Torna-se complicado afirmar que a relação entre a máquina e o utente viciado pode ser quebrada, em qualquer momento, pelo abandono do jogador/jogadora. A acontecer, este processo é demorado e cheio de reincidências.
As máquinas existentes atualmente no casino, e em constante renovação, estão ligadas a uma evolução tecnológica galopante na sua arquitetura e também no software cada vez mais a tender para a interferência da inteligência artificial. Com muita frequência dão prémios à primeira jogada e este bónus que cai do céu, dirige-se normalmente aos apostadores que apostam pouco. Entusiasmados, sobem a parada, veem os lucros aumentar, mas tardam em premir o botão para sacar o ticket e a máquina acaba por engolir fatalmente os créditos acumulados e depois segue-se a sangria habitual. O utente a tentar recuperar o prejuízo e a máquina a engolir os créditos até ao último suspiro.
Qual é a solução para o jogador inexperiente?
Aprender rapidamente com os erros ou desistir, neste caso o mais lógico que tem a fazer. Se inserir uma nota mais gorda e aumentar a parada sujeita-se a ser açoitado pelos ventos sul, mas também pode ter bons resultados. Vá lá saber!
Não estou aqui para dar lições, mas para contar uma nova história passada neste casino. Só quero deixar um aviso à navegação. Circulem ao acaso pelas máquinas e visitem, de vez em quando, aquelas em que têm mais fé. É tudo uma questão de acreditarem. Mas não se fixem à máquina que abriu para prémio. Saibam sair no momento certo. A fixação numa máquina é o caminho certo para a viciação.
Os meses passaram e “correram muitas águas” no casino. Agora é que reparo que é uma metáfora com duplo significado.
Quantas lágrimas foram choradas!, quantos lares destruídos!, quanto sofrimento!, quantas desilusões!, quantos suicídios!
Há estatísticas para tudo, mas esta não é carta do baralho.
A gestão do espaço no casino está cada vez mais perfeita, melhor dizendo, sofisticada, pois surgiram novas máquinas, cada vez mais tentadoras e, também, mais enganadoras. O espaço está mais cheio no primeiro piso, mas ainda se circula pelos corredores de trajetos retilíneos, ou fazendo ângulos retos. A estratégia é boa. As máquinas aumentaram em número, não estão em monte e veem-se de vários ângulos. Em relação ao atendimento aos balcões, não escondo que melhorou. Os preços praticados, tanto ao balcão como pelas jovens vestidas de negro que se deslocam entre os utentes e usam vestidos com rachas generosas que deixam ver meias pretas a cobrirem pernas, são normais e é uma boa estratégia. Quanto melhor se sentirem os utentes, mais horas passam naquele ambiente que até podia ser paradisíaco se não fosse o reverso da medalha, que não é mais que uma proporcionalidade direta entre duas grandezas que são a contagem do tempo e os euros que voam da carteira. Os espetáculos mantêm o nível inicial. Os recantos de conversa (devido ao ruído, é muito difícil conversar depois das vinte e duas) mantêm-se iguais. A segurança é discreta. O atendimento é rápido em caso de problema com uma máquina. Os balcões de recebimento, pagamento e troca de dinheiro, reforçados com as máquinas automáticas de pagamento de tickets, não fazem os utentes perder muito tempo em esperar, o que é uma estratégia eficaz para o casino. Até os melhoramentos chegaram aos valores dos créditos das máquinas. Parece que me ouviram. Já proliferam as máquinas de um, dois e cinco cêntimos, embora se saiba que podem ser feitas apostas fortíssimas nas mesmas.
Uma lição a tirar diz respeito ao período do estado de graça quando uma nova máquina é instalada. Os prémios sucedem-se. O entusiasmo redobra. Era muito bom ser sempre assim, mas a verdade é outra. Depois do período do estado de graça volta-se ao marasmo do aleatório controlado. Rapidamente o casino recupera dos prejuízos relacionados com a promoção das novas máquinas.
Mas entremos na história. De preferência com passos de lã para não sermos apanhados na teia instalada numa máquina que até talvez já nos reconheça pelos próprios passos (estou a exagerar). Entremos mesmo antes das tradicionais pancadas de Molière e degustemos, cada qual à sua maneira, estes petiscos, por vezes bem amargos, de preferência a troco de pouco dinheiro. Ver por fora é bem menos indigesto, mas torna-se perigoso, principalmente se nos tornarmos críticos e somos tomados de ponta.
É sexta-feira. A hora do jantar já passou. Estou na slot dos horóscopos e aproveito a morosidade do jogo para comer uma sande de queijo e beber uma imperial. Já trago do fim de tarde um pequeno prejuízo. Hoje não estou com sorte. Só tenho apanhado máquinas que estão na sua hora sexual. Em português vernáculo, estou a ser lixado. Receio perder o controlo. Já não está comigo o meu amigo Raul que gosta mais de jogar a outras horas menos tardias. Diz que tem a sua teoria, mas, aqui para nós, a teoria é a sorte de não sermos apanhados pelo sistema.
Já estou noutra máquina e ganho um prémio razoável. Primo um botão branco e surge o ticket que vou rebater na máquina que lê os códigos de barras.
