Agachados numa rua de piso em terra batida, dois rapazes jogam com berlindes vulgares, de brilho baço, obtidos de um processo simples que é o estilhaçar de pirolitos numa fábrica, provocado pelo excesso de gás que foi injetado na garrafa.
«Sujas. S...limpas!» exclama um deles.
E logo alisa o chão antes que o outro refile.
«Que olhar é esse o teu, Mário? Fui eu quem disse primeiro!»
O “abre-te Sésamo” para melhorar a qualidade do jogo. O termo "sujas", significava dificultar o jogo ao adversário, não o deixando mexer no terreno para o alisar. "Limpas", dito em primeiro lugar pelo jogador, significava este poder desobstruir o acesso berlinde do adversário. Isto é, tornar mais limpo o terreno e pronto a melhorar a hipótese de êxito. Mas "slimpas" nada significava, senão no pensamento do trapalhão do amigo.
«Disseste "sujas e limpas". É um bom truque. Dá para tudo.»
«Vá lá... perdoa-me desta vez. Bem sabes que me atrapalhei.»
«Joga.» Disse simplesmente.
«Posso limpar?»
O Mário, coração de pombo, calou-se. Quem calava consentia.
«Mas despacha-te.»
Com o berlinde à distância de menos de três palmos, a jogada que se impunha era feita com recorrência aos dedos das duas mãos. Então o Armando segurou o berlinde com o indicador e o polegar da mão esquerda bem levantados, apoiando o mindinho na areia amachucada. Depois, fez pontaria e usou o dedo médio da mão direita para atirar o berlinde. Este partiu como um bólide para uma curta viagem de bom augúrio.
«Acertei!»
«Que sorte a tua!»
«Está bem. Mas deves-me um berlinde.»
«E vocês devem-me todos os berlindes que têm.»
Sobressaltado, o Mário virou-se para trás. Pela modificação brusca no seu semblante, certamente visionou um monstro pré-histórico ou assim. Quis convencer-se que o medo não existia. A sua espada feita de aço do mais puro, abençoada pelo lendário Merlin, mago, profeta, conselheiro e grão-druida do rei Artur, ia cortar o monstro em fatias. Ó se ia! Só o Tarzan, o homem-macaco, teria feito melhor. Para tal, puxava de uma seta e retesava o arco. Muito fácil. A seta partia, certeira como era costume. O herói do "Diabrete" [1] nunca falhava o alvo.
Mas naquele dia nada resultava, pelo que tentou levantar-se para ensaiar a fuga.
«O Orelhudo!» deixou escapar o Armando.
Ele próprio. Sem qualquer influência vinda da banda desenhada. Mais arrogante do que nunca, o inimigo número um dos dois amigos tinha as mãos na cintura e gargalhava alarvemente.
«Temos umas certas contas a ajustar, senhor Mário! Hoje não trazes o teu guarda-costas? Pois não, já vi. Mau para ti. Vamos ajustar contas e é já.»
O Mário olhou em volta. Era verdade, Infelizmente o seu amigo Sérgio não estava presente.
«E o teu companheiro de jogo pisgou-se logo. Que rico amigo tu foste arranjar!»
Pois foi. O Armando Slimpas deu logo à sola...
«O Sérgio deve estar a chegar.»
«Conta-me histórias que eu gosto.»
«Dou-te... dou-te todos os berlindes!»
Permanecia de cócoras. Tentava engendrar um novo plano, já que aquela história do Merlin e a do Tarzan tinham saído furadas. Não passavam de heróis das revistas aos quadradinhos.
«Então deixa cá ver...»
Esboçou levantar-se.
«Quieto. Não te levantes.»
E empurrou-o para o chão com um simples toque no ombro.
Rebuscou nos bolsos das calças. Primeiro no direito, depois no esquerdo. Cinco berlindes ao todo. Mais os dois que estavam no chão.
«São sete.» Disse a medo.
«Vê melhor.»
«Já disse que são sete.»
«São poucos, mas dá cá» ordenou. «E não te escapas de uma sova. Bem sabes que os berlindes não chegam para pagar a minha bilha que me partiste a semana passada. Estavas protegido pelo panilas do Sérgio.»
«O Sérgio não é panilas!»
«Cala-te. Quem fala de poleiro sou eu, não sabes? Prepara-te que vais levar nas lonas. Ou eu não me chame Emílio...»
«Tenho um abafador valioso lá em casa.» Disse a medo.
Achou por bem ganhar tempo.
«E eu tenho o coração. Que queres dizer?»
«Tens o coração contigo?»
Voltou a gargalhar.
«Claro que sim. Olha...»
«Vá lá... perdoa-me desta vez. Bem sabes que me atrapalhei.»
«Joga.» Disse simplesmente.
«Posso limpar?»
O Mário, coração de pombo, calou-se. Quem calava consentia.
«Mas despacha-te.»
