(História fantástica extraída e alterada de um caderno de Mário guardado por uma amiga e destinada, para publicar, ao autor deste blogue. É do seu interesse clicar em "Saltos no tempo", escrito a azul...)
Passava já das sete quando entrei no casino. Foram chapeladas do porteiro e outras mais deferências, vénias no bengaleiro, o principal dos principais chefes de sala a receber-me nos limites da passagem para as máquinas do vício, eu sei lá...
Não sou o Cristiano nem, tão pouco, o George Clooney do Ocean's Eleven, nem, agora descendo a outra galáxia, mais discreta, um conhecido fadista da nossa praça que, por obra e graça do Espírito Santo, costuma surgir do nada e lançar-se sobre uma máquina abandonada recentemente por um utente, com a certeza de que vai conquistar um bom prémio, oferecido, com grandes dúvidas, pelo badalado acontecimento aleatório.
Voltando ao George e ao filme que me veio à cabeça, às vezes penso que a melhor forma de me libertar da lei da morte é fazer uma sociedade anónima com o artista e o seu bando (no filme, entenda-se). Imagine-se. Imagine-se só. Claro que não vou assaltar o casino. O povo é sereno e é só fumaça, como dizia o falecido Pinheiro de Azevedo. E eu sou mais sereno que o povo que ouviu, certa tarde, o militar e político fazer semelhante afirmação na Praça do Comércio, se bem me lembro em pleno verão quente.
Normalmente costumo chegar à hora da abertura, mas desta vez optei por uma hora mais tardia. Depois do aparato em honra das grandes personalidades que estavam ausentes, decidi-me subir as escadas rolantes com o fim de visitar o "deserto", um andar com muitas máquinas e cada vez com menos utentes. O Fort Knox e a sua clientela do costume viriam a seguir.
Era uma pena ver aquelas mais que dez dezenas de máquinas desocupadas. Nem trinta pessoas havia naquele andar. E a que se devia? Má gestão. Sem prémios não havia utentes.
Dispunha-me a descer ao piso inferior quando encontrei um amigo que fiz recentemente.
«Amigo Mário! Há muito que não o via. Esteve doente?»
«Viva, Francisco. Sinto-me mais são que um pêro. Está tudo bem consigo?»
«Quero sair deste antro que me agarra com força. De resto, tudo bem.»
«Ótimo.»
Expliquei-lhe a razão da minha ausência prolongada. Depois daquele caso passado com a inspetora, mais a mais com uma reclamação que tinha pernas para andar, até perdi o interesse como observador, já que jogar só o fazia não pelo jogo mas pelo prazer de ganhar. Quanto àquele maldito caso, ainda não tinha desistido. Só estava à procura do momento certo para agir. Podia demorar muito tempo, mas um dia ia acontecer.
«Oxalá. Nem calcula o ódio que tenho a esta gente. Ainda bem que o vício não entra no meu amigo. Eu é que não consigo. O pouco dinheiro que arranjo vai todo para este sorvedouro maldito.»
«Tem que controlar-se mais, meu amigo.»
«É revoltante. Tenho a vida destruída. A minha família, os amigos do antigo emprego. É que não sou um qualquer. Estudei, empreguei-me bem, cultivei-me. Agora ando por aqui. Desculpe estar a importuná-lo, amigo Mário.»
«Pelo amor de Deus. Fale à vontade.»
«E como está a correr o jogo?»
«Ainda não comecei. Cheguei nem há cinco minutos. Agora vou lá abaixo. Isto aqui é Marrocos.»
«Depois mostro-lhe uma máquina das Cleopatras.»
«De vinte cêntimos?»
«Exato. Então vá lá ao Fort Knox...»
Desci as escadas rolantes e dirigi-me para a zona do Fort Knox. Encontrei dois ou três amigos que esperavam por uma máquina dos livros disponível. O ambiente estava mais concorrido do que o habitual. Não era fim de semana e o motivo de tanta concorrência devia ser outro. Evidente. Não precisava de mais. A platina rondava os três mil e quatrocentos euros, quase o dobro do ponto de partida. A única máquina à minha disposição era uma dos Unicorn Enchanted (mais conhecidas por máquinas dos cavalos). Uma ou duas notas não faziam diferença e, aliás, naquela noite não queria ficar só como observador de factos que estavam mais que comprovados.
Não sou o Cristiano nem, tão pouco, o George Clooney do Ocean's Eleven, nem, agora descendo a outra galáxia, mais discreta, um conhecido fadista da nossa praça que, por obra e graça do Espírito Santo, costuma surgir do nada e lançar-se sobre uma máquina abandonada recentemente por um utente, com a certeza de que vai conquistar um bom prémio, oferecido, com grandes dúvidas, pelo badalado acontecimento aleatório.
Voltando ao George e ao filme que me veio à cabeça, às vezes penso que a melhor forma de me libertar da lei da morte é fazer uma sociedade anónima com o artista e o seu bando (no filme, entenda-se). Imagine-se. Imagine-se só. Claro que não vou assaltar o casino. O povo é sereno e é só fumaça, como dizia o falecido Pinheiro de Azevedo. E eu sou mais sereno que o povo que ouviu, certa tarde, o militar e político fazer semelhante afirmação na Praça do Comércio, se bem me lembro em pleno verão quente.
Normalmente costumo chegar à hora da abertura, mas desta vez optei por uma hora mais tardia. Depois do aparato em honra das grandes personalidades que estavam ausentes, decidi-me subir as escadas rolantes com o fim de visitar o "deserto", um andar com muitas máquinas e cada vez com menos utentes. O Fort Knox e a sua clientela do costume viriam a seguir.
Era uma pena ver aquelas mais que dez dezenas de máquinas desocupadas. Nem trinta pessoas havia naquele andar. E a que se devia? Má gestão. Sem prémios não havia utentes.
Dispunha-me a descer ao piso inferior quando encontrei um amigo que fiz recentemente.
«Amigo Mário! Há muito que não o via. Esteve doente?»
«Viva, Francisco. Sinto-me mais são que um pêro. Está tudo bem consigo?»
«Quero sair deste antro que me agarra com força. De resto, tudo bem.»
«Ótimo.»
Expliquei-lhe a razão da minha ausência prolongada. Depois daquele caso passado com a inspetora, mais a mais com uma reclamação que tinha pernas para andar, até perdi o interesse como observador, já que jogar só o fazia não pelo jogo mas pelo prazer de ganhar. Quanto àquele maldito caso, ainda não tinha desistido. Só estava à procura do momento certo para agir. Podia demorar muito tempo, mas um dia ia acontecer.
«Oxalá. Nem calcula o ódio que tenho a esta gente. Ainda bem que o vício não entra no meu amigo. Eu é que não consigo. O pouco dinheiro que arranjo vai todo para este sorvedouro maldito.»
«Tem que controlar-se mais, meu amigo.»
«É revoltante. Tenho a vida destruída. A minha família, os amigos do antigo emprego. É que não sou um qualquer. Estudei, empreguei-me bem, cultivei-me. Agora ando por aqui. Desculpe estar a importuná-lo, amigo Mário.»
«Pelo amor de Deus. Fale à vontade.»
«E como está a correr o jogo?»
«Ainda não comecei. Cheguei nem há cinco minutos. Agora vou lá abaixo. Isto aqui é Marrocos.»
«Depois mostro-lhe uma máquina das Cleopatras.»
«De vinte cêntimos?»
«Exato. Então vá lá ao Fort Knox...»
Desci as escadas rolantes e dirigi-me para a zona do Fort Knox. Encontrei dois ou três amigos que esperavam por uma máquina dos livros disponível. O ambiente estava mais concorrido do que o habitual. Não era fim de semana e o motivo de tanta concorrência devia ser outro. Evidente. Não precisava de mais. A platina rondava os três mil e quatrocentos euros, quase o dobro do ponto de partida. A única máquina à minha disposição era uma dos Unicorn Enchanted (mais conhecidas por máquinas dos cavalos). Uma ou duas notas não faziam diferença e, aliás, naquela noite não queria ficar só como observador de factos que estavam mais que comprovados.
Instalei-me o melhor que pude numa daquelas horríveis cadeiras rotativas, puxei de duas notas de vinte e comecei a jogar 25x2, o que equivalia a vinte e cinco linhas e dois créditos por linha. Um euro por jogada.
Rapidamente a minha cave de quarenta chegou a meio e optei por jogar só um crédito por linha. Então fui ao cofre quase de seguida. E espante-se quem quiser espantar-se. Consegui chegar ao ouro. Cerca de quatrocentos e quarenta euros. Nada mau para começar.
Enganaram-se.» Disse ao Vítor, sempre atento e à espera de uma gorjeta.
«É capaz de ter razão. Esta máquina estava destinada a outro que não a quis.»
«Ainda bem.» Pensei.
Segui o seu olhar e adivinhei para quem estava a olhar. Pois era. O Palrador. Bem feito!
«O fulano vai ficar pior que uma barata.»
Ainda bem que não quis esta máquina. Guardado estava o bocado para quem o ia comer. Aquele homem jogava baixo e tirava bons prémios. A sua estratégia chorona tinha um objetivo baseado na máxima popular "quem não chora, não mama". Isto para não falar de um certo amigo chefe de sala.
«A máquina não dá dois cavalos. Não vou ao cofre. Não há caixotes. Sei muito bem o que devia fazer.»
Pois era. Jogava com treze, catorze, quinze linhas e não mais.
Uma noite abanou com força a máquina, parecendo estar zangado. Eu estava na máquina à esquerda e olhei. Não para ele mas para a máquina. O "fingidor" acabava de ganhar mais de trezentos euros a jogar a catorze créditos!
O homem devia estar fulo até dizer basta. Opções eram opções e quem o mandava não gostar de jogar entre duas máquinas e preferir as pontas?
E constava que emprestava dinheiro a juros. Um dia disse-me que o agressor das palavras pediu-lhe dinheiro emprestado.
Rapidamente a minha cave de quarenta chegou a meio e optei por jogar só um crédito por linha. Então fui ao cofre quase de seguida. E espante-se quem quiser espantar-se. Consegui chegar ao ouro. Cerca de quatrocentos e quarenta euros. Nada mau para começar.
Enganaram-se.» Disse ao Vítor, sempre atento e à espera de uma gorjeta.
«É capaz de ter razão. Esta máquina estava destinada a outro que não a quis.»
«Ainda bem.» Pensei.
Segui o seu olhar e adivinhei para quem estava a olhar. Pois era. O Palrador. Bem feito!
«O fulano vai ficar pior que uma barata.»
Ainda bem que não quis esta máquina. Guardado estava o bocado para quem o ia comer. Aquele homem jogava baixo e tirava bons prémios. A sua estratégia chorona tinha um objetivo baseado na máxima popular "quem não chora, não mama". Isto para não falar de um certo amigo chefe de sala.
«A máquina não dá dois cavalos. Não vou ao cofre. Não há caixotes. Sei muito bem o que devia fazer.»
Pois era. Jogava com treze, catorze, quinze linhas e não mais.
Uma noite abanou com força a máquina, parecendo estar zangado. Eu estava na máquina à esquerda e olhei. Não para ele mas para a máquina. O "fingidor" acabava de ganhar mais de trezentos euros a jogar a catorze créditos!
O homem devia estar fulo até dizer basta. Opções eram opções e quem o mandava não gostar de jogar entre duas máquinas e preferir as pontas?
E constava que emprestava dinheiro a juros. Um dia disse-me que o agressor das palavras pediu-lhe dinheiro emprestado.
Tomei a direção das máquinas dos cifrões e reparei que estavam mais duas de jogos variados, entre os quais as bananas e os aviões. Todas de nove linhas e a dez cêntimos a linha.
«Jogue na primeira máquina, amigo Mário. Essa máquina já levou mais de dois milhares de euros sem dar retorno.»
Virei-me. Era o Francisco.
«E acha que não vai continuar a tirar, fechando-se como uma ostra?»
«É só um palpite. Jogue uma notinha...»
Aceitei o desafio do Francisco, talvez o homem que mais sabia dos podres do casino, não esquecendo o Vítor, e que revelava uma animosidade crescente contra os responsáveis, a começar nos fiscais e mecânicos, passando pelos chefes de sala e acabando na administração. Acrescento os inspetores, que não saíam da sua sala privativa para o palco da verdade porque, pasme-se, estavam afogados em burocracia.
«Tenha cautela, amigo Mário, que há nestas salas informadores pagos pelo casino que vigiam quem joga. Outros que barafustam contra o casino e provocam a revolta e a desorientação dos utentes que estão a perder.»
Como lhes pagavam?
Se era verdade o que me contava, o pagamento seria provavelmente com tickets.
«Que acha do jogo, Mário?»
Já estava a jogar na segunda máquina dos cifrões e usava o modo automático.
«Por enquanto a máquina está equilibrada. Tem uma coisa boa. Dá cifrões. Se for ao bónus, pode repetir.»
«Oxalá.»
Infelizmente o crédito esgotou-se.
«Tente outra vez com uma notinha de dez.»
Contrariando a habitual regra que aconselhava a cuidados e caldos de galinha, segui o pedido do Francisco. Em boa hora. Ganhei quase duzentos euros. O meu amigo ficou duplamente feliz porque gratifiquei-o.
«Quer ir lá acima comer qualquer coisa, Francisco?»
«Obrigado. Para mim ainda é cedo. Já o procuro.»
Subi as escadas rolantes e fui direto ao balcão onde encomendei um prego em pão de baguete. Por sinal os pregos eram deliciosos. Macios e quase sem um nervo.
«E para beber?»
«Uma imperial das pequenas. Quanto tempo demora?»
«Cinco a dez minutos.»
«Ok.»
«Quer a imperial já?»
«Só quando vier o prego.»
Perto havia um conjunto de três máquinas Saloon onde joguei e ganhei, porque fui ao bónus e apareceram bailarinas até dizer chega. Ganhei cento e noventa e oito euros.
Que se passava com aquele dia de sorte?
Comi com prazer o prego no pão acompanhado de batatas fritas que molhei gulosamente em maionese e depois voltei para baixo.
O início
O caderno de Mário passou a ser uma caixa de surpresas a partir do momento em que descobri uma história algo insólita supostamente passada no casino.
«Jogue na primeira máquina, amigo Mário. Essa máquina já levou mais de dois milhares de euros sem dar retorno.»
Virei-me. Era o Francisco.
«E acha que não vai continuar a tirar, fechando-se como uma ostra?»
«É só um palpite. Jogue uma notinha...»
Aceitei o desafio do Francisco, talvez o homem que mais sabia dos podres do casino, não esquecendo o Vítor, e que revelava uma animosidade crescente contra os responsáveis, a começar nos fiscais e mecânicos, passando pelos chefes de sala e acabando na administração. Acrescento os inspetores, que não saíam da sua sala privativa para o palco da verdade porque, pasme-se, estavam afogados em burocracia.
«Tenha cautela, amigo Mário, que há nestas salas informadores pagos pelo casino que vigiam quem joga. Outros que barafustam contra o casino e provocam a revolta e a desorientação dos utentes que estão a perder.»
Como lhes pagavam?
Se era verdade o que me contava, o pagamento seria provavelmente com tickets.
«Que acha do jogo, Mário?»
Já estava a jogar na segunda máquina dos cifrões e usava o modo automático.
«Por enquanto a máquina está equilibrada. Tem uma coisa boa. Dá cifrões. Se for ao bónus, pode repetir.»
«Oxalá.»
Infelizmente o crédito esgotou-se.
«Tente outra vez com uma notinha de dez.»
Contrariando a habitual regra que aconselhava a cuidados e caldos de galinha, segui o pedido do Francisco. Em boa hora. Ganhei quase duzentos euros. O meu amigo ficou duplamente feliz porque gratifiquei-o.
«Quer ir lá acima comer qualquer coisa, Francisco?»
«Obrigado. Para mim ainda é cedo. Já o procuro.»
Subi as escadas rolantes e fui direto ao balcão onde encomendei um prego em pão de baguete. Por sinal os pregos eram deliciosos. Macios e quase sem um nervo.
«E para beber?»
«Uma imperial das pequenas. Quanto tempo demora?»
«Cinco a dez minutos.»
«Ok.»
«Quer a imperial já?»
«Só quando vier o prego.»
Perto havia um conjunto de três máquinas Saloon onde joguei e ganhei, porque fui ao bónus e apareceram bailarinas até dizer chega. Ganhei cento e noventa e oito euros.
Que se passava com aquele dia de sorte?
Comi com prazer o prego no pão acompanhado de batatas fritas que molhei gulosamente em maionese e depois voltei para baixo.
O início
O caderno de Mário passou a ser uma caixa de surpresas a partir do momento em que descobri uma história algo insólita supostamente passada no casino.
Desde já esclareço mais uma vez que a existência deste casino onde se desenrolam as histórias, localizado algures, é pura ficção, mas enquadra-se na realidade oportunista e desumana do modo de agir dos responsáveis por qualquer casino.
Mais ainda, nada tenho a ver com o real e o fictício do meu amigo contador de histórias e assim, vou limitar-me a transcrever, sem tirar uma linha, tal como tenho feito sempre, esta história que, a ser verdadeira, está muito para além dos envolvimentos duvidosos de alguns jogadores (os que ganham normalmente) com indeterminadas pessoas que trabalham no caso, peixe miúdo e graúdo.
Uma vez, Mário afirmou a um chefe de sala que era melhor para o casino ele jogar do que estar em segunda fila a registar o que se passava à sua volta, isto em ralação aos casos nebulosos que ocorriam no Fort Knox. Isto aconteceu antes dele saber da existência, por intermédio do seu amigo (ex-vampiro) Francisco, de informadores ao serviço do casino que estudavam o modo de jogar de alguns utentes considerados financeiramente importantes para virem mais tarde a serem depenados. A técnica usada era sempre a mesma. Dar corda ao papagaio para subir alto e depois tirar-lhe a corda, tendo-o sempre controlado e muitas vezes deixá-lo cair no solo. O sonho dourado de voar alto era substituído pelo pesadelo de um voo rasante que acabava sempre em desastre. Por outras palavras, certos jogadores que jogavam forte e pensavam ter descoberto o filão de uma mina de ouro, quando caíam na triste realidade de verificarem que o filão era imaginário e o que tinham na mina era só ganga, já era tarde. O dinheiro ganho nas primeiras extrações não compensava a despesa feita para seguir o filão que afinal não passava de pura ilusão.
Dos arruinados, uns poucos ficaram no casino arrastando-se penosamente como vampiros esfaimados e maldizendo a sua triste sina e outros desapareceram da circulação regressando às suas vidas que nunca seriam como dantes e, finalmente, outros escolhiam dramaticamente voar para o azul constelado do céu.
Mas vamos à história que descobri no caderno de Mário e que me causou uma grande perplexidade. Uma teia tenebrosamente engendrada por alguém que era mestre ou talvez especializado na arte de executar na perfeição aquilo que chama um nó cego.
Não começava pelo Fort Knox, nem sequer ia cumprimentar os prisioneiros-voluntários vidrados no jogo, nem ouvir as suas queixas, nem os fortes murros de revolta nos vidros das máquinas, ou as manobras misteriosas do Vítor a jogar a cinco e a nove e a ir ao cofre enquanto o diabo esfregava um olho, o Zé dedilhador nos seus êxitos rotineiros, o fracasso constante do agressor das palavras a jogar a aposta máxima, os forasteiros a terem êxito, acreditando que era fácil ganhar se voltassem ao casino, enfim... etc e tal.
Mais ainda, nada tenho a ver com o real e o fictício do meu amigo contador de histórias e assim, vou limitar-me a transcrever, sem tirar uma linha, tal como tenho feito sempre, esta história que, a ser verdadeira, está muito para além dos envolvimentos duvidosos de alguns jogadores (os que ganham normalmente) com indeterminadas pessoas que trabalham no caso, peixe miúdo e graúdo.
Uma vez, Mário afirmou a um chefe de sala que era melhor para o casino ele jogar do que estar em segunda fila a registar o que se passava à sua volta, isto em ralação aos casos nebulosos que ocorriam no Fort Knox. Isto aconteceu antes dele saber da existência, por intermédio do seu amigo (ex-vampiro) Francisco, de informadores ao serviço do casino que estudavam o modo de jogar de alguns utentes considerados financeiramente importantes para virem mais tarde a serem depenados. A técnica usada era sempre a mesma. Dar corda ao papagaio para subir alto e depois tirar-lhe a corda, tendo-o sempre controlado e muitas vezes deixá-lo cair no solo. O sonho dourado de voar alto era substituído pelo pesadelo de um voo rasante que acabava sempre em desastre. Por outras palavras, certos jogadores que jogavam forte e pensavam ter descoberto o filão de uma mina de ouro, quando caíam na triste realidade de verificarem que o filão era imaginário e o que tinham na mina era só ganga, já era tarde. O dinheiro ganho nas primeiras extrações não compensava a despesa feita para seguir o filão que afinal não passava de pura ilusão.
Dos arruinados, uns poucos ficaram no casino arrastando-se penosamente como vampiros esfaimados e maldizendo a sua triste sina e outros desapareceram da circulação regressando às suas vidas que nunca seriam como dantes e, finalmente, outros escolhiam dramaticamente voar para o azul constelado do céu.
Mas vamos à história que descobri no caderno de Mário e que me causou uma grande perplexidade. Uma teia tenebrosamente engendrada por alguém que era mestre ou talvez especializado na arte de executar na perfeição aquilo que chama um nó cego.
Não começava pelo Fort Knox, nem sequer ia cumprimentar os prisioneiros-voluntários vidrados no jogo, nem ouvir as suas queixas, nem os fortes murros de revolta nos vidros das máquinas, ou as manobras misteriosas do Vítor a jogar a cinco e a nove e a ir ao cofre enquanto o diabo esfregava um olho, o Zé dedilhador nos seus êxitos rotineiros, o fracasso constante do agressor das palavras a jogar a aposta máxima, os forasteiros a terem êxito, acreditando que era fácil ganhar se voltassem ao casino, enfim... etc e tal.
Fui direito às máquinas de fundo verde dos cifrões. Confesso que são máquinas de grande potencial, se não forem manipuladas, claro. Gosto de jogar nestas máquinas, mas não posso passar das noves linhas a singelo. O máximo de linhas é nove, embora o número de apostas por linhas possa chegar a cinco.
Paciência. Estão todas ocupadas. Contudo, posso jogar se quiser. Há três jogadores de volta delas e estas são mais que três.
Alarme! Jogam todos a aposta máxima menos uma mulher loura que está a jogar a nove linhas com uma aposta por linha. Neste momento foi ao bónus.
«Olá, amigo Mário.»
Paciência. Estão todas ocupadas. Contudo, posso jogar se quiser. Há três jogadores de volta delas e estas são mais que três.
Alarme! Jogam todos a aposta máxima menos uma mulher loura que está a jogar a nove linhas com uma aposta por linha. Neste momento foi ao bónus.
«Olá, amigo Mário.»
Viro-me.
Quem havia de ser?
«Viva, Francisco. Está tudo bem?»
O Sombra diria:
«Tudo!»
«E quanto à fiscalização, há novidades?»
«Nada a dizer de especial.»
Deixemos em paz o homem de barriga proeminente e de passada larga que tem sempre pressa em chegar a um destino que não é sair do casino. Há uns anos atrás, o Jacinto dormia nas instalações do Aeroporto. Agora tem um cantinho guardado pela sua amiga Maria, bem mais perto do casino. Quanto ao resto, não perdeu a fortuna porque a sua fortuna é o casino. Joga quando lhe dão alguns euros. Se lhe tirarem o casino, de certeza que morre. Quanto à Maria, esta continua a dizer que procura emprego e vai de recaída em recaída.
«Sim, meu amigo. Apenas uma coisa...»
«Diga, Francisco.»
«Estou revoltado comigo. Calcule que já gastei a minha pensão! Não é grande coisa, mas, como compreende, faz-me muita falta.»
Lamentei o facto, mas não lhe disse que tinha de se controlar. Ele já sabia isso e não conseguia. Havia teias e teias e ele estava prisioneiro de uma delas.
«Calcule que comecei a ganhar. Em vez de parar, continuei.»
«Pois.»
«E agora, Francisco, que fazes à vida até à próxima pensão?» pensei.
«Olhe, a primeira máquina comeu muito dinheiro ontem. Quando vagar ponha lá uma notinha. Pode ser que tenha sorte.»
Isso era se vagasse.
«Aquela dos aviões e a das malas e de mais dois jogos?»
«Não. A dos cifrões.»
«Ah!»
O jogo do bónus acabou. Pouco mais de quarenta euros no bónus. A máquina estava a pagar mal.
Entretanto foi a vez do homem que jogava em duas máquinas a 9X5 ir ao bónus numa delas.
Tinha recordações agradáveis de há uma semana precisamente na máquina em que o homem jogava o bónus. Os cinco cifrões surgiram de repente, não como os quatro de duas ou três jogadas anteriores que não apareceram em simultâneo. Um sinal de programação que afastava para longe a verdade burlesca do jogo aleatório que os fiscais e os chefes de sala, juntamente com os inspetores, queriam impingir aos utentes.
Tive na altura uma sensação estranha que não sei explicar. Coisa de outro mundo. Não fiquei nervoso. Apenas parecia que estava nesse outro mundo depois de um jackpot de mais de três mil euros. No momento, jogava a 9x2, portanto, um euro e oitenta cêntimos por jogada. O que não era habitual para um jogador como eu. O caso é curioso e dá para pensar. Um chinês acabara de deixar a máquina. Quando introduzi uma nota de vinte euros na ranhura, só depois descobri que a máquina tinha créditos. Poucos. Mas tinha.
«São seus?» perguntei ao chinês que jogava na máquina à minha direita.
Quem havia de ser?
«Viva, Francisco. Está tudo bem?»
O Sombra diria:
«Tudo!»
«E quanto à fiscalização, há novidades?»
«Nada a dizer de especial.»
Deixemos em paz o homem de barriga proeminente e de passada larga que tem sempre pressa em chegar a um destino que não é sair do casino. Há uns anos atrás, o Jacinto dormia nas instalações do Aeroporto. Agora tem um cantinho guardado pela sua amiga Maria, bem mais perto do casino. Quanto ao resto, não perdeu a fortuna porque a sua fortuna é o casino. Joga quando lhe dão alguns euros. Se lhe tirarem o casino, de certeza que morre. Quanto à Maria, esta continua a dizer que procura emprego e vai de recaída em recaída.
«Sim, meu amigo. Apenas uma coisa...»
«Diga, Francisco.»
«Estou revoltado comigo. Calcule que já gastei a minha pensão! Não é grande coisa, mas, como compreende, faz-me muita falta.»
Lamentei o facto, mas não lhe disse que tinha de se controlar. Ele já sabia isso e não conseguia. Havia teias e teias e ele estava prisioneiro de uma delas.
«Calcule que comecei a ganhar. Em vez de parar, continuei.»
«Pois.»
«E agora, Francisco, que fazes à vida até à próxima pensão?» pensei.
«Olhe, a primeira máquina comeu muito dinheiro ontem. Quando vagar ponha lá uma notinha. Pode ser que tenha sorte.»
Isso era se vagasse.
«Aquela dos aviões e a das malas e de mais dois jogos?»
«Não. A dos cifrões.»
«Ah!»
O jogo do bónus acabou. Pouco mais de quarenta euros no bónus. A máquina estava a pagar mal.
Entretanto foi a vez do homem que jogava em duas máquinas a 9X5 ir ao bónus numa delas.
Tinha recordações agradáveis de há uma semana precisamente na máquina em que o homem jogava o bónus. Os cinco cifrões surgiram de repente, não como os quatro de duas ou três jogadas anteriores que não apareceram em simultâneo. Um sinal de programação que afastava para longe a verdade burlesca do jogo aleatório que os fiscais e os chefes de sala, juntamente com os inspetores, queriam impingir aos utentes.
Tive na altura uma sensação estranha que não sei explicar. Coisa de outro mundo. Não fiquei nervoso. Apenas parecia que estava nesse outro mundo depois de um jackpot de mais de três mil euros. No momento, jogava a 9x2, portanto, um euro e oitenta cêntimos por jogada. O que não era habitual para um jogador como eu. O caso é curioso e dá para pensar. Um chinês acabara de deixar a máquina. Quando introduzi uma nota de vinte euros na ranhura, só depois descobri que a máquina tinha créditos. Poucos. Mas tinha.
«São seus?» perguntei ao chinês que jogava na máquina à minha direita.
O homem entendeu-me.
«Não faz mal.»
«Obrigado.»
E foi assim que ganhei os quase quatro mil euros. Uma lança em África! Fui logo ao bónus e os três cifrões surgiram mais do que uma vez. Até que apareceram cinco. Foi instantâneo. Apareceram ao mesmo tempo. Até que o jogo de bónus chegou ao fim. Resultado: jackpot! Nessa noite ganhei mais que quatro mil euros.
«Não faz mal.»
«Obrigado.»
E foi assim que ganhei os quase quatro mil euros. Uma lança em África! Fui logo ao bónus e os três cifrões surgiram mais do que uma vez. Até que apareceram cinco. Foi instantâneo. Apareceram ao mesmo tempo. Até que o jogo de bónus chegou ao fim. Resultado: jackpot! Nessa noite ganhei mais que quatro mil euros.
«É já o terceiro hoje.» Comentou o Francisco. «Mas o homem gasta muito.»
«Já o vi a jogar em três máquinas ao mesmo tempo. E a loira?»
«Não se conhecem. Garanto-lhe, amigo Mário.»
Notei que o homem e a loira trocaram de máquinas.
Simples coincidência, pensei, interrogando o Francisco com um olhar.
«Este homem tem uma calma do caraças!»
«Curioso...»
«O quê, meu amigo?»