Chego dois ou três segundos antes que um indivíduo de meia idade, já com alguma falta de cabelo. Dou-lhe a primazia de utilizar primeiro a máquina. Não tenho pressa. Ele agradece.
«Quanto mais tempo perder, menos perco.» Justifico-me, sorrindo.
«Tem razão.»
E ficamos por aqui.
Não passaram dez minutos e já tenho outro ticket para trocar. Desta vez foi ele quem chegou primeiro. Reconheceu-me.
«Cá estamos outra vez.»
«É bom sinal.» Reconheci.
Serviu-se da máquina e despediu-se de uma forma curiosa.
«Então até já...»
«Isso seria bom.»
«Tem razão» concordou. «Era bom sinal.»
Não nos voltámos a encontrar junto à máquina automática de pagamentos, mas vi-o a jogar numa máquina de um cêntimo.
Uma máquina igual a muitas outras, mas mais apetecível devido ao bónus. Sem que desse conta da minha presença, tentei entender como acontecia o bónus. Fácil. Bastava aparecerem nas três colunas centrais partes de uma limusine. Seguiam-se dez jogos gratuitos. As limusines mudavam para cinzento prateado e, repetindo-se a situação das três partes, havia uma série de mais quinze jogos de graça.
Duas máquinas formavam o bloco e ambas estavam em estado de graça. A da direita dava mais prémios. Ele jogava na outra.
«Pelos vistos está a correr bem.»
O homem voltou-se para mim.
«Ah... é senhor. O jogo não corre mal, mas a máquina da direita está a abrir com mais frequência.»
«Também já vi isso.»
«Estou já a terminar o jogo.»
«Não diga isso. A máquina pode abrir de um momento para o outro.»
E tinha razão. Acabaram-se os créditos.
«Gostava de contar-lhe uma coisa. Aqui joga-se muito e, às vezes, é preciso falarmos para o desastre não ser tão grande. Não sou propriamente um viciado e parece-me que o senhor também não. Sei distingui-los à légua.»
Não achei qualquer mal em falar com o desconhecido.
«Estou à sua disposição.»
«Conhece as máquinas dos "corações"?»
«Perfeitamente. Até já lá ganhei, de sociedade com um amigo, um prémio de mais de trezentos euros.»
«O jogo é interessante, mas não é propriamente sobre ele que quero falar. Venha daí comigo. No piso de cima podemos conversar à-vontade. Mas antes queria mostrar-lhe uma coisa.»
Parou a poucos metros das máquinas dos "corações".
«Vê aquela mulher de negro que está a jogar?»
«Perfeitamente.»
«Já reparou que ela joga em duas máquinas?»
«É verdade.»
«O caso relaciona-se com essa mulher.»
«Um romance?» perguntei, sorrindo.
«Nada disso.»
«Então...?»
«Já lhe conto. Quer beber uma cerveja comigo?»
Disse que sim.
Deixámo-nos levar pelas escadas rolantes até ao piso de cima.
«Conforme já lhe disse, não sou um jogador compulsivo. Gosto de jogar e venho cá de vez em quando. Acredito que o meu futuro não está a ser desenhado aqui.»
Interrompi-o.
«Se me permite, chamo-me Mário Fonseca. Mário, basta. Faz-me confusão estarmos para aqui a falar e nem sequer nos apresentarmos.»
«Tem razão. A culpa foi minha. Sou o Jaime Antunes. Jaime. Proprietário de um bazar, onde vendo, como é lógico, praticamente tudo.»
«Assim está melhor, Jaime. Eu sou professor. E consegue fazer concorrência aos chineses?»
«Tenho uma licença de importação, compreende? Compro por atacado. Contentores cheios de produtos. Mas queria começar a contar-lhe uma coisa estranha que aconteceu aqui. Começou na zona que lhe mostrei há pouco.»
Já estávamos sentados numa mesa e tínhamos duas cervejas na frente.
«Onde me apontou a mulher que vestia de negro?»
«Exato.»
Fez uma pausa e ingeriu um prolongado gole de cerveja.
«Para lhe falar com franqueza, hoje entrei com o pé esquerdo no casino. Descontrolei-me e comecei a aumentar as paradas. Pior a emenda que o soneto.»
«Provavelmente insistiu muito numa máquina.»
«Como sabe?»
«Não sou bruxo, mas gostava de ser. No bom sentido, claro. Normalmente acontece assim. O pior que se pode fazer é teimar em jogar numa máquina que só engole o dinheiro e pouco retribui.»
«Conhece o Zorro?»
«Sim. Ultimamente essas máquinas têm dado poucos prémios. Passou a fase do marketing, percebe?»
«Ah sim.»
«Há sempre um estado de graça quando instalam novas máquinas. Dão muito a princípio e depois tiram. Nada é eterno. Entretanto algumas pessoas já se viciaram nessas máquinas.»
«Entendo. Cansei-me da máquina quando já perdia mais de cem euros e resolvi passar ao piso de baixo. Fui avançando entre máquinas de vinte cêntimos até que cheguei aos “corações” onde estava a mulher de preto. Só tinha livre a máquina da direita, porque ela jogava nas outras duas.»
«E então?»
«Perdi.»
«Mas...»
«Compreendo a sua dúvida. Já vai entender. Disse mal da minha sorte e por acaso a mulher ouviu-me. Virou-se para mim e disse:»
«Senhor... é preciso acreditar!»
