quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Recordações do Casino Estoril


Corria o ano de 1998. Naquela noite cálida de julho algo me impelia fatalmente para o Estoril. Não era o vício do jogo que me levava lá. Sabia muito bem controlar-me. 
Destino? As slots.
Troquei três contos em fichas. Levantei um saco de plástico e fui andando pela enorme sala, aquecida e pesada pelo fumo intenso, semeada de máquinas ronronantes desde a entrada até ao fundo. Um escândalo, para quem, como eu, conhecia o casino desde o tempo em que os funcionários públicos eram proibidos de jogar. Mas agora os tempos eram outros. O principal interessado até podia ser o Estado. Quantas mais máquinas houvesse, mais utentes podiam usufruir da tentação do jogo, mais lucravam os acionistas do casino e também mais lucrava o Estado.
Fui deambulando pelos inúmeros corredores. Procurava a máquina onde estivera pela última vez há meses atrás e não havia meio de a encontrar. E porque queria jogar nessa máquina? Vingança! Clamava vingança porque tinha perdido. Não muito, mas nunca gostei de perder. Nem a feijões.
A máquina engolira sete contos num ápice, tal era o apetite devorador que tinha naquela noite em que não devia ter saído de casa, apesar dos sete contos não terem feito muita mossa. 
Encontrei finalmente a zona da máquina. Não me lembrava do seu número. Continuei a andar pelo corredor. Não tinha pressa. Quanto mais cedo começasse a jogar, mais podia perder se a máquina não fosse simpática comigo.
Finalmente vi uma parecida com a da outra vez. Nem todas as máquinas tinham banco. Esta, sim. O banco estava encostado a uma espécie de gaveta metálica da máquina onde caíam as moedas. Ou melhor, as fichas metálicas. Já não era o tempo das moedas de vinte e cinco tostões e cinco escudos. A propósito, uma vez ganhei um jackpot de quatrocentas moedas de vinte e cinco tortões. Que alegria! 
Bati com um dos rolos no resguardo da espécie de gaveta onde caiam as fichas dos prémios e comecei a jogar. Paulatinamente. Três moedas de cada vez. Era a regra para o caso de ganhar um prémio bom. Embora fosse amador, pensava que só um principiante jogaria com uma ficha de cinquenta escudos. Enquanto jogava ia analisando a zona luminosa que indicava os prémios. O primeiro conto esgotou-se num instante. Tive prémios de pouca monta. Era uma entrada de cordeiro. Oxalá o provérbio se concretizasse. Mas a continuar assim ia cedo para casa. Bati forte no rebordo metálico da gaveta com o segundo rolo no metal e as moedas caíram no fundo. Gostei do ruído.
«Vamos a isto!»
Estava já a falar alto para o éter. Tinha que manter a calma. A máquina podia ter software de inteligência artificial. Não devia jogar depressa. E, de vez em quando, fazer cair no tabuleiro/gaveta os poucos prémios que ganhava. Depois, era preciso esperar um pouco, a coisa mais difícil de fazer. Jogar à maneira clássica. Puxar a alavanca para a frente, como quem tirava um café expresso. 
«Papel!» 
Já era a terceira vez que ouvia alguém dizer em voz bem alta a palavra "papel" e tal intrigou-me. Descobri o seu significado quando vi aproximar-se um empregado do jogador responsável pela voz. Muito simples. O jogador esgotara as fichas e trocava notas por rolos com as fichas que o empregado trazia num tabuleiro. Era prático. Escusava de ir ao balcão. Quanto menos tempo perdesse a jogar mais gastava. Um sistema ardiloso. 
