Esta história aconteceu em Portalegre, perto da rua dos Canastreiros. Em parte, é verídica. Mas só em parte, porque o Mário pincelou-a com fantasia, algum humor e também pimenta.
Sobre o Mário, nesse tempo, com dezasseis anos, sonhava com a rapariga do vestido branco. Tinha muitos anos à sua frente e não adivinhava que estava prestes a chegar a uma encruzilhada e iria tomar o caminho errado por causa de uma sereia que, por coincidência, morava perto da rua dos Canastreiros, lá para o alto.O infeliz sapateiro mouco estava sentado num banco baixo e tosco, todo curvado sobre um sapato, talvez por causa do peso dos cornos ou, quem sabe, pela má sina. Pensava no momento como resolver o problema daquele sapato estafado que tinha uma cratera no meio da sola. Vivia-se mal na altura. Ele e também alguns dos clientes. Tempos de crise sempre os houve. Mas como aquele...
Meias solas? Era o ideal. Mas o pagamento tinha fortes probabilidades de dar em calote, sendo o destino mais que certo o livro das dívidas com percentagem alta de incumprimento.
«Tens algum cacau para adiantar, ó Rufino?»
«É mesmo preciso?»
Já tinha entrado com os carcanhóis para a sola. Ou melhor: em boa verdade o amigo Tibúrcio, amante declarado e confesso da mulher.
«Estou nas lonas. Assenta aí no livro, Agapito, que pago no fim do mês.»
Sempre no fim do mês. O pior é que o fim do mês chegava e nunca mais chegava.
«E o dinheiro dos saltos daqueles sapatos castanhos, Rufino?»
O cliente disse para ele ter paciência e despediu-se, apressado.
A mulher do sapateiro, que se chamava Rabeca, perante os factos presentes insultou o marido em tão altos berros que se ouviu na rua. Estava assim aberto o Teatro da Rabeca, como dizia a avó do narrador, sua fonte de inspiração nesta história verídica, com muitos acrescentos, diga-se.
«Meu grande mandrião! Estás a correr com os clientes só para não teres trabalho na frente.»
«O homem foi-se embora sem pagar os saltos dos sapatos castanhos, nem as meias solas destes...»
«Diz que sim!»
O sapateiro, que era um pouco surdo, ou então só ouvia o que mais lhe interessava, ripostou à voz trovejante da matrafona:
«Meias solas? Só se eu fosse doido. Meto aqui um remendo e fica feito o trabalhinho.»
Agarrou no sapato e mirou-o, em ar de desdém.
«Também estás tão velho que não mereces mais. Rebenta-te o cabedal ordinário antes de se gastar o remendo.»
Pousou o sapato no chão térreo e ficou a remorder entre dentes, fixando, ao mesmo tempo, os olhos na rua. O portão da oficina/sala de entrada estava escancarado de manhã ao anoitecer. A vida do casal era um livro aberto para os vizinhos.
Passou a faca pelo afiador e cortou uma tira de sola da peça encostada ao banco. Riscou uma circunferência com a ponta da tesoura e, utilizando a faca cortou o remendo quase circular que ficou pronto a ser aplicado na cratera da sola. Depois, largou no chão a faca e a tesoura e agarrou de novo no sapato.
«Tens a boca aberta?» perguntou ao sapato. «Também eu não comi nada hoje. E pior ainda. Nem sequer bebi um carapulo. A propósito, Rabeca, não é hoje que vem o teu amiguinho Tibúrcio?»
Aplausos de entusiasmo vindos lá da rua. Os espetadores estavam agradados com a peça, ainda por cima gratuita. A mulher gesticulou e correu com os curiosos.
«Isso que estás para aí dizer é uma grande calúnia, meu grande boi. Já conversamos mais logo. Não tens vergonha de estar para aí a fazer teatro para quem passa? E para teu governo és grande mentiroso. O Tibúrcio é só um amigo. Se não fosse ele já tínhamos os dois morrido à fome. Devias beijar-lhe a mão.»
«Fala mais alto que não percebi. Disseste que o Tibúrcio é um atrevido? Que é que esse grande sacana te fez, Rabeca?»
«Estás cada vez mais mouco! Já não se pode falar contigo. É melhor falar para o boneco.»
A mulher foi para os fundos da casa, continuando ainda a insultá-lo. Por coincidência ou não, este começou a sentir-se melhor. Não sabia como ainda aturava aquela vaca. Sim. Ela era uma vaca e o outro, um bode rasteiro. Ponto final. E não se considerava um sapateiro remendão. As circunstâncias é que não eram de todo favoráveis. Também não entendia como o Tibúrcio estava perdido pelo beicinho por ela. Tinha que abrir os olhos ao seu amigo.
Suspendeu o trabalho. Para matar a fome puxou do bolso do colete um maço de mortalhas e uma caixa de folha. Tirou uma mortalha do maço e uma pitada de tabaco da caixa. Com todo o cuidado começou a fazer um cigarro. Tremia muito das mãos, mais pela falta do álcool que de um pedaço de pão e azeitonas. Após várias tentativas conseguiu envolver o tabaco com a dita mortalha. Humedeceu-a com a língua e pressionou o remate com o indicador. Por fim, pôs na boca o cigarro já feito. Fez um compasso de espera e olhou para a rua. Não passava ninguém. Como se fosse importante. O que lhe interessava naquele momento era acender o tão desejado cigarro. Procurou os fósforos nos bolsos das calças, riscou a cabeça de um na lixa, levou à boca a ponta do cigarro e aspirou o fumo como se estivesse a beber uma gasosa por uma palhinha. Sentiu-se no paraíso. Os olhos fecharam-se. Esperara uma eternidade por aquele momento único.
«Merda!»
Engasgou-se com a entrada súbita duma quantidade excessiva de fumo e teve um sério acesso de tosse que culminou com um grande escarro amarelo-esverdeado no chão. Passou as costas da mão pelos beiços e sentiu-se um pouco mais aliviado.