«Como?»
«Deve ter pensamento positivo. Acreditar que vai ter um bom prémio.»
«Lembrei-me então do livro de Rhonda Byrne. Conhece?»
«Sim. Um livro de auto ajuda. Ponho certas reticências naquela história da lei da atração universal. Segundo ela, os bons pensamentos atraem boas coisas. Para mim, não é por muito acreditar que alcanço o que desejo. Se consegui, foi porque insisti muito. Mas não quer dizer que acabe por conseguir. A Rhonda, sim, essa acreditou e teve êxito. Vendeu milhões de livros e provavelmente o custo de muitos que a consultaram.»
«Pois era isso o que pensava até encontrar aquela mulher.»
«A mulher de negro.»
«Sim. Tentei defender o meu ponto de vista. Como podia ter pensamento positivo se tudo me estava a correr mal?»
Ela abanou a cabeça e alisou os cabelos.
«Não seja pessimista, senhor. A sorte há de chegar. Acredite que vai ganhar.»
«Continuou a jogar nas duas máquinas e eu meti mais dez euros que arderam no interior da máquina sem deixarem rasto de fumo. Só sinais de ódio por estar a ser levado pelas malditas máquinas que não retribuíam nada.»
«Senhor...»
Voltei-me para ela, visivelmente aborrecido.
«Não meto mais nenhum dinheiro nesta máquina. Não vê que o azar não me larga?»
«Não pense assim. Olhe, mude para aquela ali.»
«E acenou com o indicador direito.»
«E ela estava a ter sorte?»
«Parecia que sim. Hesitei porque a máquina era igual, embora fosse de vinte cêntimos. Mas fiz-lhe a vontade. Ah... Esqueci-me de dizer que ela tinha uma companheira mais nova que não jogava e também insistiu para jogar naquela máquina.»
«Não me diga que ganhou?»
«Pois foi. Oitenta euros. Fiquei parvo. Não pelo prémio, mas por ela ter acertado. Outra imperial?»
«Pode ser, obrigado.»
«Viu, senhor? E foi só o começo. Agora vá jogar noutras máquinas.»
«Quando o encontrei pela primeira vez ia trocar o ticket da máquina dos "corações” de vinte cêntimos. Joguei noutras máquinas e ganhei quase sempre. Recuperei o que perdi e acredito que vou continuar a ganhar. Tenho é que saltar de máquina em máquina e não me afastar da mulher de negro.»
Assim ditava a lógica. Não permanecer durante muito tempo numa máquina.
«É tudo muito estranho. A convicção dela. Os palpites. Mas diga-me uma coisa, essa mulher existe mesmo, Jaime?»
«Claro que existe. Até já a viu.»
«É verdade.»
«Bom, meu amigo. Vou jogar só durante meia hora e não insisto mais para não fazer mais borrada. Desejo-lhe boa sorte e escusa de me desejar o mesmo porque a sorte já está comigo. Pelo menos hoje.»
Levantou-se e estendeu-me a mão, que apertei.
«Obrigado.»
Pagou a despesa, fez-me um aceno e dirigiu-se para as escadas rolantes. Fiquei a pensar no caso.
Naquele piso nada tinha a fazer. Apanhei a boleia das escadas rolantes e dei de caras com a Star Wars. Indecisão. Jogava, não jogava?
Foi então que vi a mulher de negro!
Conforme tinha dito o meu amigo desconhecido, ela estava de roda das duas das três máquinas dos "corações”, de pé, dando assistência, ora a uma ora a outra. Aproximei-me. Numa delas tinha saído o bónus. Dava direito a oito jogos de graça, com colocação, meio lógica meio aleatória, dos corações. Antes disso surgia no topo do monitor um rosto deformado de mulher com uns olhos felinos, verdes.
Ela ia-se voltando alternadamente para cada máquina, parecendo estar a mungir duas vacas. Pelos vistos, o jogo corria-lhe de feição. A máquina do lado direito estava livre, embora tivesse uma jovem sentada num banco em frente à mesma. Levantou-se logo e agradeci, ao mesmo tempo que sorria. Tirei do bolso da camisa uma nota de dez euros que introduzi na ranhura da máquina. Voltou para trás e tentei de novo.
«Não queres...» disse em voz alta.
A jovem tentou ajudar-me.
«Dobre-a ao meio, senhor. Vai ver que a nota entra.»
«Obrigado. Por acaso até já sabia.»
E a nota entrou. Escolhi sete linhas e fiz a primeira jogada.
«Boa!»
Não era por causa da minha jogada. Seria sorte a mais. O caso é que a mulher de negro tinha ganho um prémio muito bom. Quase trezentos euros.
«Esta calhou bem.» Disse ela, voltando-se para mim.
Fiz-lhe um exame rápido. Calças pretas, cinto vermelho, blusa preta, cabelo escuro, comprido. Muito morena. Magra. Simples no falar, a apontar para um nível cultural baixo, mas muito educada. Devia ter mais de trinta anos e menos de quarenta. A companheira era mais nova, forte sem ser gorda, simpática, sempre com um sorriso no rosto, mas triste. Estilo de mulher pachorrenta.
Tentei meter conversa.