«Nada, nada.»
A mulher disse-lhe qualquer coisa que não entendi e ele respondeu com um aceno de cabeça.
«Ela não costuma jogar aqui.» Disse.
«Bem sei. Joga normalmente no Fort Knox. Ainda há pouco foi ao ouro. Mal tinha chegado. Antes disso uma outra mulher deixara lá mais de quinhentos euros.»
«Muito me conta. Já comeu alguma coisa, Francisco?»
«Por acaso não, amigo Mário.»
«Então vamos lá acima. Entretanto pode ser que uma destas máquinas vague.»
«Agradeço o convite. Há pouco pedi ao chefe de sala Fortuna se podia comer uma sandes de carne assada e o sacana disse-me logo que não podia ser hoje. Se está mal disposto, reage assim...»
Uma humilhação para um homem que teve uma vida digna e um emprego bem pago e que agora se via obrigado a esmolar disfarçadamente.
«Um indivíduo forte e baixo?»
«Sim.»
«Não posso com ele. Foi o que apanhei pela frente na passagem do ano depois de ter ido ao bónus a 125 e ganhar pouco mais de quatrocentos créditos. O que não chegou a dez euros. Não imagina o que aquela alma teve que ouvir. O homem até abanava a cabeça como um ventoinha. Vamos lá então?»
«Vamos.»
«E entretanto o Francisco conta-me alguma coisa sobre o homem que está a jogar nas duas máquinas.»
«Sim, meu bom amigo.»
O homem tranquilo e a loira cinquentona
«Já o vi a jogar em três máquinas ao mesmo tempo. E a loira?»
«Não se conhecem. Garanto-lhe, amigo Mário.»
Notei que o homem e a loira trocaram de máquinas.
Simples coincidência, pensei, interrogando o Francisco com um olhar.
«Este homem tem uma calma do caraças!»
«Curioso...»
«O quê, meu amigo?»
«Nada, nada.»
A mulher disse-lhe qualquer coisa que não entendi e ele respondeu com um aceno de cabeça.
«Ela não costuma jogar aqui.» Disse.
«Bem sei. Joga normalmente no Fort Knox. Ainda há pouco foi ao ouro. Mal tinha chegado. Antes disso uma outra mulher deixara lá mais de quinhentos euros.»
«Muito me conta. Já comeu alguma coisa, Francisco?»
«Por acaso não, amigo Mário.»
«Então vamos lá acima. Entretanto pode ser que uma destas máquinas vague.»
«Agradeço o convite. Há pouco pedi ao chefe de sala Fortuna se podia comer uma sandes de carne assada e o sacana disse-me logo que não podia ser hoje. Se está mal disposto, reage assim...»
Uma humilhação para um homem que teve uma vida digna e um emprego bem pago e que agora se via obrigado a esmolar disfarçadamente.
«Um indivíduo forte e baixo?»
«Sim.»
«Não posso com ele. Foi o que apanhei pela frente na passagem do ano depois de ter ido ao bónus a 125 e ganhar pouco mais de quatrocentos créditos. O que não chegou a dez euros. Não imagina o que aquela alma teve que ouvir. O homem até abanava a cabeça como um ventoinha. Vamos lá então?»
«Vamos.»
«E entretanto o Francisco conta-me alguma coisa sobre o homem que está a jogar nas duas máquinas.»
«Sim, meu bom amigo.»
O homem tranquilo e a loira cinquentona
Infelizmente o Francisco pouco tinha para acrescentar sobre a personalidade como jogador daquele indivíduo afável, calmo, quase inexpressivo. O ónus da despesa seria todo para mim. Quem era, donde vinha, que fazia na vida profissional. Aparentemente era pessoa endinheirada.
Mas de onde vinham todas aquelas notas de cinquenta euros que, paulatinamente, ia introduzindo pelo menos em duas máquinas?
«Acha que ele está a ganhar?» perguntei.
Pousou o copo no balcão e pareceu entregar-se a uns cálculos rápidos. Cheirou-me a simulação.
«Talvez que hoje esteja. Já tirou três jackpotes. Um deles de mais de três mil euros. Ao mesmo tempo está a apostar nove euros em cada jogada nas duas máquinas.»
«Então, em que ficamos?»
«Acho que está a ganhar. Há que contar também com os prémios que vai arrecadando, percebe, meu bom amigo?»
«E o que vai acontecer de futuro?»
Respondeu prontamente.
«O costume. Nos primeiros tempos, o nosso homem ganha uns bons milhares. E essa fase está a acontecer.»
«E depois?» perguntei, embora já conhecesse a resposta.
«Depois, o homem vai perder o que ganhou e também o que não ganhou. Como é hábito, diga-se.»
O Francisco tinha razão. A estratégia já era sobejamente conhecida na sua aplicação em vários casos registados e todos sempre com o mesmo fim. Êxito e glória seguido de derrota e fracasso.
«Reconheço que muito peixe graúdo desapareceu de cena e o que o peixe miúdo, o elo mais fraco, continua a tentar resistir.»
«Quer mais uma imperial, Francisco?»
«Obrigado, meu bom amigo. Estou bem assim. Agora, se não se importa, vou dar uma volta pelos jogos de mesa.»
Aquele homem percorria todo o casino.
«E eu vou continuar a ver o jogo do homem tranquilo.»
«Vá vá. E tome também atenção ao jogo da mulher. Não acha que ela está a ir muitas vezes ao bónus?»
Parecia que sim, embora não ganhasse nada de substancial de cada vez que ia ao bónus. Pelo menos dava para ficar entretida.
Atingi o fim das escadas rolantes no momento em que o homem tranquilo introduzia tickets na máquina de pagamento automático. Mas não estava só. A seu lado tinha a mulher loira, com quem conversava.
«Temos jantar a dois!» deve vir a acontecer. «Gostava de ser mosca...»
Plano alterado. A hora não era convidativa para jogar nas máquinas dos cifrões. Restava-me o Fort Knox, o que significava mais do mesmo, embora os protagonistas principais de facto já não fossem os mesmos. Queria referir-me ao cenário. Alargava-se o leque da insatisfação. Os protestos eram mais vigorosos e, curiosamente, os fiscais apareciam menos nesses momentos de grande tensão.
«Amigo Mário, como vão os cifrões?»
Nada a dizer também ao Vítor, sempre interessado com a minha participação nessas máquinas.
Quando me dispunha a abandonar aquela zona dos prisioneiros do Fort Knox, eis senão quando algo de anormal me chamou a atenção. Uma máquina tinha sido agitada até ao limite por alguém e a resposta seria pronta por parte dos fiscais. Disso tinha quase a certeza.
Localizei a máquina e aproximei-me, algo curioso. Espetáculos daqueles não se perdiam. O homem, suficientemente forte para danificar a máquina, quase que espumava de raiva.
«Esta gaja nem pia! Já engoliu novecentos euros e não dá um prémio de jeito.»
E voltou a agitar a máquina ainda com mais força.
Finalmente chegou um fiscal que ficou silencioso a olhar para ele. Por sinal um calmeirão que se intitulava "mau-mau". De alcunha, claro.
«Vai ser boa a festa!» comentei para mim.
E de facto foi. Para o lado do utente que se enfureceu ainda mais ante o ar expectante do seu interlocutor.
«Vocês fazem tudo o que querem!»
E mais do mesmo que o outro foi ouvindo, mostrando até um ar de provocação que felizmente não foi notado pelo utente que entretanto se tinha levantado. Diga-se que em nada era inferior fisicamente ao seu opositor.
«O senhor só vem cá porque quer. Ninguém o obriga. Mas se deseja ir à inspeção, tudo bem. Eu levo-o.»
«Você está a brincar comigo! Acha que nunca fui lá? E pensa que resulta alguma coisa queixar-me quando eles estão feitos com o sistema?»
«És cá dos meus» pensei. «Aqueles indivíduos da inspeção metem-se no gabinete e ninguém os tira de lá.»
Aquela discussão não levava a parte alguma. De facto ninguém obrigava o utente a jogar naquele casino ou em qualquer outro. Tudo bem. Sem tirar nem pôr. Mas os métodos que usavam para cativar os utentes quando das primeiras vezes que jogavam no casino é que eram tudo menos honestos. A máxima que dizia que um jogador tinha sempre sorte quando se estreava a jogar é que podia ser vista dentro de um outro modo de ver.
Vejamos um caso curioso passado numa máquina dos cifrões...
Naquele dia ninguém conseguia fazer alguma coisa das máquinas. Não davam linhas e os bónus eram raros e fracos. Por esse motivo, pouco ou nada tinha jogado. Limitava-me a observar, procurando descobrir qual era máquina menos má. Até que me decidi por uma que entretanto tinha vagado.
No momento em que comecei a jogar, um indivíduo à minha direita foi ao bónus. Olhei de soslaio. O homem olhava para a máquina sem se decidir a premir uma tecla para dar início ao bónus.
«De que está à espera?» pensei.
Resolvi não intervir. E fiz bem. Pouco depois o homem descobria a pólvora. Entretanto a minha máquina continuava igual a si própria.
Repetiu à terceira jogada do bónus. E quase logo de seguida apareceram no monitor quatro cifrões. Pouco depois apareceram mais três cifrões. E mais três. Uma chuva de bónus.
«A máquina está avariada!» disse, voltando-se para mim.
«Não está, não. Embalou...»
O homem estava visivelmente perturbado e reagiu a mais três cifrões repetindo que "a máquina estava avariada".
«E já tem mais de quatrocentos euros.»
«Não me diga!» exclamou, excitado. «Nunca me aconteceu!»
Pois não. Certamente era a primeira vez que jogava no casino.
Entretanto o utente à minha esquerda foi ao bónus. Foi rápido. Teve de prémio cerca de trinta euros, enquanto o outro arrecadou mais de seiscentos euros.
«Isto é inconcebível!» lamentou-se. «Um forasteiro chega e é logo contemplado com seiscentos euros.»
«Acredite que o homem há de voltar para ganhar outra vez e talvez mais outra. O pior é quando começa a perder e acaba por deixar tudo o que ganhou e o que não ganhou.»
Mas de onde vinham todas aquelas notas de cinquenta euros que, paulatinamente, ia introduzindo pelo menos em duas máquinas?
«Acha que ele está a ganhar?» perguntei.
Pousou o copo no balcão e pareceu entregar-se a uns cálculos rápidos. Cheirou-me a simulação.
«Talvez que hoje esteja. Já tirou três jackpotes. Um deles de mais de três mil euros. Ao mesmo tempo está a apostar nove euros em cada jogada nas duas máquinas.»
«Então, em que ficamos?»
«Acho que está a ganhar. Há que contar também com os prémios que vai arrecadando, percebe, meu bom amigo?»
«E o que vai acontecer de futuro?»
Respondeu prontamente.
«O costume. Nos primeiros tempos, o nosso homem ganha uns bons milhares. E essa fase está a acontecer.»
«E depois?» perguntei, embora já conhecesse a resposta.
«Depois, o homem vai perder o que ganhou e também o que não ganhou. Como é hábito, diga-se.»
O Francisco tinha razão. A estratégia já era sobejamente conhecida na sua aplicação em vários casos registados e todos sempre com o mesmo fim. Êxito e glória seguido de derrota e fracasso.
«Reconheço que muito peixe graúdo desapareceu de cena e o que o peixe miúdo, o elo mais fraco, continua a tentar resistir.»
«Quer mais uma imperial, Francisco?»
«Obrigado, meu bom amigo. Estou bem assim. Agora, se não se importa, vou dar uma volta pelos jogos de mesa.»
Aquele homem percorria todo o casino.
«E eu vou continuar a ver o jogo do homem tranquilo.»
«Vá vá. E tome também atenção ao jogo da mulher. Não acha que ela está a ir muitas vezes ao bónus?»
Parecia que sim, embora não ganhasse nada de substancial de cada vez que ia ao bónus. Pelo menos dava para ficar entretida.
Atingi o fim das escadas rolantes no momento em que o homem tranquilo introduzia tickets na máquina de pagamento automático. Mas não estava só. A seu lado tinha a mulher loira, com quem conversava.
«Temos jantar a dois!» deve vir a acontecer. «Gostava de ser mosca...»
Plano alterado. A hora não era convidativa para jogar nas máquinas dos cifrões. Restava-me o Fort Knox, o que significava mais do mesmo, embora os protagonistas principais de facto já não fossem os mesmos. Queria referir-me ao cenário. Alargava-se o leque da insatisfação. Os protestos eram mais vigorosos e, curiosamente, os fiscais apareciam menos nesses momentos de grande tensão.
«Amigo Mário, como vão os cifrões?»
Nada a dizer também ao Vítor, sempre interessado com a minha participação nessas máquinas.
Quando me dispunha a abandonar aquela zona dos prisioneiros do Fort Knox, eis senão quando algo de anormal me chamou a atenção. Uma máquina tinha sido agitada até ao limite por alguém e a resposta seria pronta por parte dos fiscais. Disso tinha quase a certeza.
Localizei a máquina e aproximei-me, algo curioso. Espetáculos daqueles não se perdiam. O homem, suficientemente forte para danificar a máquina, quase que espumava de raiva.
«Esta gaja nem pia! Já engoliu novecentos euros e não dá um prémio de jeito.»
E voltou a agitar a máquina ainda com mais força.
Finalmente chegou um fiscal que ficou silencioso a olhar para ele. Por sinal um calmeirão que se intitulava "mau-mau". De alcunha, claro.
«Vai ser boa a festa!» comentei para mim.
E de facto foi. Para o lado do utente que se enfureceu ainda mais ante o ar expectante do seu interlocutor.
«Vocês fazem tudo o que querem!»
E mais do mesmo que o outro foi ouvindo, mostrando até um ar de provocação que felizmente não foi notado pelo utente que entretanto se tinha levantado. Diga-se que em nada era inferior fisicamente ao seu opositor.
«O senhor só vem cá porque quer. Ninguém o obriga. Mas se deseja ir à inspeção, tudo bem. Eu levo-o.»
«Você está a brincar comigo! Acha que nunca fui lá? E pensa que resulta alguma coisa queixar-me quando eles estão feitos com o sistema?»
«És cá dos meus» pensei. «Aqueles indivíduos da inspeção metem-se no gabinete e ninguém os tira de lá.»
Aquela discussão não levava a parte alguma. De facto ninguém obrigava o utente a jogar naquele casino ou em qualquer outro. Tudo bem. Sem tirar nem pôr. Mas os métodos que usavam para cativar os utentes quando das primeiras vezes que jogavam no casino é que eram tudo menos honestos. A máxima que dizia que um jogador tinha sempre sorte quando se estreava a jogar é que podia ser vista dentro de um outro modo de ver.
Vejamos um caso curioso passado numa máquina dos cifrões...
Naquele dia ninguém conseguia fazer alguma coisa das máquinas. Não davam linhas e os bónus eram raros e fracos. Por esse motivo, pouco ou nada tinha jogado. Limitava-me a observar, procurando descobrir qual era máquina menos má. Até que me decidi por uma que entretanto tinha vagado.
No momento em que comecei a jogar, um indivíduo à minha direita foi ao bónus. Olhei de soslaio. O homem olhava para a máquina sem se decidir a premir uma tecla para dar início ao bónus.
«De que está à espera?» pensei.
Resolvi não intervir. E fiz bem. Pouco depois o homem descobria a pólvora. Entretanto a minha máquina continuava igual a si própria.
Repetiu à terceira jogada do bónus. E quase logo de seguida apareceram no monitor quatro cifrões. Pouco depois apareceram mais três cifrões. E mais três. Uma chuva de bónus.
«A máquina está avariada!» disse, voltando-se para mim.
«Não está, não. Embalou...»
O homem estava visivelmente perturbado e reagiu a mais três cifrões repetindo que "a máquina estava avariada".
«E já tem mais de quatrocentos euros.»
«Não me diga!» exclamou, excitado. «Nunca me aconteceu!»
Pois não. Certamente era a primeira vez que jogava no casino.
Entretanto o utente à minha esquerda foi ao bónus. Foi rápido. Teve de prémio cerca de trinta euros, enquanto o outro arrecadou mais de seiscentos euros.
«Isto é inconcebível!» lamentou-se. «Um forasteiro chega e é logo contemplado com seiscentos euros.»
«Acredite que o homem há de voltar para ganhar outra vez e talvez mais outra. O pior é quando começa a perder e acaba por deixar tudo o que ganhou e o que não ganhou.»
O homem tranquilo e a loira já estavam de volta. Ela jogava numa máquina e ele em duas.
«Então como estão elas?» perguntei.
«Nada más. Já tirei um jackpot na primeira...»
A minha preferida.
«E ela?» pensei.
Ela continuava entretida com a máquina a abrir muitas vezes, mas sempre a pagar mal.
Não se fizeram velhos. Por coincidência ou não, terminaram ao mesmo tempo e encaminharam-se para a máquina de pagamento automático.
Que iam fazer a seguir?
Adivinhar era proibido. Investigar, não. Mas noutro dia. Tinha que dar tempo ao tempo.
«Nada más. Já tirei um jackpot na primeira...»
A minha preferida.
«E ela?» pensei.
Ela continuava entretida com a máquina a abrir muitas vezes, mas sempre a pagar mal.
Não se fizeram velhos. Por coincidência ou não, terminaram ao mesmo tempo e encaminharam-se para a máquina de pagamento automático.
Que iam fazer a seguir?
Adivinhar era proibido. Investigar, não. Mas noutro dia. Tinha que dar tempo ao tempo.
Mantive-me discretamente à distância. Do sítio onde estava podia vê-los sem que me vissem. Não me interessava propriamente o jogo dos dois, mas sim a atitude da mulher. E não me enganei. Ela estava mais atenta ao jogo do homem tranquilo do que propriamente ao que se passava na sua máquina, o que no mínimo era estranho.
O que esperava uma mulher, a quem a juventude já ficara para trás, perante um homem endinheirado e ainda na força da vida?
Dava para pensar. A não ser que... Não! Lá estava o meu espírito imaginativo a trabalhar a todo o vapor.
«Calma, Mário, deita menos lenha para a caldeira. É cedo ainda para conjeturas.»
As máquinas pareciam estar fechadas. Paulatinamente ele ia pondo notas, ora numa máquina ora noutra. Resultado negativo. Pelo contrário, ela ia com frequência ao bónus embora a máquina pagasse mal. Uma história que se repetia.
«Olha o nosso amigo!»
Alguém tocara no meu ombro direito. Virei-me.
«Ah... é você.»
Era o Palrador. Apareceu na pior altura.
«Então os cifrões?»
Mais outro interessado na minha relação com aquelas máquinas. Coisa estranha. Eu, que era mais um observador que um jogador.
«De momento estou indeciso. Pensando bem, acho que não vale a pena insistir agora.»
«Mas diga-me uma coisa. Como funcionam?»
«Agora não posso porque estão todas ocupadas, não vê? Nem sei até se está interessado. Cada linha vale dez cêntimos. Jogando as nove linhas são noventa cêntimos cada vez.»
O outro coçou a cabeça.
«Ena!, tanto dinheiro...»
«Pois é, são apostas caras para ti» pensei. «Para quem joga baixo nos cavalos do modo como tu jogas é muita grana.»
«Tem razão, Mário. Acho que vou para a minha máquina.»
Sua máquina?
Mais parecia. Há uns dias tinha deixado inativa uma máquina durante cerca de meia hora. Entretanto um jogador atento não teve meias medidas. Retirou o maço de cigarros que marcava a máquina e começou a jogar. Quase logo de seguida surgiu o Palrador, vindo do nada e pôs-se a discutir com o outro. Alguém o avisara que tinham ocupado a máquina.
«Chame o fiscal que eu bem me ralo. Esta máquina estava abandonada há meia hora. E o fiscal vai confirmar.»
Sem argumentos para ripostar dirigiu-se para um fiscal que estava próximo e queixou-se. Este chamou um mecânico e ambos foram na direção da máquina, seguindo também atrás deles o queixoso sem razão. O resto foi fácil de adivinhar. De facto a máquina esteve parada durante trinta e cinco minutos.
«Mas eu fui jantar!»
Foi jantar de graça e a máquina ficou reservada para sua excelência!
«Este indivíduo julga-se sócio do casino.» Comentou o outro.
O fiscal sorriu e afastou-se. Mas o Palrador seguiu-o, gesticulando. Não entendi o que dizia mas parecia estar admoestando o fiscal.
Donos do casino. Guardadores de máquinas. Ganhadores habituais que, ainda por cima jantavam de graça. Eternos perdedores. Jogo aleatório que era tudo menos aleatório. Inspetores que se refugiavam nos gabinetes e que respondiam a seu belo prazer às justas reclamações dos utentes. Inspetores que sabiam da existência de tubarões que emprestavam dinheiro com juros à cabeça e taxas ao dia e nada faziam. Chefes de sala que mandavam fechar as máquinas que passavam a funcionar em regime de serviços mínimos. Enfim, este mundo estava virado de pernas para o ar.
Virei-me para a boca de cena mal o intruso se afastou.
«Ah!»
A exclamação estava relacionada com o simples facto de os dois já não estarem a jogar. Se me apressasse, talvez ainda os encontrasse. O mais certo era descobri-los ainda junto à máquina de pagamento próxima da saída para o parque de estacionamento.
Negativo. Só havia uma hipótese.
«Vejamos o parque de estacionamento...»
Apressei-me. Não queria perder a oportunidade soberana de os voltar a ver juntos.
Juntos? Grande mistério! Nada tinham a ver um com o outro. Ele era um jogador com dinheiro para arriscar, mas um pouco cauteloso, diga-se. Ela, uma jogadora aparentemente pouco abonada que parecia mais interessada nele do que no próprio jogo. E aí residia a dúvida. A coisa não passava por interesse carnal. Era mais lógico admitir a possibilidade da mulher querer sacar algum dinheiro do alheio.
A loira cinquentona já conhecera melhores dias. Conservava apenas traços da mulher fatal que fora na juventude. Definitivamente era outra coisa.
«Pensa bem, Mário.»
Mas não tive tempo para pensar. Ali estava estavam eles junto a um BMW preto, topo de gama. Gostava de ser mosca ou então qualquer outro inseto voador para me juntar a eles. Gostava, mas não era possível. No entanto podia aproximar-me mais um pouco, passando despercebido entre as colunas espessas que suportavam o teto. Mais dois passos e talvez conseguisse ouvir o que diziam.
«Quem me dera ser ele e poder jogar como joga!»
(«Troco a tua vida pela minha!»)
Que pensamento! Um quase pobretana como eu era nunca conseguiria chegar aos calcanhares daquele homem que tratava as notas de cinquenta euros da maneira como via tratar. Era verdade. Introduzia-as nas máquinas sem sequer pestanejar.
Estava muito perto deles e já não podia aproximar-me mais. O que senti no momento não foi inveja. Foi talvez o desejo de querer controlar as máquinas, tal como fazia quando era jovem com uma certa máquina dos jogos americanos dos meus bons velhos tempos no café Santiago. E que bons tempos aqueles!
Já os podia ouvir. De momento a conversa era o mais normal deste mundo. Talvez até fossem conhecidos de uma outra situação, ao contrário do que pensava o Francisco.
Ah!, se eu pudesse!
Mas melhor que ouvi-los foi o que aconteceu a seguir...
O que esperava uma mulher, a quem a juventude já ficara para trás, perante um homem endinheirado e ainda na força da vida?
Dava para pensar. A não ser que... Não! Lá estava o meu espírito imaginativo a trabalhar a todo o vapor.
«Calma, Mário, deita menos lenha para a caldeira. É cedo ainda para conjeturas.»
As máquinas pareciam estar fechadas. Paulatinamente ele ia pondo notas, ora numa máquina ora noutra. Resultado negativo. Pelo contrário, ela ia com frequência ao bónus embora a máquina pagasse mal. Uma história que se repetia.
«Olha o nosso amigo!»
Alguém tocara no meu ombro direito. Virei-me.
«Ah... é você.»
Era o Palrador. Apareceu na pior altura.
«Então os cifrões?»
Mais outro interessado na minha relação com aquelas máquinas. Coisa estranha. Eu, que era mais um observador que um jogador.
«De momento estou indeciso. Pensando bem, acho que não vale a pena insistir agora.»
«Mas diga-me uma coisa. Como funcionam?»
«Agora não posso porque estão todas ocupadas, não vê? Nem sei até se está interessado. Cada linha vale dez cêntimos. Jogando as nove linhas são noventa cêntimos cada vez.»
O outro coçou a cabeça.
«Ena!, tanto dinheiro...»
«Pois é, são apostas caras para ti» pensei. «Para quem joga baixo nos cavalos do modo como tu jogas é muita grana.»
«Tem razão, Mário. Acho que vou para a minha máquina.»
Sua máquina?
Mais parecia. Há uns dias tinha deixado inativa uma máquina durante cerca de meia hora. Entretanto um jogador atento não teve meias medidas. Retirou o maço de cigarros que marcava a máquina e começou a jogar. Quase logo de seguida surgiu o Palrador, vindo do nada e pôs-se a discutir com o outro. Alguém o avisara que tinham ocupado a máquina.
«Chame o fiscal que eu bem me ralo. Esta máquina estava abandonada há meia hora. E o fiscal vai confirmar.»
Sem argumentos para ripostar dirigiu-se para um fiscal que estava próximo e queixou-se. Este chamou um mecânico e ambos foram na direção da máquina, seguindo também atrás deles o queixoso sem razão. O resto foi fácil de adivinhar. De facto a máquina esteve parada durante trinta e cinco minutos.
«Mas eu fui jantar!»
Foi jantar de graça e a máquina ficou reservada para sua excelência!
«Este indivíduo julga-se sócio do casino.» Comentou o outro.
O fiscal sorriu e afastou-se. Mas o Palrador seguiu-o, gesticulando. Não entendi o que dizia mas parecia estar admoestando o fiscal.
Donos do casino. Guardadores de máquinas. Ganhadores habituais que, ainda por cima jantavam de graça. Eternos perdedores. Jogo aleatório que era tudo menos aleatório. Inspetores que se refugiavam nos gabinetes e que respondiam a seu belo prazer às justas reclamações dos utentes. Inspetores que sabiam da existência de tubarões que emprestavam dinheiro com juros à cabeça e taxas ao dia e nada faziam. Chefes de sala que mandavam fechar as máquinas que passavam a funcionar em regime de serviços mínimos. Enfim, este mundo estava virado de pernas para o ar.
Virei-me para a boca de cena mal o intruso se afastou.
«Ah!»
A exclamação estava relacionada com o simples facto de os dois já não estarem a jogar. Se me apressasse, talvez ainda os encontrasse. O mais certo era descobri-los ainda junto à máquina de pagamento próxima da saída para o parque de estacionamento.
Negativo. Só havia uma hipótese.
«Vejamos o parque de estacionamento...»
Apressei-me. Não queria perder a oportunidade soberana de os voltar a ver juntos.
Juntos? Grande mistério! Nada tinham a ver um com o outro. Ele era um jogador com dinheiro para arriscar, mas um pouco cauteloso, diga-se. Ela, uma jogadora aparentemente pouco abonada que parecia mais interessada nele do que no próprio jogo. E aí residia a dúvida. A coisa não passava por interesse carnal. Era mais lógico admitir a possibilidade da mulher querer sacar algum dinheiro do alheio.
A loira cinquentona já conhecera melhores dias. Conservava apenas traços da mulher fatal que fora na juventude. Definitivamente era outra coisa.
«Pensa bem, Mário.»
Mas não tive tempo para pensar. Ali estava estavam eles junto a um BMW preto, topo de gama. Gostava de ser mosca ou então qualquer outro inseto voador para me juntar a eles. Gostava, mas não era possível. No entanto podia aproximar-me mais um pouco, passando despercebido entre as colunas espessas que suportavam o teto. Mais dois passos e talvez conseguisse ouvir o que diziam.
«Quem me dera ser ele e poder jogar como joga!»
(«Troco a tua vida pela minha!»)
Que pensamento! Um quase pobretana como eu era nunca conseguiria chegar aos calcanhares daquele homem que tratava as notas de cinquenta euros da maneira como via tratar. Era verdade. Introduzia-as nas máquinas sem sequer pestanejar.
Estava muito perto deles e já não podia aproximar-me mais. O que senti no momento não foi inveja. Foi talvez o desejo de querer controlar as máquinas, tal como fazia quando era jovem com uma certa máquina dos jogos americanos dos meus bons velhos tempos no café Santiago. E que bons tempos aqueles!
Já os podia ouvir. De momento a conversa era o mais normal deste mundo. Talvez até fossem conhecidos de uma outra situação, ao contrário do que pensava o Francisco.
Ah!, se eu pudesse!
Mas melhor que ouvi-los foi o que aconteceu a seguir...
«Ainda não sei como se chama...»
«Nem eu.»
«Como assim? Não sabe o seu nome?»
«Desculpe, não é o que julga. Chamo-me Helena. E o senhor?»
«Pedro. Pedro Vaz. Muito prazer em conhecê-la, Helena. É desta vez que vamos jantar?»
«Desculpe, já alguma vez me convidou?»
«Pois não. A culpa é toda minha. Ontem tinha um encontro marcado. Inadiável. Não imagina como é este mundo dos negócios.»
«Se o diz…»
«Hoje pode ser? Desculpe ser em cima do acontecimento.»
«Por acaso pode.»
«Então, vamos andando» disse, consultando o relógio. «Já passa das dez e tenho um ratinho no estômago e não imagina como ele está a roer!»
«Também eu.»
Não sei como aconteceu. Estava tão perto deles que até temi ser descoberto. Depois, ouvi um estalo seco e deixei de ver o homem tranquilo.
«Não pode estar a acontecer!» exclamei, quase fora de mim.
«Como?»
«Não disse nada, Helena.» Disfarcei.
