Se a perna estava presa à cadeira era para não o deixar sair, percebe?»
«Não é bem assim. Vou explicar melhor. Senti um arrepio percorrer-me o corpo. Eles convidavam-me para continuar. A perna presa é que era o sinal para sair da máquina. Ela estava boa. E eu queria aproveitar porque pensava que ia dar mais, Mas enganei-me. De um momento para o outro…»
«Eles?» 
«Acredita na besta? No 666...?»
«E o meu amigo?»
«Sim. E sei como fazê-lo sair de mim. Mas não pode ser aqui.»
Em boa verdade o casino era o pior sítio para o Urbino fazer exorcismo de si. No casino não havia um "666". Havia muitos. Belzebusanticristosmafarricos, mulas sem cabeça, satãs. Um por todos e todos por um. Como D'Artagnan, Athos, Porthos e Aramis. Mas estes pelas melhores razões. 
«Para a outra vez, quando acontecer o mesmo, faça pressão para retirar o ticket
«Acredite que faço, embora não vá gostar.»
«Porquê?»
«Não o conheço, mas julgo que sei quais são as suas reações.»
«É capaz de ter razão. Eu sou assim. Ou melhor, eles querem que seja assim. Sou um estúpido. Um cretino. Um burro.»
Tal e qual. Tinha razão.
«Há quanto tempo joga?»
«Ui! Há muito. E sabe que uma coisa? Cheguei a ter de lucro na casino Estoril mais de cem mil contos. Sou um jogador compulsivo da porra…»
«E tudo o vento levou.» Pensou. 
«Vamos beber qualquer coisa?» 
Confirmação. Teria dito a dona Ima. 
«Obrigado, amigo Urbano. Agora não.» 
«Urbino.» 
«Desculpe. Em tempos conheci uma pessoa que se chamava Urbano» mentiu.
«Boa pessoa como o senhor.»
«Eu nem sequer sou bom para mim. Dei cabo da minha vida. Este maldito vício há de acabar comigo. Sabe que no casino Estoril davam um bilhete de comboio aos jogadores falidos para regressarem a Lisboa?»
«Por acaso ouvi falar nisso.»
«Entretanto uns tantos não o utilizaram. Fizeram uma viagem mais curta, daquelas que não têm retorno.» 
«Compreendo. Atiraram-se para debaixo do comboio. Amigo Urbino. Não está a pensar em merdas dessas, pois não?»
Sorriu. Um sorriso estranho. 
«Vou para aquela Cleopatra.» 
«Não ultrapasse os cento e vinte cinco.» 
«Ok.»
À quinta jogada já estava no bónus. Mário assistiu mais uma vez ao ritual que antecedia a ida ao bónus. Uma espécie de benzeduras feitas com a mão direita.
Cruzes intermináveis traçadas no ecrã, num e noutro sentido.
Mário já tinha dado conta noutras alturas e ficara sem entender o motivo daquele ritual no jogo. Agora, com mais alguns dados, talvez que o Urbino estivesse a exorcizar-se, chamando os bons espíritos, aqueles que certamente não eram adeptos do jogo. Má escolha para o jogo. Os bons espíritos só queriam que ele caísse em si e desistisse de vez.
Como era de esperar, não teve a mínima hipótese. Após meia dúzia de notas de cinquenta, levantou-se e foi ao encontro de Mário.
«Por hoje acabou. Não trouxe cartões.»
«Ainda bem.»
«O senhor é todo certinho e direitinho.»
«Faço por isso.» Admitiu. Mas o meu objetivo é outro.» Pensou.
«Já jogo há muito. No Casino Estoril cheguei a ter de lucro mais de cem mil contos e perdi tudo, conforme já disse.»
Ou deu a entender.
«Nem imagina a falta que esse dinheiro me faz agora. Era uma alegria quando chegava a casa e mostrava à minha mulher o dinheiro que tinha ganho. Agora só me apetece desaparecer.» 
«Não diga isso.»
Veio-lhe à memória o caso dos bilhetes de comboio. 
«Como vou encará-la e dizer-lhe que perdi todo este dinheiro que tanta falta nos faz?» 
«É complicado. Mas devia ter pensado antes.»
«Pois é. Não consigo resistir a este maldito vício. Quando ganho juízo?»
Mário diria: 
«Até ao fim do fim.» 
«Tudo depende da sua força de vontade. Evite vir cá.» 

