quinta-feira, 24 de outubro de 2024

O dom

 


Ele tinha um dom. As videntes que consultou, por motivos importantes como a ocorrência de encostos e de outros fenómenos que o diminuíam fisicamente e também psicologicamente, foram unânimes no seu diagnóstico. Mas não acreditava nas suas qualidades mediúnicas, principalmente naqueles que tinham os preços tabelados das consultas. Então porque as consultava? A resposta ia dar sempre no mesmo. Impulsos. Era um homem de impulsos.
Mas que dom era o seu? Transformar em ouro tudo aquilo em que tocava, como na lenda do rei Midas? Descobrir o mal de uma pessoa apenas por um simples toque no seu corpo? Conseguir que todos os seus desejos se realizassem de um momento para o outro? Não. Nada disso. Se tinha um dom, o mesmo estava escondido. E não queria descobri-lo.
«És parvo.» Disse-lhe o seu melhor amigo. «Tens que descobrir a porra desse dom.»
Não ia pôr-se a adivinhar. Era bom de dizer-se que tinha um dom. E, a ser verdade, vá lá adivinhar qual seria esse dom. E porquê ele?, se nem sequer havia antecedentes na família?
«Sabes lá o que se passou na vida dos teus bisavós!»
«Tens razão.»
Talvez que um dia a verdade viesse à tona de água. Por exemplo, podia acontecer salvar uma idosa que atravessava uma passadeira para peões no sítio errado e à hora errada, estando na iminência de ser colhida por um carro. E salvava-a porquê? Muito simples. Porque previra antecipadamente o que ia acontecer e agiu sobre a idosa antes da fita do tempo registar o momento exato do acidente.
Ficava famoso, mas não queria. Se fosse verdade aquilo dos dons, desejava usar os seus poderosos recursos quando tal fosse necessário. Mais nada. Honrarias não as queria.
A propósito de fama foi então que se lembrou de um filme que viu na sua juventude e que muito o impressionou. Tratava-se de uma jovem que aspirava ser famosa, embora não tivesse atributos para tal. Era uma mulher simples, entre muitas. Nem pobre, nem rica. Que não descobriu o último elemento químico caraterizado por ter uma grande instabilidade. Que não descobriu um algoritmo fabuloso que aumentasse riqueza em cada investimento financeiro que fizesse. Nada disso. Apenas aspirava a ser famosa depois de ter o seu nome escrito num grande placard publicitário, altaneiro, para que todos os que passassem na zona vissem o seu nome. Só o seu nome. Mas quem era Gladys Glover? Naturalmente era Gladys Glover [1]. Não se lembrava muito bem do filme, mas parece que ela conseguiu concretizar o seu sonho.
Lembrou-se então de algo que aconteceu um dia quando foi consultado por uma vidente numa povoação em pleno Alentejo profundo. Por sinal não lhe levou nada pela consulta. Apenas teve que comprar uns medicamentos que ela lhe receitou. Curiosamente descobriu antecipadamente o nome de um deles. Nervite. Era uma embalagem azul.
Comentou com a vidente o facto.
«Já sabia que era esse...»
«O senhor tem uma corrente muito forte.»
Acreditou nele, ou o seu comentário não passou de um ato lisonjeiro?
Bom, chegou a altura de dar um nome ao nosso homem. Amadeu? Não me soa bem. Talvez Alcides. Pronto, fica Alcides.

Estava uma tarde chuvosa, para quem tivesse que transitar na estrada. Ainda por cima fazia-se sentir na altura um esboço de nevoeiro que tinha tendência para cerrar.
Alcides assomou à janela do quarto da namorada que ainda estava deitada na cama.
«Fica, querido. Volta para o quentinho.»
Sorriu para ela e começou a sonhar. A tentação tinha alguma força para o convencer a ficar. Se voltasse para o aconchego dos lençóis sabia muito bem o que ia acontecer a seguir. Não precisava de ter um dom para adivinhar. E era bom. Muito bom. A Inês estava deitada na cama debaixo dos lençóis e dos cobertores a esconderem o misterioso manto da nudez, Ela era alérgica aos edredões e não sabia porquê, pois nunca lhe tinha perguntado. Por outro lado, era importante que chegasse a Lisboa por volta do meio-dia. Portanto, não dispunha de muito tempo.
«Tenho que ir, Inês.»
«E quando voltas, amor?»
«Amanhã. Venho almoçar.»
«Vai com Deus.»