«Não pode estar a acontecer, o quê, Pedro?»
«Eu disse isso?»
Moveu afirmativamente a cabeça.
«Bom, deve ser da fraqueza. Não se esqueça de pôr o cinto.»
«Costuma acelerar?»
Compreendi a pergunta, mas não a intenção. Aliás, se fosse o que estava a pensar, era pouco provável eu e ela termos um affair. As marcas do tempo eram bem visíveis no rosto daquela mulher, mas também queria acreditar que ela não tinha veleidades. Sabia muito bem das suas possibilidade ante alguém mais novo. Portanto, ali havia coisa da grossa.
Ou não estava a ver o outro eu que não eu?
«Nem eu.»
«Como assim? Não sabe o seu nome?»
«Desculpe, não é o que julga. Chamo-me Helena. E o senhor?»
«Pedro. Pedro Vaz. Muito prazer em conhecê-la, Helena. É desta vez que vamos jantar?»
«Desculpe, já alguma vez me convidou?»
«Pois não. A culpa é toda minha. Ontem tinha um encontro marcado. Inadiável. Não imagina como é este mundo dos negócios.»
«Se o diz…»
«Hoje pode ser? Desculpe ser em cima do acontecimento.»
«Por acaso pode.»
«Então, vamos andando» disse, consultando o relógio. «Já passa das dez e tenho um ratinho no estômago e não imagina como ele está a roer!»
«Também eu.»
Não sei como aconteceu. Estava tão perto deles que até temi ser descoberto. Depois, ouvi um estalo seco e deixei de ver o homem tranquilo.
«Não pode estar a acontecer!» exclamei, quase fora de mim.
«Como?»
«Não disse nada, Helena.» Disfarcei.
«Não pode estar a acontecer, o quê, Pedro?»
«Eu disse isso?»
Moveu afirmativamente a cabeça.
«Bom, deve ser da fraqueza. Não se esqueça de pôr o cinto.»
«Costuma acelerar?»
Compreendi a pergunta, mas não a intenção. Aliás, se fosse o que estava a pensar, era pouco provável eu e ela termos um affair. As marcas do tempo eram bem visíveis no rosto daquela mulher, mas também queria acreditar que ela não tinha veleidades. Sabia muito bem das suas possibilidade ante alguém mais novo. Portanto, ali havia coisa da grossa.
Ou não estava a ver o outro eu que não eu?
Àquela hora éramos os únicos clientes. Estava preocupado. Então ele era eu. Ou vice-versa. Não dava para entender. E o pior de tudo é que estava metido numa alhada das grandes. Ó se estava.
Desenrasca-te, Mário.
«Começamos com croquetes?» perguntei. «Estou saturado dos camarões de Espinho. Aliás vai ver que os croquetes são deliciosos.»
Camarões de Espinho. Há quanto tempo, Mário?
Mas com esta da saturação, acho que meteste água. Milhares de litros de água.
Ela limitou-se a sorrir. Senti-me preso na armadilha que eu próprio criei e tentei emendar o que já não tinha emenda.
«Afinal quem joga ao mesmo tempo a aposta máxima em duas ou três máquinas parece que não está a poupar dinheiro. Mas acredite que não foi de propósito. Na verdade estou cansado dos camarões…»
«Vou seguir o seu conselho e fico pelos croquetes.»
«Faço questão de mandar vir os camarões!»
O empregado aguardava ordens.
«Traga croquetes e camarões de Espinho, por favor.»
«Sim, doutor Vaz. É um instante. E o vinho? O habitual branco da "Quinta da Bacalhoa"?»
«Bem fresco.»
O empregado afastou-se.
«Vejo que costuma vir aqui muitas vezes…»
«É verdade.» Afirmei.
Menti e não menti. Estava na pele do alheio. Perfeitamente integrado. O empregado tinha sido a prova do fogo. E passei. Nem mais nem menos. Fisicamente era o homem tranquilo que até já tinha um nome. Quanto ao meu ego também não sofrera a mínima alteração, a não ser que tinha carregada cá dentro mais uma base de dados, esta que dizia respeito ao homem que se chamava Pedro Vaz. Quanto à profissão, teria que esperar mais um tempo. Até porque, de momento, não era preciso.
E a sua família?, como iria reagir?
Segundo as leis da Física, dois corpos não podem ocupar, ao mesmo tempo, o mesmo espaço. Certo. Então, tanto ele como eu estávamos em falha. Eu ocupava o corpo dele e ele era o meu hospedeiro. Por sua vez, não podia estar ao mesmo tempo noutro sítio, bem como ele. Grande trapalhada. Só esperava que fosse uma situação temporária. Mais complicada era a minha intrusão mental nele.
E o Pedro, afinal para onde foi?
«Tem razão. Estes croquetes são mesmo saborosos. O tempero certo e e o recheio não tem um único nervo.»
Lembrei-me da pensão da "Aninhas morte-lenta", dos bifes ao almoço e dos croquetes ao jantar e de uns tantos comensais que não jantavam quando havia croquetes com arroz branco. E não jantavam, porquê? Muito simples. Tudo motivado por uma guerra psicológica provocada por alguém que afirmava que a carne dos croquetes era o resultado dos restos do almoço nos pratos e onde estavam incluídos os mastigados que tinham sido rejeitados por terem muitos nervos. Manobra porca, a apontar para o terrorismo psicológico.
«Está a sorrir, porquê?»
«Pensei numa coisa que não vem para o caso.»
Por acaso vinha. Claro que não comentei a qualidade dos croquetes.
«E os camarões?»
«Prefiro não os provar.»
«Uma questão de dieta?»
«Adivinhou. Já bastam os dois croquetes, bem como as calorias do vinho branco. E ainda falta o resto. Não contando com este pão torrado que não consigo evitar.»
«O eterno problema das senhoras. Mas eu também cuido do meu corpo.»
«Não me diga que faz dieta, Pedro? Permita que o trate assim.»
Abanei a cabeça.
«Claro» concordei com o seu à vontade. «Nada disso. O que tento é equilibrar a gulodice e as noites mal dormidas por via dos jogos no casino. Para provar que não faço dieta vou atirar-me aos camarões. Não me acompanha?»
«Já agora.»
«As minhas dietas são longas caminhadas diárias. Faço pelo menos dez quilómetros.»
«Não contando com o ginásio.»
«Pois. O ginásio.»
A seguir veio o peixe.
Estávamos entretanto saboreando salmonetes grelhados acompanhados de batatas cozidas e legumes.
«Para ser franco, estes salmonetes nada se comparam com os de Setúbal.» Comentei.
Pousou os talheres no prato e atirou, de chofre:
«Que acha do caso "Panamá Papers"?»
Esperava tudo menos aquela pergunta dita de chofre, talvez com o intuito de ser apanhado em falso.
Que achava do quarto escritório mundial, em termos de volume de clientes, especializado em criar empresas offshore registadas num país que oferecia condições fiscais vantajosas, desde que a atividade da empresa constituída não fosse realizada no território do registo para que não fosse tributada como tal?
Digamos que se tratava de uma fuga ao fisco autorizada em que a empresa passaria a pagar até cinco por cento de imposto sobre os juros e quanto a isso nada havia a dizer ainda sob o aspeto legal. Quanto à ética, era outra coisa e com ela bem podiam os que beneficiavam da dita mais valia. Mas algumas dessas empresas não ficavam por aí. Havia a lavagem de dinheiro, o modo eficaz de esconder capital de origem duvidosa, falências fraudulentas, dinheiro escondido por causa de divórcios, financiamento ao terrorismo, etc, etc. Eu, Mário, enquanto Mário, não tinha nada a perder ou a ganhar, mas decidi ser cauteloso.
«Bom. Penso que foi uma descoberta que já está a preocupar muitas pessoas de bem. Os jornalistas ligados a este trabalho de pesquisa têm pela frente uma missão hercúlea mas que vai compensar pelo serviço nobre que estão a prestar à sociedade.»
«Pessoas de bem ou bem instaladas na vida?»
«Compreendo. Mas já viu o alcance que esta descoberta vai ter? Muitas empresas nada têm a temer. Estão legais. Mas há nomes sonantes que vão colapsar. Para já temos o caso do primeiro ministro islandês. Foi a primeira baixa.»
«Pois foi. Outras se seguirão, acredite.»
«Ai acredito acredito.»
A pergunta que receava veio a seguir.
«Tem alguma empresa offshore, Pedro?»
«Eu? Não. Claro que não.»
«Sim ou não?»
Era melhor responder de imediato porque desconhecia o alcance daquela pergunta. Eu, Mário, falava verdade. Mas eu, Pedro... bem, não punha as mãos no lume por mim.
«Não. Absolutamente. Mas a que propósito vem a sua pergunta?»
«Deixe, foi só uma pergunta de curiosidade. Falou das noites passadas no casino…»
Noites. Agora ela queria chegar a um ponto que não me causava grande entusiasmo.
E como teria reagido o verdadeiro Pedro?
«A minha ida ao casino é mais um meio de preencher um vazio.
«Como assim?»
«Não é o que pensa, ou que pensou antes das palavras que disse atrás. Na verdade, a maioria das pessoas que frequentam o casino procuram ali o el dourado, mas não se trata do caso. Felizmente a minha situação financeira está estável e jogo porque gosto de jogar e, ao mesmo tempo, ocupo o tal vazio de que falei. Aliás, estou a dar-me bem. Tenho contabilizado o deve e haver e o saldo é francamente positivo. Já tirei muitos jackpotes em poucos dias. Digamos que sou um jogador com sorte. Mesmo muita sorte.
«Acredito no seu êxito e felicito-o.»
«Mas devo desconfiar de tanta fartura» achei por bem esclarecer. «Já me aconselharam a estar atento à viragem. Este estado de graça não dura sempre porque os casinos não foram criados para perderem dinheiro. De grosso modo são uma espécie de Estado que se diz social, mas o que dá com uma mão tira mais tarde com a outra. E não é nada meigo…»
«Concordo consigo e deve estar atento.»
«Outro salmonete?»
«Obrigada. Fico bem assim.»
«Sobremesa?»
«Só café. Agora posso fazer uma pergunta indiscreta?»
«Tem luz verde.»
«Pretende ocupar o vazio no casino, porquê?» insistiu.
Era difícil lidar com o conhecimento de duas bases de dados que nada tinham a ver uma com a outra e que podiam, de um momento para o outro, entrar em rota de colisão.
«Digamos...»
«Sim?»
O café veio em boa altura. Mas o tempo não parou.
«Um mal de amor?»
«Sim, de certa maneira.»
Fitou-me com frontalidade. Pensei que estava a chegar aquele momento que não podia evitar e preparei-me para um ataque que parecia inevitável.
Como descartar-me?
«E se lhe disser que vai ao casino por outro motivo que não o de preencher o tal vazio de que falou?»
Foi a minha vez de a olhar, mas desta vez com um misto de estranheza e interrogação. Chamei o empregado, que trouxe a conta. Paguei e gratifiquei.
«Obrigado, doutor Vaz.» Agradeceu o empregado.
«De nada. Vamos então, Helena?»
Levantou-se.
«Só um momento. Ainda vou ao toilete.» Disse.
«Eu espero.»
Aproveitei também para ir à casa de banho. Além de satisfazer necessidades inadiáveis ansiava ver-me ao espelho. Mas quase que me arrependi. A imagem que vi não me agradou, embora já esperasse. Eu era ele. O tal Pedro. Tal como o via no casino.
Já no interior do BMW, perguntei-lhe:
«O que queria dizer há pouco?»
«De momento passo, como se diz na gíria do poker. Já jogou alguma vez, Pedro?»
«Só fechado.»
«Portanto, bluff.»
«Sim.»
«É um jogo interessante e que tem muita ciência, além do sangue frio e resistência física que o jogador deve ter para manter vivo o poder de observação e a sagacidade mental.»
Decidi-me pelo elogio.
«Desconhecia os seus dotes de jogadora. Por acaso a Helena anda em torneios?»
«Longe disso, Pedro. Gosto do jogo pelo jogo. A propósito, voltamos para o casino ou paramos em qualquer sítio para dois dedos de conversa?»
«Estou curioso. Olhe, julgo que podemos conversar um pouco no parque de estacionamento. Depois de esclarecermos o que temos para esclarecer, então voltamos ao casino. Isto se ainda estiver disposta a continuar o seu jogo.»
O contrato
Em poucos minutos estávamos no parque de estacionamento.
«Bem me perguntou há pouco se tinha posto o cinto de segurança. Você pisa bem no acelerador, Pedro!»
Limitei-me a sorrir.
«Estacione mais ao fundo.»
O carro foi deslizando com suavidade até que ela disse:
«É aqui.»
«A Helena manda.»
Rodei o volante para a direita e estacionei.
Que estava a tramar?
Ficámos em silêncio na meia obscuridade. Senti mais a sua proximidade. Uma mão sobre as calças, junto à coxa. Uma mão a pesquisar. Perigosamente atrevida.
«Helena?»
«Sim?»
«Não viemos para isto, pois não?»
Retirou de imediato a mão e chegou-se para o seu lugar. Fiquei arrependido por ser tão bruto. Mas o que estava feito, já estava. Era passado e ainda não tinha sido inventada a máquina do tempo.
«Tem razão. Não sei o que me deu.»
O que quer que fosse que tinha para dizer-me era talvez mais importante. Não acreditava que estávamos ali, na penumbra, só por causa de um vulgar engate.
Senti-me na obrigação de abrir a conversa real. A outra tinha os dias contados.
«Ah! Se fosse com a Maria...»
«Quem é essa Maria, Pedro?»
Mais uma vez pensei alto. Ao contrário da outra vez, em junho, quando uma brisa de fim de tarde quase me gelou, de repente senti-me febril.
«Nada. Foi apenas uma recordação.»
"Nesse fim de tarde a Maria não estava nos meus horizontes, por obra não sei de que feitiço. Tive-a na minha frente, ligeiramente à esquerda, e quase que ignorei a sua presença. Trocámos pouquíssimas palavras. Estupidamente dediquei toda a atenção à Odete. Ainda hoje estou para saber porquê. O que pensava era muito simples: a Maria não fora outra coisa na minha vida senão mais uma enviada pela outra. Uma morena, também com olhos tristes e carentes, que passou por mim de cabelos soltos ao vento e que não agarrei. Passou e não vai voltar a acontecer, embora esteja escrito que, depois dos trinta e dois anos, algo de imprevisível a trará ao meu encontro. Depois dos trinta e dois não significa aos trinta e três. Nem aos trinta e cinco. Mais tarde. Quando a paixão arder serenamente à lareira do crepúsculo. A Odete talvez tivesse razão. Havia entre nós o abismo das idades.
Mas seria mesmo por causa da diferença de idades?
No fim do jantar dei comigo a recitar alarvemente para a Odete dois ou três versos da primeira utopia. E logo a primeira! Ainda se fosse a da "dama de negro"!
Claros sinais do vinho branco que bebemos em excesso. Em consciência não tive qualquer intenção maldosa, mas fui grosseiro ao deixar que as palavras fatais saíssem:
«... então não perdia mais tempo: piscava-te o olho, montava o cavalo da coragem, e fugia contigo...»
A que propósito?
Dei conta do olhar espantado da Maria.
«O quê? Ele a dizer estes versos à Odete?» deve ter pensado.
Estavam então ditas as palavras talvez consideradas mágicas para a Maria e transformadas no momento em blasfémia. Assim, magoei-a. De certa forma vingava-me daquele dia em que me disse pelo telefone que estava a querer saber demasiado da sua vida privada.
E o que me levou a querer saber demais?
Logicamente porque gostava dela. Nunca lhe perdoei também a atitude levianamente sedutora que tomou comigo, pois continuava a namorar com o "rapazinho". Digamos que lhe dei uma bofetada com luva.
Mas quem ficou a perder?
Quanto à Odete, ouviu os versos, sorriu e não fez comentários. Lá tinha as suas razões para sorrir."
«Que aconteceu, Pedro? De repente ficou ausente.»
«Eu não me chamo Pedro!»
«Como assim?»
Então, Mário, controla-te. Foi apenas um momento de fuga...
«Não ligue, Helena. De vez em quando tenho ausências.»
«Já foi ao médico?»
«Sim» menti. «Não é nada de importante. Mas diga-me o que tem para dizer. Segundo a Helena preciso de ir ao casino porque...?»
«Vou direta ao assunto. A sua empresa faliu.»
«Está a brincar?»
«Acha? Não me interessa se a falência é fraudulenta ou não. Se desviou dinheiro para uma offshore ou assim. Longe de mim armar-me em polícia ou pensar em fazer uma denúncia.»
«Já agora... Mossack Fonseca.»
Uma falha grave na minha outra base de dados. Uma lacuna que podia ficar cara. Não sabia a que dizia respeito a minha suposta empresa. Muito menos se entrou em falência. E mais que não sabia.
«E isso também. Mossack Fonseca. Descobrimos tudo. Não adianta negar, Pedro.»
«Disse... descobrimos?»
«Sim. Descobrimos. Já agora, aproximei-me de ti e não foi pelos teus lindos olhos, meu menino. E também és daqueles que julgam terem sorte ao jogo no casino?»
Temos complicação da grande, Mário!
«Ao contrário do que imaginas, não sou daqueles que têm sorte ao jogo no casino. Também não quero saber do motivo porque me trouxeste aqui. Não quero saber de nada. Se quiseres, fica. Depois dás-me a chave do carro.»
«Achas que não tens tido sorte?»
«Talvez um pouco. Mas jogo alto.»
E dispus-me a sair.
«Acho bem que me trates também por tu, mas não te aconselho a saíres do carro sem ouvires o que tenho para dizer-te. Acredita, Pedro, que é para teu bem.»
«É uma ameaça?»
«Se quiseres, também pode ser um conselho. Não tens outra solução que não seja ouvir. Estás metido numa alhada das grandes. Sabes, não sabes?»
«Estou?»
As pessoas mudavam de trato como um camaleão de cor. Uma mulher que me parecia uma coisa e que afinal era o que não parecia.
«Bom, vamos ao assunto. Vais continuar a jogar...»
«Claro que vou.»
«Não me interrompas. Vais continuar a jogar e a ganhar, mas a coisa agora pia fino. É negócio grosso, acredita. E queremos uma percentagem.»
Complicação cada vez maior, Mário! E em que alhada está metido o Pedro que agora sou eu?
«Já agora... Mossack Fonseca.»
Uma falha grave na minha outra base de dados. Uma lacuna que podia ficar cara. Não sabia a que dizia respeito a minha suposta empresa. Muito menos se entrou em falência. E mais que não sabia.
«E isso também. Mossack Fonseca. Descobrimos tudo. Não adianta negar, Pedro.»
«Disse... descobrimos?»
«Sim. Descobrimos. Já agora, aproximei-me de ti e não foi pelos teus lindos olhos, meu menino. E também és daqueles que julgam terem sorte ao jogo no casino?»
Temos complicação da grande, Mário!
«Ao contrário do que imaginas, não sou daqueles que têm sorte ao jogo no casino. Também não quero saber do motivo porque me trouxeste aqui. Não quero saber de nada. Se quiseres, fica. Depois dás-me a chave do carro.»
«Achas que não tens tido sorte?»
«Talvez um pouco. Mas jogo alto.»
E dispus-me a sair.
«Acho bem que me trates também por tu, mas não te aconselho a saíres do carro sem ouvires o que tenho para dizer-te. Acredita, Pedro, que é para teu bem.»
«É uma ameaça?»
«Se quiseres, também pode ser um conselho. Não tens outra solução que não seja ouvir. Estás metido numa alhada das grandes. Sabes, não sabes?»
«Estou?»
As pessoas mudavam de trato como um camaleão de cor. Uma mulher que me parecia uma coisa e que afinal era o que não parecia.
«Bom, vamos ao assunto. Vais continuar a jogar...»
«Claro que vou.»
«Não me interrompas. Vais continuar a jogar e a ganhar, mas a coisa agora pia fino. É negócio grosso, acredita. E queremos uma percentagem.»
Complicação cada vez maior, Mário! E em que alhada está metido o Pedro que agora sou eu?
Deixei-me ir ao sabor da corrente.
«E que percentagem querem, Helena?»
Estava a aceitar tacitamente um acordo escabroso, mas não tinha outro remédio porque naquele momento eu era um industrial falido, hipoteticamente com um offshore em algures para onde tinha desviado uma quantia indeterminada.
«E que percentagem querem, Helena?»
Estava a aceitar tacitamente um acordo escabroso, mas não tinha outro remédio porque naquele momento eu era um industrial falido, hipoteticamente com um offshore em algures para onde tinha desviado uma quantia indeterminada.
«Depois saberás. Mas antes de entrarmos no casino temos que ir a um sítio.»
«Posso saber onde?»
Sorriu ironicamente.
«Sabes?, apesar de não dever misturar conhaque com serviço, uma atração que tenho por ti impele-me a fazer um disparate.»
Foi a vez de eu sorrir.
«Não prometo nada.»
«Veremos se resistes.»
Estou a viver uma aventura muito perigosa que pode ter um desfecho trágico. E a culpa é só minha. Não devia ter tido aquele desejo louco. Ao mesmo tempo é excitante ter saído da pasmaceira. Sinto-me atraído por esta nova situação como há muito tempo não acontecia. O marasmo em que me encontrava e a falta de inspiração para contar novas histórias eram um sinal que estava a chegar ao fim do fim. Depois, a atitude do António em nada me ajudou para sair do pântano onde me afogava. Despediu-me. Despediu-me de uma vez por todas com aquela ideia descabida de querer escrever para crianças. Erro! Erro notório que viria, mais tarde ou mais cedo, a pagar caro porque ele não tinha inspiração. A sua atividade literária era mais um ato de burilar as minhas descrições, do que de criar. A inspiração estava e esteve sempre comigo. De qualquer forma, abalou-me. Aquele ingrato abalou-me. A luz ao fundo do túnel parecia cada vez mais longe, mais esbatida. Como disse a brasileira, "a minha vida deu um nó".Até que, inesperadamente, aconteceu aquilo. Algo muito bom que me fez sonhar de novo.
Incríveis as voltas que o destino dá! Pena ter sido num dos últimos meandros do meu rio. Mas tenho esperança que estes se alonguem mais, cada vez mais.
Mas não era sobre isto que agora queria falar.
Optei por seguir à risca aquilo que considerei um capricho da Helena. Dizer que sim ao disparate que queria fazer comigo. Dizer também que sim ao seu pedido/ordem de deixar que me vendasse a vista com um lenço quando ficámos perto da sua suposta casa.
«Encosta o carro à berma quando puderes.»
«Pode ser aqui?»
«Posso saber onde?»
Sorriu ironicamente.
«Sabes?, apesar de não dever misturar conhaque com serviço, uma atração que tenho por ti impele-me a fazer um disparate.»
Foi a vez de eu sorrir.
«Não prometo nada.»
«Veremos se resistes.»
Estou a viver uma aventura muito perigosa que pode ter um desfecho trágico. E a culpa é só minha. Não devia ter tido aquele desejo louco. Ao mesmo tempo é excitante ter saído da pasmaceira. Sinto-me atraído por esta nova situação como há muito tempo não acontecia. O marasmo em que me encontrava e a falta de inspiração para contar novas histórias eram um sinal que estava a chegar ao fim do fim. Depois, a atitude do António em nada me ajudou para sair do pântano onde me afogava. Despediu-me. Despediu-me de uma vez por todas com aquela ideia descabida de querer escrever para crianças. Erro! Erro notório que viria, mais tarde ou mais cedo, a pagar caro porque ele não tinha inspiração. A sua atividade literária era mais um ato de burilar as minhas descrições, do que de criar. A inspiração estava e esteve sempre comigo. De qualquer forma, abalou-me. Aquele ingrato abalou-me. A luz ao fundo do túnel parecia cada vez mais longe, mais esbatida. Como disse a brasileira, "a minha vida deu um nó".Até que, inesperadamente, aconteceu aquilo. Algo muito bom que me fez sonhar de novo.
Incríveis as voltas que o destino dá! Pena ter sido num dos últimos meandros do meu rio. Mas tenho esperança que estes se alonguem mais, cada vez mais.
Mas não era sobre isto que agora queria falar.
Optei por seguir à risca aquilo que considerei um capricho da Helena. Dizer que sim ao disparate que queria fazer comigo. Dizer também que sim ao seu pedido/ordem de deixar que me vendasse a vista com um lenço quando ficámos perto da sua suposta casa.
«Encosta o carro à berma quando puderes.»
«Pode ser aqui?»
Acenou afirmativamente com a cabeça.
«Não faças comentários. Se não te importas, mudamos de lugar. A partir de agora sou eu quem conduz, mas antes vou pôr-te uma venda nos olhos.»
Obedeci. Não estava muito entusiasmado com o que ia seguir-se. Muito menos se ela pensasse em algemar-me e prender-me à cabeceira da cama. Contudo, admitia que havia mais para além do seu capricho.
E, que diabo!, um homem não era de ferro, nem ela a bruxa horrenda das histórias que as amiguinhas contavam ao Marinho.
«Por uma questão de segurança tanto para mim como para ti, não quero que saibas para onde vamos, Pedro.»
«O lenço incomoda-me. Está muito apertado.»
«Já falta pouco tempo.»
De facto o carro parou quase logo a seguir.
«É aqui. Não tires a venda. Só quando eu disser.»
«Fica descansada.»
Ajudou-me a sair do carro e a caminhar. Logicamente estava cego com aquela venda.
Ouvi-a meter a chave à porta da rua.
«Agora são só uns degraus até ao elevador. Não tenhas receio que não deixo que tropeces.»
«Tudo o que for preciso.»
«Vais ver que és recompensado!»
Nem ela imaginava o prazer que me ia dar.
O percurso do elevador foi curto. Talvez o apartamento fosse num segundo ou terceiro andar. Mas onde estava agora?
«Chegámos.»
Pareceu-me que deu apenas meia volta à chave ou então esta abriu-se sem que ela interferisse. Não ouvi o que devia ouvir porque não estava preparado para ser cego.
«Entra.»
E entrei. Logo a seguir senti a pressão de qualquer coisa no nariz e um cheiro esquisito, desagradável.
«Não exageres!»
Ainda ouvi a voz dela.
«Cuidado...»
E mais nada.
Finalmente reconheci onde estava. A cerca de cem metros do casino.
«A tua aventura vai começar agora, Pedro. Peço-te muita descrição, principalmente com os teus amigos. Nem uma palavra.»
«Não tenho amigos aqui. Só conhecidos.»
«Isso facilita muito a tua missão. E, acredita, vai dar-te gozo ganhar sempre ou quase sempre. Agora vais saber onde jogas.»
«Não faças comentários. Se não te importas, mudamos de lugar. A partir de agora sou eu quem conduz, mas antes vou pôr-te uma venda nos olhos.»
Obedeci. Não estava muito entusiasmado com o que ia seguir-se. Muito menos se ela pensasse em algemar-me e prender-me à cabeceira da cama. Contudo, admitia que havia mais para além do seu capricho.
E, que diabo!, um homem não era de ferro, nem ela a bruxa horrenda das histórias que as amiguinhas contavam ao Marinho.
«Por uma questão de segurança tanto para mim como para ti, não quero que saibas para onde vamos, Pedro.»
«O lenço incomoda-me. Está muito apertado.»
«Já falta pouco tempo.»
De facto o carro parou quase logo a seguir.
«É aqui. Não tires a venda. Só quando eu disser.»
«Fica descansada.»
Ajudou-me a sair do carro e a caminhar. Logicamente estava cego com aquela venda.
Ouvi-a meter a chave à porta da rua.
«Agora são só uns degraus até ao elevador. Não tenhas receio que não deixo que tropeces.»
«Tudo o que for preciso.»
«Vais ver que és recompensado!»
Nem ela imaginava o prazer que me ia dar.
O percurso do elevador foi curto. Talvez o apartamento fosse num segundo ou terceiro andar. Mas onde estava agora?
«Chegámos.»
Pareceu-me que deu apenas meia volta à chave ou então esta abriu-se sem que ela interferisse. Não ouvi o que devia ouvir porque não estava preparado para ser cego.
«Entra.»
E entrei. Logo a seguir senti a pressão de qualquer coisa no nariz e um cheiro esquisito, desagradável.
«Não exageres!»
Ainda ouvi a voz dela.
«Cuidado...»
E mais nada.
Finalmente reconheci onde estava. A cerca de cem metros do casino.
«A tua aventura vai começar agora, Pedro. Peço-te muita descrição, principalmente com os teus amigos. Nem uma palavra.»
«Não tenho amigos aqui. Só conhecidos.»
«Isso facilita muito a tua missão. E, acredita, vai dar-te gozo ganhar sempre ou quase sempre. Agora vais saber onde jogas.»
«Acho que não precisas.»
«Adivinhaste a zona, mas não a máquina. Aguarda.»
«Ganhar no casino?» questionei-me. «Ver para crer.»
«Só uma pergunta, Helena. Ou melhor: duas.»
«Diz.»
«Vou ver-te por aqui com frequência?»
«Não. A partir de agora não existo. E a segunda pergunta?»
«Porque será que não incluíram o Fort Knox?»
Respondeu de imediato.
«Muito simples. Já lá temos alguém...»
Portanto, havia uma rede instalada. Desconfiava da existência de grandes anomalias à volta do jogo, como manipulação, corrupção, mas a coisa era mais grave do que imaginava.
«Então, boa sorte. O carro fica no parque, não te esqueças.»
«Obrigado.»
«Já me esquecia. A tua percentagem é trinta. E não tentes enganar-nos, meu amigo, porque estás a ser controlado. Acredita. Portanto, nada de pensares em loucuras.»
«Adivinhaste a zona, mas não a máquina. Aguarda.»