Pareceu-me que tudo se modificou com a tática de puxar a alavanca. A sorte parecia sorrir. Sempre que tirava um prémio igual ou superior a quinze fichas de cinquenta escudos carregava num botão para fazer cair as fichas. Além de gostar de ouvir a queda das fichas metálicas que batiam no fundo da gaveta, pensava que podia estar a enganar o danado do software da máquina. Uma boa estratégia de ataque ao dinheiro do casino, embora não passasse de uma gota de água naquele oceano turbulento com monstros artificiais de múltiplos tentáculos invisíveis. Sim. Definitivamente dava a entender, se a máquina tivesse sido programada para analisar se estava em presença de um principiante ou de um amador, que era mesmo um novato pois os viciados gostavam de acumular os créditos e carregavam poucas vezes no botão. E os novatos, dizia-se, ganhavam sempre da primeira vez. Portanto estava a comportar-me como um novato. Talvez a sorte me sorrisse.
E quais eram as vantagens para os jogadores inveterados jogarem daquela forma tão stressante?
Não sabia se havia vantagens. O certo é que jogavam mais vezes com a máquina porque o intervalo entre duas jogadas era encurtado.
Desvantagens?
Claro que perdiam mais. Além disso, aquele sistema de jogo já não estava em conformidade com os tempos do jogo clássico com fichas de vinte e cinco tostões e cinco escudos.
Uma vez, ainda no tempo em que os jogadores iam engravatados, ganhei um saboroso jackpot de quatrocentos escudos. Nesse tempo o automatismo estava ainda na idade da pedra e tudo era barulho, desde o cair das moedas até ao puxar da alavanca, coisa que agora se fazia premindo um botão. Adiante. Já escrevi isso atrás. Mas também aquela máquina poderia estar programada para aliciar os novatos. Era outra hipótese a ter em conta. Dúvida por dúvida, talvez fosse melhor alternar. E assim fiz. Fui alternando. Ora um processo, ora outro.
A principio não entendi bem o porquê de um certo prémio. Depois de ter olhado três ou quatro vezes para o placard luminoso lá fiquei esclarecido. O prémio máximo era de 2500 moedas. Quem me dera! 
E o "oito" preto, que mais parecia uma bola do totoloto?
Ainda por cima um oito! Tentei entender no curto espaço de tempo utilizado. Jogava oito vezes de graça. Era isso. Oito vezes.
Quando apareceu o "oito" no espaço da direita, fiquei na dúvida. Tive um prémio na terceira jogada e o sistema normalizou-se. Só percebi à segunda vez. Era simples. Havia sempre um prémio e o limite para prémio eram oito jogadas. à última jogada, saísse o que saísse, era o valor do prémio.
A máquina continuou a dar prémios interessantes. Sessenta, cento e vinte fichas. Nada mau. E aí vinha mais um prémio de cento e vinte fichas. Aí, suspendi o jogo e pus-me a pensar. Talvez não fosse má ocasião para abandonar a máquina. 
Os meus olhos?, mas o que tinham os meus olhos? 
Deviam estar estranhos para eu próprio sentir. Era o reflexo da sobrecarga de uma zanga com a minha companheira. Tinha ficado fora de mim. Para não explodir, decidi sair para desanuviar. Pouco passava das nove da noite. Onde ir? Ao casino. E fui mesmo.
Resolvi jogar mais um pouco. Entretanto, o indivíduo que estava à minha direita recolheu todo o capital em crédito e saiu com um saco de plástico cheio de fichas. Não conseguia adivinhar quanto tinha gasto ao todo. Quase logo a seguir o lugar vazio foi ocupado por uma mulher. A julgar pelos maços de fichas que ia batendo regularmente nos bordos da gaveta, o jogo não lhe corria bem.
Ao mesmo tempo, o seu azar coincidiu com a sorte que começou a estar comigo.
Mas abandonava ou não o jogo?
Novo "oito" para bónus. Não sei se foi nesse momento. O certo é que dei comigo a olhar para o écran da máquina que entretanto mostrava qualquer coisa em que não queria acreditar. Dois setes e uma marca à direita que identifiquei como o dobro. Mas aquilo era o prémio máximo. O duplo jackpot! 
