quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Terry King e o momento de glória

   


Os momentos de glória, quaisquer que eles sejam, maiores ou menores, ficam para sempre na memória de quem passou por eles. Avaliando-os, têm diversos graus de importância para o homenageado e para as pessoas que o propuseram para um ato de homenagem. Falando desses momentos, o Mário sentiu-os na pele ao longo da vida, mas foi de uma forma diferente. Portanto, foram modestos os seus momentos de glória. Não arriscou a vida pelo próximo, nem fez uma descoberta comparável, por exemplo, à de Marie Curie. Longe disso. Foi sempre um homem vulgar de fato cinzento. Discreto. 

"Acabei em glória na chamada prova dos nove. Uma marcha final que tinha de tudo menos marcha. Digamos que foi a apoteose. E a dificuldade não estava só na extensão do percurso que perfazia dezassete quilómetros. Essa marcha, que não era marcha, teria foi feita sempre em passo de corrida e com traje de gala, fato de macaco, espingarda Mauser e botifarras. Um acréscimo insignificante de peso, diga-se ironicamente. 
Correram também com a nossa "nata" (ao todo vinte e seis garbosos soldados-cadetes, alguns dos quais não conseguiam saltar um muro de terceira categoria) os soldados milicianos do C.S.M., menos qualificados no ramo do ensino. No fundo era um despique que prometia algumas surpresas e acabou em grande deceção.
A princípio estava apreensivo, pois diziam cobras e lagartos desse trabalho de estrada. Para a preparação física que o alferes Braga nos tinha dado, muito provavelmente imposta pelas chefias, aquela marcha final comparava-se, usando uma metáfora, a um dos trabalhos de Hércules.
Optei por seguir no meio do pelotão. Esperava para ver o que ia acontecer lá à frente. 
Para começar tivemos um aperitivo. O alferes Braga resolveu puxar a frio e esfrangalhou logo o grupo. Bufei, algo desagradado. Com grande esforço cheguei-me à frente e consegui acompanhar o grupo principal. Sabia que na cauda seguia uma Morris levava uma vassoura bem à vista. Uma tentação sintomática. Teria em breve muitos clientes, principalmente os do meu curso. Os fracos e também os que fingiam de fracos. Toda esta horda de protegidos, filhos ou familiares de oficiais de altas patentes. onde eu era um caso isolado. 
Deixei de olhar para trás e dei mais atenção à corrida pois era perigoso perder o contacto com os da frente. O alferes controlava as operações, deixando-se ficar para trás com o fim de incentivar aqueles mais desanimados, os coxos 29-30, como o tenaz Valinho que enganou involuntariamente o comandante e recebeu um louvor, os menos coxos que pensavam no descanso que lhes proporcionava a Morris-vassoura, os ronhas e também os acidentados que tinham tropeçado nos altos ou nos baixos das irregularidades do terreno. Entretanto, à frente, aproveitava-se para refrear a corrida e conversar um pouco. Mas era sol de pouca dura. Logo o alferes chegava-se à frente e acelerava o ritmo da corrida. Maldito vaidoso aquele oficial do quadro!
Os quilómetros pesavam-me já nas pernas mas acreditava que ainda conseguia aguentar por mais algum tempo. Entretanto sucediam-se os esticões e eu respondia a todos cada vez com mais dificuldade. Só por teimosia não ficava para trás, pronto a ser recolhido pela sereia tentadora que era a Morris-vassoura.
Dei conta que só éramos seis. Cinco do C.S.M. e eu, a minha augusta, estúpida e teimosa pessoa que não quis entrar no carro-vassoura. Era só por orgulho que continuava naquele trabalho de estrada de dezassete quilómetros. Ou talvez porque havia pelo meio um pouco de revolta face à injustiça da minha classificação final.
«É o último quilómetro. Vamos ver quem tem canetas. Aguentem o esticão. Mostrem do que são capazes àquelas "Amélias" sem vergonha que desistiram!» gritou o alferes. 
Amaldiçoei-o e a todas as suas caganças. Talvez por isso fui buscar as últimas energias à raiva que sentia. Corria já sem sentir as pernas.
O homem queria chegar sozinho ou quê?
Suspirei de alívio. Já se via ao longe o pessoal da receção. Era o fim de uma corrida de loucos. Finalmente podia descansar.
«Bravo, Mário! O senhor esteve à altura. Por onde é que tem andado, que não o vi?»
Para o diabo as saudações do alferes que tinha sido atacado de cegueira. Não era o homem invisível do H. G. Welles. Estive sempre bem presente na sua frente. Mas sabia muito bem a que queria referir-se.
Depois, regressámos ao quartel no mesmo Morris- vassoura. O almoço foi bacalhau com batatas e couves. O bacalhau estava muito salgado. Acho que foi de propósito que o cozeram assim, porque obrigou-nos a ingerir muita água ao longo da tarde. Nesse dia, nada de vinho branco maduro ou verde tinto, este para os nortenhos. Não vi na mesa qualquer jarro.
Poucos dias depois foi o almoço de despedida com o alferes Braga, o oficial responsável pela nossa formação. Estavam presentes todos os seus "distintos" cadetes. Alguns deles, conforme referi atrás, nem sequer conseguiam saltar um muro de terceira categoria.
No breve discurso que encerrou o almoço, o alferes disse estar incomodado com a classificação que me deu e que considerou incompatível com as minhas aptidões físicas manifestadas. Mas mesmo que me subisse a classificação, acrescentou, teriam que ser tomadas em conta as aptidões na condução e aí eu estava em desvantagem com a maioria dos cadetes visto que estes tinham carta de condução e, portanto, muita experiência em conduzir veículos e também nos conhecimentos da mecânica.
Ao ouvir os elogios do meu formador, admiti que os merecia e que de facto em nada beneficiava na subida da classificação, pois o meu destino como militar por mais uns anos já estava traçado. Até porque em nada seria beliscado quanto à hipótese de ser mobilizado para a guerra do Ultramar. Era lógico que não, visto o último classificado do curso ser filho do major responsável pelas mobilizações e aquela fornada de futuros oficiais não seria "carne para canhão", nem vítima do rebentamento de uma ocasional mina anticarro. Sem mostrar no rosto a mínima emoção não deixei de apreciar os elogios do garboso alferes Braga que não se chamava Braga, por razões óbvias, bem como os nomes de vários camaradas, mencionados por mim durante a recruta e posteriormente, na Figueira da Foz e em Lisboa, na história Uma noite com o "666" (1).