«Sabe que na máquina da esquerda saíram, há três dias, cinco corações em linha?»
«E na sua saíram ontem.» Esclareceu. «Tive uma daquelas sortes...»
Não nos voltámos a encontrar junto à máquina automática de pagamentos, mas vi-o a jogar numa máquina de um cêntimo.
Uma máquina igual a muitas outras, mas mais apetecível devido ao bónus. Sem que desse conta da minha presença, tentei entender como acontecia o bónus. Fácil. Bastava aparecerem nas três colunas centrais partes de uma limusine. Seguiam-se dez jogos gratuitos. As limusines mudavam para cinzento prateado e, repetindo-se a situação das três partes, havia uma série de mais quinze jogos de graça.
Duas máquinas formavam o bloco e ambas estavam em estado de graça. A da direita dava mais prémios. Ele jogava na outra.
«Pelos vistos está a correr bem.»
O homem voltou-se para mim.
«Ah... é senhor. O jogo não corre mal, mas a máquina da direita está a abrir com mais frequência.»
«Também já vi isso.»
«Estou já a terminar o jogo.»
«Não diga isso. A máquina pode abrir de um momento para o outro.»
E tinha razão. Acabaram-se os créditos.
«Gostava de contar-lhe uma coisa. Aqui joga-se muito e, às vezes, é preciso falarmos para o desastre não ser tão grande. Não sou propriamente um viciado e parece-me que o senhor também não. Sei distingui-los à légua.»
Não achei qualquer mal em falar com o desconhecido.
«Estou à sua disposição.»
«Conhece as máquinas dos "corações"?»
«Perfeitamente. Até já lá ganhei, de sociedade com um amigo, um prémio de mais de trezentos euros.»
«O jogo é interessante, mas não é propriamente sobre ele que quero falar. Venha daí comigo. No piso de cima podemos conversar à-vontade. Mas antes queria mostrar-lhe uma coisa.»
Parou a poucos metros das máquinas dos "corações".
«Vê aquela mulher de negro que está a jogar?»
«Perfeitamente.»
«Já reparou que ela joga em duas máquinas?»
«É verdade.»
«O caso relaciona-se com essa mulher.»
«Um romance?» perguntei, sorrindo.
«Nada disso.»
«Então...?»
«Já lhe conto. Quer beber uma cerveja comigo?»
Disse que sim.
Deixámo-nos levar pelas escadas rolantes até ao piso de cima.
«Conforme já lhe disse, não sou um jogador compulsivo. Gosto de jogar e venho cá de vez em quando. Acredito que o meu futuro não está a ser desenhado aqui.»
Interrompi-o.
«Se me permite, chamo-me Mário Fonseca. Mário, basta. Faz-me confusão estarmos para aqui a falar e nem sequer nos apresentarmos.»
«Tem razão. A culpa foi minha. Sou o Jaime Antunes. Jaime. Proprietário de um bazar, onde vendo, como é lógico, praticamente tudo.»
«Assim está melhor, Jaime. Eu sou professor. E consegue fazer concorrência aos chineses?»
«Tenho uma licença de importação, compreende? Compro por atacado. Contentores cheios de produtos. Mas queria começar a contar-lhe uma coisa estranha que aconteceu aqui. Começou na zona que lhe mostrei há pouco.»
Já estávamos sentados numa mesa e tínhamos duas cervejas na frente.
«Onde me apontou a mulher que vestia de negro?»
«Exato.»
Fez uma pausa e ingeriu um prolongado gole de cerveja.
«Para lhe falar com franqueza, hoje entrei com o pé esquerdo no casino. Descontrolei-me e comecei a aumentar as paradas. Pior a emenda que o soneto.»
«Provavelmente insistiu muito numa máquina.»
«Como sabe?»
«Não sou bruxo, mas gostava de ser. No bom sentido, claro. Normalmente acontece assim. O pior que se pode fazer é teimar em jogar numa máquina que só engole o dinheiro e pouco retribui.»
«Conhece o Zorro?»
«Sim. Ultimamente essas máquinas têm dado poucos prémios. Passou a fase do marketing, percebe?»
«Ah sim.»
«Há sempre um estado de graça quando instalam novas máquinas. Dão muito a princípio e depois tiram. Nada é eterno. Entretanto algumas pessoas já se viciaram nessas máquinas.»
«Entendo. Cansei-me da máquina quando já perdia mais de cem euros e resolvi passar ao piso de baixo. Fui avançando entre máquinas de vinte cêntimos até que cheguei aos “corações” onde estava a mulher de preto. Só tinha livre a máquina da direita, porque ela jogava nas outras duas.»
«E então?»
«Perdi.»
«Mas...»
«Compreendo a sua dúvida. Já vai entender. Disse mal da minha sorte e por acaso a mulher ouviu-me. Virou-se para mim e disse:»
«Senhor... é preciso acreditar!»
«Como?»
«Deve ter pensamento positivo. Acreditar que vai ter um bom prémio.»
«Lembrei-me então do livro de Rhonda Byrne. Conhece?»