«Ganhar no casino?» questionei-me. «Ver para crer.»
«Só uma pergunta, Helena. Ou melhor: duas.»
«Diz.»
«Vou ver-te por aqui com frequência?»
«Não. A partir de agora não existo. E a segunda pergunta?»
«Porque será que não incluíram o Fort Knox?»
Respondeu de imediato.
«Muito simples. Já lá temos alguém...»
Portanto, havia uma rede instalada. Desconfiava da existência de grandes anomalias à volta do jogo, como manipulação, corrupção, mas a coisa era mais grave do que imaginava.
«Então, boa sorte. O carro fica no parque, não te esqueças.»
«Obrigado.»
«Já me esquecia. A tua percentagem é trinta. E não tentes enganar-nos, meu amigo, porque estás a ser controlado. Acredita. Portanto, nada de pensares em loucuras.»
Lembrei-me logo dos mais que trinta espiões a que o Francisco aludira. Mas certamente não eram esses. Devia a estar a ser visionado de uma sala algures que até podia não se localizar no casino.
«Vá, segue em frente.»
«Adeus, Helena» despedi-me com um certo ar irónico. «Quando quiseres é só pedires...»
«Estavas convencido?»
«Quase que me enganaste. Só quase.»
Logo à entrada do casino fui cumprimentado pelo porteiro.
«Boa noite, senhor doutor Vaz. Hoje vem mais tarde...»
«Boa noite. Ah sim. Tive um jantar.»
Este devia ter rendido outro colega porque eu já tinha estado no casino até perto da dez.
Encaminhei-me para as máquinas dos cifrões. Também havia na zona três máquinas com quatro jogos cada.
«Ninguém está a jogar.» Disse para mim.
Procurei dinheiro nos bolsos de fora do casaco. Negativo. Depois, nas calças. Outra vez negativo.
«A carteira...»
Encontrei um maço de notas de cem euros e fiquei a pensar.
«O Pedro só joga com notas de cinquenta. E eu sou o Pedro, não me posso esquecer.»
«Despacha-te, industrial falido dos pregos e parafusos.»
Donde vinha aquela voz?
«Não tentes falar que não te ouvimos. Joga nas duas primeiras máquinas. Vinte e sete apostas cada vez. Mas antes vai trocar o dinheiro. Jogas só com notas de cinquenta. E não te esqueças de levantar os tickets sempre nas máquinas automáticas.»
«Aqueles cabrões meteram-me a porra de um chip!» Admiti.
Bom, agora o que interessava era jogar. Jogar e ganhar dava-me gozo. E era o meu lema se não fosse o problema das máquinas estarem sempre manipuladas. Mas agora era ao contrário, pensava. Pressentia que ia ganhar.
Já com o dinheiro trocado, meti sucessivamente uma nota de cinquenta na primeira máquina a contar da esquerda e outra na segunda. De seguida, preparei-as para 9x3 e carreguei na tecla do automático de cada uma.
«Não jogar com o nosso dinheiro é bom, Mário» pehsei. «E trinta por cento dos lucros também não é mau. Melhor seria o inverso, mas adiante que atrás vem gente.»
As duas notas foram engolidas em pouco tempo pelas máquinas. Paulatinamente, voltei a municiá-las e o jogo continuou. Estava a desempenhar na perfeição o meu papel. Aguardava pelos resultados.
«Viva, doutor Vaz, meu bom amigo...»
Virei-me. Era o Francisco.
«Olá, Francisco.»
O Francisco conhecia meio mundo. Já sabia. Mas não me reconheceu. Nem deu pela mudança do tom de voz.
«Está a correr bem?»
«Comecei agora.»
Pouco depois ia ao bónus na segunda máquina e arrecadava quase oitocentos euros.
«Agora sobes as duas para 9x5.»
Não faria assim. Mantinha o valor da aposta na máquina que deu o prémio e subia para a aposta máxima na outra.
Mas foi a segunda máquina que voltou a ir ao bónus. Para meu espanto começou por dar quatro cifrões, depois três por duas vezes e a seguir cinco.
«Incrível!»
«Bem merece, doutor Vaz. Nem imagina o prazer que me dá vê-lo ganhar todo esse dinheiro.»
Limitei-me a sorrir. O entusiasmo não dava para mais. Finalmente começava a vingança. Mas não ficou por aí. Entre outros prémios fiz uma linha de moedas. Resultado final deste bónus: quase sete mil euros.
«Boa!, doutor Vaz!» exclamou o Francisco.
Sorri para ele. Pensei logo em dar-lhe cinquenta euros.
«Não lhe dês nada. Continua a jogar. Larga a primeira máquina e agora salta para a quarta. Rápido, antes que outro jogador a ocupe.»
Eles estavam a ver! A terceira máquina tinha sido ocupada segundos antes.
Olhei em redor e não vi ninguém que parecesse suspeito. Pelo menos uma daquelas pessoas que o Francisco que me tinha indicado.
Entretanto chegaram dois fiscais com o dinheiro do jackpot numa bandeja.
«Deixa vinte euros e as moedas. Por hoje não há mais jogo. Portaste-te bem.»
«Vá, segue em frente.»
«Adeus, Helena» despedi-me com um certo ar irónico. «Quando quiseres é só pedires...»
«Estavas convencido?»
«Quase que me enganaste. Só quase.»
Logo à entrada do casino fui cumprimentado pelo porteiro.
«Boa noite, senhor doutor Vaz. Hoje vem mais tarde...»
«Boa noite. Ah sim. Tive um jantar.»
Este devia ter rendido outro colega porque eu já tinha estado no casino até perto da dez.
Encaminhei-me para as máquinas dos cifrões. Também havia na zona três máquinas com quatro jogos cada.
«Ninguém está a jogar.» Disse para mim.
Procurei dinheiro nos bolsos de fora do casaco. Negativo. Depois, nas calças. Outra vez negativo.
«A carteira...»
Encontrei um maço de notas de cem euros e fiquei a pensar.
«O Pedro só joga com notas de cinquenta. E eu sou o Pedro, não me posso esquecer.»
«Despacha-te, industrial falido dos pregos e parafusos.»
Donde vinha aquela voz?
«Não tentes falar que não te ouvimos. Joga nas duas primeiras máquinas. Vinte e sete apostas cada vez. Mas antes vai trocar o dinheiro. Jogas só com notas de cinquenta. E não te esqueças de levantar os tickets sempre nas máquinas automáticas.»
«Aqueles cabrões meteram-me a porra de um chip!» Admiti.
Bom, agora o que interessava era jogar. Jogar e ganhar dava-me gozo. E era o meu lema se não fosse o problema das máquinas estarem sempre manipuladas. Mas agora era ao contrário, pensava. Pressentia que ia ganhar.
Já com o dinheiro trocado, meti sucessivamente uma nota de cinquenta na primeira máquina a contar da esquerda e outra na segunda. De seguida, preparei-as para 9x3 e carreguei na tecla do automático de cada uma.
«Não jogar com o nosso dinheiro é bom, Mário» pehsei. «E trinta por cento dos lucros também não é mau. Melhor seria o inverso, mas adiante que atrás vem gente.»
As duas notas foram engolidas em pouco tempo pelas máquinas. Paulatinamente, voltei a municiá-las e o jogo continuou. Estava a desempenhar na perfeição o meu papel. Aguardava pelos resultados.
«Viva, doutor Vaz, meu bom amigo...»
Virei-me. Era o Francisco.
«Olá, Francisco.»
O Francisco conhecia meio mundo. Já sabia. Mas não me reconheceu. Nem deu pela mudança do tom de voz.
«Está a correr bem?»
«Comecei agora.»
Pouco depois ia ao bónus na segunda máquina e arrecadava quase oitocentos euros.
«Agora sobes as duas para 9x5.»
Não faria assim. Mantinha o valor da aposta na máquina que deu o prémio e subia para a aposta máxima na outra.
Mas foi a segunda máquina que voltou a ir ao bónus. Para meu espanto começou por dar quatro cifrões, depois três por duas vezes e a seguir cinco.
«Incrível!»
«Bem merece, doutor Vaz. Nem imagina o prazer que me dá vê-lo ganhar todo esse dinheiro.»
Limitei-me a sorrir. O entusiasmo não dava para mais. Finalmente começava a vingança. Mas não ficou por aí. Entre outros prémios fiz uma linha de moedas. Resultado final deste bónus: quase sete mil euros.
«Boa!, doutor Vaz!» exclamou o Francisco.
Sorri para ele. Pensei logo em dar-lhe cinquenta euros.
«Não lhe dês nada. Continua a jogar. Larga a primeira máquina e agora salta para a quarta. Rápido, antes que outro jogador a ocupe.»
Eles estavam a ver! A terceira máquina tinha sido ocupada segundos antes.
Olhei em redor e não vi ninguém que parecesse suspeito. Pelo menos uma daquelas pessoas que o Francisco que me tinha indicado.
Entretanto chegaram dois fiscais com o dinheiro do jackpot numa bandeja.
«Deixa vinte euros e as moedas. Por hoje não há mais jogo. Portaste-te bem.»
Em casa do outro
Eram quatro da manhã quando me deitei. Estava tão cansado com as peripécias do dia que adormeci mal caí na cama. No máximo dormi quatro horas.
Acordei com o barulho dos elevadores a arrancarem, para cima e para baixo. Do exterior nem um ruído, apesar do trânsito na avenida da República ser intenso, pelo que concluí que as janelas tinham vidros duplos. Apesar da rigidez do colchão, não estranhei a cama.
Deixei-me ficar deitado, barriga para cima e pernas fletidas. E também de mãos na nuca, como costumo fazer em momentos de relaxamento como era aquele. Pensava na minha nova vida que começara ontem, à noitinha, quando decidi seguir o homem que jogava nas máquinas com toda a tranquilidade do mundo, como se os créditos fossem feijões. Claro, também a sua fortuita companheira de jogo nos cifrões. E depois aconteceu aquilo. Algo inesperado e fantástico que se confundiu com um sonho. Mas era real. Tão real como eu beliscar-me e sentir a dor.Não estava no meu quarto. Agora era o Pedro Vaz, empresário, dono de uma suposta fábrica de pregos e parafusos em rotura financeira, que morava num apartamento de luxo da avenida da República.
Como consegui descobrir o andar e entrar sem problemas?
Tudo muito linear. Primeiro, os documentos que encontrei no BMW. Segundo, porque encontrei num dos bolsos do casaco um porta-chaves. Só havia um problema que me conduzia à possibilidade do meu hospedeiro não viver sozinho. Mas tinha que correr o risco. Enfim... joguei na lotaria e acertei em cheio no prémio.
Mas até quando aquela situação ia durar?
Ah... o dinheiro! Bendito dinheiro que caiu do céu! Do céu. não. Do inferno.
Levantei-me de um salto. Podia ter sido mau. Já não tinha trinta anos, nem quarenta, nem...Bom, os ossos ficaram todos no sítio, bem como os tendões. E indo direito ao assunto, procurei as notas nos bolsos do casaco e das calças e fui atirando as mesmas para cima da cama. Nunca tinha visto tanto dinheiro ganho em tão pouco tempo. Sim. Foram pouco mais de três horas. Comecei a fazer montes com as notas. Quinhentos, duzentos. Havia de tudo. Fui contando com cuidado e cheguei a um total de vinte e três mil quatrocentos e noventa euros e mais uns trocos. Mentalmente calculei o meu quinhão. Sete mil e quarenta e sete, mais coisa menos coisa. Havia o fundo de maneio mas já tinha feito o acerto antes de deitar-me.
Muito bom. Não podia ter sido melhor para começar. Mas fui invadido logo a seguir por um complexo de culpa. Estava a pactuar com indivíduos desonestos e portanto tinha que me considerar um fora da lei tal qual eles. Por outro lado, tinham-me na mão. Provavelmente eu, Pedro (ontem Mário), empresário, dono de uma fábrica de pregos e parafusos falida e com uma conta num offshore do Luxemburgo onde era quase certo ter dinheiro desviado, ano após ano, do qual pagava de impostos uma ninharia, não tinha saída. E mais ainda, talvez tivesse investido o dinheiro num negócio menos transparente. Sei lá. Droga, armas, tabaco, tráfico de mulheres. Tudo era possível, pois não me conhecia. Tudo nada bom.
Quase a seguir, atenuei a amplidão da minha provável vivência pecaminosa, pondo de lado a droga e o contrabando de armas. Tráfico de mulheres, muito menos. Também era grave e não estava na minha forma de ser. Tabaco? Talvez também não. Restava a fuga aos impostos no meu país. Quem não foge aos impostos, se puder, que atire a primeira pedra!
Por outro lado, ao alinhar a contragosto com um grupo mafioso, nascia a oportunidade de lutar com as mesmas armas contra um casino onde os seus responsáveis e subalternos faziam a apologia do jogo aleatório quando estava mais que provado que a manipulação era total, feita a belo prazer para beneficiar uns e prejudicar outros, porque os casinos fizeram-se só para financiar o Estado e os seus donos (leia-se acionistas). E ainda pior que tudo para mim. Estar permanentemente a ser vigiado, jogando ao sabor das suas decisões, ganhando ou perdendo ao sabor de vontades superiores. Eu e todos os utentes, corruptos e não corruptos.Decidi guardar para outra ocasião os complexo de culpa e pensei outra vez no dinheiro. Meu e dos outros. O meu já em boa mão. A vingança estava em marcha. O nó cego, que não quis mas com o qual sonhei, estava agora implementado.
Precisava de entregar os setenta por cento, mas tinha que aguardar por um contacto. E a propósito, não consigo entender como eles conseguem contactar comigo. Certamente está relacionado com o momento que entrei numa casa desconhecida na companhia da Helena cinquentona. Não sei o que me aconteceu porque me puseram logo a dormir. Pensando melhor, devia ter um implante algures no interior do corpo. Talvez esteja a nível do ouvido. Quanto ao resto, ao modo como chegavam ao controle de uma máquina, é ainda cedo para tirar conclusões. Talvez mesmo não venha a saber. Em primeira análise, o controle das máquinas e dos utentes mexe com suborno logo ao nível de alguém da central. Sim, porque, por mais que fiscais e chefes de sala neguem, todos os utentes são visionados. E pela primeira vez, eu, Mário/Pedro, fui visionado para ser favorecido. Disso tenho a certeza.
Provavelmente o meu êxito vai repetir-se hoje, amanhã... até soar um sinal de alarme. Ninguém pode ganhar sempre. E então...?
Toque de telemóvel. Tento orientar-me pelo som. Ok. Já descobri. Está no bolso interior do casaco. Deixa ver quem chama por mim. Gina. Não sei se devo atender. É melhor não.
Antes de mais nada, um duche reparador chama por mim. E é para já. Mas antes da casa de banho tenho aqui o quarto de vestir. Preciso de bóxeres, camisa e peúgas. É bom que eu e o Pedro tenhamos números próximos.E eis a casa de banho. Vamos a isso.
«Jacuzzi!»
Gente rica é outra coisa. Gente da classe média não cheira muita coisa boa. E cada vez mais com a carga de impostos que se tornou pesada até dizer basta.
«Pedro... mas ao menos és feliz?»
Não respondes mas eu vou falar por ti...
Solitário. Empresa em vias de falência. Dinheiro escondido por causa das moscas. Jogo no casino que não falhas um dia, agora numa fase de salvação que não conheces pois não passas de um mero hospedeiro vegetativo. Almoçaradas com lagosta, carabineiros, camarão de Espinho, etc e tal. E desconfio que também a Gina faz parte do teu menu.
Ao menos ela ameniza a tua vida, Pedro?
Nem de propósito. O telemóvel a tocar. Deixa tocar, Mário. O jacuzzi chama por ti. Uma hidromassagem vem mesmo na hora certa. Se tivesse um jacuzzi na minha casa de banho não podia entrar nela sem primeiro cortar as unhas!
É bom demais, mas tenho que sair. Vou tomar nu um pequeno almoço suculento. Não. Stop! Preciso de ar puro para arrumar as ideias. Cá está. Bóxeres. Camisa. Todo o resto a que tenho direito. Este quarto de vestir é exemplar. Procuro um espelho. Parece que fico bem assim. O casaco cai-me que nem uma luva. Só não gosto deste cabelo ruivo, dos olhos azuis e da pele clara. Mas não posso fazer nada. Agora sou o Pedro. O espelho não mente.
Vou sair. As chaves? Sim, já estão no bolso. O telemóvel que se lixe. Não quero confusões com a Gina nem com outras pessoas, sejam mulheres ou homens.
«Pedro...»
São eles. Lembro-me que não vale a pena responder. Não me ouvem mas sabem onde estou.
Qual o raio de ação desta geringonça?
«Dentro de meia hora no cimo da Casal Ribeiro. Está alguém para receber o dinheiro. Ele veste uma camisola azul forte e calças de ganga pretas. A senha é offshore...»
Acordei com o barulho dos elevadores a arrancarem, para cima e para baixo. Do exterior nem um ruído, apesar do trânsito na avenida da República ser intenso, pelo que concluí que as janelas tinham vidros duplos. Apesar da rigidez do colchão, não estranhei a cama.
Deixei-me ficar deitado, barriga para cima e pernas fletidas. E também de mãos na nuca, como costumo fazer em momentos de relaxamento como era aquele. Pensava na minha nova vida que começara ontem, à noitinha, quando decidi seguir o homem que jogava nas máquinas com toda a tranquilidade do mundo, como se os créditos fossem feijões. Claro, também a sua fortuita companheira de jogo nos cifrões. E depois aconteceu aquilo. Algo inesperado e fantástico que se confundiu com um sonho. Mas era real. Tão real como eu beliscar-me e sentir a dor.Não estava no meu quarto. Agora era o Pedro Vaz, empresário, dono de uma suposta fábrica de pregos e parafusos em rotura financeira, que morava num apartamento de luxo da avenida da República.
Como consegui descobrir o andar e entrar sem problemas?
Tudo muito linear. Primeiro, os documentos que encontrei no BMW. Segundo, porque encontrei num dos bolsos do casaco um porta-chaves. Só havia um problema que me conduzia à possibilidade do meu hospedeiro não viver sozinho. Mas tinha que correr o risco. Enfim... joguei na lotaria e acertei em cheio no prémio.
Mas até quando aquela situação ia durar?
Ah... o dinheiro! Bendito dinheiro que caiu do céu! Do céu. não. Do inferno.
Levantei-me de um salto. Podia ter sido mau. Já não tinha trinta anos, nem quarenta, nem...Bom, os ossos ficaram todos no sítio, bem como os tendões. E indo direito ao assunto, procurei as notas nos bolsos do casaco e das calças e fui atirando as mesmas para cima da cama. Nunca tinha visto tanto dinheiro ganho em tão pouco tempo. Sim. Foram pouco mais de três horas. Comecei a fazer montes com as notas. Quinhentos, duzentos. Havia de tudo. Fui contando com cuidado e cheguei a um total de vinte e três mil quatrocentos e noventa euros e mais uns trocos. Mentalmente calculei o meu quinhão. Sete mil e quarenta e sete, mais coisa menos coisa. Havia o fundo de maneio mas já tinha feito o acerto antes de deitar-me.
Muito bom. Não podia ter sido melhor para começar. Mas fui invadido logo a seguir por um complexo de culpa. Estava a pactuar com indivíduos desonestos e portanto tinha que me considerar um fora da lei tal qual eles. Por outro lado, tinham-me na mão. Provavelmente eu, Pedro (ontem Mário), empresário, dono de uma fábrica de pregos e parafusos falida e com uma conta num offshore do Luxemburgo onde era quase certo ter dinheiro desviado, ano após ano, do qual pagava de impostos uma ninharia, não tinha saída. E mais ainda, talvez tivesse investido o dinheiro num negócio menos transparente. Sei lá. Droga, armas, tabaco, tráfico de mulheres. Tudo era possível, pois não me conhecia. Tudo nada bom.
Quase a seguir, atenuei a amplidão da minha provável vivência pecaminosa, pondo de lado a droga e o contrabando de armas. Tráfico de mulheres, muito menos. Também era grave e não estava na minha forma de ser. Tabaco? Talvez também não. Restava a fuga aos impostos no meu país. Quem não foge aos impostos, se puder, que atire a primeira pedra!
Por outro lado, ao alinhar a contragosto com um grupo mafioso, nascia a oportunidade de lutar com as mesmas armas contra um casino onde os seus responsáveis e subalternos faziam a apologia do jogo aleatório quando estava mais que provado que a manipulação era total, feita a belo prazer para beneficiar uns e prejudicar outros, porque os casinos fizeram-se só para financiar o Estado e os seus donos (leia-se acionistas). E ainda pior que tudo para mim. Estar permanentemente a ser vigiado, jogando ao sabor das suas decisões, ganhando ou perdendo ao sabor de vontades superiores. Eu e todos os utentes, corruptos e não corruptos.Decidi guardar para outra ocasião os complexo de culpa e pensei outra vez no dinheiro. Meu e dos outros. O meu já em boa mão. A vingança estava em marcha. O nó cego, que não quis mas com o qual sonhei, estava agora implementado.
Precisava de entregar os setenta por cento, mas tinha que aguardar por um contacto. E a propósito, não consigo entender como eles conseguem contactar comigo. Certamente está relacionado com o momento que entrei numa casa desconhecida na companhia da Helena cinquentona. Não sei o que me aconteceu porque me puseram logo a dormir. Pensando melhor, devia ter um implante algures no interior do corpo. Talvez esteja a nível do ouvido. Quanto ao resto, ao modo como chegavam ao controle de uma máquina, é ainda cedo para tirar conclusões. Talvez mesmo não venha a saber. Em primeira análise, o controle das máquinas e dos utentes mexe com suborno logo ao nível de alguém da central. Sim, porque, por mais que fiscais e chefes de sala neguem, todos os utentes são visionados. E pela primeira vez, eu, Mário/Pedro, fui visionado para ser favorecido. Disso tenho a certeza.
Provavelmente o meu êxito vai repetir-se hoje, amanhã... até soar um sinal de alarme. Ninguém pode ganhar sempre. E então...?
Toque de telemóvel. Tento orientar-me pelo som. Ok. Já descobri. Está no bolso interior do casaco. Deixa ver quem chama por mim. Gina. Não sei se devo atender. É melhor não.
Antes de mais nada, um duche reparador chama por mim. E é para já. Mas antes da casa de banho tenho aqui o quarto de vestir. Preciso de bóxeres, camisa e peúgas. É bom que eu e o Pedro tenhamos números próximos.E eis a casa de banho. Vamos a isso.
«Jacuzzi!»
Gente rica é outra coisa. Gente da classe média não cheira muita coisa boa. E cada vez mais com a carga de impostos que se tornou pesada até dizer basta.
«Pedro... mas ao menos és feliz?»
Não respondes mas eu vou falar por ti...
Solitário. Empresa em vias de falência. Dinheiro escondido por causa das moscas. Jogo no casino que não falhas um dia, agora numa fase de salvação que não conheces pois não passas de um mero hospedeiro vegetativo. Almoçaradas com lagosta, carabineiros, camarão de Espinho, etc e tal. E desconfio que também a Gina faz parte do teu menu.
Ao menos ela ameniza a tua vida, Pedro?
Nem de propósito. O telemóvel a tocar. Deixa tocar, Mário. O jacuzzi chama por ti. Uma hidromassagem vem mesmo na hora certa. Se tivesse um jacuzzi na minha casa de banho não podia entrar nela sem primeiro cortar as unhas!
É bom demais, mas tenho que sair. Vou tomar nu um pequeno almoço suculento. Não. Stop! Preciso de ar puro para arrumar as ideias. Cá está. Bóxeres. Camisa. Todo o resto a que tenho direito. Este quarto de vestir é exemplar. Procuro um espelho. Parece que fico bem assim. O casaco cai-me que nem uma luva. Só não gosto deste cabelo ruivo, dos olhos azuis e da pele clara. Mas não posso fazer nada. Agora sou o Pedro. O espelho não mente.
Vou sair. As chaves? Sim, já estão no bolso. O telemóvel que se lixe. Não quero confusões com a Gina nem com outras pessoas, sejam mulheres ou homens.
«Pedro...»
São eles. Lembro-me que não vale a pena responder. Não me ouvem mas sabem onde estou.
Qual o raio de ação desta geringonça?
«Dentro de meia hora no cimo da Casal Ribeiro. Está alguém para receber o dinheiro. Ele veste uma camisola azul forte e calças de ganga pretas. A senha é offshore...»
Coincidência das coincidências. É onde supostamente escondi o dinheiro desviado da empresa. Algures. Mas não preciso de saber onde.
Estou triste. Há dias só sonhava com a multiplicação do dinheiro. Hoje que o tenho, e não é pouco, sinto-me estranho. Não o ganhei. Caiu do céu. Do céu, não. Rodei cento e oitenta graus e posso dizer que subiu das profundezas do inferno. Esta é a verdade nua e crua. Este dinheiro está amaldiçoado. Queima-me as mãos. Não sei como vou sair disto. Sinto medo. No casino já falam à boca cheia que não é possível eu ganhar todos os dias, que entrei num esquema de conluio com alguém. E não é mentira. Está à vista de qualquer pessoa minimamente observadora. Os próprios fiscais e chefes de sala olham para mim de uma forma diferente. Olham para mim e uns para os outros, com desconfiança. Isto vai acabar mal. Tanto critiquei o Zé dedilhador e uma mão cheia de outros e agora sinto que sou pior dez vezes que eles.
«É o karma.»
Até já oiço vozes. Não sei onde vou parar.
«Ele é que devia ver isto» ouvi o Vítor dizer a alguém. «Que já estava na inspeção a reclamar, disso tenho a certeza!»
Claro que se referia a mim sem saber que acusação era mesmo para mim. Pior ainda. Escondi-me atrás de um industrial falido que é capaz de tudo para sobreviver.
Ontem pensei em perder. Coisa que não admitia antes disto acontecer. Sempre gostei de jogar para ganhar e nunca consegui. O sistema instalado, altamente manipulador, não o permitiu.
Decidido a perder, experimentei máquinas novas não autorizadas por eles e aconteceu o mesmo. Choveram prémios e mais prémios. Por mais que mudasse de máquina, aparentemente fora da influência direta do grupo mafioso da Helena, tinha sempre mais do mesmo. Eles estavam mais próximos de mim do que imaginava.Seria que a sede era no próprio casino, ou o prodígio das novas tecnologias até dispensava a proximidade?
Era vigiado por pessoas invisíveis aos meus olhos?
Por mais que olhasse em volta, me virasse para trás de repente, nada divisava. Tudo parecia normal.
São onze da manhã e não me apetece sair da cama. Sinto-me preso numa teia muito forte. Já mais que uma vez pensei em falar com o António e pôr-lhe o problema. Depois arrependo-me e recuo. Não quero que se envolva nesta merda onde me atolei. Chega para mim e pronto. Só eu devo suportar este peso que me atormenta.
E não sendo o António, quem me pode acudir?
O Ernesto? Claro que não. É um amigo imaginário. Nunca existiu. Nem quando eu era o Marinho, a criança que gostava muito de gatos e atirava com eles pela varanda abaixo para ver como "aterravam" no empedrado.
Então, quem...?
«É o karma.»
Até já oiço vozes. Não sei onde vou parar.
«Ele é que devia ver isto» ouvi o Vítor dizer a alguém. «Que já estava na inspeção a reclamar, disso tenho a certeza!»
Claro que se referia a mim sem saber que acusação era mesmo para mim. Pior ainda. Escondi-me atrás de um industrial falido que é capaz de tudo para sobreviver.
Ontem pensei em perder. Coisa que não admitia antes disto acontecer. Sempre gostei de jogar para ganhar e nunca consegui. O sistema instalado, altamente manipulador, não o permitiu.
Decidido a perder, experimentei máquinas novas não autorizadas por eles e aconteceu o mesmo. Choveram prémios e mais prémios. Por mais que mudasse de máquina, aparentemente fora da influência direta do grupo mafioso da Helena, tinha sempre mais do mesmo. Eles estavam mais próximos de mim do que imaginava.Seria que a sede era no próprio casino, ou o prodígio das novas tecnologias até dispensava a proximidade?
Era vigiado por pessoas invisíveis aos meus olhos?
Por mais que olhasse em volta, me virasse para trás de repente, nada divisava. Tudo parecia normal.
São onze da manhã e não me apetece sair da cama. Sinto-me preso numa teia muito forte. Já mais que uma vez pensei em falar com o António e pôr-lhe o problema. Depois arrependo-me e recuo. Não quero que se envolva nesta merda onde me atolei. Chega para mim e pronto. Só eu devo suportar este peso que me atormenta.
E não sendo o António, quem me pode acudir?
O Ernesto? Claro que não. É um amigo imaginário. Nunca existiu. Nem quando eu era o Marinho, a criança que gostava muito de gatos e atirava com eles pela varanda abaixo para ver como "aterravam" no empedrado.
Então, quem...?
«Pedro, que se passa para estares ainda na cama nesses belos preparos?»
Fui apanhado de surpresa. Quem era ela e como apareceu aqui, sem mais nem menos, à porta do quarto?
«Olá...» Cumprimento, esboçando um sorriso. Será que pertence à rede dos mafiosos?
«É assim que me recebes?, só com um olá?»
E agora, Mário?
Soergo-me na cama. Felizmente que estas bóxeres tapam a parte mais íntima da minha nudez. Quem quer que seja ela tem a chave de casa e entrou com pezinhos de lã. Portanto, julgo que é pessoa da confiança do Pedro. Talvez uma amante. Não é talvez. É certo.A propósito, para onde foi ele depois que me apossei do seu corpo e talvez do espírito?
E lá vem a treta dos universos paralelos.
O que devo dizer à desconhecida? Avanço? Não avanço?