E assim foi. Avançaram os sargentos "lateiros" já promovidos ao posto de sargento-ajudante. Já no Ultramar beneficiariam de nova promoção, desta vez a alferes. Afinal de contas, prestavam serviço ao país como militares, tendo subido progressivamente na carreira desde o posto de soldados-rasos. Santa tropa, portanto, para mim e para os restantes vinte e nove ex-cadetes, meus camaradas. Não esqueceria principalmente os bons tempos passados na Figueira da Foz e também em Lisboa, não fora a história  Uma noite com o "666" que podia, a dada altura, ter dado para o torto.

Teve também os seus momentos de glória como cantor, principalmente de fados de Coimbra. Mas limitou-se a cantar para os amigos e pouco mais, e os seus momentos ficaram por aí. Porquê? Porque era um vulgar homem de fato cinzento, portanto pouco ambicioso.

Recuando mais no tempo, quando frequentava a Escola Secundária da sua vila teve também o seu momento de glória como melhor goleador da escola, chegando a marcar onze ou treze golos num só jogo durante um campeonato passado no minúsculo pátio da escola. Esse campeonato nunca chegou ao fim, uma vez que os adeptos envolveram-se à pancada quando decorria um jogo considerado importante e o diretor deu fim ao mesmo. Como resultado, as taças, que já tinham sido adquiridas pela comissão de alunos organizadora do campeonato, foram devolvidas à precedência. Nunca mais houve jogos "oficiais" e os seus momentos de glória como futebolista "pré júnior" caíram por terra.