Com o berlinde à distância de menos de três palmos, a jogada que se impunha era feita com recorrência aos dedos das duas mãos. Então o Armando segurou o berlinde com o indicador e o polegar da mão esquerda bem levantados, apoiando o mindinho na areia amachucada. Depois, fez pontaria e usou o dedo médio da mão direita para atirar o berlinde. Este partiu como um bólide para uma curta viagem de bom augúrio.
«Acertei!»
«Que sorte a tua!»
«Está bem. Mas deves-me um berlinde.»
«E vocês devem-me todos os berlindes que têm.»
Sobressaltado, o Mário virou-se para trás. Pela modificação brusca no seu semblante, certamente visionou um monstro pré-histórico ou assim. Quis convencer-se que o medo não existia. A sua espada feita de aço do mais puro, abençoada pelo lendário Merlin, mago, profeta, conselheiro e grão-druida do rei Artur, ia cortar o monstro em fatias. Ó se ia! Só o Tarzan, o homem-macaco, teria feito melhor. Para tal, puxava de uma seta e retesava o arco. Muito fácil. A seta partia, certeira como era costume. O herói do "Diabrete" [1] nunca falhava o alvo.
Mas naquele dia nada resultava, pelo que tentou levantar-se para ensaiar a fuga.
«O Orelhudo!» deixou escapar o Armando.
Ele próprio. Sem qualquer influência vinda da banda desenhada. Mais arrogante do que nunca, o inimigo número um dos dois amigos tinha as mãos na cintura e gargalhava alarvemente.
«Temos umas certas contas a ajustar, senhor Mário! Hoje não trazes o teu guarda-costas? Pois não, já vi. Mau para ti. Vamos ajustar contas e é já.»
O Mário olhou em volta. Era verdade, Infelizmente o seu amigo Sérgio não estava presente.
«E o teu companheiro de jogo pisgou-se logo. Que rico amigo tu foste arranjar!»
Pois foi. O Armando Slimpas deu logo à sola...
«O Sérgio deve estar a chegar.»
«Conta-me histórias que eu gosto.»
«Dou-te... dou-te todos os berlindes!»
Permanecia de cócoras. Tentava engendrar um novo plano, já que aquela história do Merlin e a do Tarzan tinham saído furadas. Não passavam de heróis das revistas aos quadradinhos.
«Então deixa cá ver...»
Esboçou levantar-se.
«Quieto. Não te levantes.»
E empurrou-o para o chão com um simples toque no ombro.
Rebuscou nos bolsos das calças. Primeiro no direito, depois no esquerdo. Cinco berlindes ao todo. Mais os dois que estavam no chão.
«São sete.» Disse a medo.
«Vê melhor.»
«Já disse que são sete.»
«São poucos, mas dá cá» ordenou. «E não te escapas de uma sova. Bem sabes que os berlindes não chegam para pagar a minha bilha que me partiste a semana passada. Estavas protegido pelo panilas do Sérgio.»
«O Sérgio não é panilas!»
«Cala-te. Quem fala de poleiro sou eu, não sabes? Prepara-te que vais levar nas lonas. Ou eu não me chame Emílio...»
«Tenho um abafador valioso lá em casa.» Disse a medo.
Achou por bem ganhar tempo.
«E eu tenho o coração. Que queres dizer?»
«Tens o coração contigo?»
Voltou a gargalhar.
«Claro que sim. Olha...»
E mostrou-lhe um berlinde transparente de grandes dimensões que tinha no interior algo parecido com um coração.
«Ah! É bonito.»
«Mas o que querias dizer entretanto...?»
Foi cauteloso.
«É sobre o abafador.»
«Ah!»
«É mais poderoso que o contra-mundo. Veio da América. Trouxe-o o pai do Conto e Quinhentos. Ganhei-o ao jogo da pedra. Foi canja. Ele é um grande nabo no jogo da pedra.»
«Não quero saber dessas merdas para nada. Quanto ao abafador, vê-se mesmo que estás a mentir...»
«Juro que não, Orelhudo.»
O que foi dizer!
O Emílio ficou muito sério a olhar para o Mário. Agora parecia mesmo o tal monstro que julgara ter visto minutos atrás. Que outra arma podia usar?
Demasiado tarde. O inimigo estava irado. Verdadeiramente irado.
«Repete lá que não percebi essa. Disseste...?»
«Desculpa, Emílio. Tu até não tens orelhas grandes. Há quem as tenha maiores. Sei de um. Conheces o Serafim Orelhudo?»
Demorou a responder.
«Quem é esse gajo?»
«Não me digas que não conheces o terror mais recente do Castelo.»
«Uhm! Tenho que fazer uma visita ao Castelo com o Joel e o Cagão.»
«É natural que não o conheças. Veio há uma semana da América.»
«Também ele?»
«E trouxe o abafador.»
Pata na poça.
«Então não foi o cabrão do “Conto”?»
«Conto e Quinhentos.»
«Ou isso.»
«É verdade, foi ele. Conheces o relógio que o pai lhe deu e que também veio da América?»