«Grande bácoro me saíste!»
«És tu, Tibúrcio?»
«Não, é a minha avó torta. E que eu saiba, és mouco mas não és cego, zangão!»
Vá lá, só lhe chamou zangão desta vez, pensou.
«Zangas-te com pouca coisa, meu amigo. E não podes ser bom. Estava a pensar em ti neste momento. Que é feito do meu amigo Tibúrcio que nunca mais apareceu para bebermos um carapulo e comermos uns gominhos de laranja? Parece que alguém te deve...»
«Já te conheço, matreiro. Adiante. Tens muita sorte de não levares o troco porque hoje estou satisfeito.»
«Então?»
«Estive a comer uma feijoada de estalo bem regada com tintol.»
«E não te lembraste do teu amigo?»
«Cala-me essa boca. Mas onde está a danada da Rabeca? A gaja tem andado embezerrada comigo. Sabes o que se passa?»
Não respondeu porque ele o mandou calar. Além disso, era surdo.
O outro encolheu os ombros e desapareceu pelos fundos da oficina/sala de entrada. Como era de adivinhar a casa só tinha mais um quarto e cozinha com pia para despejos de líquidos e dejetos. Assim, não tardou que o Tibúrcio descobrisse a Rabeca a lavar-se na cozinha, vestida como veio ao mundo. Os seus faróis iluminavam uma rua inteira ou talvez um quarteirão e o traseiro era aquilo que se chamava um genuíno parque de diversões. Isto segundo a perspetiva daquele homem rude, entendido especificamente na obra de arte que tinha na sua frente.
Quis fazer-lhe uma surpresa agradável. Desapertou a braguilha e foi-se aproximando, sorrateiro, até que chegou junto a ela, encostando-se:
«Truz, truz.»
«Está lá, quem fala?»
Seria a resposta à deixa. Mas não. Ela virou-se, muito surpreendida com o atrevimento do Tibúrcio, e zás!, deu-lhe um chapadão que fez estremecer o amante.
«Já uma pessoa não pode brincar, Rabeca?»
«Isto não é o cu da Joana.»
«Vá lá, estava só a brincar!»
«Puxa mas é dos cordões à bolsa e dá dinheiro ao parvalhão do Agapito para ir até à taberna e ficar lá pelo menos uma hora. Doutra forma não há nada para ninguém. Despacha-te, zangão!»
«Está bem, minha coisa fofa. Mas... uma hora... Tanto tempo!»
«Porquê?, não aguentas? Hoje a festa é minha. Já tenho a corda em cima da cama.»
«A corda?!...»
«Sim, a corda. Depois explico-te como aquilo funciona...»
Coçou a cabeça, preocupado.
«A filha de uma magana quer arrebentar comigo!»
«Lá fingir que te agrado sabes tu e muito bem, meu grande safado. Mas o cordão de ouro que prometeste dar-me foi só garganta.»
O Tibúrcio fez um gesto teatral de quem se sentia inocente. Longe disso. Não se esqueceu. Tinha quase vendida uma propriedade nos Fortios. Ela que tivesse só mais uma niquinha de paciência.
«E entretanto vais gozando. Goza, goza, que o que é bom também se acaba um dia.»
Lá fora, o sapateiro tinha já os pregos na boca e preparava-se para dar a primeira martelada. Cigarro ao canto da boca, já apagado. Olhos mortiços, dirigidos para o chão, à procura do martelo. Uma porra de vida a sua.
«Ah!, estás aí, grande cabrão!»
Apareceu-lhe o Tibúrcio na frente, de semblante carregado.
«Estás a ver-te ao espelho, não é? Bem me parece. Mas explica-me melhor lá isso do cabrão.»
Trocadilho que logo remediou ante o olhar interrogador do Tibúrcio.
«Era o martelo. Estava a falar com o martelo que se escondeu.»
«Ah!, agora falas com o martelo?»
«Bem sei que eu é que sou cabrão. E sinto-me muito infeliz. Pões-te na Rabeca na presença do dono da casa e nem sequer lhe dás um estímulo.»
«Deixa-te de lamúrias e toma lá dez tostões. Desanda para a taberna. Chega-te para uma bebedeira de lorde. Mas não te esqueças também de comer pão com torresmos para demorares mais tempo. Pelo menos uma hora.»
«Uma hora? Garganta!» pensou.
«Nem dá para um casqueiro...»
«Se não dá, pede ao taberneiro para meter no calo.»
«No calo? Estás mesmo a ver...»
O calo era o livro das dívidas mais lido nos tempos de miséria que iam correndo.
«O Pinobes já não me fia mais.»
«Ah... Sendo assim, então toma lá mais cinco tostões, sapateiro chato como a potassa. Sabes? Hoje estou muito generoso porque daqui a pouco vou ter uma hora em cheio. Mas não abuses da minha generosidade. Alimento-te o vício da pinga e tiro-te ainda um fardo de cima. Que mais queres, desgraçado?»
Era verdade o que o Tibúrcio dizia. Nos tempos em que ainda tinha força ela teimava em ficar por cima e quase que o esmagava com o peso bruto da marrã que era. E pior ainda, as mamas espalmavam-se na cara e quase lhe faltava o ar. Ele bem queria ir por cima, ou então procurar outros caminhos.
«Quietinho! Que estás tu a fazer, sacana?» perguntava ela, virando-se, contrafeita.
Vício malvado.
Entretanto apareceu a Rabeca. Fixou o quadro, em ar de gozo. De mãos nas ancas, gritou:
«Sol, sol... homem mole!»
Olhou para ela com uma lágrima no canto do olho, teimosamente a querer cair.
«Grande puta! Já nem te importas com o que os vizinhos pensam. É só teatro. É só deboche. Outro galo cantaria se não fosse esta maldita tísica que não me larga como uma carraça.»