«Sim. Um livro de auto ajuda. Ponho certas reticências naquela história da lei da atração universal. Segundo ela, os bons pensamentos atraem boas coisas. Para mim, não é por muito acreditar que alcanço o que desejo. Se consegui, foi porque insisti muito. Mas não quer dizer que acabe por conseguir. A Rhonda, sim, essa acreditou e teve êxito. Vendeu milhões de livros e provavelmente o custo de muitos que a consultaram.»
«Pois era isso o que pensava até encontrar aquela mulher.»
«A mulher de negro.»
«Sim. Tentei defender o meu ponto de vista. Como podia ter pensamento positivo se tudo me estava a correr mal?»
Ela abanou a cabeça e alisou os cabelos.
«Não seja pessimista, senhor. A sorte há de chegar. Acredite que vai ganhar.»
«Continuou a jogar nas duas máquinas e eu meti mais dez euros que arderam no interior da máquina sem deixarem rasto de fumo. Só sinais de ódio por estar a ser levado pelas malditas máquinas que não retribuíam nada.»
«Senhor...»
Voltei-me para ela, visivelmente aborrecido.
«Não meto mais nenhum dinheiro nesta máquina. Não vê que o azar não me larga?»
«Não pense assim. Olhe, mude para aquela ali.»
«E acenou com o indicador direito.»
«E ela estava a ter sorte?»
«Parecia que sim. Hesitei porque a máquina era igual, embora fosse de vinte cêntimos. Mas fiz-lhe a vontade. Ah... Esqueci-me de dizer que ela tinha uma companheira mais nova que não jogava e também insistiu para jogar naquela máquina.»
«Não me diga que ganhou?»
«Pois foi. Oitenta euros. Fiquei parvo. Não pelo prémio, mas por ela ter acertado. Outra imperial?»
«Pode ser, obrigado.»
«Viu, senhor? E foi só o começo. Agora vá jogar noutras máquinas.»
«Quando o encontrei pela primeira vez ia trocar o ticket da máquina dos "corações” de vinte cêntimos. Joguei noutras máquinas e ganhei quase sempre. Recuperei o que perdi e acredito que vou continuar a ganhar. Tenho é que saltar de máquina em máquina e não me afastar da mulher de negro.»
Assim ditava a lógica. Não permanecer durante muito tempo numa máquina.
«É tudo muito estranho. A convicção dela. Os palpites. Mas diga-me uma coisa, essa mulher existe mesmo, Jaime?»
«Claro que existe. Até já a viu.»
«É verdade.»
«Bom, meu amigo. Vou jogar só durante meia hora e não insisto mais para não fazer mais borrada. Desejo-lhe boa sorte e escusa de me desejar o mesmo porque a sorte já está comigo. Pelo menos hoje.»
Levantou-se e estendeu-me a mão, que apertei.
«Obrigado.»
Pagou a despesa, fez-me um aceno e dirigiu-se para as escadas rolantes. Fiquei a pensar no caso.
Naquele piso nada tinha a fazer. Apanhei a boleia das escadas rolantes e dei de caras com a Star Wars. Indecisão. Jogava, não jogava?
Foi então que vi a mulher de negro!
Conforme tinha dito o meu amigo desconhecido, ela estava de roda das duas das três máquinas dos "corações”, de pé, dando assistência, ora a uma ora a outra. Aproximei-me. Numa delas tinha saído o bónus. Dava direito a oito jogos de graça, com colocação, meio lógica meio aleatória, dos corações. Antes disso surgia no topo do monitor um rosto deformado de mulher com uns olhos felinos, verdes.
Ela ia-se voltando alternadamente para cada máquina, parecendo estar a mungir duas vacas. Pelos vistos, o jogo corria-lhe de feição. A máquina do lado direito estava livre, embora tivesse uma jovem sentada num banco em frente à mesma. Levantou-se logo e agradeci, ao mesmo tempo que sorria. Tirei do bolso da camisa uma nota de dez euros que introduzi na ranhura da máquina. Voltou para trás e tentei de novo.
«Não queres...» disse em voz alta.
A jovem tentou ajudar-me.
«Dobre-a ao meio, senhor. Vai ver que a nota entra.»
«Obrigado. Por acaso até já sabia.»
E a nota entrou. Escolhi sete linhas e fiz a primeira jogada.
«Boa!»
Não era por causa da minha jogada. Seria sorte a mais. O caso é que a mulher de negro tinha ganho um prémio muito bom. Quase trezentos euros.
«Esta calhou bem.» Disse ela, voltando-se para mim.
Fiz-lhe um exame rápido. Calças pretas, cinto vermelho, blusa preta, cabelo escuro, comprido. Muito morena. Magra. Simples no falar, a apontar para um nível cultural baixo, mas muito educada. Devia ter mais de trinta anos e menos de quarenta. A companheira era mais nova, forte sem ser gorda, simpática, sempre com um sorriso no rosto, mas triste. Estilo de mulher pachorrenta.
Tentei meter conversa.
«Sabe que na máquina da esquerda saíram, há três dias, cinco corações em linha?»
«E na sua saíram ontem.» Esclareceu. «Tive uma daquelas sortes...»
«Ainda bem.»
O meu jogo durou uns escassos dois minutos. Voltei a injetar dinheiro na máquina.
«Lá vão mais dez euros. Acho que não devia ter saído de casa.»
«Não diga isso! Tem que acreditar que tudo vai mudar.»
«Acha?»