«Não sei o que se passa contigo. Ultimamente tens andado muito esquisito.»
Vou arriscar.
«Impressão tua, Gina.»
«Gina?»
Agora é que estraguei tudo. Quem me manda...?
«Quem é essa Gina, Pedro?»
Quem é, Mário?
Não sei o que fazer neste jogo de cabra cega. Oxalá isto tudo possa acabar de um momento para o outro. O esquema dos mafiosos. A tensão em que ando que não me dá paz desde há uma semana. Quero o meu rosto de volta, embora ele seja mais bem parecido. A minha verdadeira identidade. E o maldito dinheiro que vá para o caraças. Já!
A mulher que não se chama Gina aponta-me um dedo acusador. No seu rosto leio revolta. Despeito. Neste momento não passo de um inseto para ela. Já percebi. Eles têm uma ligação forte e eu não sabia, claro.
«Não respondes. Estás a atraiçoar-me, Pedro!»
«Eu?!...»
Claro que não. Eu, Mário, nunca a vi na minha vida. Nem mais gorda nem mais magra. Nem com cabelo curto (fica-lhe bem), nem comprido. Nem nua. Só vestida. Com está agora. Preciso de ganhar tempo. isto está a ficar complicado. Vou dizer-lhe...?
«Não é o que pensas.»
Uma deixa para ganhar o tal tempo.
«Amélia, gosto de ti. Amélia, fica comigo esta noite. És o grande amor da minha vida. Blá, blá, blá...»
Então a intrusa para mim que não é intrusa para o Pedro chama-se Amélia.
«Grande cínico! E agora atraiçoas-me com a puta duma Gina. Sim, porque essa mulher deve ser uma grande puta. És um ingrato! Depois do que tenho feito por ti, como foste capaz de me confundir com ela?»
«Mas estás, enganada. Não é o que pensas, Amélia! Na verdade não conheço nenhuma Gina.»
«Olá...» Cumprimento, esboçando um sorriso. Será que pertence à rede dos mafiosos?
«É assim que me recebes?, só com um olá?»
E agora, Mário?
Soergo-me na cama. Felizmente que estas bóxeres tapam a parte mais íntima da minha nudez. Quem quer que seja ela tem a chave de casa e entrou com pezinhos de lã. Portanto, julgo que é pessoa da confiança do Pedro. Talvez uma amante. Não é talvez. É certo.A propósito, para onde foi ele depois que me apossei do seu corpo e talvez do espírito?
E lá vem a treta dos universos paralelos.
O que devo dizer à desconhecida? Avanço? Não avanço?
«Não sei o que se passa contigo. Ultimamente tens andado muito esquisito.»
Vou arriscar.
«Impressão tua, Gina.»
«Gina?»
Agora é que estraguei tudo. Quem me manda...?
«Quem é essa Gina, Pedro?»
Quem é, Mário?
Não sei o que fazer neste jogo de cabra cega. Oxalá isto tudo possa acabar de um momento para o outro. O esquema dos mafiosos. A tensão em que ando que não me dá paz desde há uma semana. Quero o meu rosto de volta, embora ele seja mais bem parecido. A minha verdadeira identidade. E o maldito dinheiro que vá para o caraças. Já!
A mulher que não se chama Gina aponta-me um dedo acusador. No seu rosto leio revolta. Despeito. Neste momento não passo de um inseto para ela. Já percebi. Eles têm uma ligação forte e eu não sabia, claro.
«Não respondes. Estás a atraiçoar-me, Pedro!»
«Eu?!...»
Claro que não. Eu, Mário, nunca a vi na minha vida. Nem mais gorda nem mais magra. Nem com cabelo curto (fica-lhe bem), nem comprido. Nem nua. Só vestida. Com está agora. Preciso de ganhar tempo. isto está a ficar complicado. Vou dizer-lhe...?
«Não é o que pensas.»
Uma deixa para ganhar o tal tempo.
«Amélia, gosto de ti. Amélia, fica comigo esta noite. És o grande amor da minha vida. Blá, blá, blá...»
Então a intrusa para mim que não é intrusa para o Pedro chama-se Amélia.
«Grande cínico! E agora atraiçoas-me com a puta duma Gina. Sim, porque essa mulher deve ser uma grande puta. És um ingrato! Depois do que tenho feito por ti, como foste capaz de me confundir com ela?»
«Mas estás, enganada. Não é o que pensas, Amélia! Na verdade não conheço nenhuma Gina.»
«Estás a enterrar-te cada vez mais!»
«Não sou quem tu julgas.»
Felizmente que já tenho um nome para ela. Valha-me isso. Mas a verdade é que continuo em maus lençóis porque nem sequer ouviu o que disse.
«Mentiroso. Ainda por cima...»
Solta-se a lágrima inevitável. Os homens são todos uns ingratos. Dissimulados. Traidores. Deve estar a pensar. E eu não tenho argumentos. De momento.
Vira-me as costas e fico a pensar como sair duma situação daquelas. Olho para o meu corpo seminu que umas bóxeres XL não podem cobrir. Encolho os ombros (que se lixe!) e corro atrás dela. Apanho-a já a entrar no elevador e puxo-a para mim.
«Larga-me...»
Canalha. Era a palavra que se seguia. Protozoário, teria dito a bióloga ofendida. Foraminífero, a geóloga. E por aí adiante. Cada botão na sua casa.
«E se falássemos como gente crescida?»
«Não sou quem tu julgas.»
Felizmente que já tenho um nome para ela. Valha-me isso. Mas a verdade é que continuo em maus lençóis porque nem sequer ouviu o que disse.
«Mentiroso. Ainda por cima...»
Solta-se a lágrima inevitável. Os homens são todos uns ingratos. Dissimulados. Traidores. Deve estar a pensar. E eu não tenho argumentos. De momento.
Vira-me as costas e fico a pensar como sair duma situação daquelas. Olho para o meu corpo seminu que umas bóxeres XL não podem cobrir. Encolho os ombros (que se lixe!) e corro atrás dela. Apanho-a já a entrar no elevador e puxo-a para mim.
«Larga-me...»
Canalha. Era a palavra que se seguia. Protozoário, teria dito a bióloga ofendida. Foraminífero, a geóloga. E por aí adiante. Cada botão na sua casa.
«E se falássemos como gente crescida?»
Paz, Jacinto dos teus dois mundos! Ao menos tu não te metes em sarilhos.
Não se solta dos meus braços, mas responde:
«Tu não passas de uma criança viciada. Sim, de algum tempo a esta parte só vives para o casino. Trocaste-me por outra. Usas o casino para esconderes a traição. Essa Gina é do casino, não é? Quero lá ir. Quero enfrentá-la...»
«Vamos falar?» insisto.
"Vamos falar de amor? A gente teve um caso muito sério", diz a canção.
Desiste do elevador e eu desisto daquele abraço fatal. Uma velhinha que entretanto chegou só não tapa os olhos por vergonha. Ou isso.
«Tenho muito para te contar, acredita.»
«Ai tens tens!»
Entramos em casa. Fecho a porta.
«Espera um pouco que vou vestir qualquer coisa decente.»
«Fazes-me rir.»
«Insisto.»
«Não percebo essa vergonha repentina, mas está bem. Vai lá vestir-te.»
É a primeira vez que sorri. Gostei do seu sorriso.
Com esta apreciação "made in facebook" cerram-se as cortinas, interrompe-se a representação e assim termina o primeiro ato. O segundo ato segue dentro de momentos...
Não se solta dos meus braços, mas responde:
«Tu não passas de uma criança viciada. Sim, de algum tempo a esta parte só vives para o casino. Trocaste-me por outra. Usas o casino para esconderes a traição. Essa Gina é do casino, não é? Quero lá ir. Quero enfrentá-la...»
«Vamos falar?» insisto.
"Vamos falar de amor? A gente teve um caso muito sério", diz a canção.
Desiste do elevador e eu desisto daquele abraço fatal. Uma velhinha que entretanto chegou só não tapa os olhos por vergonha. Ou isso.
«Tenho muito para te contar, acredita.»
«Ai tens tens!»
Entramos em casa. Fecho a porta.
«Espera um pouco que vou vestir qualquer coisa decente.»
«Fazes-me rir.»
«Insisto.»
«Não percebo essa vergonha repentina, mas está bem. Vai lá vestir-te.»
É a primeira vez que sorri. Gostei do seu sorriso.
Com esta apreciação "made in facebook" cerram-se as cortinas, interrompe-se a representação e assim termina o primeiro ato. O segundo ato segue dentro de momentos...
Revelação
«Estás bem sentada, Amélia?»
«Não podia estar melhor sentada, Pedro. As tuas cadeiras são muito cómodas.»
Ainda não tive tempo para poder concordar com a Amélia
«Aquilo que tenho para contar-te vai parecer-te estranho. Ou melhor, é mesmo muito estranho. Para começar, aguenta-te no balanço com a primeira revelação.»
«Que mentira vai sair daí?»
Esperei que a Amélia fosse mulher de confiança.
«Eu não sou o Pedro.»
O embate não podia ter sido mais forte.
«Agora estás a gozar comigo. Como assim?»
«Aconteceu uma coisa incrível. Eu e ele somos frequentadores do casino. Parece que o Pedro não falta um dia. Aliás, já te queixaste há pouco que ele dá mais importância ao casino do que a ti.»
«Queres que acredite nessa peta? Será que eu estou cega?»
«Não sou o Pedro. Deixa-me contar o que aconteceu no casino. Tudo está relacionado com o casino, Amélia.»
Fiz uma pausa para conciliar as ideias. Logicamente tinha que tirar de cena a Helena.
«Então?»
«Sou mais um observador do desenrolar do jogo nas máquinas do que propriamente um jogador compulsivo. O mesmo não se passa com o teu amigo. Gosta de jogar e até arrisca muito.»
«Bem sei. És um homem que nada em dinheiro. Mas não disfarces.»
«Não tanto.» Pensei.
A Amélia não estava informada da situação financeira do seu amigo. Segundo a Helena, ele era um empresário falido. Se tinha ou não tinha dinheiro numa offshore, isso já era outro assunto.
«Bom, chamou-me a atenção o êxito que ele estava a ter nas máquinas dos cifrões. Idas ao bónus com frequência. Vários jackpotes. Linhas boas. Um caso de êxito que dava para pensar. E os homens da central não reagiam...»
«Os homens da central?»
«O jogo é manipulado, Amélia. Está fora de dúvidas.»
«Lá sabes.»
«Revoltado, perguntei a mim próprio porque não acontecia comigo. Claro que não tinha resposta. O que sabia é que eram sempre os mesmos que ganhavam e os mesmos que perdiam. E foi então que desejei ser o Pedro, poder beneficiar da sua sorte. Tão simples como isso. E de repente era o Pedro.»
«Encarnaste no Pedro. Não me enganas! Tu és o Pedro. Deixa-te de histórias da carochinha...»
«Posso continuar?»
«Sim, continua.»
«Então, aconteceu uma coisa extraordinária. Não sei explicar como foi. Estás a olhar para o Pedro que não é o Pedro. Estou dentro dele, mas somos duas pessoas. E eu sou o outro. Chamo-me Mário.»
«Tudo muito linear. Queres que acredite...?»
«Acredita se quiseres. Nada sei dos negócios do Pedro, nem dos seus hábitos. Não te conhecia, nem à Gina, que tanto te incomodou quando ouviste falar no seu nome, nem tão pouco os seus amigos. Tudo o que sei resume-se aos documentos que descobri no carro. Mas a coisa não acaba aqui.»
«Já agora... E este andar...?, como descobriste?»
«Muito simples, sabes? Bastaram o porta-chaves que encontrei num dos bolsos e outra vez os documentos. Fui ao sítio certo e entrei no sítio certo. E felizmente não estava mais ninguém a morar neste apartamento.»
«Que mais tens para contar?»
Voltei a ignorar a existência da tal Helena cinquentona.
«É sobre a sorte que tenho no casino, principalmente nas máquinas dos cifrões. Há um grupo mafioso a conjugar esforços para eu sacar prémios sucessivos das máquinas. Dão-me trinta por cento dos lucros. Mas estou a andar com o carro à frente dos bois. Quase logo a seguir a ver-me no corpo do Pedro fui agarrado e imobilizado quando entrava para o carro. Eles deram-me qualquer coisa a cheirar que me fez de imediato adormecer. Quando acordei estavam a contactar comigo de uma forma que não sei explicar e foi assim que entrei no esquema diabólico dos mafiosos. Foi bom nos primeiros dias. Estou a ganhar muito dinheiro pois dão-me trinta por cento dos lucros, conforme já disse. É um dinheiro fácil. Entusiasmei-me. Finalmente as máquinas manipuladas funcionavam a meu favor. Os dias foram passando e nada se alterou. Até que, ao fim de uma semana tomei consciência de que o que estava a acontecer nada tinha a ver com o meu carácter. Mais ou menos na altura em que me apanhaste deitado nesta cama a deitar contas a esta nova vida. Uma dolce vita, diga-se.»
«Muito bem. É uma história insólita que tens estado a contar. Apenas uma história insólita. Gostava mesmo de assistir ao teu êxito. Como devo chamar-te?»
«Mário.»
Mário contador de histórias, pensei. Mas não disse. Seria um fator que não me ia beneficiar.
«Ah sim. Já disseste há pouco. E também quero saber um pouco de ti...»
Tentei desviar a conversa.
«Quanto ao êxito, é fácil de provar. Logo à noite vamos os dois ao casino e logo vês se falo verdade.»
«Mas fala-me de ti, Mário. Que fazes na vida?»
Não consegui escapar.
«Sou professor. Professor de Matemática.»
«És professor...»
«Como convencer-te?»
«Vamos até ao quarto.»
Interroguei-a com o olhar.
«Não é o que estás a pensar.» Sorriu.
«Então?»
Disse para não me excitar. Queria saber uma coisa.
Fiquei curioso.
«Deixa-me ver uma coisa. Mexeste na almofada?»
«Porquê?»
«Responde. Sim ou não?»
«Não.»
«De certeza?»
«Se queres saber em que posição durmo, é sempre do lado esquerdo e de barriga para baixo.»
«Curioso. Costumas dormir sobre o coração?»
«Sem qualquer problema.»
«Dois pontos a teu favor. Ele dorme do lado direito e nunca sobre o coração. Mas não basta. Outra coisa. O Pedro odeia futebol...»
«E eu sou fã.»
«Qual o género de músicas que gostas mais?»
«Ligeira. Anos sessenta e setenta.»
«Saudosista. E de música clássica?»
«Suporto.»
«Ele nem isso.»
«E cantas no duche?»
«Não. Só fora do duche. Fado de Coimbra. Espera...»
Não. Não ia cantar. Fiz-lhe um gesto para que se calasse. Eles estavam a contactar para me revelarem o local da entrega do dinheiro.
«Pronto, já podes falar, Amélia dos olhos doces.»
«És um sedutor. O Pedro nunca me tratou assim.»
«Ainda bem que agora o estou a fazer.»
Não reagiu.
«Há pouco mandaste-me calar, porquê?»
Dirigi-me para a cómoda encostada à parede oposta à porta de entrada e abri a primeira gaveta.
Estava lá dinheiro aos montes. A Amélia deve ter revirado os olhos.
«Tanta nota!»
«Ajuda-me a contar. Já temos pouco tempo.»
«E para ti fica trinta por cento deste dinheiro? Não achas que isso é demasiado bom?»
«É dinheiro fácil que começa a queimar-me as mãos. Há pouco pedi que rte calasses porque eles estavam a contactar comigo. Vamos lá contar o dinheiro. Tenho que entregar parte ao "bandido". Desta vez o local que escolheram é o largo de Santo António.»
«Oh!»
«Que aconteceu?»
A Amélia estava visivelmente perturbada.
«Vejo o Santo de pernas para o ar. Pressinto que qualquer coisa vai correr mal.»
«Tens dons, Amélia?»
«O Pedro diz que sim.»
«Mas o Santo António é casamenteiro. Que tem a ver para o caso?»
«Eu não sou o Pedro.»
O embate não podia ter sido mais forte.
«Agora estás a gozar comigo. Como assim?»
«Aconteceu uma coisa incrível. Eu e ele somos frequentadores do casino. Parece que o Pedro não falta um dia. Aliás, já te queixaste há pouco que ele dá mais importância ao casino do que a ti.»
«Queres que acredite nessa peta? Será que eu estou cega?»
«Não sou o Pedro. Deixa-me contar o que aconteceu no casino. Tudo está relacionado com o casino, Amélia.»
Fiz uma pausa para conciliar as ideias. Logicamente tinha que tirar de cena a Helena.
«Então?»
«Sou mais um observador do desenrolar do jogo nas máquinas do que propriamente um jogador compulsivo. O mesmo não se passa com o teu amigo. Gosta de jogar e até arrisca muito.»
«Bem sei. És um homem que nada em dinheiro. Mas não disfarces.»
«Não tanto.» Pensei.
A Amélia não estava informada da situação financeira do seu amigo. Segundo a Helena, ele era um empresário falido. Se tinha ou não tinha dinheiro numa offshore, isso já era outro assunto.
«Bom, chamou-me a atenção o êxito que ele estava a ter nas máquinas dos cifrões. Idas ao bónus com frequência. Vários jackpotes. Linhas boas. Um caso de êxito que dava para pensar. E os homens da central não reagiam...»
«Os homens da central?»
«O jogo é manipulado, Amélia. Está fora de dúvidas.»
«Lá sabes.»
«Revoltado, perguntei a mim próprio porque não acontecia comigo. Claro que não tinha resposta. O que sabia é que eram sempre os mesmos que ganhavam e os mesmos que perdiam. E foi então que desejei ser o Pedro, poder beneficiar da sua sorte. Tão simples como isso. E de repente era o Pedro.»
«Encarnaste no Pedro. Não me enganas! Tu és o Pedro. Deixa-te de histórias da carochinha...»
«Posso continuar?»
«Sim, continua.»
«Então, aconteceu uma coisa extraordinária. Não sei explicar como foi. Estás a olhar para o Pedro que não é o Pedro. Estou dentro dele, mas somos duas pessoas. E eu sou o outro. Chamo-me Mário.»
«Tudo muito linear. Queres que acredite...?»
«Acredita se quiseres. Nada sei dos negócios do Pedro, nem dos seus hábitos. Não te conhecia, nem à Gina, que tanto te incomodou quando ouviste falar no seu nome, nem tão pouco os seus amigos. Tudo o que sei resume-se aos documentos que descobri no carro. Mas a coisa não acaba aqui.»
«Já agora... E este andar...?, como descobriste?»
«Muito simples, sabes? Bastaram o porta-chaves que encontrei num dos bolsos e outra vez os documentos. Fui ao sítio certo e entrei no sítio certo. E felizmente não estava mais ninguém a morar neste apartamento.»
«Que mais tens para contar?»
Voltei a ignorar a existência da tal Helena cinquentona.
«É sobre a sorte que tenho no casino, principalmente nas máquinas dos cifrões. Há um grupo mafioso a conjugar esforços para eu sacar prémios sucessivos das máquinas. Dão-me trinta por cento dos lucros. Mas estou a andar com o carro à frente dos bois. Quase logo a seguir a ver-me no corpo do Pedro fui agarrado e imobilizado quando entrava para o carro. Eles deram-me qualquer coisa a cheirar que me fez de imediato adormecer. Quando acordei estavam a contactar comigo de uma forma que não sei explicar e foi assim que entrei no esquema diabólico dos mafiosos. Foi bom nos primeiros dias. Estou a ganhar muito dinheiro pois dão-me trinta por cento dos lucros, conforme já disse. É um dinheiro fácil. Entusiasmei-me. Finalmente as máquinas manipuladas funcionavam a meu favor. Os dias foram passando e nada se alterou. Até que, ao fim de uma semana tomei consciência de que o que estava a acontecer nada tinha a ver com o meu carácter. Mais ou menos na altura em que me apanhaste deitado nesta cama a deitar contas a esta nova vida. Uma dolce vita, diga-se.»
«Muito bem. É uma história insólita que tens estado a contar. Apenas uma história insólita. Gostava mesmo de assistir ao teu êxito. Como devo chamar-te?»
«Mário.»
Mário contador de histórias, pensei. Mas não disse. Seria um fator que não me ia beneficiar.
«Ah sim. Já disseste há pouco. E também quero saber um pouco de ti...»
Tentei desviar a conversa.
«Quanto ao êxito, é fácil de provar. Logo à noite vamos os dois ao casino e logo vês se falo verdade.»
«Mas fala-me de ti, Mário. Que fazes na vida?»
Não consegui escapar.
«Sou professor. Professor de Matemática.»
«És professor...»
«Como convencer-te?»
«Vamos até ao quarto.»
Interroguei-a com o olhar.
«Não é o que estás a pensar.» Sorriu.
«Então?»
Disse para não me excitar. Queria saber uma coisa.
Fiquei curioso.
«Deixa-me ver uma coisa. Mexeste na almofada?»
«Porquê?»
«Responde. Sim ou não?»
«Não.»
«De certeza?»
«Se queres saber em que posição durmo, é sempre do lado esquerdo e de barriga para baixo.»
«Curioso. Costumas dormir sobre o coração?»
«Sem qualquer problema.»
«Dois pontos a teu favor. Ele dorme do lado direito e nunca sobre o coração. Mas não basta. Outra coisa. O Pedro odeia futebol...»
«E eu sou fã.»
«Qual o género de músicas que gostas mais?»
«Ligeira. Anos sessenta e setenta.»
«Saudosista. E de música clássica?»
«Suporto.»
«Ele nem isso.»
«E cantas no duche?»
«Não. Só fora do duche. Fado de Coimbra. Espera...»
Não. Não ia cantar. Fiz-lhe um gesto para que se calasse. Eles estavam a contactar para me revelarem o local da entrega do dinheiro.
«Pronto, já podes falar, Amélia dos olhos doces.»
«És um sedutor. O Pedro nunca me tratou assim.»
«Ainda bem que agora o estou a fazer.»
Não reagiu.
«Há pouco mandaste-me calar, porquê?»
Dirigi-me para a cómoda encostada à parede oposta à porta de entrada e abri a primeira gaveta.
Estava lá dinheiro aos montes. A Amélia deve ter revirado os olhos.
«Tanta nota!»
«Ajuda-me a contar. Já temos pouco tempo.»
«E para ti fica trinta por cento deste dinheiro? Não achas que isso é demasiado bom?»
«É dinheiro fácil que começa a queimar-me as mãos. Há pouco pedi que rte calasses porque eles estavam a contactar comigo. Vamos lá contar o dinheiro. Tenho que entregar parte ao "bandido". Desta vez o local que escolheram é o largo de Santo António.»
«Oh!»
«Que aconteceu?»
A Amélia estava visivelmente perturbada.
«Vejo o Santo de pernas para o ar. Pressinto que qualquer coisa vai correr mal.»
«Tens dons, Amélia?»
«O Pedro diz que sim.»
«Mas o Santo António é casamenteiro. Que tem a ver para o caso?»
Não há sorte que sempre dure...
«Sabes?, há uns anos costumava vir aqui gastar umas moedinhas com um amigo. Coisa pouca. Jogávamos a meias, uma forma de não perdermos muito, quando era caso para isso e por isso também ganhávamos pouco quando a sorte nos batia à porta.»
«Eram clientes assíduos como o Pedro?»
«Nem por isso. Talvez uma vez por semana, ou menos. O Raul, um amigo, tal como eu, não gostava de perder. Ainda por cima era forreta e resmungava que eu não me concentrava no jogo. Dava mais atenção às mulheres, e isso. O mais natural que podia acontecer era perdermos e eu era o mais mentalizado.»
«Mulheres. Era o teu forte?»
Ignorei a insinuação. Estávamos parados na antecâmara das máquinas. Não tinha pressa.
«Digamos que frequentávamos o casino com o objetivo final de descarregarmos as energias negativas acumuladas ao longo da semana. Eu mais do que ele, porque sabia controlar bem os meus alunos. Como se faz ao papagaio que se lança no ar, entendes? Mais ou menos corda, conforme as circunstâncias.»
«A melhor coisa para descarregar os iões ruins é descansar num banco de um jardim sob uma árvore frondosa. Uma hora por dia é remédio santo.»
«Já ouvi dizer. Entretanto as máquinas passaram a dar menos prémios e fizemos algumas pausas de meses, até que desistimos.
Meses mais tarde voltei. Aproveitando a experiência desses tempos passados com o Raul acabei por dedicar-me a descobrir os podres que andam por aí, e que não são poucos. Barafustei com os fiscais e os chefes de sala, apresentei reclamações na inspeção... eu sei lá. E o resultado?»
«Adivinho. Nada resultou.»
«Eram clientes assíduos como o Pedro?»
«Nem por isso. Talvez uma vez por semana, ou menos. O Raul, um amigo, tal como eu, não gostava de perder. Ainda por cima era forreta e resmungava que eu não me concentrava no jogo. Dava mais atenção às mulheres, e isso. O mais natural que podia acontecer era perdermos e eu era o mais mentalizado.»
«Mulheres. Era o teu forte?»
Ignorei a insinuação. Estávamos parados na antecâmara das máquinas. Não tinha pressa.
«Digamos que frequentávamos o casino com o objetivo final de descarregarmos as energias negativas acumuladas ao longo da semana. Eu mais do que ele, porque sabia controlar bem os meus alunos. Como se faz ao papagaio que se lança no ar, entendes? Mais ou menos corda, conforme as circunstâncias.»
«A melhor coisa para descarregar os iões ruins é descansar num banco de um jardim sob uma árvore frondosa. Uma hora por dia é remédio santo.»
«Já ouvi dizer. Entretanto as máquinas passaram a dar menos prémios e fizemos algumas pausas de meses, até que desistimos.
Meses mais tarde voltei. Aproveitando a experiência desses tempos passados com o Raul acabei por dedicar-me a descobrir os podres que andam por aí, e que não são poucos. Barafustei com os fiscais e os chefes de sala, apresentei reclamações na inspeção... eu sei lá. E o resultado?»
«Adivinho. Nada resultou.»
«Exato. A inspeção não deu qualquer parecer favorável às tuas reclamações. Não é um dever ouvir os utentes e dar-lhes razão quando a têm?»
«Sim. Mas sabes o que é assobiar para o lado?»
«Compreendo. Quer dizer que...»
Pedi-lhe para não se precipitar. Ainda acreditava numa palavra que quase parecia mágica: bom senso.
«Não perdi a esperança. Mas o tempo vai passando e nada. Tenho a impressão que vou ficar outra vez de candeias às avessas com a inspeção. Começou com o casino. Até achei natural. Mas com a inspeção, nunca imaginei.»
«Sim. Mas sabes o que é assobiar para o lado?»
«Compreendo. Quer dizer que...»
Pedi-lhe para não se precipitar. Ainda acreditava numa palavra que quase parecia mágica: bom senso.
«Não perdi a esperança. Mas o tempo vai passando e nada. Tenho a impressão que vou ficar outra vez de candeias às avessas com a inspeção. Começou com o casino. Até achei natural. Mas com a inspeção, nunca imaginei.»
«Há grandes interesses financeiros em jogo.»
«Se ganham dez por cento das receitas, imagina quanto perdem os utentes!»
Concordou.
«E entretanto fui cada vez mais prejudicado. Não podia fixar-me numa máquina. Tinha que deslocar-me para não terem tempo de alterarem as séries. Olha, aqui tens as tais máquinas dos célebres cifrões...»
«Antes de começares a jogar, diz-me o que são as séries.»
«Muito simples. Trata-se de sequências de jogadas. Ruins ou boas. Mas, se quiserem, podem pará-las e substituir por outras, entendes?»
Franziu o sobrolho.
«Então o aleatório é uma história mal contada.»
«Se ganham dez por cento das receitas, imagina quanto perdem os utentes!»
Concordou.
«E entretanto fui cada vez mais prejudicado. Não podia fixar-me numa máquina. Tinha que deslocar-me para não terem tempo de alterarem as séries. Olha, aqui tens as tais máquinas dos célebres cifrões...»
«Antes de começares a jogar, diz-me o que são as séries.»
«Muito simples. Trata-se de sequências de jogadas. Ruins ou boas. Mas, se quiserem, podem pará-las e substituir por outras, entendes?»
Franziu o sobrolho.
«Então o aleatório é uma história mal contada.»
«Exato. Uma treta que todos nos querem contar. Incluindo a inspeção.»
«Achas que há falta de seriedade?»
«Perante os factos...»
Introduzi uma nota de cinquenta na primeira máquina dos cifrões e outra na máquina à esquerda, uma das que tinham a opção de quatro jogos. Só depois voltei-me para a Amélia.
«Achas que há falta de seriedade?»
«Perante os factos...»
Introduzi uma nota de cinquenta na primeira máquina dos cifrões e outra na máquina à esquerda, uma das que tinham a opção de quatro jogos. Só depois voltei-me para a Amélia.
«Logo nas duas?»
«Sigo as instruções deles.»
«E agora o que vai acontecer?»
«Tem calma. Aguarda.»
Ajustei a máquina para 9x4 e na outra joguei a aposta máxima (9x10).
Vi-a fazer mentalmente as contas.
«Estás louco, Mário! Mais de treze euros por cada jogada!»
«Sigo as instruções deles.»
«E agora o que vai acontecer?»
«Tem calma. Aguarda.»
Ajustei a máquina para 9x4 e na outra joguei a aposta máxima (9x10).
Vi-a fazer mentalmente as contas.
«Estás louco, Mário! Mais de treze euros por cada jogada!»
«Não te esqueças que sou o Pedro.» Disse, em voz baixa.
«Desculpa. Ai, estou a ficar nervosa. E nessa segunda máquina, como se chama o jogo?»
«Desculpa. Ai, estou a ficar nervosa. E nessa segunda máquina, como se chama o jogo?»