«Já uma pessoa não pode brincar, Rabeca?»
«Isto não é o cu da Joana.»
«Vá lá, estava só a brincar!»
«Puxa mas é dos cordões à bolsa e dá dinheiro ao parvalhão do Agapito para ir até à taberna e ficar lá pelo menos uma hora. Doutra forma não há nada para ninguém. Despacha-te, zangão!»
«Está bem, minha coisa fofa. Mas... uma hora... Tanto tempo!»
«Porquê?, não aguentas? Hoje a festa é minha. Já tenho a corda em cima da cama.»
«A corda?!...»
«Sim, a corda. Depois explico-te como aquilo funciona...»
Coçou a cabeça, preocupado.
«A filha de uma magana quer arrebentar comigo!»
«Lá fingir que te agrado sabes tu e muito bem, meu grande safado. Mas o cordão de ouro que prometeste dar-me foi só garganta.»
O Tibúrcio fez um gesto teatral de quem se sentia inocente. Longe disso. Não se esqueceu. Tinha quase vendida uma propriedade nos Fortios. Ela que tivesse só mais uma niquinha de paciência.
«E entretanto vais gozando. Goza, goza, que o que é bom também se acaba um dia.»
Lá fora, o sapateiro tinha já os pregos na boca e preparava-se para dar a primeira martelada. Cigarro ao canto da boca, já apagado. Olhos mortiços, dirigidos para o chão, à procura do martelo. Uma porra de vida a sua.
«Ah!, estás aí, grande cabrão!»
Apareceu-lhe o Tibúrcio na frente, de semblante carregado.
«Estás a ver-te ao espelho, não é? Bem me parece. Mas explica-me melhor lá isso do cabrão.»
Trocadilho que logo remediou ante o olhar interrogador do Tibúrcio.
«Era o martelo. Estava a falar com o martelo que se escondeu.»
«Ah!, agora falas com o martelo?»
«Bem sei que eu é que sou cabrão. E sinto-me muito infeliz. Pões-te na Rabeca na presença do dono da casa e nem sequer lhe dás um estímulo.»
«Deixa-te de lamúrias e toma lá dez tostões. Desanda para a taberna. Chega-te para uma bebedeira de lorde. Mas não te esqueças também de comer pão com torresmos para demorares mais tempo. Pelo menos uma hora.»
«Uma hora? Garganta!» pensou.
«Nem dá para um casqueiro...»
«Se não dá, pede ao taberneiro para meter no calo.»
«No calo? Estás mesmo a ver...»
O calo era o livro das dívidas mais lido nos tempos de miséria que iam correndo.
«O Pinobes já não me fia mais.»
«Ah... Sendo assim, então toma lá mais cinco tostões, sapateiro chato como a potassa. Sabes? Hoje estou muito generoso porque daqui a pouco vou ter uma hora em cheio. Mas não abuses da minha generosidade. Alimento-te o vício da pinga e tiro-te ainda um fardo de cima. Que mais queres, desgraçado?»
Era verdade o que o Tibúrcio dizia. Nos tempos em que ainda tinha força ela teimava em ficar por cima e quase que o esmagava com o peso bruto da marrã que era. E pior ainda, as mamas espalmavam-se na cara e quase lhe faltava o ar. Ele bem queria ir por cima, ou então procurar outros caminhos.
«Quietinho! Que estás tu a fazer, sacana?» perguntava ela, virando-se, contrafeita.
Vício malvado.
Entretanto apareceu a Rabeca. Fixou o quadro, em ar de gozo. De mãos nas ancas, gritou:
«Sol, sol... homem mole!»
Olhou para ela com uma lágrima no canto do olho, teimosamente a querer cair.
«Grande puta! Já nem te importas com o que os vizinhos pensam. É só teatro. É só deboche. Outro galo cantaria se não fosse esta maldita tísica que não me larga como uma carraça.»
«Disseste alguma coisa, Agapito mouquinho?»
Simulando um petardo que explode por simpatia, teve um acesso de tosse violento que quase o sufocou. Levou à boca um lenço amarrotado e sujo. Más notícias. Ficou vermelho. Triste sina a sua...
«Vai cuspir lá para fora, porco nojento!» ordenou a mulher, crescendo de repente para ele.
Uma barrigada sua era quase fatal. Longe iam os tempos em que lhe dava umas boas surras. Que saudades! Agora restava-lhe o prazer de se deliciar na taberna do Manel Pinobes à custa daqueles quinze tostões com que se vendera e embebedar-se até cair e sonhar depois que a sua vida ainda era como dantes. Noutros tempos ela até lhe endireitava os pregos em cima de uma pedra lisa.
«Despacha-te, estúpido!» ordenou o Tibúrcio.
«Um dia vais dobrar a verga para o inferno...» Pensou
Tinha medo das suas maldições que quase sempre batiam certo. Mas o que estava pensado já não tinha remédio. Largou o sapato e o martelo. De seguida, levantou-se e teve uma vertigem.
Já estava grosso e ainda não tinha bebido nada. O pequeno almoço foi fraco. Uma fatia escura de casqueiro e meia dúzia de azeitonas. Nem sequer um carapulo para lhe aquecer a alma!
Saiu de casa a amaldiçoar a sua má sina. Naquele dia as pernas estavam a portar-se mal e teve que parar ao fundo da rua. Lembrou-se dos quinze tostões que tinha no bolso e sorriu de satisfação ao pensar que o Pinobes não se ia negar.
Já perto da taberna, falou para os seus botões, entusiasmado.
«Um carapulo, um casqueiro, um queijo e uma faca bem afiada.»
«Estás a sonhar alto, Agapito. Primeiro o dinheirinho para cá. Sem dinheiro não há nada para ninguém.»
«Toma, meu guloso. O que sobra fica por conta da dívida.»