Terry King...
Os pequenos e insignificantes momentos de glória não ficaram por aqui.
Aconteceu já depois do "episódio" do serviço militar um momento inesperado, impensável no local onde aconteceu.
Não se recorda se foi no verão ou noutra estação. Um amigo convidou-o para jantar no Casino Estoril e assistir às variedades. Esse amigo era um inveterado jogador de roleta que tinha algumas influências que lhe proporcionaram uma mesa mesmo em cima do recinto dos espetáculos. 
Antes das variedades foi o jantar. Um jantar inesquecível pela negativa. Principalmente aquela batata enorme cuja "polpa" tinha sido substituída por um recheio quase intragável.
Mais tarde comentou com o seu amigo António Ildefonso... 


«Imagina só! Uma batata recheada com uma porra qualquer...»
«Coisa fina, amigo. Não estavas habituado a tais iguarias. E o recheio, ao menos era gostoso?»
«Comia-se. Nada de especial. Para piorar a coisa, faltava-lhe sabor. Sal a menos, percebes?»
«Estou a ver o filme. E não havia mais nada?»
«Achas que sim? O que me safou foram as entradas e a sobremesa.»
«Bom, por acaso não eras um excluído da high society que não sabia apreciar o divino?»
«Não gozes comigo.»
Bem lhes tinha recomendado o chefe dos croupiers que fossem jantar a Cascais e que depois voltassem para assistirem às variedades. E que não se preocupasse com a mesa.
Seguiu-se café e brandy, esta última bebida rejeitada pelo Mário. E, finalmente, as variedades. Como sempre, as coristas abriram o espetáculo. Muito certas, muito sorridentes, muito despidas. Pondo de parte a batata misteriosa estava tudo a correr ao seu gosto. Ainda bem que o amigo se lembrara de o convidar.
«Só queria que visses as coristas. Pernaltas, mas bonitas.»
«Não ias com elas aos figos, pois não, Mário?»
«Acho que não. Mas podia ir a outro lado...»