«É o jogo dos Aviões. Se saírem três vai-se ao bónus.»
«Ah!»
Olhei para a assembleia de curiosos que começava a juntar-se. Não era nada bom.
«Está bem. Vou acreditar que vais ganhar.»
A primeira máquina a dar o sinal foi a dos cifrões. Uma ida ao bónus proporcionou-me perto de novecentos euros. Mas era só o começo. A outra também não tardou a ir ao bónus. Tinham surgido três aviões.
«Ah!»
Olhei para a assembleia de curiosos que começava a juntar-se. Não era nada bom.
«Está bem. Vou acreditar que vais ganhar.»
A primeira máquina a dar o sinal foi a dos cifrões. Uma ida ao bónus proporcionou-me perto de novecentos euros. Mas era só o começo. A outra também não tardou a ir ao bónus. Tinham surgido três aviões.
«Vinte e cinco jogos grátis, Amélia. E pode repetir se aparecerem de novo três aviões.»
Pouco depois...
«Mas isto é um jackpot de quase quatro mil euros, Pedro!»
«Exatamente três mil oitocentos e noventa e quatro euros.»
«Parabéns, doutor Vaz. Assim é que é castigar o casino. Fico muito feliz quando alguém atinge a coisa ruim que me destruiu a vida.»
«Obrigado, Francisco.»
Passei-lhe à socapa para as mãos uma nota de cinquenta euros.
«Obrigado, doutor. Mais logo mostro-lhe a nota.»
«Não é preciso, Francisco. Faça o uso que quiser desse dinheiro.»
Mal sabia ele que era o seu amigo Mário quem estava a dar-lhe os cinquenta euros.
Continuei a jogar na máquina dos cifrões. A outra estava bloqueada ainda pelo jackpot.
«Muito bem. Estou a ver como funciona o jogo aleatório. E agora como vai acontecer? Tens que ir ao balcão receber?»
«Não. Muito simples. Dois fiscais vêm trazer numa pequena bandeja o dinheiro do prémio.»
Olhei disfarçadamente em redor. Dois ou três jogadores meus conhecidos do Fort Knox olhavam para a cena com o ar de quem não estava a achar piada. Entre eles havia um que também devia pertencer ao grupo que beneficiava com o jogo. Portanto, um dos que ganhava sempre ou quase sempre.
«Vamos...»
«Não continuámos, porquê, Mário?»
«Recebi uma ordem para sair desta zona. Eles são cautelosos. Já estava a dar nas vistas.»
Cruzei-me com o chefe de sala com quem tinha tido uma bruta discussão na passagem do ano. O seu sorriso rasgado a cumprimentar-me disse quase tudo.
«Será...?» interroguei-me.
«Não sei quanto tempo isto vai durar.»
«Tu também lucras!»
«Sim. Mas este dinheiro escalda-me. Não me sinto bem. Isto é um trabalho desonesto. E mais ainda: para onde vai o dinheiro que também dou a ganhar aos outros?»
«Tens razão. Além do mais, a tua vida está em perigo.»
«O perigo pode vir por todos os lados. Neste momento tenho a certeza que estão a ouvir-nos. Ao mesmo tempo posso ter uma surpresa por parte da administração. Isto para não falar na inspeção. Acho até que já foram alertados.»
Agarrou-se a mim.
«Vamos embora daqui, Mário!»
Pouco depois...
«Mas isto é um jackpot de quase quatro mil euros, Pedro!»
«Exatamente três mil oitocentos e noventa e quatro euros.»
«Parabéns, doutor Vaz. Assim é que é castigar o casino. Fico muito feliz quando alguém atinge a coisa ruim que me destruiu a vida.»
«Obrigado, Francisco.»
Passei-lhe à socapa para as mãos uma nota de cinquenta euros.
«Obrigado, doutor. Mais logo mostro-lhe a nota.»
«Não é preciso, Francisco. Faça o uso que quiser desse dinheiro.»
Mal sabia ele que era o seu amigo Mário quem estava a dar-lhe os cinquenta euros.
Continuei a jogar na máquina dos cifrões. A outra estava bloqueada ainda pelo jackpot.
«Muito bem. Estou a ver como funciona o jogo aleatório. E agora como vai acontecer? Tens que ir ao balcão receber?»
«Não. Muito simples. Dois fiscais vêm trazer numa pequena bandeja o dinheiro do prémio.»
Olhei disfarçadamente em redor. Dois ou três jogadores meus conhecidos do Fort Knox olhavam para a cena com o ar de quem não estava a achar piada. Entre eles havia um que também devia pertencer ao grupo que beneficiava com o jogo. Portanto, um dos que ganhava sempre ou quase sempre.
«Vamos...»
«Não continuámos, porquê, Mário?»
«Recebi uma ordem para sair desta zona. Eles são cautelosos. Já estava a dar nas vistas.»
Cruzei-me com o chefe de sala com quem tinha tido uma bruta discussão na passagem do ano. O seu sorriso rasgado a cumprimentar-me disse quase tudo.
«Será...?» interroguei-me.
«Não sei quanto tempo isto vai durar.»
«Tu também lucras!»
«Sim. Mas este dinheiro escalda-me. Não me sinto bem. Isto é um trabalho desonesto. E mais ainda: para onde vai o dinheiro que também dou a ganhar aos outros?»
«Tens razão. Além do mais, a tua vida está em perigo.»
«O perigo pode vir por todos os lados. Neste momento tenho a certeza que estão a ouvir-nos. Ao mesmo tempo posso ter uma surpresa por parte da administração. Isto para não falar na inspeção. Acho até que já foram alertados.»
Agarrou-se a mim.
«Vamos embora daqui, Mário!»
Já não me chamava por Pedro.
Se o fim de tarde correu bem, a noite não podia estar a correr melhor.
«Aquele jackpot de quase vinte mil euros foi ouro sobre azul.»
«Pois foi. Mas já reparaste que cada vez tenho mais gente a assistir ao jogo?»
«Doutor Pedro Vaz?»
Olhou-me de frente. Não conhecia aquela cara.
Demorei a responder. Não consegui adivinhar o que ele ia dizer.
«Importa-se de me acompanhar?»
«Por acaso importo-me porque não sei de que se trata.»
Sorri para a minha companheira, tentando que ela se descontraísse. Tive mesmo uma atitude teatral ao acariciar-lhe o rosto moreno.
«Querida, não se passa nada.»
«Desculpe, devia ter-me identificado primeiro. Sou o inspetor Melícias. Importa-se de me acompanhar ao piso de cima? Não o demoro muito.»
O mesmo não pensava eu.
«Pois não.»
«Descarta-te. Diz que vais à casa de banho e pira-te para a garagem.» disse ela, num sussurro.
Arroz queimado. Isto ia dar para o torto, mais tarde ou mais cedo. Agora tinha que me desenrascar.
«Preciso de ir à casa de banho. Sei muito bem onde é o gabinete da inspeção pois já lá fui muitas vezes.»
Se o fim de tarde correu bem, a noite não podia estar a correr melhor.
«Aquele jackpot de quase vinte mil euros foi ouro sobre azul.»
«Pois foi. Mas já reparaste que cada vez tenho mais gente a assistir ao jogo?»
«Doutor Pedro Vaz?»
Olhou-me de frente. Não conhecia aquela cara.
Demorei a responder. Não consegui adivinhar o que ele ia dizer.
«Importa-se de me acompanhar?»
«Por acaso importo-me porque não sei de que se trata.»
Sorri para a minha companheira, tentando que ela se descontraísse. Tive mesmo uma atitude teatral ao acariciar-lhe o rosto moreno.
«Querida, não se passa nada.»
«Desculpe, devia ter-me identificado primeiro. Sou o inspetor Melícias. Importa-se de me acompanhar ao piso de cima? Não o demoro muito.»
O mesmo não pensava eu.
«Pois não.»
«Descarta-te. Diz que vais à casa de banho e pira-te para a garagem.» disse ela, num sussurro.
Arroz queimado. Isto ia dar para o torto, mais tarde ou mais cedo. Agora tinha que me desenrascar.
«Preciso de ir à casa de banho. Sei muito bem onde é o gabinete da inspeção pois já lá fui muitas vezes.»
«É a primeira vez, doutor Vaz.»
Tinha acabado de dar um passo em falso.
«Recentemente, não. Mas de há dois anos para trás...»
«É possível. Um vírus limpou-nos os ficheiros dessa altura.»
Sorte a minha.
«Muito bem. Eu espero por si lá em cima.»
«Então, até já.»
A Amélia seguiu-me.
«Que se passa?»
«Não sei. Depressa, vamos para a garagem.»
«Então não vais lá acima?»
«Claro que não.»
Tinha acabado de dar um passo em falso.
«Recentemente, não. Mas de há dois anos para trás...»
«É possível. Um vírus limpou-nos os ficheiros dessa altura.»
Sorte a minha.
«Muito bem. Eu espero por si lá em cima.»
«Então, até já.»
A Amélia seguiu-me.
«Que se passa?»
«Não sei. Depressa, vamos para a garagem.»
«Então não vais lá acima?»
«Claro que não.»
«Entra já para o carro! Não temos tempo a perder.»
«Destranca as portas para eu entrar!»
«Ah, é verdade. As portas...»
Estava a ficar nervoso com o desenrolar dos acontecimentos.
Expliquei-lhe que tinha recebido uma nova ordem. Devia sair de imediato do casino.
O grupo que me controlava estava em apuros. Provavelmente alguma fuga de informação pusera em risco um dos braços do polvo. E era melhor perderem um braço do que serem atacados na zona vital. Daí a pressa em que eu desaparecesse de cena.
«Só um momento...»
Azar o meu! Tudo perdido e só por alguns segundos. Olhei de relance. O homem trazia uma mala prismática prateada. Não tinha qualquer arma.
«Que quer?»
«Rápido! Pegue...»
Parecia estar a viver um filme de espiões ou isso. Afinal o homem, que a princípio me pareceu ser um assaltante, deu-me a mala que trazia consigo e fugiu, sem mais palavras. Ah! Não estava preparado para aquelas cenas de puro suspense.
Entrei no carro ainda a tempo de ver dois indivíduos a correrem na nossa direção.
«O que era?»
«Ala que se faz tarde!»
Arranquei rápido. Enquanto me aproximava do controle de saída lembrei-me que não tinha validado o ticket.
«Vamos ter problema!»
«Porquê?»
«Somos seguidos e não validei o ticket.»
Parvoíce a minha. Naquele momento era o Pedro e conduzia um BMW que tinha via verde.
«Uff!»
Já em casa...
«Puseram-me esta criança nos braços, para quê?»
«Não faças suspense. Abre já essa coisa!»
Não tinha mais pressa do que eu.
«E se há uma bomba na mala?» perguntei, nervoso.
A reação da minha companheira não se fez esperar. Deu logo dois passos para atrás.
Podiam querer eliminar-me. Era uma hipótese plausível. Queriam eliminar Pedro Vaz, para eles, e Mário Fonseca na vida real.
Fiquei a olhar para a mala sem conseguir ter um pensamento que valesse a pena.
«E se tiver outra coisa lá dentro, Mário?»
«Outra coisa, o quê?, não me dizes?»
Então lembrei-me. Estávamos a lidar com dinheiro. O vil metal. Neste caso, notas. Naquela mala. Talvez muitas notas. Era isso.
«Que estás a fazer?!...»
«A abrir a mala. Vamos ver se tem segredo...»
«Tem cuidado!»
«Que cuidado, Amélia? Das duas, uma. Abro a mala, clik e pum! Ou então, clik e... que alívio! São só notas...»
«Não brinques.»
De facto havia só dinheiro. Uma mala cheia só com notas de quinhentos, duzentos e cem euros.
«Mas isto é uma fortuna! Donde veio este dinheiro?»
«Claro que deles. Para já temos que contar as notas, Amélia dos olhos doces.»
A Amélia dos olhos doces sorriu docemente. Tentei adivinhar a profundidade daquele sorriso, se era devida ao vil metal, grana, cacau, ou se havia outra razão.
«É a segunda vez que me chamas assim.»
«E então, gostas?»
Avanço? Não avanço?
Já tinha visto este filme com outra personagem.
Que era feito da Helena cinquentona?
Decidi não avançar. Optei por contar o dinheiro. Dois milhões de euros.
Tanto dinheiro, para quê?
«O Pedro tem uma offshore no Luxemburgo. Será que ele já andava nalgum destes esquemas?»
E dizia que a Amélia tinha dons. Pois era verdade. Leu-me o pensamento. Mas estava mais preocupado com a origem do dinheiro. Contando com o que se passava no Fort Knox, relacionado com a minha contribuição, ainda sobrava muito dinheiro cuja proveniência estava por esclarecer.
«Que fazemos ao dinheiro?» perguntou.
«Para já, ficamos com ele. Bom, hoje foi um dia de emoções, não foi?»
«E se fôssemos descansar?»
«Não é má ideia. Mas… Não há problema. Tu ficas no quarto do Pedro e eu durmo no sofá da sala.»
«Que ideia, Mário! O sofá tem uma mola partida. Dormimos ambos no quarto do Pedro.» Sorriu com seu sorriso de Amélia dos olhos doces. «Não há de ser nada.»
«Pois não.»
Olhei para a mala dos dois milhões. Não queria deixá-la abandonada.
«Vais primeiro à casa de banho?»
«Pode ser.»
Acordei com a claridade. Nenhum de nós se tinha lembrado de descer os estores.
E a propósito de nós, eu estava presente. Quanto à Amélia, essa tinha-se evaporado docemente sem deixar um rasto de odor, qualquer que pudesse ser ele. E mais uma coisa: levou consigo a mala e, claro, o dinheiro.
Quanto ao santo milagreiro dos casamentos e uniões de facto, que ela viu de pernas para o ar, lembro-me perfeitamente que previu que tal visão não trazia nada de bom. E de facto não trouxe. A mala e a Amélia (que tinha dons) desapareceram. Na expetativa de descobrir o paradeiro daquela mulher que me deu o maior dos nós cegos que me foram dados e que eu também quis dar, só me restava agora atar um lenço à perna de uma cadeira e fazer com devoção o responso a Santo António. Só ele estava especializado em fazer casamentos embora fosse um leigo em questões de dinheiro.
Pensando sobre o nó cego que me foi dado pela Amélia, e também na reação inevitável dos mafiosos, que certamente já estavam na pista do dinheiro, senti-me indisposto e não pude evitar um vómito. Falso alarme porque nada tinha no estômago. Mas essa boa nova do falso alarme não evitou que tomasse o caminho da casa de banho.
Lavei o rosto com vigor e procurei uma toalha no toalheiro para me limpar. Depois, olhei-me ao espelho que ocupava toda a parede na minha frente. As olheiras eram de palmo e meio.
Mas não foram as olheiras que me surpreenderam. Foi a imagem que os meus olhos viram.
Voltava a ser eu.
Não posso falar do Pedro que já não sou. Talvez ele esteja a pensar na branca que lhe deu durante uma semana. Ou então já a contas com os mafiosos. Ou no aconchego da sua Amélia e da mala dos dois milhões. Talvez muitas coisas e entre elas a gozar as delícias que a sua querida offshore lhe proporciona.
Não voltei a ouvir o mafioso que me dava instruções. Talvez que eles tenham perdido o contacto. Mas, pelo sim pelo não, vou desaparecer. Eu e os meus trinta por cento que tanto gozo me deram a ganhar e que também vão dar uma boa ajuda para aguentar os achaques da velhice. Isto se não gastar tudo antes. Estou feliz porque, malgrado o nó cego que a doce Amélia me deu, também consegui dar o nó cego ao polvo mafioso. Tal só foi possível lutando com o inimigo com armas iguais.
Mas tudo tem um preço e preciso mesmo de fugir. Para o sítio onde vou ninguém me pode encontrar. E agora, bom amigo António, com a minha ausência vais realizar finalmente o teu sonho. Contar histórias para crianças. Dos sete aos oitenta anos, claro. Não podia ser de outra maneira. Julgavas que me enganavas?
E não sabes o resto. Já estou com saudades. Afinal foi quase uma vida...
«Destranca as portas para eu entrar!»
«Ah, é verdade. As portas...»
Estava a ficar nervoso com o desenrolar dos acontecimentos.
Expliquei-lhe que tinha recebido uma nova ordem. Devia sair de imediato do casino.
O grupo que me controlava estava em apuros. Provavelmente alguma fuga de informação pusera em risco um dos braços do polvo. E era melhor perderem um braço do que serem atacados na zona vital. Daí a pressa em que eu desaparecesse de cena.
«Só um momento...»
Azar o meu! Tudo perdido e só por alguns segundos. Olhei de relance. O homem trazia uma mala prismática prateada. Não tinha qualquer arma.
«Que quer?»
«Rápido! Pegue...»
Parecia estar a viver um filme de espiões ou isso. Afinal o homem, que a princípio me pareceu ser um assaltante, deu-me a mala que trazia consigo e fugiu, sem mais palavras. Ah! Não estava preparado para aquelas cenas de puro suspense.
Entrei no carro ainda a tempo de ver dois indivíduos a correrem na nossa direção.
«O que era?»
«Ala que se faz tarde!»
Arranquei rápido. Enquanto me aproximava do controle de saída lembrei-me que não tinha validado o ticket.
«Vamos ter problema!»
«Porquê?»
«Somos seguidos e não validei o ticket.»
Parvoíce a minha. Naquele momento era o Pedro e conduzia um BMW que tinha via verde.
«Uff!»
Já em casa...
«Puseram-me esta criança nos braços, para quê?»
«Não faças suspense. Abre já essa coisa!»
Não tinha mais pressa do que eu.
«E se há uma bomba na mala?» perguntei, nervoso.
A reação da minha companheira não se fez esperar. Deu logo dois passos para atrás.
Podiam querer eliminar-me. Era uma hipótese plausível. Queriam eliminar Pedro Vaz, para eles, e Mário Fonseca na vida real.
Fiquei a olhar para a mala sem conseguir ter um pensamento que valesse a pena.
«E se tiver outra coisa lá dentro, Mário?»
«Outra coisa, o quê?, não me dizes?»
Então lembrei-me. Estávamos a lidar com dinheiro. O vil metal. Neste caso, notas. Naquela mala. Talvez muitas notas. Era isso.
«Que estás a fazer?!...»
«A abrir a mala. Vamos ver se tem segredo...»
«Tem cuidado!»
«Que cuidado, Amélia? Das duas, uma. Abro a mala, clik e pum! Ou então, clik e... que alívio! São só notas...»
«Não brinques.»
De facto havia só dinheiro. Uma mala cheia só com notas de quinhentos, duzentos e cem euros.
«Mas isto é uma fortuna! Donde veio este dinheiro?»
«Claro que deles. Para já temos que contar as notas, Amélia dos olhos doces.»
A Amélia dos olhos doces sorriu docemente. Tentei adivinhar a profundidade daquele sorriso, se era devida ao vil metal, grana, cacau, ou se havia outra razão.
«É a segunda vez que me chamas assim.»
«E então, gostas?»
Avanço? Não avanço?
Já tinha visto este filme com outra personagem.
Que era feito da Helena cinquentona?
Decidi não avançar. Optei por contar o dinheiro. Dois milhões de euros.
Tanto dinheiro, para quê?
«O Pedro tem uma offshore no Luxemburgo. Será que ele já andava nalgum destes esquemas?»
E dizia que a Amélia tinha dons. Pois era verdade. Leu-me o pensamento. Mas estava mais preocupado com a origem do dinheiro. Contando com o que se passava no Fort Knox, relacionado com a minha contribuição, ainda sobrava muito dinheiro cuja proveniência estava por esclarecer.
«Que fazemos ao dinheiro?» perguntou.
«Para já, ficamos com ele. Bom, hoje foi um dia de emoções, não foi?»
«E se fôssemos descansar?»
«Não é má ideia. Mas… Não há problema. Tu ficas no quarto do Pedro e eu durmo no sofá da sala.»
«Que ideia, Mário! O sofá tem uma mola partida. Dormimos ambos no quarto do Pedro.» Sorriu com seu sorriso de Amélia dos olhos doces. «Não há de ser nada.»
«Pois não.»
Olhei para a mala dos dois milhões. Não queria deixá-la abandonada.
«Vais primeiro à casa de banho?»
«Pode ser.»
Acordei com a claridade. Nenhum de nós se tinha lembrado de descer os estores.
E a propósito de nós, eu estava presente. Quanto à Amélia, essa tinha-se evaporado docemente sem deixar um rasto de odor, qualquer que pudesse ser ele. E mais uma coisa: levou consigo a mala e, claro, o dinheiro.
Quanto ao santo milagreiro dos casamentos e uniões de facto, que ela viu de pernas para o ar, lembro-me perfeitamente que previu que tal visão não trazia nada de bom. E de facto não trouxe. A mala e a Amélia (que tinha dons) desapareceram. Na expetativa de descobrir o paradeiro daquela mulher que me deu o maior dos nós cegos que me foram dados e que eu também quis dar, só me restava agora atar um lenço à perna de uma cadeira e fazer com devoção o responso a Santo António. Só ele estava especializado em fazer casamentos embora fosse um leigo em questões de dinheiro.
Pensando sobre o nó cego que me foi dado pela Amélia, e também na reação inevitável dos mafiosos, que certamente já estavam na pista do dinheiro, senti-me indisposto e não pude evitar um vómito. Falso alarme porque nada tinha no estômago. Mas essa boa nova do falso alarme não evitou que tomasse o caminho da casa de banho.
Lavei o rosto com vigor e procurei uma toalha no toalheiro para me limpar. Depois, olhei-me ao espelho que ocupava toda a parede na minha frente. As olheiras eram de palmo e meio.
Mas não foram as olheiras que me surpreenderam. Foi a imagem que os meus olhos viram.
Voltava a ser eu.
Não posso falar do Pedro que já não sou. Talvez ele esteja a pensar na branca que lhe deu durante uma semana. Ou então já a contas com os mafiosos. Ou no aconchego da sua Amélia e da mala dos dois milhões. Talvez muitas coisas e entre elas a gozar as delícias que a sua querida offshore lhe proporciona.
Não voltei a ouvir o mafioso que me dava instruções. Talvez que eles tenham perdido o contacto. Mas, pelo sim pelo não, vou desaparecer. Eu e os meus trinta por cento que tanto gozo me deram a ganhar e que também vão dar uma boa ajuda para aguentar os achaques da velhice. Isto se não gastar tudo antes. Estou feliz porque, malgrado o nó cego que a doce Amélia me deu, também consegui dar o nó cego ao polvo mafioso. Tal só foi possível lutando com o inimigo com armas iguais.
Mas tudo tem um preço e preciso mesmo de fugir. Para o sítio onde vou ninguém me pode encontrar. E agora, bom amigo António, com a minha ausência vais realizar finalmente o teu sonho. Contar histórias para crianças. Dos sete aos oitenta anos, claro. Não podia ser de outra maneira. Julgavas que me enganavas?
E não sabes o resto. Já estou com saudades. Afinal foi quase uma vida...
Ou toda uma vida?
Pergunto ao vento pelo Mário
O caderno do Mário já não tem mais histórias. Restam cinco páginas em branco e cinco páginas em branco só podem significar o vazio que ele deixou.
Tento descobrir nas entrelinhas uma pista que me conduza a ele. As últimas palavras parecem dizer que não vai suportar viver sem novas histórias, reais, adornadas, ou mesmo criadas pela sua imaginação. Por outro lado, há o dinheiro que finalmente ganhou no jogo e que pode servir realizar algum sonho oculto.
Fiquei para aqui sem ação e nada fiz mais que lamentar o seu desaparecimento.
E se no casino procurar chegar à fala com um ou dois amigos do Mário e até com fiscais e chefes de sala que mais de perto seguiram os seus passos?
Sinto uma especial alegria que me faz rir de gozo. O nó cego que deu no casino ao grupo mafioso e também ao casino. O problema é que esta história não é real. Na verdade "O nó cego" nunca aconteceu.
"Para o sítio onde vou ninguém me pode encontrar."
Esta frase é enigmática.
Que sítio é esse onde ninguém o pode encontrar?
O mistério adensa-se. O meu instinto leva-me à Estrada de Benfica. Caminho no sentido poente-nascente e tenho à vista a tabacaria onde o Mário costumava entregar alguns boletins das sociedades falhadas de totoloto. Aliás, bem podia estar quieto pois nunca teve sorte ao jogo e sabia disso. Perdeu tempo, paciência e dinheiro. Quanto aos sócios, estes perderam apenas dinheiro visto que era ele quem preenchia os boletins com apostas de um sistema que julgava ser infalível se fossem concretizadas determinadas condições. E as condições nunca aconteceram.
Já saí da Estrada de Benfica e estou a meia dúzia de metros do prédio onde mora a Ma Maria. Olho com atenção para as proximidades da porta e não vejo ninguém a meter a chave à porta. Seria demasiada coincidência.
A porta da rua está entreaberta. Não entro logo. Espero um pouco. Lá me decido entrar. Pouco depois estou junto à porta da entrada. Hesito. Toco a campainha, não toco.
Finalmente resolvi premir a campainha. Pouco depois ouvi uma voz:
«Quem é?»
Bati levemente com os nós dos dedos. A porta abriu-se quase de imediato.
«Desculpe, já cá estou em cima.»
«Ah sim.»
Bem via, claro.
«Vinha...»
«E é o senhor...?»
«António Ildefonso.»
«Muito prazer. Eu sou a Maria. Faz favor de entrar.»
Tinha cabelos compridos, prontos a soltarem-se ao vento. Esse pormenor pôs-me alerta.
Encaminhou-me para a sala que já conhecia.
Tento descobrir nas entrelinhas uma pista que me conduza a ele. As últimas palavras parecem dizer que não vai suportar viver sem novas histórias, reais, adornadas, ou mesmo criadas pela sua imaginação. Por outro lado, há o dinheiro que finalmente ganhou no jogo e que pode servir realizar algum sonho oculto.
Fiquei para aqui sem ação e nada fiz mais que lamentar o seu desaparecimento.
E se no casino procurar chegar à fala com um ou dois amigos do Mário e até com fiscais e chefes de sala que mais de perto seguiram os seus passos?
Sinto uma especial alegria que me faz rir de gozo. O nó cego que deu no casino ao grupo mafioso e também ao casino. O problema é que esta história não é real. Na verdade "O nó cego" nunca aconteceu.
"Para o sítio onde vou ninguém me pode encontrar."
Esta frase é enigmática.
Que sítio é esse onde ninguém o pode encontrar?
O mistério adensa-se. O meu instinto leva-me à Estrada de Benfica. Caminho no sentido poente-nascente e tenho à vista a tabacaria onde o Mário costumava entregar alguns boletins das sociedades falhadas de totoloto. Aliás, bem podia estar quieto pois nunca teve sorte ao jogo e sabia disso. Perdeu tempo, paciência e dinheiro. Quanto aos sócios, estes perderam apenas dinheiro visto que era ele quem preenchia os boletins com apostas de um sistema que julgava ser infalível se fossem concretizadas determinadas condições. E as condições nunca aconteceram.
Já saí da Estrada de Benfica e estou a meia dúzia de metros do prédio onde mora a Ma Maria. Olho com atenção para as proximidades da porta e não vejo ninguém a meter a chave à porta. Seria demasiada coincidência.
A porta da rua está entreaberta. Não entro logo. Espero um pouco. Lá me decido entrar. Pouco depois estou junto à porta da entrada. Hesito. Toco a campainha, não toco.
Finalmente resolvi premir a campainha. Pouco depois ouvi uma voz:
«Quem é?»
Bati levemente com os nós dos dedos. A porta abriu-se quase de imediato.
«Desculpe, já cá estou em cima.»
«Ah sim.»
Bem via, claro.
«Vinha...»
«E é o senhor...?»
«António Ildefonso.»
«Muito prazer. Eu sou a Maria. Faz favor de entrar.»
Tinha cabelos compridos, prontos a soltarem-se ao vento. Esse pormenor pôs-me alerta.
Encaminhou-me para a sala que já conhecia.
Aquela casa tinha segredos para o Mário?
«Faz favor de sentar-se.»
Aguardei que ela se sentasse. Mandavam as boas regras de educação.
«Bebe alguma coisa? Uma cerveja... um chá...?» perguntou, deixando ver uns olhos muito abertos que emprestavam uma expressão algo indecisa.
Não pude evitar um sorriso de desconforto.
«Não, muito obrigado. Almocei há pouco tempo e de certeza que não me vai cair bem.»
«Também não gosto de beber a seguir às refeições. O senhor é o amigo do Mário, não é?»
«É verdade.»
«E?»
«Vinha saber do Mário.»
«Não o vejo há mais de um ano.»
«Faz favor de sentar-se.»
Aguardei que ela se sentasse. Mandavam as boas regras de educação.
«Bebe alguma coisa? Uma cerveja... um chá...?» perguntou, deixando ver uns olhos muito abertos que emprestavam uma expressão algo indecisa.
Não pude evitar um sorriso de desconforto.
«Não, muito obrigado. Almocei há pouco tempo e de certeza que não me vai cair bem.»
«Também não gosto de beber a seguir às refeições. O senhor é o amigo do Mário, não é?»
«É verdade.»
«E?»
«Vinha saber do Mário.»
«Não o vejo há mais de um ano.»
«Somos como irmãos. Ele desapareceu.»
«Eu sei. O Mário falou-me muito de si. Vocês eram muito amigos, disse-o mais que uma vez.»