Julgando que estava a sonhar perguntei à mulher do lado. Olhou para mim e não me deu resposta. Via-se que ela estava danada com a minha sorte. A frequência do batimento dos rolos era prova evidente que estava a perder muito dinheiro. Mas que diabo! Podia ter um pouco de desportivismo. Como aconteceu com o indivíduo à minha esquerda que ouviu também a pergunta.
Levantou­-se, sorriu e indicou-me que acabava de ganhar nada mais nada menos que cento e vinte e cinco contos. Precisamente o prémio máximo! Bem me parecia que não estava sonhando.
Mas era tudo muito estranho! Continuava calmo. Com o mesmo olhar frio. 
«Ainda bem.» Foi o desabafo do homem.
Estava de novo sentado e assim continuou, jogando e perdendo. Aquele "ainda bem" era uma espécie de revolta contra as máquinas e o sistema, frio e demolidor, que estava por detrás e que levara já tanta gente à miséria e, nalguns casos, aos limites do gosto de viver. Ele queria dizer que, embora não lhe tivesse acontecido, era bom ter acontecido a outro. Tudo o que fosse contra os donos da máquina e o próprio Estado, que arrecadava nos seus cofres uma boa maquia diária, era bom.
Quando deu o prémio, a máquina não fez o mínimo ruído. Ao contrário do que acontecia antes, em que "festejava" ruidosamente com o sortudo.
Olhei então para cima. Conforme já sabia, no topo da máquina havia um pequeno cilindro com duas ou três listas de tons diferentes. Era o 625. Acendia-se uma luz quando se chamava o empregado quando havia uma avaria. Naquele momento a luz piscava, silenciosa. Fiquei à espera. Pouco depois apareceu um empregado.
«Parabéns.» Disse, ao mesmo tempo que comunicou com a central.
«Obrigado.»
Era impressionante a minha calma. Mais parecia um jogador profissional, daqueles já habituados a ganhar e a perder.
Cinco minutos volvidos surgiram dois empregados. Um trazia o dinheiro numa pequena bandeja. O outro vinha com uns papéis azulados numa das mãos.
«Pode ser em cheque?»
«Só para importâncias superiores a mil contos.»
«Ah!»
Estava-se mesmo a ver. Pergunta de principiante.
Não me sentia minimamente nervoso. O meu receio tinha outro fundamento. Podia acontecer qualquer coisa lá fora. O meu carro estava estacionado longe do casino.
Não conferi o dinheiro. Vi só que tinha notas de dez contos e de dois. Gratifiquei com dois contos.
Parvo. Um conto bastava. Ou menos. Nas mesmas condições havia quem nada desse.
«Muito obrigado. E boa sorte na continuação do jogo.»
«Vou mas é já para casa.» Disse, sorrindo. 
O empregado também sorriu, como quem concordava comigo. Vivia do sistema mas não queria dizer que fosse indiferente à desgraça de muita gente.
Meti o dinheiro na algibeira e afastei-me da máquina 625 e dos dois jogadores. A invejosa e o conformado. Desejei só boa sorte para o conformado.
Ainda dei uma volta pela enorme sala onde as máquinas continuavam a ronronar e sempre a engolir dinheiro, insaciáveis, frias, distribuindo, às vezes, prémios dentro dos limites mínimos determinados pelos programas infalíveis que as controlavam.
Naquela noite acontecera magia, vá lá saber porquê!
Pouco passava de onze quando cheguei a casa. A minha companheira estava na cozinha a limpar a loiça. 
«Fui ao casino e ganhei, Anabela.» 
Nem sequer olhou para mim. Ainda não era altura para fazermos as pazes. Talvez quando estivéssemos na cama.

As idas ao casino iriam continuar, mas com intervalos de dois, três meses. Ganhando e perdendo. Mas impedindo sempre que o vício tomasse conta de mim.  

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