Voltei a perder e desisti. Fiquei a vê-la jogar. Dava gosto observar como ia mungindo as vacas, ora uma ora outra. Parecia estar com sorte e isso dava-me um certo gozo. Tudo o que fosse contra o esquema infernal do casino era acolhido de bom grado.
«Então não vai jogar mais?» perguntou.
«Estou a tomar fôlego para uma nova tentativa. Olhe, vou às raposas. Conhece o jogo?»
«Por acaso não. Vai ver que tudo muda para bom. Deve ser positivo.»
«Pois, senhor.» Reforçou a companheira, exibindo um sorriso meigo.
Fiquei a pensar que parentesco havia entre as duas. Não eram nada parecidas uma com a outra.
Regressei das raposas pouco depois, desalentado.
«Já vi que o senhor perdeu.»
Continuava de roda das duas máquinas com o ar mais natural deste mundo.
«Está a correr bem?»
«Vai correr bem, senhor.»
Perdia? Talvez. Mas fé e confiança não lhe faltavam. Aquele sotaque não me enganava. Era cigana.
Mais um prémio dos graúdos, agora na máquina da esquerda.
«Ótimo!»
Sorriu e virou-se outra vez para as máquinas. Quase só a via de perfil. De facto era muito morena. Tinha ar arrogante, mas na fala era simpática. Denunciava uma origem humilde ao tratar-me por “senhor”. Outro pormenor curioso. Estava sempre com um maço de notas nas mãos.
«Creio que já tenho a minha conta. Não vale a pena insistir.»
«Não diga essa palavra! Olhe, jogue naquela máquina.»
E apontou para a sua esquerda. Olhei para a companheira, a mais nova das duas. Esta sorriu, parecendo dar-me alento. Só então reparei que tinha olhos escuros e também era morena.
«É mais cara!» retorqui.
«Vá por mim.»
Perante tanta insistência, encolhi os ombros. Mais vinte, menos vinte...
O curioso é que num instante ganhei cerca de sessenta euros. Saquei o ticket e mostrei-o à cigana, algo admirado. Estava a repetir-se a cena que me tinha contado o desconhecido.
«Muito estranho!» pensei.
«Eu não lhe disse?»
E continuou a mostrar o ar mais natural deste mundo, tratando as duas vacas com o maior dos desvelos.
«Precisa de ter pensamento positivo.» Aconselhou a mais nova.
«Agora tudo vai correr bem.»
«Oxalá.»
Fui à máquina de pagamentos automáticos e troquei o ticket por dinheiro. Moedas dum lado e notas do outro. Quase em frente situava-se uma "sala de chuto" não muito do agrado do Raul. Referia-me às Star Wars. Às vezes tinha algum sucesso nessas máquinas.
Tive um impulso. Dez euros numa slot não faziam mal a ninguém. O resultado foi bom. Vinte e oito euros. Regressei às máquinas dos "corações".
«Vê que já corre bem o jogo?»
Comentário positivo da mais nova. Mas como sabia que o jogo estava a correr melhor? Talvez a expressão do meu rosto denunciasse.
«Vai trocar dinheiro.» Disse a outra.
Obedeceu prontamente à ordem da jogadora. Lançou-me um sorriso tímido e dirigiu-se ao balcão de pagamentos.
«Sabe da existência das máquinas automáticas de pagamento?»
«Sim, sei. Mas ela foi trocar dinheiro.»
O período de recuperação continuou, sempre perto das máquinas onde jogava a cigana vestida de negro. Aparentemente não sentia necessidade de mudar de zona. Mas foi então que tive uma má ideia.
«Agora vou até ao outro piso.»
Olhou-me com ar sério, mas não disse nada.
Correu mal. Regressei à base.
«Então continua a correr bem?»
«Vai-se jogando» disse ela. «E o senhor?»
«Perdi lá em cima. Agora vou jogar no parque de diversões. As máquinas estão opostas a estas. Já jogou nelas?»
«Não.»
A mulher não largava aquelas duas máquinas. A crença era grande.
Joguei no parque de diversões e ganhei.
Saímos praticamente à mesma hora. Já em casa, feitas as contas, praticamente não perdi nem ganhei. Se tivesse jogado sempre debaixo da zona de influência da mulher que mungia as vacas certamente teria chegado a casa mais satisfeito.
E como interpretar a cópia fiel do que aconteceu com o desconhecido quando foi jogar junto da mulher de negro?
Pura coincidência?
Voltei no dia seguinte e a situação repetiu-se. A cigana continuava de roda das duas máquinas dos "corações" e eu a ganhar sempre que jogava nas proximidades. Curiosamente dei-me sempre mal nas vezes que subi ao segundo piso.
Deixei de as ver às duas e meia da manhã e comecei a perder, não conseguindo sacar um único que se visse. Dava para pensar.
«É preciso acreditar.»
Devia fazer uma terceira tentativa para tirar a limpo a razão de ter êxito sempre que jogava próximo das duas mulheres. Mas não foi possível. Nunca mais vi a ordenhadora de vacas, nem tão pouco a triste companheira.
É sexta-feira. Dia de muito movimento. Cheguei já perto das nove.
