segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Vidas suspensas

 


Um filme que Mário viu há dias no canal "Cine Mundo" trouxe-lhe recordações dos tempos da sua juventude há muito esquecidas, ou recalcadas nos misteriosos escaninhos da memória. Um filme sem pretensões, mas que, para o seu caso, lhe assentou com uma luva.
Esse filme conta a história de uma jovem irlandesa que, por força das circunstâncias da vida, se vê obrigada nos anos cinquenta a emigrar para Brooklyn, um burgo da cidade de Nova Iorque. Aí apaixona-se por um jovem canalizador. Paixão ou amor? Só ela é que sabe. Da parte dele, sim, é amor o que sente. Talvez a fita do tempo traga à superfície os verdadeiros sentimentos da jovem.
Um dia morre uma irmã que vivia com a mãe, viúva, numa pequena localidade irlandesa. Como é natural, decide ir passar um mês com a mãe. Está à vista uma reviravolta no futuro dos jovens enamorados, pois uma relação amorosa como a deles pode ser esquecida por um incidente qualquer nas terras longínquas da Irlanda.
É então que ele propõe, talvez por insegurança, que se casem secretamente. A jovem resiste e pergunta-lhe se não tem confiança nela. Ele contrapõe que aquele passo importante vem reforçar a ligação entre os dois. E casam.
Já na sua terra natal conhece outro jovem por quem sente logo uma empatia, mas o consciente fá-la admitir que é só amizade aquilo que sente. Talvez esteja errada
porque começam a andar juntos. A ir a restaurantes. A festas onde se realizam bailes. A longos passeios. E então começa a dúvida a envolvê-la com os seus tentáculos. Será só amizade depois de conhecer os pais do amigo, os quais têm uma vida económica desafogada, e que oferecem ao filho um futuro risonho que a jovem nunca teve antes de sair do seu país? São muitas dúvidas que caem sobre ela e que a desorientam. Está a caminho o tal incidente que pode dar uma reviravolta no seu futuro.
Entretanto surge uma mulher com informações obtidas de um amigo em Brooklyn e que sabe da ligação da jovem com o rapaz canalizador.
Está lançada a intriga. Ela tem que revelar o seu casamento secreto à intriguista e regressa no dia seguinte aos Estados Unidos, onde a espera o jovem marido que a recebe de braços abertos, com o muito amor que sempre nutriu por ela.
Em relação ao casamento secreto dos dois jovens, será que ele, ao propor-lhe o casamento, teve um vaipe premonitório?
E foram felizes, apesar do seu pensamento muito provavelmente estar no jovem com futuro garantido que deixou na sua terra natal?
E se a mulher intriguista não tivesse aparecido em cena?
Eram muitos acontecimentos para uma balança especial pesar com percentagem alta de precisão a decisão acertada ou errada da jovem. Assim, fica a dúvida sobre o desenrolar de uma luta entre os campos materiais e os espirituais.

Bom, trouxe esta história à boca de cena para tentar estabelecer uma analogia com o que aconteceu ao jovem Mário a partir do dia em que ele e a Manuela [1] se conheceram pessoalmente e daí nasceu um amor que juraram ser eterno, embora não se pusesse na altura a hipótese de casarem, sem necessidade de secretismo, dado que eram muito jovens na altura e nem um nem outro tinham concluído os estudos.
O Mário andava nas nuvens, embora os seus sonhos voassem com asas mais fortes. Cartas de amor para lá. Cartas de amor para cá. Sinceras. Ingénuas. Quase platónicas. Apaixonadas. Mas cartas marcadas pela distância. Por isso (e já era muito) havia a hipótese de, mais tarde ou mais cedo, a instabilidade de tal situação tomar peso. Um simples acontecimento externo podia ser grave motivo para envenenar aquele relação tão bela como pura. Uma relação precária porque era marcada pela distância.
Mas andava nas nuvens, porquê?
Setembro aproximava-se e era a segunda vez que ele e ela iam encontrar-se em "Portalegre cidade", cantada por José Régio [2] na sua "Toada de Portalegre".
Não via outra mulher que não fosse a Manuela. A sua paixão pela jovem alentejana chegava a ser obsessiva. Daí a felicidade crescente à medida que a fita do tempo se enrolava.
Até que um dia recebeu uma carta da Manuela a dizer que afinal ia passar o mês ao Porto. Foi como se água gelada caísse sobre a cabeça do jovem, abalando fortemente as conexões dos neurónios a ponto de inconsciente abalar os seus sentimentos.
No Porto vivia um irmão do falecido pai da Manuela quando esta tinha quatro anos. A mãe sentiu um forte abalo pela morte do companheiro e também ressentiu-se materialmente após essa triste ocorrência. Parece que o tio ajudava materialmente a sua mãe, embora talvez as relações não fossem as melhores. O certo é que ela nesse ano foi passar o mês de setembro ao Porto [3].
As cartas de amor continuaram. Talvez sem a chama habitual. Na verdade, ele ressentiu-se. O seu sonho dourado tinha sido interrompido. Uma melodia interrompida, como me contou. E tinha razão para se queixar da sua melodia interrompida. Mas a vida não parava por esse motivo. Continuava a amar a sua Manuela, embora não a tivesse perto.