Pensou melhor. Punha só os dez tostões em cima do balcão. Deviam chegar e assim sempre ficava com uma reserva de cinco tostões.
Bateu com o nariz na porta. Infelizmente a taberna estava fechada.
Olhou para cima e viu uma mulher à janela a abanar-se com um leque. Só então deu conta que o calor apertava.
«O Pinobes?»
A mulher teve que repetir mais alto a resposta à sua pergunta. O Pinobes tinha ido a Lisboa ao casamento da filha mais nova que era doutora de leis.
«Ah!»
E agora?
Decidiu voltar para trás. Sentia-se demasiado debilitado para subir a rua Direita até encontrar outra taberna. Era certo que havia uma mais próxima. Mas nem pensar nisso. Tinha lá um calote de alto lá com o charuto e o velhaco do taberneiro prometeu que lhe chegava forte se o visse de novo. Preferiu não arriscar. De facto era melhor voltar para trás, apesar do nó na garganta que sentia e o engolir em seco constante que o torturava.
Levou a mão ao bolso esquerdo do colete e consultou a cebola, presa pela corrente dourada, um pechisbeque que, um dia, tentou penhorar no invejoso.
«Com que então esta merda é ouro de lei, meu grande mentiroso! E também cabrão, já me esquecia.»
A fama do Agapito chegara já mais longe do que tinha imaginado.
«Venderam-ma como tal, Patrício.»
«Desanda mas é daqui para fora antes que te vá às ventas, meu disfarçudo!»
Tinham-se passado quase vinte minutos. Um brilho maquiavélico passou-lhe pela mente.
«Deixa que já te amolo. Ficaste lá com ela e eu com os quinze tostões. E ainda a missa vai no adro...»
Antes de pôr-se ao caminho achou por bem fazer um cigarro, usando os costumados rituais. Ao mesmo tempo tentava engendrar os comentários que faria no momento exato em que apanhasse em flagrante o zangão do Tibúrcio e a marrã da mulher. Pronto. Borda da mortalha humedecia com saliva. Teve sorte de a colar à primeira tentativa. Fósforos. Era só o que faltava para dar uma fumaça longa. E a tosse que se lixasse. Quando viesse logo se via. O prazer de fumar um cigarro de onça era o melhor de tudo na vida. Isto é, se não existisse o vinho.
Mas onde estavam os malditos fósforos?
Lembrou-se logo e teve um esgar de desânimo. A caixa ficou na oficina ao lado dos pregos. Azar o seu. Pôs o cigarro sobre a orelha e voltou para casa. Eles não estavam à espera, pensou. Àquela hora os danados julgavam-no com uma grandessíssima bebedeira nos queixos. Com a chegada antes de tempo, ia tirar bons dividendos. Ai lá isso ia. Ou não se chamasse Agapito.
Olhou para o relógio. Tinham-se passado cerca de vinte e cinco minutos. Um tempo ideal para apanhar os pombinhos em flagrante na cama.
«Entro, não entro?»
Resolveu entrar. Assim como assim...
Silêncio absoluto para os lados dos fundos. Esperava ouvir um basqueiro daqueles dos grandes e nada de ruídos.
«Querem ver que já acabaram o serviço e estão a dormir que nem uns justos? Uma hora! Bem me parecia. Só podia ser garganta.»
Pé ante pé, atravessou a oficina/sala de entrada. Por pouco tempo, pois não conseguiu evitar o encontro com a tripeça onde ajustava as solas ou os saltos.
«Maldição!» deixou escapar a voz.
Ficou de ouvido à escuta. Ainda havia silêncio absoluto nos fundos. Parecia que tinha sorte. Redobrou o cuidado à porta do quarto. Espreitou, ainda a medo. Depois, sorriu entre dentes.
«O bode rasteiro já está a dormir. Mas ela...?»
Deu mais dois passos e estacou logo, arregalando muito os olhos, deveras assustado com o espetáculo que estava a ver. Ato contínuo, fugiu para a oficina/sala de entrada e ficou ali, a pensar, a ganhar forças. Não queria acreditar no que acabava de descobrir.
Decidiu-se e avançou de novo. Só para confirmar. O Tibúrcio estava de barriga para o ar, seminu. Aproximou-se mais e fez uma descoberta que o fez sorrir de satisfação.
«Sim, senhor. Estás todo mijado, Tibúrcio! A isso chama-se tesão de mijo.»
O outro não respondeu.
Coçou a cabeça com vigor até chegar a uma conclusão. Não restavam dúvidas que o gajo estava morto. Nem precisava de colocar um espelho sobre a boca do infeliz para ver se o mesmo embaciava ou não.
Que era aquilo? O morto tinha o coiso muito teso!
«Afinal o instrumento é mais pequeno do que pensava. Fogo de vista, Tibúrcio. Bem me parecia que andavas com bananas no bolso. Mas...»
Deu conta que o Tibúrcio tinha os pulsos atados por uma corda, por sua vez, esta presa à cabeceira da cama.
«Sim, senhor! A grande cabra fez-te tantas ou tão poucas que te foste abaixo. Não se vai à guerra de barriga cheia, meu alarve! E logo uma bruta feijoada. Deus é grande!» desabafou. Querias parque de diversões e lixaste-te.»
O Tibúrcio morreu em combate e levou para o túmulo o segredo dos últimos momentos. Da Rabeca não havia rasto. De certeza que a história da corda foi invenção sua.
Aonde fora aquela filha de uma magana buscar tal invenção?
Simulando um petardo que explode por simpatia, teve um acesso de tosse violento que quase o sufocou. Levou à boca um lenço amarrotado e sujo. Más notícias. Ficou vermelho. Triste sina a sua...
«Vai cuspir lá para fora, porco nojento!» ordenou a mulher, crescendo de repente para ele.