«Pronto, Mário. Acabaste de ler a transcrição fiel da história passada no casino que me contaste do Urbano. Acaba aqui?»
«Não. Sei o desfecho, mas…» 
«Mas?»
«Vai ser da tua responsabilidade. O que imaginares, não hesites em escrever.»
Admiti que podia enganar-me. Contudo, não lhe disse.

Mário entrou no casino quando passava já das dez. Por experiência própria, que vinha do tempo em que ele e o Raul frequentavam o casino com assiduidade, aprendera que havia um intervalo de tempo, das seis da tarde às dez da noite, que as máquinas eram ainda menos pródigas em retribuição de prémios.
«Está na hora sexual das máquinas. Antes que nos fo... (pi!), vamos jantar ao Centro. Depois vemos os computadores, etc e tal.» 
«Ok, Raul.»
Como de costume, logo à entrada, sentiu o odor indefinido, não só a fumo. Esse odor desvanecia-se para dar lugar a outro, agora um pouco perfumado, acompanhado do som ronronante das máquinas.
Não hesitou. O instinto dizia-lhe que devia experimentar o bloco de máquinas do lado nascente.
«E agora?»
Já estava em frente às máquinas do "Game of Money", mais vulgarmente designadas por cifrões.
Escolheu a sétima slot e introduziu na ranhura uma nota de dez euros.
«Vou jogar a sete.»
Sétima máquina e sete. Coincidência ou não, ao primeiro toque na tecla de reapostar foi ao bónus.
«Não posso acreditar!»
Mas a realidade estava à vista. Quatro sacos e um homem em linha valiam a módica quantia de quatrocentos e cinquenta euros. O resto do bónus foi pouco mais de trinta euros.
«Saca o ticket, Mário!»
Não ia seguir o exemplo do Urbino.
O Jacinto vivia doze horas num primeiro mundo e outras doze num segundo.
Ele, quando ia ao casino, dividia o tempo entre as máquinas dos cifrões e as do Fort Knox. De vez em quando passava por outras. Mas passava muitas horas a observar.
«A minha alma está parva! O Urbino outra vez a jogar nos cavalos...»
Curiosamente jogava a 25x2. Por certo que o dinheiro não abundava por ali.
Deixou de seguir o jogo do homem das benzeduras e sentou-se numa cadeira nas proximidades das Cleopatras
Velhos tempos em que jogava ao lado do homem do rosto largo!
Que seria feito dele?
Já o tinha "morto" uma vez e agora não ia "matá-lo" novamente.
«Olá, amigo Mário. Sabia que o "doutor maluco" ganhou ontem mais de onze mil euros na máquina onze?» 
«É uma novidade o que está a dizer-me, Vítor. Isto para ele são três ou quatro dias…»
«Ou menos. Eles sabem muito bem a quem dão os prémios.»
«Tu não tens razão de queixa.» Pensou. 
Logo de seguida começaram a ouvir aquilo que parecia ser um princípio de zanga.
«Não! Já disse que não e é não!»
Olhámos um para o outro. A cena insólita passava-se entre o Urbino e o Zé dedilhador. O primeiro tinha-se levantado e mostrava um ar humilde. O segundo, algo irritado, só dizia que não.
«Que se passa, Vítor?»
«Ora, o  está a dizer que já não empresta mais dinheiro ao Urbino e o outro teima em pedir-lhe.»
«Que grande bronca! O desgraçado não está dentro de si.»
«Já deu conta do hálito dele, amigo Mário?»
«Ah sim. Cheira a bebidas brancas que tresanda. Mas não é whisky
«Pois não. Acho que ele gosta de anis. Quanto ao resto, quem arranja boas camas nelas se deita.»
Qualquer coisa como isso. Um ligeiro desvio da voz corrente.
«E o  também não está a ficar bem na fotografia. Bem podiam ir conversar para um sítio recatado. A propósito, será verdade que ele empresta dinheiro? Estou a lembrar-me de um caso semelhante passado entre ele e o psiquiatra.»
Limitou-se a sorrir. Via-se que não queria adiantar mais. Uma reação natural. Talvez também precisasse dos "favores" do . A ser verdade o que se dizia à boca cheia sobre uma história de quartos alugados para ocasiões passageiras…
«Posso dar-lhe uma palavra?»
O homem transpirava abundantemente.
Vinha pedir-lhe dinheiro emprestado? 