Tinha pensado em casa maduramente numa estratégia em que perdesse pouco. Jogando cinco euros em cada máquina, apalpando assim o pulso a cada uma, talvez a sorte me favorecesse. Digo talvez para não dizer que não era uma boa técnica. Pelo menos no primeiro piso.
Resolvi voltar a apalpar o pulso a uma máquina onde não me tinha dado mal. Consegui ir ao bónus e estava em melhor posição que da outra vez, pois jogava com quinze.
Acumularam-se os jogos grátis e os fatores multiplicativos. Até que bateu em cheio. Resumindo e baralhando, consegui sacar um ticket de quatrocentos e vinte euros. E os seis últimos jogos de prémio nada renderam. Mas era pedir a lua!
«Oba!» como dizia a Simone, a brasileira que afinal se chamava Cibele.
E fiquei a olhar para aquele ticket...
Esta noite dormi bem. Pudera, tinha ganho bom dinheiro! Mas quantos dos jogadores que cá estão não dormiram esta noite porque, acordados, sentiram os pesadelos caírem sobre eles, confundidos com os demónios elementais, também viciados no fumo, nas bebidas alcoólicas e no jogo?
Deus, que tudo vê e tudo decide, não joga aos dados. E, se fez o homem à Sua Imagem, porque o deixou entregue aos dados que não pararam de ser lançados?
Repito que não voltei a ver a mulher de negro, nem a sua companheira de sorriso doce. Temo que alguma coisa ruim lhes possa ter acontecido. Isto para não falar do nó cego que lhe fizeram no casino. Um nó cego igual a muitos que vêm fazendo, dia após dia, no jogo de máquinas que dizem ser aleatório e que tem a supervisão dos inspetores assobiadores para o lado, que, numa primeira regra, servem os interesses do Estado e esquecem a segunda regra que é zelar pelos utentes.
É preciso acreditar?
Nem tu, mulher de negro conseguiste vencer o danado do jogo. Deram-te primeiro o paraíso e acreditaste. Mas era preciso acreditares que se tratava de um paraíso passageiro e o êxito nunca mais viria a acontecer como nos primeiros tempos. Sei muito bem como são os filmes deste casino. A sua qualidade mascarada. As traiçoeiras máquinas ronronantes. O ambiente que embriaga os utentes. Tudo bem organizado para levar o utente à certa, a começar na arquitetura traiçoeira do software.
E sabem uma coisa?
É preciso acreditar que este ambiente de máquinas ronronantes é um destino a que temos que fugir com todas as nossas forças e o mais depressa possível, antes que seja tarde.
«Lá vão mais dez euros. Acho que não devia ter saído de casa.»
«Não diga isso! Tem que acreditar que tudo vai mudar.»
«Acha?»
Voltei a perder e desisti. Fiquei a vê-la jogar. Dava gosto observar como ia mungindo as vacas, ora uma ora outra. Parecia estar com sorte e isso dava-me um certo gozo. Tudo o que fosse contra o esquema infernal do casino era acolhido de bom grado.
«Então não vai jogar mais?» perguntou.
«Estou a tomar fôlego para uma nova tentativa. Olhe, vou às raposas. Conhece o jogo?»
«Por acaso não. Vai ver que tudo muda para bom. Deve ser positivo.»
«Pois, senhor.» Reforçou a companheira, exibindo um sorriso meigo.
Fiquei a pensar que parentesco havia entre as duas. Não eram nada parecidas uma com a outra.
Regressei das raposas pouco depois, desalentado.
«Já vi que o senhor perdeu.»
Continuava de roda das duas máquinas com o ar mais natural deste mundo.
«Está a correr bem?»
«Vai correr bem, senhor.»
Perdia? Talvez. Mas fé e confiança não lhe faltavam. Aquele sotaque não me enganava. Era cigana.
Mais um prémio dos graúdos, agora na máquina da esquerda.
«Ótimo!»
Sorriu e virou-se outra vez para as máquinas. Quase só a via de perfil. De facto era muito morena. Tinha ar arrogante, mas na fala era simpática. Denunciava uma origem humilde ao tratar-me por “senhor”. Outro pormenor curioso. Estava sempre com um maço de notas nas mãos.
«Creio que já tenho a minha conta. Não vale a pena insistir.»
«Não diga essa palavra! Olhe, jogue naquela máquina.»
E apontou para a sua esquerda. Olhei para a companheira, a mais nova das duas. Esta sorriu, parecendo dar-me alento. Só então reparei que tinha olhos escuros e também era morena.
«É mais cara!» retorqui.
«Vá por mim.»
Perante tanta insistência, encolhi os ombros. Mais vinte, menos vinte...
O curioso é que num instante ganhei cerca de sessenta euros. Saquei o ticket e mostrei-o à cigana, algo admirado. Estava a repetir-se a cena que me tinha contado o desconhecido.
«Muito estranho!» pensei.
«Eu não lhe disse?»
E continuou a mostrar o ar mais natural deste mundo, tratando as duas vacas com o maior dos desvelos.
«Precisa de ter pensamento positivo.» Aconselhou a mais nova.
«Agora tudo vai correr bem.»
«Oxalá.»
Fui à máquina de pagamentos automáticos e troquei o ticket por dinheiro. Moedas dum lado e notas do outro. Quase em frente situava-se uma "sala de chuto" não muito do agrado do Raul. Referia-me às Star Wars. Às vezes tinha algum sucesso nessas máquinas.