Uma barrigada sua era quase fatal. Longe iam os tempos em que lhe dava umas boas surras. Que saudades! Agora restava-lhe o prazer de se deliciar na taberna do Manel Pinobes à custa daqueles quinze tostões com que se vendera e embebedar-se até cair e sonhar depois que a sua vida ainda era como dantes. Noutros tempos ela até lhe endireitava os pregos em cima de uma pedra lisa.
«Despacha-te, estúpido!» ordenou o Tibúrcio.
«Um dia vais dobrar a verga para o inferno...» Pensou
Tinha medo das suas maldições que quase sempre batiam certo. Mas o que estava pensado já não tinha remédio. Largou o sapato e o martelo. De seguida, levantou-se e teve uma vertigem.
Já estava grosso e ainda não tinha bebido nada. O pequeno almoço foi fraco. Uma fatia escura de casqueiro e meia dúzia de azeitonas. Nem sequer um carapulo para lhe aquecer a alma!
Saiu de casa a amaldiçoar a sua má sina. Naquele dia as pernas estavam a portar-se mal e teve que parar ao fundo da rua. Lembrou-se dos quinze tostões que tinha no bolso e sorriu de satisfação ao pensar que o Pinobes não se ia negar.
Já perto da taberna, falou para os seus botões, entusiasmado.
«Um carapulo, um casqueiro, um queijo e uma faca bem afiada.»
«Estás a sonhar alto, Agapito. Primeiro o dinheirinho para cá. Sem dinheiro não há nada para ninguém.»
«Toma, meu guloso. O que sobra fica por conta da dívida.»
Pensou melhor. Punha só os dez tostões em cima do balcão. Deviam chegar e assim sempre ficava com uma reserva de cinco tostões.
Bateu com o nariz na porta. Infelizmente a taberna estava fechada.
Olhou para cima e viu uma mulher à janela a abanar-se com um leque. Só então deu conta que o calor apertava.
«O Pinobes?»
A mulher teve que repetir mais alto a resposta à sua pergunta. O Pinobes tinha ido a Lisboa ao casamento da filha mais nova que era doutora de leis.
«Ah!»
E agora?
Decidiu voltar para trás. Sentia-se demasiado debilitado para subir a rua Direita até encontrar outra taberna. Era certo que havia uma mais próxima. Mas nem pensar nisso. Tinha lá um calote de alto lá com o charuto e o velhaco do taberneiro prometeu que lhe chegava forte se o visse de novo. Preferiu não arriscar. De facto era melhor voltar para trás, apesar do nó na garganta que sentia e o engolir em seco constante que o torturava.
Levou a mão ao bolso esquerdo do colete e consultou a cebola, presa pela corrente dourada, um pechisbeque que, um dia, tentou penhorar no invejoso.
«Com que então esta merda é ouro de lei, meu grande mentiroso! E também cabrão, já me esquecia.»
A fama do Agapito chegara já mais longe do que tinha imaginado.
«Venderam-ma como tal, Patrício.»
«Desanda mas é daqui para fora antes que te vá às ventas, meu disfarçudo!»
Tinham-se passado quase vinte minutos. Um brilho maquiavélico passou-lhe pela mente.
«Deixa que já te amolo. Ficaste lá com ela e eu com os quinze tostões. E ainda a missa vai no adro...»
Antes de pôr-se ao caminho achou por bem fazer um cigarro, usando os costumados rituais. Ao mesmo tempo tentava engendrar os comentários que faria no momento exato em que apanhasse em flagrante o zangão do Tibúrcio e a marrã da mulher. Pronto. Borda da mortalha humedecia com saliva. Teve sorte de a colar à primeira tentativa. Fósforos. Era só o que faltava para dar uma fumaça longa. E a tosse que se lixasse. Quando viesse logo se via. O prazer de fumar um cigarro de onça era o melhor de tudo na vida. Isto é, se não existisse o vinho.
Mas onde estavam os malditos fósforos?
Lembrou-se logo e teve um esgar de desânimo. A caixa ficou na oficina ao lado dos pregos. Azar o seu. Pôs o cigarro sobre a orelha e voltou para casa. Eles não estavam à espera, pensou. Àquela hora os danados julgavam-no com uma grandessíssima bebedeira nos queixos. Com a chegada antes de tempo, ia tirar bons dividendos. Ai lá isso ia. Ou não se chamasse Agapito.
Olhou para o relógio. Tinham-se passado cerca de vinte e cinco minutos. Um tempo ideal para apanhar os pombinhos em flagrante na cama.
«Entro, não entro?»
Resolveu entrar. Assim como assim...
Silêncio absoluto para os lados dos fundos. Esperava ouvir um basqueiro daqueles dos grandes e nada de ruídos.
«Querem ver que já acabaram o serviço e estão a dormir que nem uns justos? Uma hora! Bem me parecia. Só podia ser garganta.»
Pé ante pé, atravessou a oficina/sala de entrada. Por pouco tempo, pois não conseguiu evitar o encontro com a tripeça onde ajustava as solas ou os saltos.
«Maldição!» deixou escapar a voz.
Ficou de ouvido à escuta. Ainda havia silêncio absoluto nos fundos. Parecia que tinha sorte. Redobrou o cuidado à porta do quarto. Espreitou, ainda a medo. Depois, sorriu entre dentes.
«O bode rasteiro já está a dormir. Mas ela...?»
Deu mais dois passos e estacou logo, arregalando muito os olhos, deveras assustado com o espetáculo que estava a ver. Ato contínuo, fugiu para a oficina/sala de entrada e ficou ali, a pensar, a ganhar forças. Não queria acreditar no que acabava de descobrir.
Decidiu-se e avançou de novo. Só para confirmar. O Tibúrcio estava de barriga para o ar, seminu. Aproximou-se mais e fez uma descoberta que o fez sorrir de satisfação.
«Sim, senhor. Estás todo mijado, Tibúrcio! A isso chama-se tesão de mijo.»
O outro não respondeu.