«Diga, amigo Urbino.»
«Não é o que pensa.»
«Nem eu podia ajudá-lo dessa forma…»
«Eu sei. Aquele gajo... Mas adiante. Podemos falar em qualquer sítio?»
«Vamos lá para fora andar um pouco.»

«Urbino, porque não tirou o ticket dos mil e quinhentos euros?»
Estavam junto ao rio. Não havia vento. A temperatura agradável convidava a passear. Havia mais gente a percorrer o passadiço. Um ou outro ciclista. Uns tantos praticando a corrida, sem grande pressa. 
«Não consigo explicar. Sou um grande burro. Mas já não é a primeira vez que esta merda acontece.»
«Eu sei. É só por isso que lhe dão créditos a princípio.»
«Mas hoje perdi a cabeça ao insistir com aquele agiota. Sabia que ele não me emprestava mais e insisti. Estou envergonhado. Toda a gente deu por isso.»
«Não sei o que lhe diga. Só lhe posso dar um conselho. Afaste-se deste maldito inferno. Enquanto é tempo!»
«É bom de dizer. Não posso.»
«Como assim?»
«Não é só a ele que devo. Tenho que pagar outras dívidas. Para a próxima tiro o ticket a tempo.»
«Agora vou voltar ao casino e o meu amigo vai para junto dos seus.» Disse Mário.
«Não sou capaz de enfrentar a minha mulher. O dinheiro faz-nos tanta falta e eu ando a espatifá-lo no jogo! E um dia destes vou levar uma naifada.»
«Vai ver que consegue, Urbino. Uma naifada. Como assim?»
Não respondeu. Mário tentou adivinhar a força da tempestade interior que ia naquele desgraçado. Alguém, que não estava para graças, certamente já o tinha ameaçado. 
«São uns mafiosos lá do último piso. Emprestam com juros altos à cabeça. Não perdoam a quem não paga.»
Sabia. Já tivera uma conversa a esse respeito com uma inspetora. 
«Pague qualquer coisa e peça um adiamento. Mas não jogue mais. Por amor de Deus não jogue mais!»
«Ganhei milhares de contos no Casino Estoril e estoirei-os.» 
«Se pudesse, ajudava-o Urbino.»
«Eu sei. É um bom homem.»
«Não é bem assim.»
«Acredita em espíritos?»
Mário hesitou. A cena dos espíritos não lhe era querida em face do que lhe tinha acontecido nos tempos do deus menor. Felizmente que o pesadelo, que quase o fez enlouquecer, já passara. Agora fazer renascer fantasmas antigos, isso é que não fazia.
«Desculpe, não quero voltar a meter-me nessas alhadas.»
«Então já lidou com eles. Não tenha receio que eu sou esclarecido e sei como fazer as coisas sem perigo.»
«Quer chamar um espírito para o ajudar?»
«Sim. Mas preciso doutra pessoa. De um sensitivo. E o senhor é um deles.»
«Como assim?»
«Sei. Dá-me o seu contacto?»
«Não sei de cor o número e não trouxe o telemóvel» mentiu. «De qualquer forma não posso ajudá-lo.»
«Sei como fazê-lo sair de mim. Mas não pode ser aqui.»
Em boa verdade aquele era o pior sítio para o Urbino fazer exorcismo de si. No casino não havia um "666". Havia muitos. Belzebusanticristosmafarricos, mulas sem cabeça, satãs. E, principalmente, manipuladores de máquinas. 
«Está a insinuar que o jogo não é aleatório?» perguntou, uma vez a Mário, um chefe de sala. 
Lembrava-se perfeitamente. Foi numa passagem do ano em que as coisas correram mal. Mesmo muito mal. 
«Claro. Só quem não quiser ver...»
«Não se pode alterar o software, senhor!»
«Acha que não? E, por exemplo, substituir uma série por outra?» 
«Quem lhe falou disso?» 
«Alguém cá da casa.» 
«Ah!» 
«E até consigo detetar quando há uma mudança de série.»
«Como assim?»
Pareceu a Mário que o homem se tinha denunciado. Sabia até quando uma série acabava e outra começava, mas ficou-se por ali.
Voltando ao caso Urbino, Mário fechou a porta aos seus espíritos, decidindo ir pela via do egoísmo. Sabia o quanto lhe custara da última vez e não queria repetir.
Nunca chegou a saber se ele se exorcizou. 

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