Com Deus, ou com o Satanás por companhia, fez-se à estrada. O seu Golf preto era um veículo muito seguro e nunca o tinha deixado mal. Bastava não exagerar na velocidade, manter uma distância razoável ao carro da frente e ter mais cuidado que o habitual. Assim o exigia o estado do tempo.
«Não sei o que será melhor?» pensou.
A sua dúvida relacionava-se com uma escolha que tinha que fazer. Ir pela estrada nacional ou pela autoestrada. Habitualmente ia pela autoestrada, mas desta vez inclinava-se mais em seguir pela estrada nacional. Mas quem impunha essa ideia senão ele? Chovia pouco, mas as previsões meteorológicas apontavam para uma chuva contínua e abundante. Na verdade era mais prudente ir pela autoestrada. Para o diabo os dois euros e dez cêntimos. Em primeiro lugar estava a sua segurança.
Fez bem em seguir pela autoestrada porque quase logo a seguir começou a chover intensamente. Ao mesmo tempo o nevoeiro dava sinal de dissipar-se, o que era um bom sinal. E foi. Tudo correu de forma normal até chegar à portagem.
«Quer recibo?»
Hesitou, mas acabou por responder:
«Não, obrigado.»
Depois de passar a portagem tomou a faixa da direita. Ao fundo viu a zona do desvio usada por quem vinha do lado Loures. Naquele momento entrava um carro. Abrandou, aliviando o pé do acelerador. Na rádio acabavam de informar que o movimento dos carros estava mais lento nas proximidades de Olival Basto, devido a um abatimento do piso na calçada de Carriche.
«Que ideia a minha!»
Referia-se ao facto de ter pensado em vir pela estrada nacional.
Não evitou uma careta de contrariedade. Ia chegar mais tarde ao encontro do meio-dia. Não gostava de chegar atrasado, mas paciência. E oxalá o negócio corresse bem. Não contava com aquela contrariedade do piso ter abatido parcialmente na calçada de Carriche.
Foi um momento. De repente, ouviu e sentiu um estrondo atrás e o carro deu um esticão brusco. Perdeu de imediato o controlo da situação e deixou-se ir, não sabendo para onde, enquanto o carro começava a ensaiar uma dança grotesca, sem música a acompanhar porque o silêncio era rei no momento. Logo a seguir, sentiu outra pancada, esta mais violenta. E a escuridão instalou-se, como se o nevoeiro cerrado o envolvesse. Um nevoeiro estranhamente escuro.
Pareceu-lhe que uma mão misteriosa tinha-o afastado para algures, ou então já não estava materialmente naquela estrada. Ou se estava, pareceu-lhe deserta e ainda sem ruídos. Era tudo muito estranho.
Seria que tinha morrido? A alma libertara-se da sua prisão natural e daí não sentir qualquer dor. Se morrer era desta forma, todo o medo que sempre sentia quando pensava na morte não tinha a mínima razão de ser. Naqueles momentos de doce incerteza, já depois do Golf ter ensaiado uma valsa descompassada, um sorriso dúbio deve ter aflorado no seu rosto. Talvez estivesse morto e tudo não passasse da manifestação do ego já fora do corpo grosseiro, preparando-se para partir em breve para a grande viagem que ninguém sabia para onde era e se tinha fim. Talvez agora tivesse possibilidade de abrir um pouco do véu sobre o seu dom. Mas não. Continuava sem saber onde estava. Se na autoestrada para Lisboa, se noutro local qualquer.
Morte, doce morte, que nem sequer lhe deu tempo para rever o bom e o mau do seu passado de todo ainda não conseguido! Um clássico que constava dos manuais e que não estava a acontecer.
Viu então um rosto de mulher assomar ao vidro do carro. A mulher estava muito angustiada e pareceu-lhe que nada tinha de angelical. Ficou confuso.
«O senhor está bem?»
Foi a pergunta que fez e que o pôs logo a pensar.
Demorou a responder. Devia estar em estado de choque. Julgou que ela repetiu a pergunta. Não tinha a certeza de nada. A situação parecia irreal.
A sua voz saiu, ao fim de muito tempo. Para ele, claro. Provavelmente foram só alguns segundos.
«Eu estou bem... Só não sei onde estou!»
Ela sorriu, aliviada. Nada lhe parecia real. A mulher. O sítio onde estava. O motivo porque estava inclinado para a frente, de mãos muito agarradas ao volante, a olhar para a mulher que parecia já não estar angustiada.
«Preciso de voltar para a Inês. Mas não sei como vou fazer.» Admitiu.

A chuva já tinha passado. O Sol brilhava a sul. Estava em frente à casa da namorada. Afinal foi mais fácil do que julgava. Só não se lembrava de como chegara ali e porque tinha demorado tanto tempo na viagem de regresso. Quase de certeza que o acidente tinha-lhe afetado qualquer zona da memória. Era isso. Um traumatismo. Mas sentia-se bem. Apesar do acidente que lhe pareceu brutal.
Pouco depois entrou em casa.
«Onde estás, Inês?»
Não ouviu a sua voz. Provavelmente tinha saído para fazer uma compra para o almoço.
Mas afinal...?»
Viu luz ao fundo e sorriu.
«Vou fazer-lhe uma surpresa.»
Atravessou o curto corredor na direção da sala de estar.
«Inês...»
Ela estava encostada à janela e olhava para o exterior. Por qualquer motivo não o tinha ouvido.
«Inês, já cheguei.»
Foi então que se voltou. Que expressão triste do seu rosto era aquela?
Afinal não tinha qualquer dom tão falado pelas videntes. Se tivesse optado seguir pela estrada nacional...


[1] "Uma rapariga sem nome", com Judy Holliday, Jack Lemmon e Peter Lawford


Sem comentários:

Enviar um comentário