Como foram os dias de setembro do Mário em Portalegre?
Antes de continuar, aproveito para afirmar que neste ponto a história afasta-se do argumento do filme, embora o desenvolvimento que se segue pareça querer dizer o contrário.
Sem a Manuela, o apelo da juventude do Mário tomou as rédeas para outra direção. Cedo encontrou novos amigos que formavam um grupo que ele achou interessante, acabando por atenuar as saudades que sentia face à ausência da Manuela.
Passava as tardes a jogar o dominó no café Central [4] com os novos amigos, ou então jogando a bola num campo de terra batida da Mocidade Portuguesa. Foi várias vezes com os amigos para os lados do miradouro, a caminho da serra de S. Mamede. Numa dessas vezes até tomou banho numa pequena piscina de uma vivenda chamada Rosal [5].
Aos sábados iam todos à praça para verem as raparigas, as quais também tinham os mesmos desígnios. E nos domingos acontecia o santo sacrifício da saída da missa, onde também catrapiscavam as jovens portalegrenses. Enfim, o Mário teve todos os dias preenchidos e até se entusiasmou um pouco mais que a conta nas "perseguições" com trocas de olhares às jovens, principalmente a uma aluna do liceu que dava pelo nome de Joana e era colega do seu primo Justino. Um rosto que ele achou atraente e que se assemelhava ao de uma chinesinha, segundo sua opinião. Ao interessar-se pela jovem, que considerava uma miúda gira, estava a cometer uma pequena traição na ausência da sua apaixonada.
A Joana era filha de um médico conceituado da cidade, não sabendo o Mário se pelas provas dadas ao serviço da Medicina, se pela riqueza visível que fora acumulando, fruto da profissão e também de uma herança. Vivia num solar situado numa rua perpendicular àquela onde a sua avó Maria morava.
Sempre que passava pela rua do solar não deixava de visitar a avó, aproveitando para se deliciar com uma colher de sopa de geleia e uma generosa fatia de boleima recheada com marmelada.
«Então viste a Joana?»
«Hoje não tive essa sorte, avó. E olhe que passei pelo solar três vezes. Nem mais, nem menos.»
«E a Manuela, neto?»
«Ora! Isto com a Joana é só um passatempo. Sabe, avó que já tenho uma fotografia dela?»
«Da filha do doutor Geraldo? Vê lá onde estás a meter-te, Mário. Olha que aquilo é gente muito fina!»
«Claro que não, avó! A fotografia é da Manuela.»
«Ah!, ainda bem. E quem foi que te arranjou essa fotografia?»
Sorriu. Era segredo de estado.
«Já sei quem foi a pessoa. O meu genro. É mesmo coisa dele.»
Referia-se ao tio Carolino. Voltou a sorrir e mudou de assunto.
«E quando a avó me conta a história do sapateiro mouco [6]
«Ah... o sapateiro.» Sorriu, deixando escapar no semblante uma certa ironia.
«Lembrei-me porque estou a vê-lo ali, sentado no banco. Tem a boca cheia de pregos. Olhe, ele sorri para nós. Por que razão está sempre a sorrir, avó?»
«Ora, porque ele é tonto.»
«É verdade que a mulher se porta mal?»
Não respondeu. Ficaram por ali.
Foi mais arrojado com a Joana nas perseguições que fez do que com a Manuela. Tinha a certeza que ela gostava e a troca de olhares era prometedora. Tão prometedora que resolveu escrever-lhe uma carta de declaração de amor. Comprou uma revista, meteu a carta entre as folhas da mesma e o Justino, que, conforme já disse, era colega dela no liceu, foi o pombo-correio.
Dois dias mais tarde teve a resposta. A revista voltou às suas mãos e trazia uma
carta no interior. Ante o olhar de gozo do primo, abriu-a logo, ansioso. Naquele momento a Manuela tinha ficado ainda mais longe. 
A chinesinha, que se chamava Joana, foi muito simpática em responder-lhe. Mas aconteceu um senão. Basicamente lamentava não poder corresponder à paixão porque namorava outro rapaz. Assim morria na praia uma paixoneta, sem que a primeira onda chegasse a tempo de beijar as suas areias. Talvez tivesse resultado se ele insistisse. Mas as férias estavam a chegar ao fim e pouco ou nada havia a fazer. Até porque, em boa verdade, a Joana não era certamente a coisa amada. 
Em relação à ida da Manuela ao Porto, só quando regressou à sua terra natal, depois de várias cartas trocadas é que caiu em si. Foi o ciúme a arma aguçada que furou o tecido espacial para um mundo imaginário em que a viu a passear de mão dada com um "amigo" que lhe fora apresentada por supostas amigas. Surgiu a suspeita porque ela falou-lhe do "amigo" por várias vezes nas cartas trocadas e ele imaginou um começo de idílio que podia até não ter existido. 
Ou existiu? 
Fica a dúvida. O certo é que tudo o que de belo havia entre os dois se desmoronou. Deixaram de escrever. Os meses passaram e só fizeram as pazes por volta de abril do ano seguinte.
Foi a primeira zanga a sério. Outra viria a seguir um ano depois. E essa foi fatal. Separou-os para sempre.