Tive um impulso. Dez euros numa slot não faziam mal a ninguém. O resultado foi bom. Vinte e oito euros. Regressei às máquinas dos "corações".
«Vê que já corre bem o jogo?»
Comentário positivo da mais nova. Mas como sabia que o jogo estava a correr melhor? Talvez a expressão do meu rosto denunciasse.
«Vai trocar dinheiro.» Disse a outra.
Obedeceu prontamente à ordem da jogadora. Lançou-me um sorriso tímido e dirigiu-se ao balcão de pagamentos.
«Sabe da existência das máquinas automáticas de pagamento?»
«Sim, sei. Mas ela foi trocar dinheiro.»
O período de recuperação continuou, sempre perto das máquinas onde jogava a cigana vestida de negro. Aparentemente não sentia necessidade de mudar de zona. Mas foi então que tive uma má ideia.
«Agora vou até ao outro piso.»
Olhou-me com ar sério, mas não disse nada.
Correu mal. Regressei à base.
«Então continua a correr bem?»
«Vai-se jogando» disse ela. «E o senhor?»
«Perdi lá em cima. Agora vou jogar no parque de diversões. As máquinas estão opostas a estas. Já jogou nelas?»
«Não.»
A mulher não largava aquelas duas máquinas. A crença era grande.
Joguei no parque de diversões e ganhei.
Saímos praticamente à mesma hora. Já em casa, feitas as contas, praticamente não perdi nem ganhei. Se tivesse jogado sempre debaixo da zona de influência da mulher que mungia as vacas certamente teria chegado a casa mais satisfeito.
E como interpretar a cópia fiel do que aconteceu com o desconhecido quando foi jogar junto da mulher de negro?
Pura coincidência?
Voltei no dia seguinte e a situação repetiu-se. A cigana continuava de roda das duas máquinas dos "corações" e eu a ganhar sempre que jogava nas proximidades. Curiosamente dei-me sempre mal nas vezes que subi ao segundo piso.
Deixei de as ver às duas e meia da manhã e comecei a perder, não conseguindo sacar um único que se visse. Dava para pensar.
«É preciso acreditar.»
Devia fazer uma terceira tentativa para tirar a limpo a razão de ter êxito sempre que jogava próximo das duas mulheres. Mas não foi possível. Nunca mais vi a ordenhadora de vacas, nem tão pouco a triste companheira.
É sexta-feira. Dia de muito movimento. Cheguei já perto das nove.
Tinha pensado em casa maduramente numa estratégia em que perdesse pouco. Jogando cinco euros em cada máquina, apalpando assim o pulso a cada uma, talvez a sorte me favorecesse. Digo talvez para não dizer que não era uma boa técnica. Pelo menos no primeiro piso.
Resolvi voltar a apalpar o pulso a uma máquina onde não me tinha dado mal. Consegui ir ao bónus e estava em melhor posição que da outra vez, pois jogava com quinze.
Acumularam-se os jogos grátis e os fatores multiplicativos. Até que bateu em cheio. Resumindo e baralhando, consegui sacar um ticket de quatrocentos e vinte euros. E os seis últimos jogos de prémio nada renderam. Mas era pedir a lua!
«Oba!» como dizia a Simone, a brasileira que afinal se chamava Cibele.
E fiquei a olhar para aquele ticket...
Esta noite dormi bem. Pudera, tinha ganho bom dinheiro! Mas quantos dos jogadores que cá estão não dormiram esta noite porque, acordados, sentiram os pesadelos caírem sobre eles, confundidos com os demónios elementais, também viciados no fumo, nas bebidas alcoólicas e no jogo?
Deus, que tudo vê e tudo decide, não joga aos dados. E, se fez o homem à Sua Imagem, porque o deixou entregue aos dados que não pararam de ser lançados?
Repito que não voltei a ver a mulher de negro, nem a sua companheira de sorriso doce. Temo que alguma coisa ruim lhes possa ter acontecido. Isto para não falar do nó cego que lhe fizeram no casino. Um nó cego igual a muitos que vêm fazendo, dia após dia, no jogo de máquinas que dizem ser aleatório e que tem a supervisão dos inspetores assobiadores para o lado, que, numa primeira regra, servem os interesses do Estado e esquecem a segunda regra que é zelar pelos utentes.
É preciso acreditar?
Nem tu, mulher de negro conseguiste vencer o danado do jogo. Deram-te primeiro o paraíso e acreditaste. Mas era preciso acreditares que se tratava de um paraíso passageiro e o êxito nunca mais viria a acontecer como nos primeiros tempos. Sei muito bem como são os filmes deste casino. A sua qualidade mascarada. As traiçoeiras máquinas ronronantes. O ambiente que embriaga os utentes. Tudo bem organizado para levar o utente à certa, a começar na arquitetura traiçoeira do software.
E sabem uma coisa?
É preciso acreditar que este ambiente de máquinas ronronantes é um destino a que temos que fugir com todas as nossas forças e o mais depressa possível, antes que seja tarde.
Neste casino, e nos outros, a norma é sempre a mesma, tal como nas coisas que acontecem na vida de cada um. Primeiro estranha-se, depois entranha-se...

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