«Somos amigos e confidentes. Não havia nada, julgava, que não soubesse dele. Da infância da criança que gostava muito de gatos, infância que passou a correr. Do seu protetor e conselheiro imaginário a quem deu o nome de Ernesto. Dos amores e desamores. Dos êxitos e fracassos da sua vida profissional. Dos jogos do casino e da revolta infrutífera. Dos encontros inesperados. Do paranormal que tratou por tu. Da Manuela que foi o grande amor da sua vida. Das histórias incríveis que inventou ou lhe foram contadas. E, finalmente, da Maria com olhos assustados de gazela que tenho agora na minha frente.»
«Lamento não poder dizer-lhe nada dele. Acabámos a relação há mais de um ano.»
«Eu sei. O Mário falou-me muito de si. Vocês eram muito amigos, disse-o mais que uma vez.»
«Somos amigos e confidentes. Não havia nada, julgava, que não soubesse dele. Da infância da criança que gostava muito de gatos, infância que passou a correr. Do seu protetor e conselheiro imaginário a quem deu o nome de Ernesto. Dos amores e desamores. Dos êxitos e fracassos da sua vida profissional. Dos jogos do casino e da revolta infrutífera. Dos encontros inesperados. Do paranormal que tratou por tu. Da Manuela que foi o grande amor da sua vida. Das histórias incríveis que inventou ou lhe foram contadas. E, finalmente, da Maria com olhos assustados de gazela que tenho agora na minha frente.»
«Lamento não poder dizer-lhe nada dele. Acabámos a relação há mais de um ano.»
Que nó cego?
São seis da tarde. Sou um estranho numa terra estranha. Nada tenho a ver com esta alienação que sinto existir para cada lado que me vire. Ao mesmo tempo, sem justificação, as pessoas protestam, dão murros nos vidros das máquinas, queixam-se ao vizinho do lado que responde na mesma moeda, ameaçam fazer isto e aquilo, discutem com um jogador que lhes tomou a máquina de assalto porque se esqueceram de deixar a mesma marcada quando foram trocar um ticket e aproveitaram depois para ir à casa de banho, pedem aos fiscais para lhes darem melhor jogo. Eu sei lá!
Pegando nesta última deixa que acabei de ouvir, não acredito que os programadores tenham facilidade em alterarem as séries. Penso que não. Não vou por aí. Mas o Mário já me explicou ter descoberto quando uma série é substituída por outra. E é aí que deve haver uma forma de substituir uma por outra e tal pode ser feito de um momento para o outro. Quer dizer, antes de terminar a série, intromete-se outra, mais ou menos favorável. Assim se consegue justificar a sorte de uns e o azar de outros.
Estou dentro desta engrenagem porque fui eu quem escreveu as histórias que o Mário me contou e também recolhi alguns ensinamentos com conversas que os dois tivemos. Na prática, estou verde, sem a mínima experiência para enfrentar uma máquina. Felizmente, acrescento. A minha missão aqui é outra. Encontrar um pequeno sinal que me permita seguir ao encontro do Mário.
Já fiz um resumo das chamadas zonas quentes onde o Mário é conhecido. O Fort Knox e as máquinas de dez cêntimos onde se situam os célebres e badalados cifrões. É aí que devo centrar a minha atenção.
Começo pelo Fort Knox. Claro que não vou jogar. Para começar, vou procurar o Vítor. Melhor do que pôr-me a adivinhar é perguntar a alguém que não esteja a jogar e que acompanhe a par e passo o que se passa. Talvez a mulher idosa vestida de negro que veio de trocar um ticket de um utente e se sentou numa cadeira pertencente a uma máquina já fora da zona onde deve estar o Vítor.
«Desculpe, tenho um recado para dar a uma pessoa que deve estar aqui perto. Só sei que se chama Vítor.»
Mira-me de alto a baixo, algo desconfiada. Deve pensar que sou um inspetor dos jogos e é talvez por isso que demora a responder. E, a propósito de inspetores, ingenuidade a sua imaginar que a inspeção desce à praça.
«Esteja à vontade. É só um recado que quero dar ao Vítor.»
«Está bem. É o homem de camisola verde que está a jogar na máquina catorze.»
«Obrigado.»
Máquina catorze?
Localizo-o pela camisola e não pelo número da máquina.
«Olhe, acabou de ir ao cofre.»
O Vítor levantou-se e teceu um comentário para uma mulher ao lado, que riu como resposta. Agora vai carregar em dois quadrados. Não. Fica à espera. Já sei. Os contadores dos prémios não param. Vou aproveitar para falar com ele.
«Desculpe, posso falar consigo ou é má altura?»
«À vontade, amigo. Antes dos quarenta euros no cobre eu não ataco. O dinheiro faz-me falta.»
«Bem sei.»
«Como assim?»
Ignorei a pergunta. Não estava para explicações exaustivas.
«Quero falar-lhe sobre um amigo que se chama Mário. Ele tem vindo cá?»
Olha para a sua direita e aponta:
«O Mário está na última máquina dos cavalos. A vinte.»
Acompanho o seu gesto. Negativo.
«Aquele não é o Mário que conheço. É um indivíduo que é muito conhecido dos chefes de sala e da inspeção. Acho que já foi seis vezes apresentar queixa e numa delas até mandou fechar a máquina em que jogava.»
«Ah! É o doutor Mário. De nada vale as pessoas irem à inspeção reclamar. O sistema é muito complexo, sabe? Penso que estão todos feitos. Administradores e inspetores. Isto é tudo um regabofe.»
«Como assim?»
«É o que digo. Quanto ao seu amigo, não o vejo há uns tempos. Mas já falei demais sobre os podres do casino. Aqui há ouvidos em todo o lado. E agora vou atacar o cofre.»
«Dois, três meses?»
«Mais ou menos isso.»
Era o que queria ouvir.
«Obrigado e boa sorte.»
O Vítor já estava concentrado no jogo e eu afastei-me.
«E agora?» interroguei os meus botões.
Claro que nada me disseram. Não tinha muita escolha. As máquinas dos cifrões eram o próximo destino.
«Primeiro vou beber uma imperial.»
Já com o copo meio cheio na mão encaminhei-me para o local onde julgava estarem as ditas máquinas.
As máquinas estavam ocupadas, mas em duas delas jogava o mesmo utente. Aproximei-me mais. Enquanto os outros jogavam 9x1, ele jogava mais forte, ou seja, 9x5, a aposta máxima. E estava no bónus numa delas. Já fizera trinta e cinco jogadas e tinha vinte e cinco para jogar. Não! Mais três cifrões e uma inevitável caminhada para o jackpot.
«Com este é o terceiro hoje.»
Acendeu-se uma luz.
Voltei-me para o indivíduo que me informara do êxito do jogador que calmamente jogava nas duas máquinas como se estivesse a comer alcagoitas e a beber uma bejeca.
«Não sou desta guerra. Caí aqui de paraquedas só por curiosidade. Mas diga-me, é habitual este indivíduo ter tanta sorte?»
«De facto assim parece ser. Mas o doutor Vaz que se cuide. Eles não dormem e a sorte vai mudar em breve. É o costume.»
«Disse... doutor Vaz?»
«Exato. É um industrial de pregos e parafusos. Tem muito dinheiro para investir, mas está a apostar no cavalo errado. Eu já tenho muitos anos disto. Infelizmente desgracei-me no vício deste jogo merdoso.»
«Vaz. Ele chama-se Vaz!»
«Conhece-o?»
«Não, não. Mas diga-me, por acaso este senhor não teve qualquer problema há uns tempos?»
«Que eu saiba, não. Só se ausentou por uns dias. E quem é o senhor? Não me diga que veio de propósito para assistir ao show do doutor Vaz?»
«Por acaso não. Na realidade vim à procura de um amigo que também costuma jogar nestas máquinas. Talvez me possa dar uma dica. Imagino que frequenta este casino há muito.»
«Acertou. Infelizmente fui apanhado pelo polvo.»
«Polvo?»
«A merda do vício. Tem muitos braços para nos agarrarem.»
«Compreendo. Talvez que conheça o meu amigo. Mas primeiro. vamos beber uma imperial? E já agora... Chamo-me Ildefonso.»
«E eu Francisco.»
«Francisco?!...»
O que tínhamos para falar não se coadunava com aquele ambiente barulhento de balcão.
«Não haverá um sítio mais calmo para conversarmos, amigo Francisco?»
«Mesmo na nossa frente, ao fundo, há umas mesas.»
«Estou a ver. Vamos então.»
Não tivemos dificuldade em ocupar uma mesa. Estavam todas vagas. Aliás, compreendia. Dali não se inspirava o ar viciado das máquinas.
«E então, meu amigo?»
«Bom o que tenho a contar-lhe relaciona-se com um amigo que desapareceu. Já segui todas as pistas possíveis e impossíveis e o resultado é sempre o mesmo. Desapareceu levado pelo vento ou por algo pior. Temo pela sua vida.»
O homem cofiou o bigode farfalhudo e fixou o olhar na minha direção.
«E como se chama o seu amigo?»
«Mário.»
«O doutor Mário?»
«Sim.»
«É uma excelente pessoa e um lutador contra este sistema instalado. Precisávamos de muitos como ele...»
«Entre outras, tinha duas referências que considerava importantes. Ora a primeira falhou estrondosamente. Conhece o Vítor? O seu local permanente é o Fort Knox.»
Levantou o indicador direito para o teto.
«Não conheço eu outra pessoa! Desde já o aviso que é preciso ter cuidado com ele. É um indivíduo muito inteligente, mas sem alma. Por dinheiro é capaz de tudo. E acredite que joga com o dinheiro do casino. É dos poucos...» Interrompeu. «Mas o que tem a ver o Vítor com o seu amigo?»
«Acabou por dizer que não sabe dele há perto de três meses. O meu amigo dizia que o Francisco não parava por muito tempo num sítio, que circulava de um piso para o outro, que estava a par de tudo o que se passava no casino e que os dois eram dos poucos que acreditavam que havia manipulação no jogo. Principalmente nas máquinas. Que eram sempre os mesmos a ganhar.»
Segundo o Francisco, e não era novidade, o doutor Mário fora várias vezes apresentar queixa ao gabinete na inspeção e teve grandes discussões com fiscais e chefes de sala por causa destes afirmarem, com cinismo, que o jogo era aleatório, chegando ao ponto de lhe dizerem que ia ao casino porque queria. Ninguém o obrigava a ir. Aqueles grandes sacanas! Mas que ele não era jogador viciado, não. Antes eu conseguisse ser como ele. O jogo destruiu a sua vida. Teve uma boa posição numa empresa e foi despedido por causa do maldito vício do jogo. Havia muitos no casino que estavam na fossa como ele. Viviam das ofertas de alguns utentes generosos.
Deixei-o desabafar. Interiormente sentia-me bem como já há muito.
«Ele tem aparecido por cá?»
«Negativo.»
«E não lhe disse que ia ausentar-se?»
«Não.»
«Falavam com frequência?»
«Entre duas ou três cervejas, contava-me histórias incríveis, como de uma mulher de vermelho que veio de outra época. Anos trinta ou quarenta. Diga-me uma coisa, amigo Ildefonso. Ele é escritor?»
«Por contar histórias?»
«Sim.»
«Não, não é.»
Ia confessar que o escritor era eu, mas calei-me.
«Sinto a falta dele. Mas agora me lembro. Dias antes de tirar um jackpot confessou-me que andava a estudar uma técnica.»
«Com recurso ao telemóvel?»
Abanou negativamente a cabeça.
«Nada disso. Até porque ele era contra os processos que alguns jogadores usavam para interferirem com as séries e aí entrava em cena o telemóvel. E até chegou a denunciá-los.»
«Andava a estudar uma técnica.» Pensei.
«Sim, porque o jogo não é aleatório. Disse-me mais que uma vez e explicou-me que existiam séries boas e séries más e aí é que residia verdadeiramente a manipulação do jogo. Até sabia quando a máquina mudava de uma série para outra.»
«Não sei o que hei de fazer mais...»
«Não desanime, meu bom amigo. Vai ver que um dia ele aparece.»
«Oxalá. Vamos a outra imperial?»
«Se não estou a pesar...»
«Claro que não. E um prego? O Mário disse-me que serviam aqui bons pregos.»
«Como o que o meu amigo quiser. Ainda a propósito do doutor Vaz...»
«Sim?»
«Os dois costumavam falar. Ouvi uma vez o seu amigo aconselhar o doutor a desistir quando sentisse a viragem.»
«A viragem?»
«Sim. Quando começasse a perder.»
O Francisco meteu à boca metade da baguete que tinha, entre o miolo das duas partes previamente embebidas em molho com sabor a alho, o suculento e macio lombo, e deu-lhe uma dentada feroz de quem não comia desde a hora do almoço ou isso. Depois, pegou no guardanapo de papel e limpou os beiços, preparando-se para pegar no copo cheio de cerveja, dando algum tempo para deglutir aquele manjar do céu que tanto apreciava. Enquanto o imitava, não perdia de vista o ar de apreço que ele dava àquele conjunto perfeito pão/lombo/molho.
«Também penso o mesmo. Se a pessoa tem sorte deve pensar que ela não dura sempre.» Concordei.
Talvez o sabor a alho fosse excessivo.
«O Mário era bom jogador ou deixava-se levar pelo vício do jogo? Pelo que ele me contou, fiquei com a ideia que se continha, tal como os bons jogadores fazem. Mas gostava de ouvir a sua opinião.»
«Meu bom amigo, não jogo mais porque não tenho a mínima hipótese. Falta-me o pilim e sobra-me tempo para observar e fazer as minhas avaliações. Garanto-lhe que, no que me foi dado a ver, ele nunca se perdeu e esperou sempre por oportunidades que mais o favorecessem. E se não conseguiu foi porque o marginalizaram. Fecharam-lhe as máquinas. Aquele homem nunca se conformou com a injustiça que lhe estavam a fazer. Não se cansava de dizer que as máquinas estavam a ser manipuladas e que era seguido por bufos por todo o lado onde andasse. Mas pareceu-me que, nos últimos tempos, estava a ter algum êxito.»
«Tinha descoberto um sistema, não foi o que lhe disse?»
«Sim. Uma técnica. Foi na altura em que desapareceu. Logo quando as coisas lhe corriam bem. Já é preciso ter azar.»
«Não ouviu nenhum zunzum? O senhor que anda há muito por aqui e conhece meio mundo.»
Voltou-se para o meio prego e quase o fez desaparecer no interior cavernoso que logo se tornou escuro. De seguida nem esperou pelo guardanapo e levou o copo à boca. Eu também fazia pela vida com a minha outra parte.
«Há uma pessoa que nos pode ajudar. Talvez com um pouco de papel ele se descosa.»
«Quanto, amigo Francisco?»
«Cinquenta.»
«Bom. Cinquenta para ele e cinquenta para si. Mas não o gaste sem glória.»
«Obrigado, meu bom amigo. Prometo.»
De certeza que não era promessa de escuteiro.
«Vai tratar do assunto?»
«Não. Vamos.»
«Prefiro que seja o Francisco a falar sozinho com esse seu amigo.»
«Confia em mim?»
«Claro que confio. Entretanto fico a ver o jogo do doutor Vaz.»
Continuava a jogar em duas máquinas. Numa delas apostava em nove linhas e três créditos por linhas. Era um sinal que as coisas estavam a correr menos bem. Se fosse um jogador lógico era tempo de deixar as máquinas dos cifrões e procurar outras. Ou então, ainda o mais razoável, regressar a casa. Mas não.
Com a fleuma do costume continuava a alimentar as máquinas que entretanto parecia que tinham entrado em greve.
O Francisco não se fez velho. Já estava de volta.
«Então?» perguntei, ansioso.
«Também não sabe nada. Prometeu investigar. Só lhe digo que estavam a tentar cortar-lhe as vazas e não conseguiam. Uma vez até foi levado à administração, mas estava limpo. Limpinho. Não tinha qualquer objeto estranho com ele, nem sistema de comunicação com o interior e o exterior.»
«Que terá acontecido?»
«Não sei» virou-se para o lado do doutor Vaz. «E como vai o jogo?»
«Mal.»
«Bem me parece que não está a seguir o conselho do seu amigo.»
«Pois não. Mais um que vai seguir o caminho de outros tantos. Começam a ganhar e acabam a perder. Perdem os prémios do casino, deixam o deles e depois o dos cartões. É a velha história, amigo Francisco.»
«Pois é. Se tivéssemos uma inspeção à altura!»
«Não convém ao Estado. É cego, quando lhe interessa ser.»
«Porra!»
Virei-me para ele.
«Que aconteceu, Francisco?»
«Peço desculpa pelo palavrão. Vê aquela mulher loura, já entrada na idade, que mesmo agora se encostou a ele?»
«E que tem a mulher?»
«Não é a sua companheira. Conheço-a bem. Uma senhora de categoria que põe esta lambisgóia num chinelo.»
«E face ao que vemos, quer dizer que a companheira já não vive com ele.»
«Exato.»
«Esta quem é?»
«Uma das muitas manchas negras do casino.»
Compreendi onde o Francisco queria chegar. Uma das mais de trinta pessoas informadoras sobre o modus operandi dos jogadores. Se já estão suficientemente viciados, se têm fortuna pessoal, se são tão teimosos como os nascidos sob o signo de Aries, etc e tal. Mas esta devia ser especial, ante a exclamação que fez o Francisco sair fora dos seus carretos.
«Vai chupá-lo até ao tutano, acredite.»
«Tal e qual. Mas o que será feito da doutora Amélia?»
«Não sei. Conhece a doutora Amélia?»
Ia confessar que o escritor era eu, mas calei-me.
«Sinto a falta dele. Mas agora me lembro. Dias antes de tirar um jackpot confessou-me que andava a estudar uma técnica.»
«Com recurso ao telemóvel?»
Abanou negativamente a cabeça.
«Nada disso. Até porque ele era contra os processos que alguns jogadores usavam para interferirem com as séries e aí entrava em cena o telemóvel. E até chegou a denunciá-los.»
«Andava a estudar uma técnica.» Pensei.
«Sim, porque o jogo não é aleatório. Disse-me mais que uma vez e explicou-me que existiam séries boas e séries más e aí é que residia verdadeiramente a manipulação do jogo. Até sabia quando a máquina mudava de uma série para outra.»
«Não sei o que hei de fazer mais...»
«Não desanime, meu bom amigo. Vai ver que um dia ele aparece.»
«Oxalá. Vamos a outra imperial?»
«Se não estou a pesar...»
«Claro que não. E um prego? O Mário disse-me que serviam aqui bons pregos.»
«Como o que o meu amigo quiser. Ainda a propósito do doutor Vaz...»
«Sim?»
«Os dois costumavam falar. Ouvi uma vez o seu amigo aconselhar o doutor a desistir quando sentisse a viragem.»
«A viragem?»
«Sim. Quando começasse a perder.»
O Francisco meteu à boca metade da baguete que tinha, entre o miolo das duas partes previamente embebidas em molho com sabor a alho, o suculento e macio lombo, e deu-lhe uma dentada feroz de quem não comia desde a hora do almoço ou isso. Depois, pegou no guardanapo de papel e limpou os beiços, preparando-se para pegar no copo cheio de cerveja, dando algum tempo para deglutir aquele manjar do céu que tanto apreciava. Enquanto o imitava, não perdia de vista o ar de apreço que ele dava àquele conjunto perfeito pão/lombo/molho.
«Também penso o mesmo. Se a pessoa tem sorte deve pensar que ela não dura sempre.» Concordei.
Talvez o sabor a alho fosse excessivo.
«O Mário era bom jogador ou deixava-se levar pelo vício do jogo? Pelo que ele me contou, fiquei com a ideia que se continha, tal como os bons jogadores fazem. Mas gostava de ouvir a sua opinião.»
«Meu bom amigo, não jogo mais porque não tenho a mínima hipótese. Falta-me o pilim e sobra-me tempo para observar e fazer as minhas avaliações. Garanto-lhe que, no que me foi dado a ver, ele nunca se perdeu e esperou sempre por oportunidades que mais o favorecessem. E se não conseguiu foi porque o marginalizaram. Fecharam-lhe as máquinas. Aquele homem nunca se conformou com a injustiça que lhe estavam a fazer. Não se cansava de dizer que as máquinas estavam a ser manipuladas e que era seguido por bufos por todo o lado onde andasse. Mas pareceu-me que, nos últimos tempos, estava a ter algum êxito.»
«Tinha descoberto um sistema, não foi o que lhe disse?»
«Sim. Uma técnica. Foi na altura em que desapareceu. Logo quando as coisas lhe corriam bem. Já é preciso ter azar.»
«Não ouviu nenhum zunzum? O senhor que anda há muito por aqui e conhece meio mundo.»
Voltou-se para o meio prego e quase o fez desaparecer no interior cavernoso que logo se tornou escuro. De seguida nem esperou pelo guardanapo e levou o copo à boca. Eu também fazia pela vida com a minha outra parte.
«Há uma pessoa que nos pode ajudar. Talvez com um pouco de papel ele se descosa.»
«Quanto, amigo Francisco?»
«Cinquenta.»
«Bom. Cinquenta para ele e cinquenta para si. Mas não o gaste sem glória.»
«Obrigado, meu bom amigo. Prometo.»
De certeza que não era promessa de escuteiro.
«Vai tratar do assunto?»
«Não. Vamos.»
«Prefiro que seja o Francisco a falar sozinho com esse seu amigo.»
«Confia em mim?»
«Claro que confio. Entretanto fico a ver o jogo do doutor Vaz.»
Continuava a jogar em duas máquinas. Numa delas apostava em nove linhas e três créditos por linhas. Era um sinal que as coisas estavam a correr menos bem. Se fosse um jogador lógico era tempo de deixar as máquinas dos cifrões e procurar outras. Ou então, ainda o mais razoável, regressar a casa. Mas não.
Com a fleuma do costume continuava a alimentar as máquinas que entretanto parecia que tinham entrado em greve.
O Francisco não se fez velho. Já estava de volta.
«Então?» perguntei, ansioso.
«Também não sabe nada. Prometeu investigar. Só lhe digo que estavam a tentar cortar-lhe as vazas e não conseguiam. Uma vez até foi levado à administração, mas estava limpo. Limpinho. Não tinha qualquer objeto estranho com ele, nem sistema de comunicação com o interior e o exterior.»
«Que terá acontecido?»
«Não sei» virou-se para o lado do doutor Vaz. «E como vai o jogo?»
«Mal.»
«Bem me parece que não está a seguir o conselho do seu amigo.»
«Pois não. Mais um que vai seguir o caminho de outros tantos. Começam a ganhar e acabam a perder. Perdem os prémios do casino, deixam o deles e depois o dos cartões. É a velha história, amigo Francisco.»
«Pois é. Se tivéssemos uma inspeção à altura!»
«Não convém ao Estado. É cego, quando lhe interessa ser.»
«Porra!»
Virei-me para ele.
«Que aconteceu, Francisco?»
«Peço desculpa pelo palavrão. Vê aquela mulher loura, já entrada na idade, que mesmo agora se encostou a ele?»
«E que tem a mulher?»
«Não é a sua companheira. Conheço-a bem. Uma senhora de categoria que põe esta lambisgóia num chinelo.»
«E face ao que vemos, quer dizer que a companheira já não vive com ele.»
«Exato.»
«Esta quem é?»
«Uma das muitas manchas negras do casino.»
Compreendi onde o Francisco queria chegar. Uma das mais de trinta pessoas informadoras sobre o modus operandi dos jogadores. Se já estão suficientemente viciados, se têm fortuna pessoal, se são tão teimosos como os nascidos sob o signo de Aries, etc e tal. Mas esta devia ser especial, ante a exclamação que fez o Francisco sair fora dos seus carretos.
«Vai chupá-lo até ao tutano, acredite.»
«Tal e qual. Mas o que será feito da doutora Amélia?»
«Não sei. Conhece a doutora Amélia?»
O homem disfarçado
«Estou à tua espera no café Chiado. Onze horas. É importante.»
E mais nada.
Não admitia gozos daqueles. Mas, quem quer que fosse, estava na posse do meu número do telemóvel. Por outro lado, o café Chiado já não existia há umas dezenas de anos. E isso dava para pensar. Aquela espécie de convocatória era muito estranha. Mesmo muito estranha. Mais parecia que ele me estava a dar um código. Ou ela. Podia ser uma ela.
Não pude responder e gorou-se a hipótese de conseguir mais dados.
Ia tomar em conta aquela mensagem?
Consultei o relógio. Já passava das dez e um quarto e a única hipótese que tinha de chegar a horas àquele encontro misterioso só podia ser feita se recorresse aos préstimos de um táxi. Quanto ao problema de sair com chapéu ou sem chapéu deixou de o ser. Chapéu de chuva, entenda-se. Ainda falando de chapéus, detestei sempre usar chapéu ou boné. Isto para não falar da boina com os três vinténs que usei nos meus tempos de criança. Criança não tinha querer. Criança sofria. Criança batia o pé. Criança já não batia o pé. Felizmente que agora os tempos da criança são outros. Mas ou oito ou oitenta...
Cinco minutos antes da hora marcada para o encontro estava a subir a pé a Rua do Chiado. Inevitavelmente veio-me à memória o pavoroso incêndio de 25 de agosto de 1988 que deflagrou nos Armazéns Grandella, do lado da Rua do Carmo. O pavoroso incêndio do Chiado. Os piores estragos aconteceram na Rua do Carmo. Perderam-se os armazéns do Grandella, os Grandes Armazéns do Chiado, a Perfumaria da Moda, bem como o arquivo histórico de gravações de som da Valentim de Carvalho. E mais. A remoção dos escombros prolongou-se por meses. Seguiram-se anos complicados de reconstrução, mantendo-se algumas fachadas que tinham resistido ao fogo.
O espaço tornou-se mais aprazível, mas nada do que fora voltou a ser como era.
Ainda mergulhado nos meus pensamentos, a propósito do Chiado não voltar a ser o que era, de o agora não ser igual ao de há pouco (assim dizia o meu saudoso professor de Filosofia, lembrando um poema de Comtesse de Noailles - "Il fera longtemps clair ce soir" - ...Nous n'aurons plus jamais notre âme de ce soir), dei comigo em frente ao Fernando António e à sua cadeira vazia. Parecia que me convidava para uma cavaqueira em pensamento cujo tema principal seria fatalmente o tédio e a vontade de beber porque não tinha sede. Mas não estive pelos ajustes. A cadeira em bronze continuou vazia porque o meu objetivo era outro.
Olhei para cima, para os lados da Praça Camões. Estava mais interessado em descobrir se o meu palpite batia certo ou errado.
Foi então que senti algo a pressionar-me a coluna.Estava parado, virado para o sítio onde outrora fora o café Chiado. E parado fiquei. Suspenso da órbita do acontecer, segundo após segundo.
«Não te voltes! Tira disfarçadamente a carteira...»
Toda aquela história do encontro era por causa de um assalto, ou não passava de pura coincidência?
Ainda por cima nas barbas do poeta!
Obedeci à voz de homem.
«Pronto, já tenho a carteira na mão.»
«Ótimo. Estás-te a portar bem, meu menino. Agora baixa o braço.»
Voltei a obedecer. Parecia-me que a mão que segurava a carteira estremecia. Parecia-me, uma ova. Aquilo era um assalto e podia até contar com o pior. Sentia apontada às costas uma arma. Talvez uma pistola, talvez uma arma branca. A pressão era indefinida. Tinha que seguir à risca as instruções do assaltante.
«Então?»
Demorei a responder. Esperava que ele pegasse na carteira e tal não estava a acontecer.
«Então, o quê?»
«Vira-te devagar. De olhos bem fechados.»
Obedeci mais uma vez.
«Não quer a carteira?» perguntei, a medo.
«Eu é que sei o que quero!»
O tom de voz, embora disfarçado, parecia-me familiar.
«Pronto, pronto...»
«Já podes abrir os olhos.»
O homem sorria ironicamente. A carteira continuava na minha mão. Queria entender o que se estava a passar.
«Guarda a carteira. Mudei de ideias.»
Afinal o que é que ele queria?
Mas o desconhecido não tirava uma das mãos do bolso do casaco. Caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém.
«Não me conheces?»
Nem por sombras. Aquele rosto não me dizia nada. Mesmo nada.
«Nunca o vi na vida. Mas afinal o que quer de mim?»
«Pensa. Pensa bem.»
Se pensava, era sinal que ainda existia. Mas, de um momento para o outro, a sequência natural das coisas podia alterar-se.
Arrisquei:
«Porque falou na mensagem no café Chiado?»
O homem apreciou a pergunta com um sorriso largo, convincente.
«Ah! Pergunta inteligente, António. Mas ouve uma coisa: porque não me tratas por tu?»
Deixou de disfarçar o tom de voz e fez-se logo luz.
«Nem quero acreditar! Mas...»
«Mas?»
O Mário estava tão longe. Em Las Vegas, concretizando um sonho antigo. Além do mais, aquele rosto nada me dizia.
«Mário?» ousei arriscar.
«Porra! Finalmente, meu sacana.»
Trocámos um abraço forte e depois fiquei a olhar para ele.
«Agora entendo essa história do café Chiado. É do nosso tempo da Faculdade e tu vinhas para aqui estudar.»
«Pensei que entendias.»
«Mas escapou-me. És o Mário e não és! Que aconteceu? Nunca mais deste notícias...»
«Daqui a pouco vais saber o porquê do meu silêncio. Mas tenho sabido tudo de ti. Encontraste o caderno e publicaste as histórias.»
«É verdade.»
«Afinal não te dedicaste a escrever histórias para crianças, conforme era teu desejo.»
Concordei.
«Cheguei à conclusão que o meu estilo era demasiado hermético para a história chegar límpida às crianças. Mas diz-me uma coisa, fizeste uma operação plástica, porquê?»
«Eles descobriram-nos.»
«Não! A Amélia denunciou-te?»
«Antes fosse.»
«Conta-me o que aconteceu...»