E aqui está como um filme que viu na televisão, fez, passados muitos anos, vir a cena a recordação de uma tragédia que falava de sonhos perdidos. 
Foram duas vidas suspensas. Uma que partiu rumo ao desconhecido. Partiu e não voltou. Outra que continua ainda hoje na sua viagem circular.
Mal ou bem, o Mário seguiu o seu caminho. Quanto a ela, veio a casar com o homem que mais odiava. Assim, talvez por vingança, ao contrário do que é habitual acontecer, o amor acabou por gerar o ódio.
A Manuela não foi feliz. Nem no amor, nem na saúde. Cedo foi levada pelas asas negras da morte e perdeu-se no constelado do céu. Quanto ao Mário ainda hoje suspeita que a Manuela imitou as folhas das árvores que, amarelecidas, desistiram de viver e caíram no chão.
Em tempos passados, quando os fenómenos insólitos caíram em cascata sobre as conexões dos neurónios do Mário, uma vidente afirmou que a ouvia chorar com pena de não ter sido sua em vida.
E o Mário?

[1] Manuela
[2] Um parêntesis particular: foi professor do Justino, o primo do Mário que, anos mais tarde, o considerou injustamente como um "ídolo com pés de barro". Infelizmente já não é deste mundo. Por coincidência setembro levou-o para o constelado do céu. uma viagem desconhecida, irreal ou não.
Só mais uma coisa: nunca falaram sobre o porquê do tal "ídolo com pés de barro"
[3] E porque não o mês de agosto?
[4] Em frente ficavam os Correios, onde já tinha ido uma vez com a sua Manuela no ano em que se conheceram pessoalmente.
[5] Ou era o nome de uma quinta? O Mário não sabia nadar. Não houve perigo de afogamento porque a água dava-lhe até ao pescoço.
[6] Os mortos não falam

Sem comentários:

Enviar um comentário