Coçou a cabeça com vigor até chegar a uma conclusão. Não restavam dúvidas que o gajo estava morto. Nem precisava de colocar um espelho sobre a boca do infeliz para ver se o mesmo embaciava ou não.
Que era aquilo? O morto tinha o coiso muito teso!
«Afinal o instrumento é mais pequeno do que pensava. Fogo de vista, Tibúrcio. Bem me parecia que andavas com bananas no bolso. Mas...»
Deu conta que o Tibúrcio tinha os pulsos atados por uma corda, por sua vez, esta presa à cabeceira da cama.
«Sim, senhor! A grande cabra fez-te tantas ou tão poucas que te foste abaixo. Não se vai à guerra de barriga cheia, meu alarve! E logo uma bruta feijoada. Deus é grande!» desabafou. Querias parque de diversões e lixaste-te.»
O Tibúrcio morreu em combate e levou para o túmulo o segredo dos últimos momentos. Da Rabeca não havia rasto. De certeza que a história da corda foi invenção sua.
Aonde fora aquela filha de uma magana buscar tal invenção?
Mais tarde disseram-lhe que atravessou a rua a correr, como uma Eva toda badalhoca, mamas em alvoroço, banhas em tudo o que era sítio, e traseiro enorme, mas descaído. Um espetáculo lastimoso. Para esquecer.
«Fugiu para casa da Francelina.» Admitiu. «Só pode ser.»
Respirou fundo.
Surgiu um problema quando a noite chegou. Depois das onze ninguém queria velar o morto. Nem aquela grande filha de uma magana. Tinha medo dos fantasmas. Foi a desculpa que deu. Os vizinhos conferenciaram e voltaram a conferenciar. Falta de consenso. Não havia solução à vista. Um por isto, outro por aquilo. E o morto na igreja, depois de cumpridas as formalidades dos gatos-pingados, à espera que alguém lhe fizesse companhia durante a noite.
Um-dó-li-tá. Escolha feita e mais que certa. Quem ia velar o morto era o Agapito. Só podia ser ele o elemento de consenso e por um motivo muito forte. Desgraçado como era, bastava acenarem-lhe com o pilim.
«Eu?!... Nunca na vida!»
«Aceita, homem. Até ganhas uns cobres. E é por uma boa causa.»
«Boa causa? Nestes safardanas gulosos não cabem boas causas. Têm ida marcada para a casa do Mafarrico. Pensão completa. Com aquecimento e tudo mais.»
«Por isso mesmo. Os pecados do Tibúrcio são tantos que precisa duma ajudinha. Apesar de tudo vocês eram amigos.»
Reconsiderou. Pondo de parte a ligação com a Rabeca, ele até não era uma má pessoa. Pagava-lhe uns carapulos de vez em quando...
O mestre Severiano, relações públicas do bairro e marceneiro de ofício, notou que o Agapito já dava mostras de fraqueza.
«Foste o escolhido. Falei com o Senhor...»
«Ai falaste? Afinal o Tibúrcio vai ou não vai para o inferno?»
«Deus perdoa sempre aos infelizes.»
«Eu é que sou um infeliz. Estou tísico e sou corno, porra! Tenham pena de mim!»
Acenou-lhe com moedas escuras.
«Estás a brincar comigo?»
Mudou para moedas de alpaca.
«Só se for uma moeda de prata.»
«Cinco mil réis.»
Não reagiu. Era preciso fazer um bom negócio. Tinha que tirar partido da sua infelicidade.
«Sete mil e quinhentos e uma garrafa de litro de tinto do carrascão. É a última proposta.»
«Dez mil réis e duas litradas.»
«Seja então.»
Nunca digas nunca, Agapito. Até porque podes levar todo o material para conserto. Enquanto velas o desgraçado do morto que teve uma morte macaca, martelas as solas ou usas a sovela para as furar e depois...
Não pensou mais. Os infelizes como ele não tinham muitas marés na sua vida. Dito doutra forma: a miséria, sua única companheira, não podia recusar os bons conselhos do dinheiro.
«E podes beber e fumar na casa do Senhor que ele não se importa.» Disse o diplomata do bairro.
«Não me digas! Mas não quero ver aquela vaca na igreja nem as malditas das carpideiras. Detesto as carpideiras pelo mau agouro que trazem atrás de si.»
«Fica descansado que não aparecem, pois só estão contratadas para o cortejo. Muito menos a Rabeca. Apanhou cá um destes cagaços! E há outra coisa...»
«O quê?»
«A propriedade dos Fortios que era pertença do Tibúrcio nunca passou duma grande aldrabice. Estava hipotecada ao Espírito Santo. Quanto ao resto, vivia de rendimentos que davam para chapa ganha, chapa gasta. Eram mais as vozes que as nozes, percebes?»
«Como a fama do coiso...»
«Qual coiso?»
«É cá comigo. Ainda bem que aconteceu assim. Aquela gaja andava atrás do filão e saiu-lhe só merda. E vou-te dizer mais uma coisa...»
«Diz, diz, Agapito.»
«Há a corda…»
«Qual corda?»
«Deixa...»
Arrependeu-se de falar da história da corda.
Às onze horas da noite entrou na igreja e benzeu-se, pelo sim pelo não. Ao fundo, perto ao altar, estavam o caixão com o morto lá dentro. E havia também as flores da praxe.
Depois de bservar tudo com atenção, comentou:
«Viste-o todo nu, esticado?» «E então, Agapito?»
«Tinha fama de garanhão e foi o que se viu. Aquele coiso... Que triste figura!»
E riu com gosto. O mestre Severiano preferiu não comentar aquela coisa do coiso e optou por ralhar.
«Mais respeito, Agapito. Lembra-te que estamos na casa do Senhor. Sentas-te no banco corrido que está em frente ao caixão e ficas virado para o morto.»
«E que faço?»
«Velas o morto.»
«A propósito, não podem apagar as velas? Cheira a cera que tresanda.»