Uma noite, quando jogava no casino, foi abordado por dois indivíduos que o intimidaram a acompanhá-los. Primeiro admitiu que se tratava de um assalto, mas reconheceu um deles e mudou logo de opinião. Era um dos homens que costumava receber parte do dinheiro sujo que ganhava no casino.
«Isto aqui não é como nos casinos em Portugal.»
«O quê?»
«Há detetores de metais por todos os lados. À entrada do casino e na passagem do hotel para o casino. Bem como em mais sítios.»
«Deixa-te de ideias e segue mas é à nossa frente. Senão...»
«Senão o quê? Vocês nem sequer estão armados.»
«Tens a certeza?»
«Se me agarrarem reajo e está ali um segurança.» Disse, apontando na sua frente.
Os outros olharam instintivamente para trás e o Mário aproveitou a oportunidade para empurrar uma cadeira contra eles. Logo a seguir, lançou-se numa corrida desenfreada para as escadas rolantes que davam acesso ao primeiro liso. Aí concentrava-se a maior parte dos jogadores, pelo que foi fácil misturar-se entre a pequena multidão até desaparecer no exterior.
«Foi mais fácil do que pensava.»
«E depois, amigo?»
«Deduzi que seguiram outro objetivo.»
«A Amélia?»
«Acho que foram no seu encalce. Ela tinha ficado no quarto do hotel. Não tenho a certeza.»
«Então quer dizer que é muito provável a Amélia estar morta?»
«Não sei, António. Tudo é possível. Tenho uma réstia de esperança que ela ainda esteja viva. Isto admitindo a hipótese de pensarem chegar até mim por intermédio dela.»
«E há essa hipótese?»
Coçou a cabeça, parecendo perturbado.
«Muito remota. Ela não conseguia identificar-me depois de ter feito esta operação plástica dois dias depois. O que me preocupa é que eles de certeza que a torturaram porque se convenceram que era a única hipótese que tinham de chegarem a mim. Não imaginas o que é agora viver com esta sensação de culpa. Saber que já aconteceu, sem poder fazer nada. Que fui fazer, António?»
«Salvaste a pele.»
«Sim. Fugi como um cobarde.»
«Não tinhas outra hipótese. E a casa de cá? A Amélia conhecia a morada?»
«Impossível. A nossa relação em Lisboa passou-se só entre o casino e a casa do ex-namorado. Durou poucos dias. Depois aconteceu aquele episódio que já sabes.»
«Mas ela fugiu com o dinheiro da mala.»
«Isso foi o que pensei na altura.»
«Então?»
«A Amélia contactou pouco depois comigo e fugimos para Las Vegas. Sei o que vais perguntar. Mudei de telemóvel antes de viajar para Las Vegas. Portanto, descobriram-nos só por causa dela. Nunca desconfiei que também lhe tinham implantado um chip. Não me perguntes quando. Provavelmente até foi antes de a conhecer.»
«E o registo no hotel?»
«Foi feito pela Amélia. Quanto ao cofre que aluguei para esconder o dinheiro, também tive o cuidado de não deixar qualquer pista.»
«Mas como? Tiveste que abrir uma conta numa agência bancária.»
«Preferi correr o risco ao guardar o dinheiro em três cofres de supermercados. Sabes como são aqueles cofres de chaves na fechadura onde se guardam pequenos artigos?»
«Sim, sei. Pensaste em tudo.»
«Dois dias mais tarde, depois daqueles bandidos quase me apanharem, tratei de desaparecer para sempre como Mário Fonseca. Custou-me uma pipa de massa, mas consegui. Fizeram-me uma plástica, arranjei documentos falsos e regressei a Portugal.»
«Com todo o dinheiro, claro.»
«Não. Uma parte ficou nos cofres. E aqui estou. Invisível como Mário. Há dez dias. É muito estranho ser outra pessoa que agora já não existe. Nem calculas a sensação quando, de manhã, me levanto, vou à casa de banho e olho-me ao espelho. É uma segurança, mas custa.»
«Já passaste pelo mesmo quando viste ao espelho a cara do outro. O tal Pedro.»
«É verdade. Não me perguntes como aconteceu. Mas que aconteceu, aconteceu.»
«E se, por algum motivo, os cofres forem abertos?»
«Agora é só um. Já pensei nisso. Preciso de voltar a Las Vegas para trazer o resto do dinheiro.»
«Gostava de conhecer Las Vegas...»
Não deu saída.
«Agora estás a viver mais uma grande aventura da tua vida. A última história do Mário contador de histórias que afinal não pode contar. E a talhe de foice, qual é o teu novo nome, Mário?»
«Cuidado» sorriu. «O Mário que conheceste já não existe. É um fantasma. Agora sou o Leonel Travassos. Não te esqueças.»
Foi a vez de eu sorrir.
«Travassos. Feliz coincidência, O nome de um dos fantásticos cinco violinos do Sporting. Jesus Correia, Vasques, Peyroteo, Travassos e Albano. Há tantos anos, meu Deus!»
«Tal e qual. E ainda me lembro dos relatos da bola que fazia para a rapaziada do bairro, manipulado os "bonecos da bola". Havia balizas e tudo mais. Lembras-te?»
«Se me lembro. Pelo que me disseste, eras bom a relatar. Mas um pouco tendencioso, não o negues.»
«Pois.»
«Ainda és do Belenenses?»
«Claro que sou. O Matateu era o meu ídolo.
«Agora são raros os momentos de glória do meu clube.»
«Ou nenhuns. E tu, continuas de leão ao peito?»
«Claro!»
Consultou o relógio.
«Tens alguma coisa a fazer?» perguntei.
«Temos. Mas ainda é cedo. Vamos dar uma volta pela Baixa a fazer horas para o almoço. É sexta-feira. Que tal um prato de bacalhau no João do Grão e um bom tinto de jarro?»
«Duvido.»
«Não queres almoçar no João do Grão?»
«Quero. Mas duvido do bom vinho tinto de jarro. Os tempos são outros.»
«Está bem. Então depois escolhes o vinho.»
«Julgava-te uma pessoa mais snobe. Agora com todo esse dinheiro que tens...»
«Continuo igual a mim próprio, apesar de estar ainda mais rico do que quando fui para Las Vegas com a mala cheia daquele dinheiro sacado aos mafiosos que me quiseram dar um nó cego. Mas eles é que ficaram tosquiados. Como é que se diz...?»
«Foram buscar lã e saíram tosquiados.»
Fez um sinal de concordância.
«Isso mesmo. Continuas igual a ti próprio, António. Mas falei-te dum sistema que tinha inventado, não falei?»
Era verdade. Ele ia aplicar o sistema que inventou nos casinos de Las Vegas. Intimamente pensava que aquele sistema, ou método, ou o raio que queria chamar, ia dar em nada, tal como os seus sonhos. E também o dinheiro, embora ele fosse um indivíduo seguro a jogar.
«Tenho uma vaga ideia.»
«Pois bem.»
«Sim?»
«Deu certo.»
«Multiplicaste por quanto?»
«Nem imaginas...»
«E não me digas que tens o dinheiro espalhado por esses cofres dos supermercados?»
«Um só cofre, como já disse. Só lido com dinheiro vivo. Aqui para nós, o teu amigo Travassos é um pobretanas que conta os cêntimos...»
«Fazes bem em não dar nas vistas. Olha uma coisa, voltaste ao casino?»
«Que achas?»
Pus-me a pensar. O risco era quase nulo. Como o Mário não existia, os fiscais, chefes de sala e inspetores já não podiam estar em rota de colisão com o fantasma que era ele. Por sua vez, se continuava a frequentar o casino, como não era cego, podia confirmar e cimentar as suspeitas sobre os tais utentes que mantinham relações à margem da lei com certos funcionários do casino, inclusive os "tubarões". E aí prolongava-se a triste sina daqueles que perdiam sempre e também dos que ganhavam sempre.
Então, o que fazia o Mário no casino?
Considerei-o sempre uma pessoa que gostava mais de ganhar do que jogar. Um não viciado. Agora parecia que estava a haver uma mudança.
Efeito Las Vegas?
«Antónioooooooo!»
«Diz, Mário. Ou por outra. Travassos. Desculpa-me, mas com o tempo há de ir ao lugar.»
«Assim espero. Que foi feito de ti?»
«Não entendo.»
«De repente ficaste na lua.»
«E tu não respondeste direito à minha pergunta.»
«Onde julgas que vamos logo à noite?»
Há um bom par de anos o Mário disse-me que a entrada no casino era enganadora no que dizia respeito aos ocupantes das máquinas, uma vez que as primeiras visíveis aos olhos de quem entrava normalmente não estavam ocupadas.
«Lá fora costumava contar as ondas provocadas pelo vulcão. Funcionavam quase como um relógio. O Raul...»
«Não te esqueças que fui eu que escrevi as tuas histórias. E a propósito, tens que contar-me o que aconteceu em Las Vegas. O teu caso com a Amélia, os jogos. Tudo.»
«Não me esqueço, não. Mas não há muito para contar.»
«E a tua técnica?, como é?»
«Não te posso dizer.»
«Está bem.»
Deslocámo-nos para além das primeiras máquinas. O cenário modificou-se. Comecei a ver as pessoas agarradas às máquinas. Fora do mundo e no seu mundo. Um vício terrível!
«Já viste?»
«O quê?»
«Estas pessoas estão vidradas nas máquinas. À espera de um milagre que raramente chega. Os casinos fizeram-se para dar lucro. Dez por cento da receita, é o que dizem. Isto se não houver golpada.»
«Ou nenhuns. E tu, continuas de leão ao peito?»
«Claro!»
Consultou o relógio.
«Tens alguma coisa a fazer?» perguntei.
«Temos. Mas ainda é cedo. Vamos dar uma volta pela Baixa a fazer horas para o almoço. É sexta-feira. Que tal um prato de bacalhau no João do Grão e um bom tinto de jarro?»
«Duvido.»
«Não queres almoçar no João do Grão?»
«Quero. Mas duvido do bom vinho tinto de jarro. Os tempos são outros.»
«Está bem. Então depois escolhes o vinho.»
«Julgava-te uma pessoa mais snobe. Agora com todo esse dinheiro que tens...»
«Continuo igual a mim próprio, apesar de estar ainda mais rico do que quando fui para Las Vegas com a mala cheia daquele dinheiro sacado aos mafiosos que me quiseram dar um nó cego. Mas eles é que ficaram tosquiados. Como é que se diz...?»
«Foram buscar lã e saíram tosquiados.»
Fez um sinal de concordância.
«Isso mesmo. Continuas igual a ti próprio, António. Mas falei-te dum sistema que tinha inventado, não falei?»
Era verdade. Ele ia aplicar o sistema que inventou nos casinos de Las Vegas. Intimamente pensava que aquele sistema, ou método, ou o raio que queria chamar, ia dar em nada, tal como os seus sonhos. E também o dinheiro, embora ele fosse um indivíduo seguro a jogar.
«Tenho uma vaga ideia.»
«Pois bem.»
«Sim?»
«Deu certo.»
«Multiplicaste por quanto?»
«Nem imaginas...»
«E não me digas que tens o dinheiro espalhado por esses cofres dos supermercados?»
«Um só cofre, como já disse. Só lido com dinheiro vivo. Aqui para nós, o teu amigo Travassos é um pobretanas que conta os cêntimos...»
«Fazes bem em não dar nas vistas. Olha uma coisa, voltaste ao casino?»
«Que achas?»
Pus-me a pensar. O risco era quase nulo. Como o Mário não existia, os fiscais, chefes de sala e inspetores já não podiam estar em rota de colisão com o fantasma que era ele. Por sua vez, se continuava a frequentar o casino, como não era cego, podia confirmar e cimentar as suspeitas sobre os tais utentes que mantinham relações à margem da lei com certos funcionários do casino, inclusive os "tubarões". E aí prolongava-se a triste sina daqueles que perdiam sempre e também dos que ganhavam sempre.
Então, o que fazia o Mário no casino?
Considerei-o sempre uma pessoa que gostava mais de ganhar do que jogar. Um não viciado. Agora parecia que estava a haver uma mudança.
Efeito Las Vegas?
«Antónioooooooo!»
«Diz, Mário. Ou por outra. Travassos. Desculpa-me, mas com o tempo há de ir ao lugar.»
«Assim espero. Que foi feito de ti?»
«Não entendo.»
«De repente ficaste na lua.»
«E tu não respondeste direito à minha pergunta.»
«Onde julgas que vamos logo à noite?»
Há um bom par de anos o Mário disse-me que a entrada no casino era enganadora no que dizia respeito aos ocupantes das máquinas, uma vez que as primeiras visíveis aos olhos de quem entrava normalmente não estavam ocupadas.
«Lá fora costumava contar as ondas provocadas pelo vulcão. Funcionavam quase como um relógio. O Raul...»
«Não te esqueças que fui eu que escrevi as tuas histórias. E a propósito, tens que contar-me o que aconteceu em Las Vegas. O teu caso com a Amélia, os jogos. Tudo.»
«Não me esqueço, não. Mas não há muito para contar.»
«E a tua técnica?, como é?»
«Não te posso dizer.»
«Está bem.»
Deslocámo-nos para além das primeiras máquinas. O cenário modificou-se. Comecei a ver as pessoas agarradas às máquinas. Fora do mundo e no seu mundo. Um vício terrível!
«Já viste?»
«O quê?»
«Estas pessoas estão vidradas nas máquinas. À espera de um milagre que raramente chega. Os casinos fizeram-se para dar lucro. Dez por cento da receita, é o que dizem. Isto se não houver golpada.»
«Tens razão. Não há volta a dar. Que as máquinas estão manipuladas, ninguém o nega. E fala-se à boca cheia dos jogadores que têm êxito a princípio e depois acontece o que acontece. Acabam por cair na armadilha. Vão ganhando dia após dia, até que se inverte a situação e acabam por perder o que ganharam e o que não ganharam. Sem darem conta, chegaram a uma nova etapa e tu sabes qual é, António. O vício é terrível! Quem cai nele é como se caísse num buraco negro. Não tem retorno. Só na ficção científica. Os buracos de verme...»
«Bem sei. Sempre é verdade que eles têm mais que trinta informadores?»
«Já te disse. Não te lembras?»
«Claro que me lembro. Mas podia ter sido um desabafo teu.»
«Não sou um viciado, António!»
«És o David a lutar contra o Golias. Na realidade nada podes fazer. E tu sabes disso.»
«Daí a minha mudança de estratégia. Respondendo à tua pergunta, claro que estou a ter êxito» disse, baixando a voz. «Aqui só para nós, já vais ver.»
«E se te apanham?»
Limitou-se a sorrir.
«Não me contas?» insisti.
«É melhor não, António. Só te digo que a vida é uma aventura.»
«No teu caso uma aventura de alto risco. E os teus amigos do casino? Vais falar-lhes?»
Virou-se para mim. O seu sorriso era agora diferente. Soava a ironia.
«Estava só a brincar.» Disse.
«Eu sei, António. Vamos até ao Fort Knox. Mas antes deixa que te diga que aqui, mais do que em qualquer outro local, não há amigos. Só conhecidos. É um mundo perigoso.»
«Tenho que concordar contigo. Mas mostra-me então como jogas no Fort Knox.»
«É um mundo e pêras. Um mundo à parte. Quem o criou devia ter sido laureado com um prémio Nobel. Isto se não houvesse o reverso da medalha. Os seus prisioneiros.»
«Tens razão. Wernher von Braun, o cientista alemão que foi o principal responsável pelo projeto Apolo, esse projeto que pôs o homem na Lua e que muito desgostou os soviéticos da altura, teve um passado obscuro, talvez tenebroso, ao serviço de Hitler. As suas poderosas V2 podiam ter mudado o sentido da guerra e agora não estaríamos aqui a falar das maravilhas deste Fort Knox. Embora já o conheças, pelas histórias que te contei e que escreves, nada se compara com a visão em direto. As máquinas estão quase sempre ocupadas e há gente desesperada à espera de uma máquina livre. Até perto da uma da manhã é difícil apanhar uma máquina disponível. Principalmente nos Unicorn. E nos fins de semana, nem pensar nisso. A não ser que chegues cedo.»
«Porquê tanta procura?»
«Pelo aparente êxito que mostram. Dão bons prémios, mas também o lucro para o casino é incrível, percebes? Um logro.»
«Então é uma zona onde muita gente perde.»
«Certo, António. É o principal abono de família do casino.»
«Vamos aproximar-nos. estou a ficar curioso.»
«Há aqui gente que vive à custa do casino. Não me perguntes como conseguem. Para os desmascarar requeria que fosse feita uma investigação profunda.»
«Que nem sequer a inspeção faz, segundo me disseste.»
«Sim. É um grande mistério. Disseram-me, mais que uma vez, que estavam assoberbados com burocracia. Quando havia qualquer caso anómalo tinham forma de saber pelo vídeo. Mas é no palco que se passa o espetáculo. Neste caso o espetáculo das coisas estranhas.»
«E o tal Vítor que guarda as máquinas para os jogadores que apostam alto, está mesmo ao serviço do casino?»
«Um informador disse-me que o Vítor trabalha para o casino. Em tempos admirei-me dele obter bons resultados mesmo jogando muito baixo. De vez em quando davam-lhe ouros e platinas, além de linhas e dos célebres três Unicorn com uma figura. Mais tarde compreendi. Era o prémio por arranjar bons clientes-patos que jogavam alto e perdiam rios de dinheiro. Funciona como conselheiro, percebes?»
«Também já sabia disso.»
«É verdade. Então porque queres que fale de pessoas que já conheces pelas minhas descrições?»
«Confesso-te que já tive oportunidade de conhecer o Vítor. Mas foi muito lacónico. Gostava de o conhecer melhor.»
«Como assim?»
«Vim à tua procura. Talvez o Vítor ou o Francisco me dessem uma pista. Mas nada consegui.»
«Não me digas que estiveste cá?»
«Pois estive. Queria saber de ti e vê-los ao vivo. Tenho uma certa curiosidade em conhecer, por exemplo, o Palrador e o Abutre.»
«Este último deixou de aparecer. Muito provavelmente cortaram-lhe a sorte e foi mais um que caiu no pântano. Agora deve andar com grandes problemas nos cartões de crédito. Como ele, há muitos jogadores que já não vêm. São os sinais da crise. Mas não perguntaste pelo mais pitoresco de todos.»
«Já sei. O agressor das palavras. A seu tempo.»
«Quanto a mim, o verdadeiro abutre é, sem dúvida, o Zé dedilhador. Por enquanto. Olha, saiu um jogador duma máquina à sua direita.»
Vi-o dar uma corrida para a máquina. Não imaginava o Mário a reagir daquela forma.
«Pronto. Toma atenção como jogo. Já sabes que as máquinas que funcionam em bloco são do mesmo tipo. Por exemplo, o último grupo de Unicorn em que estamos. Normalmente há uma máquina que paga bem e as outras têm que absorver esse prejuízo para o casino. Sabes também que há séries, isto é, sequências de jogadas.»
«Pois sei. Mas deixa-me ver como ele joga.»
«Não interessa a forma como joga. Afinal já adquiriu, como muitos, a técnica.»
«Técnica?»
«Todo o jogo tem uma técnica.»
«Então?»
«Como abutre que é, fica à espera da sua oportunidade.»
«Aquele indivíduo que está na última máquina fala pelos cotovelos. Queixa-se que a máquina não dá "caixotes" nem "cavalos". Por acaso, não é o Palrador?»
«Na mouche!»
«Julgo que estou a sonhar. Disse bem alto que ia procurar um chefe de sala para se queixar que a máquina não pagava.»
«Acreditas?»
«Olha, levantou-se. Foi mesmo chamar um chefe de sala?»
«És bom observador.»
«Sempre há uma central?»
«Duvidas?»
«Não. E onde fica?»
«Também gostava de saber. Agora, toma atenção. A máquina do Zé está a dar boa conta de si, não está?»
Concordei. Até já tinha tirado um ouro de cerca de quinhentos euros. E uma linha de quase trezentos euros.
«Vou aplicar o meu método.» Sussurrou.
«Como é?»
«Baixa mais a voz. Olha, neste caso consiste em fazer com que minha máquina passe a ser a número um em prémios. E não te digo mais nada. O resto é cá comigo.»
«Estás a gozar ou então deliras.»
«Espera só um pouco.»
«Queres que acredite? Morde aqui.»
«Já vais ver...»
Não decorreram quinze minutos para acontecer algo que considerei insólito. A máquina do Mário modificou-se drasticamente em relação ao rendimento. De vez em quando o Mário sorria para mim.
«E ainda não é tudo. Olha, já viste como se joga?»
«Mais ou menos.»
«Então, muda comigo. Aliás, é só carregares na tecla de reapostar. Não alteres a aposta.»
Mudámos de posição.
«Chegou o Vítor. Agora está junto ao Zé dedilhador. O outro queixa-se que lhe fecharam a máquina.»
Olhei pelo canto do olho.
«O nosso amigo Vítor ficou com cara de caso. Ouve o que dizem...»
«Não pode ser!» exclamou o Vítor algo admirado.
«Não pode ser? Pois claro que pode. Já meti cinco notas de cinquenta e nada. Estou a jogar a 19x5 e nem a porra do cofre abre!»
Entretanto o Palrador acabara de tirar cinco "corneteiros".
A conversa com o chefe de sala dera os seus frutos.
«Experimenta mudar essa merda para 20x4.» Disse o Vítor ao Zé.
«Porquê 20x4?» perguntei, num sussurro, ao meu companheiro.
«Pergunta-lhe.» Respondeu, irónico.
«Estás parvo ou quê?»
Mais quinze minutos e a situação sem alterar-se. Entretanto a nossa máquina melhorara significativamente de rendimento.
«Já temos mais de quatrocentos euros, Mário! Tiro o ticket?» exclamei, virando-me para trás.
«Bem sei. Sempre é verdade que eles têm mais que trinta informadores?»
«Já te disse. Não te lembras?»
«Claro que me lembro. Mas podia ter sido um desabafo teu.»
«Não sou um viciado, António!»
«És o David a lutar contra o Golias. Na realidade nada podes fazer. E tu sabes disso.»
«Daí a minha mudança de estratégia. Respondendo à tua pergunta, claro que estou a ter êxito» disse, baixando a voz. «Aqui só para nós, já vais ver.»
«E se te apanham?»
Limitou-se a sorrir.
«Não me contas?» insisti.
«É melhor não, António. Só te digo que a vida é uma aventura.»
«No teu caso uma aventura de alto risco. E os teus amigos do casino? Vais falar-lhes?»
Virou-se para mim. O seu sorriso era agora diferente. Soava a ironia.
«Estava só a brincar.» Disse.
«Eu sei, António. Vamos até ao Fort Knox. Mas antes deixa que te diga que aqui, mais do que em qualquer outro local, não há amigos. Só conhecidos. É um mundo perigoso.»
«Tenho que concordar contigo. Mas mostra-me então como jogas no Fort Knox.»
«É um mundo e pêras. Um mundo à parte. Quem o criou devia ter sido laureado com um prémio Nobel. Isto se não houvesse o reverso da medalha. Os seus prisioneiros.»
«Tens razão. Wernher von Braun, o cientista alemão que foi o principal responsável pelo projeto Apolo, esse projeto que pôs o homem na Lua e que muito desgostou os soviéticos da altura, teve um passado obscuro, talvez tenebroso, ao serviço de Hitler. As suas poderosas V2 podiam ter mudado o sentido da guerra e agora não estaríamos aqui a falar das maravilhas deste Fort Knox. Embora já o conheças, pelas histórias que te contei e que escreves, nada se compara com a visão em direto. As máquinas estão quase sempre ocupadas e há gente desesperada à espera de uma máquina livre. Até perto da uma da manhã é difícil apanhar uma máquina disponível. Principalmente nos Unicorn. E nos fins de semana, nem pensar nisso. A não ser que chegues cedo.»
«Porquê tanta procura?»
«Pelo aparente êxito que mostram. Dão bons prémios, mas também o lucro para o casino é incrível, percebes? Um logro.»
«Então é uma zona onde muita gente perde.»
«Certo, António. É o principal abono de família do casino.»
«Vamos aproximar-nos. estou a ficar curioso.»
«Há aqui gente que vive à custa do casino. Não me perguntes como conseguem. Para os desmascarar requeria que fosse feita uma investigação profunda.»
«Que nem sequer a inspeção faz, segundo me disseste.»
«Sim. É um grande mistério. Disseram-me, mais que uma vez, que estavam assoberbados com burocracia. Quando havia qualquer caso anómalo tinham forma de saber pelo vídeo. Mas é no palco que se passa o espetáculo. Neste caso o espetáculo das coisas estranhas.»
«E o tal Vítor que guarda as máquinas para os jogadores que apostam alto, está mesmo ao serviço do casino?»
«Um informador disse-me que o Vítor trabalha para o casino. Em tempos admirei-me dele obter bons resultados mesmo jogando muito baixo. De vez em quando davam-lhe ouros e platinas, além de linhas e dos célebres três Unicorn com uma figura. Mais tarde compreendi. Era o prémio por arranjar bons clientes-patos que jogavam alto e perdiam rios de dinheiro. Funciona como conselheiro, percebes?»
«Também já sabia disso.»
«É verdade. Então porque queres que fale de pessoas que já conheces pelas minhas descrições?»
«Confesso-te que já tive oportunidade de conhecer o Vítor. Mas foi muito lacónico. Gostava de o conhecer melhor.»
«Como assim?»
«Vim à tua procura. Talvez o Vítor ou o Francisco me dessem uma pista. Mas nada consegui.»
«Não me digas que estiveste cá?»
«Pois estive. Queria saber de ti e vê-los ao vivo. Tenho uma certa curiosidade em conhecer, por exemplo, o Palrador e o Abutre.»
«Este último deixou de aparecer. Muito provavelmente cortaram-lhe a sorte e foi mais um que caiu no pântano. Agora deve andar com grandes problemas nos cartões de crédito. Como ele, há muitos jogadores que já não vêm. São os sinais da crise. Mas não perguntaste pelo mais pitoresco de todos.»
«Já sei. O agressor das palavras. A seu tempo.»
«Quanto a mim, o verdadeiro abutre é, sem dúvida, o Zé dedilhador. Por enquanto. Olha, saiu um jogador duma máquina à sua direita.»
Vi-o dar uma corrida para a máquina. Não imaginava o Mário a reagir daquela forma.
«Pronto. Toma atenção como jogo. Já sabes que as máquinas que funcionam em bloco são do mesmo tipo. Por exemplo, o último grupo de Unicorn em que estamos. Normalmente há uma máquina que paga bem e as outras têm que absorver esse prejuízo para o casino. Sabes também que há séries, isto é, sequências de jogadas.»
«Pois sei. Mas deixa-me ver como ele joga.»
«Não interessa a forma como joga. Afinal já adquiriu, como muitos, a técnica.»
«Técnica?»
«Todo o jogo tem uma técnica.»
«Então?»
«Como abutre que é, fica à espera da sua oportunidade.»
«Aquele indivíduo que está na última máquina fala pelos cotovelos. Queixa-se que a máquina não dá "caixotes" nem "cavalos". Por acaso, não é o Palrador?»
«Na mouche!»
«Julgo que estou a sonhar. Disse bem alto que ia procurar um chefe de sala para se queixar que a máquina não pagava.»
«Acreditas?»
«Olha, levantou-se. Foi mesmo chamar um chefe de sala?»
«És bom observador.»
«Sempre há uma central?»
«Duvidas?»
«Não. E onde fica?»
«Também gostava de saber. Agora, toma atenção. A máquina do Zé está a dar boa conta de si, não está?»
Concordei. Até já tinha tirado um ouro de cerca de quinhentos euros. E uma linha de quase trezentos euros.
«Vou aplicar o meu método.» Sussurrou.
«Como é?»
«Baixa mais a voz. Olha, neste caso consiste em fazer com que minha máquina passe a ser a número um em prémios. E não te digo mais nada. O resto é cá comigo.»
«Estás a gozar ou então deliras.»
«Espera só um pouco.»
«Queres que acredite? Morde aqui.»
«Já vais ver...»
Não decorreram quinze minutos para acontecer algo que considerei insólito. A máquina do Mário modificou-se drasticamente em relação ao rendimento. De vez em quando o Mário sorria para mim.
«E ainda não é tudo. Olha, já viste como se joga?»
«Mais ou menos.»
«Então, muda comigo. Aliás, é só carregares na tecla de reapostar. Não alteres a aposta.»
Mudámos de posição.
«Chegou o Vítor. Agora está junto ao Zé dedilhador. O outro queixa-se que lhe fecharam a máquina.»
Olhei pelo canto do olho.
«O nosso amigo Vítor ficou com cara de caso. Ouve o que dizem...»
«Não pode ser!» exclamou o Vítor algo admirado.
«Não pode ser? Pois claro que pode. Já meti cinco notas de cinquenta e nada. Estou a jogar a 19x5 e nem a porra do cofre abre!»
Entretanto o Palrador acabara de tirar cinco "corneteiros".
A conversa com o chefe de sala dera os seus frutos.
«Experimenta mudar essa merda para 20x4.» Disse o Vítor ao Zé.
«Porquê 20x4?» perguntei, num sussurro, ao meu companheiro.
«Pergunta-lhe.» Respondeu, irónico.
«Estás parvo ou quê?»
Mais quinze minutos e a situação sem alterar-se. Entretanto a nossa máquina melhorara significativamente de rendimento.
«Já temos mais de quatrocentos euros, Mário! Tiro o ticket?» exclamei, virando-me para trás.
«Claro. Não faças como o Urbino.»
«Ah sim» lembrei-me. «O exorcista.»
«De si.»
«Pois. E agora?»
«Agora vais conhecer a minha casa nova...»








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