A certa altura sentiu-se observado pela irmã do amigo e tentou desviar a atenção para outra parte do salão de festas que não o centro das atenções gerais. E logo a seguir lançou-lhe um sorriso a atirar para o naif. Tudo bem. Era um ingénuo que nunca tinha visto nada comparável a estas beldades.
«Conseguiste convencê-la?» 
«Não percebo.» 
«A irmã do teu amigo...»
Desviou a conversa.
«Isto ainda não acabou.»
«Continua, Mário.»
Seguiu-se a estrela cartaz. Uma cantora americana, muito decotada e com uma saia acima do joelho. Ah! E a blusa vermelha estava semeada por lantejoulas douradas. Mesmo à artista de variedades da época.
«Loira.»
«Sim, António. E dona de uns bonitos olhos azuis.»
«Viste-lhe a cor dos olhos?»
Sorrir, irónico. 
«Espera pelo resto...»
Aconteceu que a canção não aqueceu o enorme salão, repleto de assistentes. As palmas primaram pela escassez. Mas quando começou a cantar a segunda canção, demasiado romântica para o seu gosto, tudo se modificou. Mais valia não ter tirado os olhos da cantora e virar-se para a irmã do amigo. Porque, admitiu, foi por aí que tudo começou. A Terry King fixou também o olhar nele e começou a aproximar-se perigosamente da mesa onde estavam os três. Este movimento inesperado fê-lo estremecer.
«Mas qual foi o problema, Mário?»
«Já vais ver.»
O problema é que ela começou só a cantar de olhos postos nele e não contente com a situação, sentou-se no seu colo, o que provocou uma boa disposição geral. Mário era agora o alvo da irmã do amigo e de toda a assistência, finalmente animada com a nova situação criada pela americana. Sentiu-se intranquilo. Não previa nada de bom. E mais. Isso incomodava-o porque não admitia ser gozado. Sim. Era a palavra mais adequada. Ou entrava na festa, ou saía derrotado daquela brincadeira que nada tinha de inocente e estava a servir para agarrar o público, até ao momento frio como gelo. De qualquer forma tinha que aguentar a bronca e alinhar.
«E então?»
«Saiu do meu colo, pegou-me na mão e fui levado para o centro do estrado circular, quase rente ao chão. Acho que me hipnotizou com aqueles olhos muito azuis, ou assim.»
«Assim como?»
«É uma figura de estilo moderna, António. Atualiza-te.»
«Agora compreendo porque lhe viste a cor dos olhos. E?»
«Encostou o rosto ao meu e assim ficámos até ao fim interminável da canção.»
«Ah! que momento delicioso!»
«Goza.»
Quis encontrar um buraco para desaparecer da vista de toda aquela gente que ria e aplaudia ao mesmo tempo. De repente estavam em festa.
Entretanto a canção chegou ao fim e o Mário esboçou um sorriso amarelo para a Terry King.
«Nem penses que vais fugir, meu lindo. Sei que cantas muito bem.» Disse, em inglês, com voz bem sonante.
«Quem te disse?»
Todo aquele envolvimento da Terry King já estava preparado?
«Canta! Canta!» pediu o público.
«Estás a ouvi-los?»
«Não! Não pode estar a acontecer...»
«Eu penso que sim.»
Hesitou, mas só por momentos.
«Terá que ser...»
«Fugiste para a mesa. Estou mesmo a ver a cena. O herói do momento quase a borrar-se e a bater em retida.» 
« Estás enganado.»
«E cantaste? De verdade, Mário?»
«Não tinha outra saída. Então comecei a cantar baixinho o "Arrivederci Roma". Em espanhol. Aquela bela canção que me sai sempre bem, lembras-te?»
«Se me lembro. A canção de recurso.» 
«Pois.»
O estranho de tudo é que a orquestra começou a acompanhá-lo e sentiu que colocava a voz com mais segurança e equilíbrio. O público calou-se. A cantora olhou-o com outra expressão. Estava a caminho do seu grande momento de glória.
«Foi um êxito, António. A Terry King beijou-me ao de leve na boca e a assistência entrou em delírio. Por meu lado, não entendia o que estava a acontecer.»
«Fantástico, Mário!»
Mas não acabou ali. A cantora americana convidou-o para a acompanhar ao camarim. Aí, voltou a beijá-lo. Mas de outra forma. Ardente como as paixões que nascem não se sabe como.
«Conta-me como aconteceu a seguir, Mário.»
«Bom, foi outro momento de glória. Minutos depois convidou-me a ir com ela para a América.»
«Aí gravamos um disco. Mas ainda não sei o teu nome!»
«Mário. Chamo-me Mário. Acompanho-te com muito gosto. Nem que seja até ao fim do mundo.»
Estava perdido. Completamente perdido e à sua mercê.
«A tua canção do bandido, meu bom amigo. Deu-te sempre vantagem. Mas ainda estás por cá...» 
«Foi há muitos anos, António!» 
«Ah sim.»

Infelizmente nem tudo aconteceu como contou. Mais uma vez entravam em cena os antagónicos real e fictício de Mário, que, um dia, a Manuela lhe fez ver numa das inúmeras cartas de amor que trocaram:
«Qual é o teu real? E qual é o teu fictício?»
Bateu tudo certo até ao momento em que a Terry King cantou só para ele. Mas quando a canção chegou ao fim, lançou-lhe um sorriso amistoso e afastou-se.
A partir daí, tudo não passou de um sonho acordado que teve nessa noite. Ao menos aconteceu um momento de glória quando estava a sonhar.
Sonhar. Adormecido ou não, sempre era melhor que nada!

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