Fazia parte do ritual.
«O caixão fica aberto?»
«Porquê? Tens medo, Agapito? Olha que os mortos não falam.»
Fez uma careta de desdém. O motivo era outro.
«Gostava mais que fechassem o caixão. Nunca engracei com as ventas dele. Agora que o gajo está morto e já não reage, pode passar-me uma certa coisa pela cabeça, sabes?»
«E...?»
Procurou na caixa das ferramentas e exibiu uma faca de sapateiro ao mestre Severiano.
«Já percebi onde queres chegar. Livra-te de uma coisa dessas, homem de Deus.»
«Deus não quer nada comigo.»
«Pronto, já cá não está quem falou.»
«Fico mais descansado. Mas fechem-me esse maldito caixão e quanto mais depressa, melhor.»
«Seja.»
Puxaram para baixo a tampa do caixão.
«À chave!»
«Não pode ser. Vai contra a lei.»
O mestre Severiano foi o último a sair. Precisava ainda de dar-lhe uns tantos conselhos.
«E agora não te esqueças de cuspir no chão! Olha que junto ao altar há um escarrador que é para o padre Inácio cuspir nele. Falámos com o padre e disse que não se importava. Amanhã a senhora Engrácia lava-o muito bem lavado e depois mete-lhe o desinfetante.»
«Potassa?»
«E que te importa a ti? Tens cada uma, Agapito! Sei lá se é com potassa ou outra merda qualquer. Desde que o produto que se aventa para lá desinfete, está tudo bem para o padre Inácio.»
«Esse padre Inácio bem me saiu cá uma bisca! Eu não tenho peçonha, sabes? Quanto a ele, é melhor não falar. As confissões, por exemplo...»
«Deixa-te de histórias que o teu historial também não é lá muito bom.»
«Sou corno, já sei. E depois?»
«O melhor é ficares calado. Falas com conhecimento de causa. Não tens provas nenhumas. Agora, vou-me embora. E aconselho-te a não te embebedes muito.»
Tomou ares de campeão.
«Com a porra de dois litros?»
«Tu lá sabes. Adeus.»
E riu com gosto. O mestre Severiano preferiu não comentar aquela coisa do coiso e optou por ralhar.
«Mais respeito, Agapito. Lembra-te que estamos na casa do Senhor. Sentas-te no banco corrido que está em frente ao caixão e ficas virado para o morto.»
«E que faço?»
«Velas o morto.»
«A propósito, não podem apagar as velas? Cheira a cera que tresanda.»
Fazia parte do ritual.
«O caixão fica aberto?»
«Porquê? Tens medo, Agapito? Olha que os mortos não falam.»
Fez uma careta de desdém. O motivo era outro.
«Gostava mais que fechassem o caixão. Nunca engracei com as ventas dele. Agora que o gajo está morto e já não reage, pode passar-me uma certa coisa pela cabeça, sabes?»
«E...?»
Procurou na caixa das ferramentas e exibiu uma faca de sapateiro ao mestre Severiano.
«Já percebi onde queres chegar. Livra-te de uma coisa dessas, homem de Deus.»
«Deus não quer nada comigo.»
«Pronto, já cá não está quem falou.»
«Fico mais descansado. Mas fechem-me esse maldito caixão e quanto mais depressa, melhor.»
«Seja.»
Puxaram para baixo a tampa do caixão.
«À chave!»
«Não pode ser. Vai contra a lei.»
O mestre Severiano foi o último a sair. Precisava ainda de dar-lhe uns tantos conselhos.
«E agora não te esqueças de cuspir no chão! Olha que junto ao altar há um escarrador que é para o padre Inácio cuspir nele. Falámos com o padre e disse que não se importava. Amanhã a senhora Engrácia lava-o muito bem lavado e depois mete-lhe o desinfetante.»
«Potassa?»
«E que te importa a ti? Tens cada uma, Agapito! Sei lá se é com potassa ou outra merda qualquer. Desde que o produto que se aventa para lá desinfete, está tudo bem para o padre Inácio.»
«Esse padre Inácio bem me saiu cá uma bisca! Eu não tenho peçonha, sabes? Quanto a ele, é melhor não falar. As confissões, por exemplo...»
«Deixa-te de histórias que o teu historial também não é lá muito bom.»
«Sou corno, já sei. E depois?»
«O melhor é ficares calado. Falas com conhecimento de causa. Não tens provas nenhumas. Agora, vou-me embora. E aconselho-te a não te embebedes muito.»
Tomou ares de campeão.
«Com a porra de dois litros?»
«Tu lá sabes. Adeus.»
Ficou só. Olhou em volta, muito desconfiado, principalmente pelo que podia vir do lado do caixão. Sentiu um arrepio a percorrer-lhe a espinha e benzeu-se outra vez, não fosse o diabo tecê-las. Nunca se sabia.
Silêncio absoluto na igreja. O tempo a correr. Uma golada de tinto. Depois outra. Ficou mais confortado. Mais Agapito. Mais sapateiro dedicado à sua arte tosca, nas digna. Pregos na boca. Martelo na mão. Sinfonia de marteladas. Paragem para observar o trabalho. Ia bem. Momento ideal para cuspir dois pregos para o chão e dar mais uma golada.
Imaginou a vaca de cu para o ar e o outro numa de alta cavalaria. Mas não podia ser assim. Já se esquecia que ele estava preso à cama.
«Ah ah… bem te enganou!»
Encolheu os ombros, tentando esquecer. De seguida teve um acesso de tosse e escarrou para o chão, bem longe do escarrador.
«Malditas velas!» praguejou. «O padre Inácio que se fo...!»
Encolheu os ombros, tentando esquecer. De seguida teve um acesso de tosse e escarrou para o chão, bem longe do escarrador.
«Malditas velas!» praguejou. «O padre Inácio que se fo...!»
Levantou-se e começou a extinguir a chama das velas, uma a uma, apertando bem os pavios com os dedos. Depois, sentou-se de novo e olhou para os sapatos que estava a consertar, mostrando satisfação pela obra. Faltava só uma nica de uma coisa. Pôr a graxa nos sapatos e passar um pano de lustro. Assim. E de novo com o pano. Obra de artista. Quando queria, trabalhava bem. Aquele silêncio na igreja inspirava-o.
Segunda tarefa. Pôr meias solas nos sapatos do Anacleto. Esse pagava de certeza.
Mas como conseguia espantar o sono que se apoderava dele com uma força do caraças?
Solução quase imediata. Pôs-se a assobiar uma moda conhecida. Assim o sono não o apoquentava nos minutos mais próximos. Devia ter pensado nisso há mais tempo.
«Boa ideia, Agapito!» pensou.
E voltou ao trabalho, continuando a assobiar.
Foi então que ouviu uma voz:
«É falta de respeito assobiar na igreja!»
«Olá...»
A voz parecia vir do fundo de um buraco, coisa que não lhe agradou. De forma alguma. Ali havia coisa. Pelo sim, pelo não deu uma golada mais prolongada. Era surdo, mas não tanto. Ouvira muito bem aquela voz cavernosa que lhe cheirava a mau agoiro. Ergueu os olhos e ficou ainda mais intrigado com o que viu. É que a tampa do caixão estava puxada para trás. Arrepiou-se da cabeça aos pés e praguejou:
«Cruzes canhoto!»
Aquilo que estava a ver não era nada bom. O morto erguia-se, lentamente, como se estivesse a ser ajudado por uma força poderosa, oculta. Já todo levantado, mais vivo do que morto, olhava para ele em ar de reprovação.
«Não estou a gostar nada disto. Mandam-me velar um morto, deixam-me trabalhar e beber, e agora acontece isto? Uhm! Temos merda no beco!»
Desconfiou que o vinho estava aguardentado.
«O sacana do Severiano queria que não me embebedasse e aguardentou-me a porra do vinho. Eu lhe digo amanhã!»
Ficou a pensar muito nas coisas do outro mundo e também do seu e não chegou a qualquer conclusão. Era homem temeroso mas, sem saber porquê, naquele momento sentia-se muito calmo, em perfeitas condições de raciocinar. Num caso como aquele impunha-se o diálogo.
Lançou o martelo para o chão e interpelou, sem mais nem menos, o morto:
«Afinal o que é que se passa, ó Tibúrcio fanfarrão?»
O morto não respondeu. Continuava a olhar para ele com o mesmo ar de reprovação. Aquilo não chegava para o considerar vivo. Já ouvira falar de casos de... como é que aquilo se chamava? Bom, depois lembrava-se. Tinha que resolver com urgência o problema com aquela maldita avantesma cor de cera, levantada como um sempre-em-pé. A coisa trazia muita água no bico.
Onde estava o truque?
Levantou-se e foi na direção do morto. Já frente a frente com ele, passou-lhe a mão em frente aos olhos esbugalhados. Nada. O morto não reagiu. Espreitou do outro lado da tampa do caixão. Não havia ninguém à vista. Só se algum brincalhão tivesse vindo a rastejar dos lados da sacristia. Nunca se sabia.
Tocou ao de leve na testa do morto que caiu logo para trás. Depois empurrou a tampa do caixão que se fechou, com estrondo inositado. O som ecoou forte pela igreja fora e desestabilizou o silêncio da noite. Assustou-se e deu um salto para trás.
«Maldição e morte!»
Recompôs-se depressa. Pé ante pé, aproximou-se da sacristia. Procurou o interruptor da luz antes de entrar. Só se fosse lá dentro.
«Ainda apanho para aqui um choque que me lixo!»
Rodou-o e espreitou para dentro. Ninguém. Ficou menos tenso. Só não entendia o que estava a passar-se com o morto.
«Já agora vou fazer uma pesquisa.»
Abriu os armários. Com minúcia, foi observando.
«Ótimo.»
Acabava de descobrir uma garrafa de vinho, pão e um bom naco de presunto. As beatas falsas tratavam bem o sacana do padre. Desconfiava que havia retribuição.
«Ele abençoa as beatas, Agapito. Não estejas com más intenções…»
«Ora, ora. A gente já sabe como são as coisas.»
Voltou ao banco corrido já com o vinho e o conduto, esqueceu-se da cena insólita com o morto e iniciou o festim inesperado. Aquela vinhaça era de estalo. E do presunto não se falava. O pão estava rijo mas não se podia exigir tudo.
Pouco depois substituiu o assobio pelo canto. Bem alto, para se ouvir melhor. Ao mesmo tempo não perdia de vista o caixão.
Então, ouviu a mesma voz distante, vinda bem do fundo dos fundos.
«Não se canta na igreja. É falta de respeito!»
«Outra vez? Eu já te digo, Tibúrcio duma figa!»
Não esteve para meias medidas. Pegou no martelo e correu a cambalear para o caixão mesmo a tempo de ver a tampa abrir-se para trás e o morto começar a erguer-se. De seguida, deu-lhe uma martelada certeira no toutiço e o morto sossegou, de uma vez por todas, em paz com Deus, no fundo do caixão, como era o dever dos defuntos. Depois, voltou a empurrar a tampa e disse, com tom fanfarrão:
«Essa não pega, pá. Os mortos não falam!»
Dirigiu-se de novo para o banco corrido e atirou-se ao presunto, ao pão e ao trabalho. Vinho era coisa que já não havia na segunda garrafa que descobriu quando procurava na sacristia um hipotético brincalhão. Quanto à primeira, já tinha passado à história tempos atrás.
O sono acabou por vir, à força de alguma emoção e de muito vinho. Enroscou-se no banco corrido e imitou o morto por algumas horas…

Sem comentários:
Enviar um comentário