Impacientou-se.
«Quero ver a merda desse abafador do outro mundo e é para já. Entramos os dois pelo portão, eu fico no quintal e entretanto tu vais buscá-lo a casa.»
Complicação do caraças!
«Olha que o Sérgio pode ver-te!»
«Descansa que o vi sair de carro com os pais e as irmãs. Julgas que sou parvo e ia meter-me na boca do lobo? Fiquei intrigado com esse Serafim Orelhudo. É nome ou alcunha?»
Arte de saber imitar o Pinóquio...
«Nome. Mas, por sinal, ele tem orelhas grandes. Uma espécie de abanos, percebes?»
Ia a dizer “como os teus”, mas travou a tempo.
«Vamos lá então. Toca a marchar à minha frente...»
«Aqui ninguém marcha. Sentido!»
Foi uma ocorrência providencial. Caída do céu. O polícia bigodes!
A árvore tombada, que agora agonizava, era uma testemunha muda de sonhos que viravam de página em cada dia. Não. Não estavam a fazer nada de mal. Um sonho de criança não se desfazia com um grito, com ameaças. Continuaria latente. À espera. Um sonho de criança era o avançar confiante no amanhã.
«Não me ouviram? Eu lhes digo! Toca a descer daí, seus malandrecos!»
E gesticulava, ainda cada vez mais ameaçador. Aumentava de tamanho, crescendo até aos píncaros da folhagem. Não havia possibilidade de fuga. Só o voo. Mário podia erguer-se no ar e fugir daquela presença ruim. Bastava levantar os braços, concentrar-se e transformava-se num deus alado todo-poderoso, a ponto de esquecer a presença do amigo e concentrar-se no poder que emanava do seu interior. Fechou os olhos e sentiu a magia do momento. Lá ia, entre as nuvens invisíveis, levado pelas asas do sonho. Em baixo ficavam as ruínas do jardim. O polícia continuava a crescer, insuflado por uma força desconhecida, mas não conseguia alcançá-lo. Fugia cada a vez para mais longe, braços estendidos e cabeça erguida, banhando-se no fresco da noite. Era bom voar. Tomar o rumo desejado. Ninguém o obrigava a nada. Naquele momento só queria voar. Voar alto, como as aves, acima de tudo. Voar no alto do mundo, no mar invisível da fantasia, sentindo no rosto o frio do ar que aspirava sofregamente. Em baixo, tudo era minúsculo. Avistava as luzes trémulas da vila que pareciam tão insignificantes lá do alto onde ele era dono e senhor. Podia apagá-las com um só um sopro. Se quisesse, deitava por terra o polícia incómodo que agora não passava de um boneco de papelão. Ele, Mário, até tinha mais força que o próprio super-homem.
Foi cauteloso.
«É sobre o abafador.»
«Ah!»
«É mais poderoso que o contra-mundo. Veio da América. Trouxe-o o pai do Conto e Quinhentos. Ganhei-o ao jogo da pedra. Foi canja. Ele é um grande nabo no jogo da pedra.»
«Não quero saber dessas merdas para nada. Quanto ao abafador, vê-se mesmo que estás a mentir...»
«Juro que não, Orelhudo.»
O que foi dizer!
O Emílio ficou muito sério a olhar para o Mário. Agora parecia mesmo o tal monstro que julgara ter visto minutos atrás. Que outra arma podia usar?
Demasiado tarde. O inimigo estava irado. Verdadeiramente irado.
«Repete lá que não percebi essa. Disseste...?»
«Desculpa, Emílio. Tu até não tens orelhas grandes. Há quem as tenha maiores. Sei de um. Conheces o Serafim Orelhudo?»
Demorou a responder.
«Quem é esse gajo?»
«Não me digas que não conheces o terror mais recente do Castelo.»
«Uhm! Tenho que fazer uma visita ao Castelo com o Joel e o Cagão.»
«É natural que não o conheças. Veio há uma semana da América.»
«Também ele?»
«E trouxe o abafador.»
Pata na poça.
«Então não foi o cabrão do “Conto”?»
«Conto e Quinhentos.»
«Ou isso.»
«É verdade, foi ele. Conheces o relógio que o pai lhe deu e que também veio da América?»
Impacientou-se.
«Quero ver a merda desse abafador do outro mundo e é para já. Entramos os dois pelo portão, eu fico no quintal e entretanto tu vais buscá-lo a casa.»
Complicação do caraças!
«Olha que o Sérgio pode ver-te!»
«Descansa que o vi sair de carro com os pais e as irmãs. Julgas que sou parvo e ia meter-me na boca do lobo? Fiquei intrigado com esse Serafim Orelhudo. É nome ou alcunha?»
Arte de saber imitar o Pinóquio...
«Nome. Mas, por sinal, ele tem orelhas grandes. Uma espécie de abanos, percebes?»
Ia a dizer “como os teus”, mas travou a tempo.
«Vamos lá então. Toca a marchar à minha frente...»
«Aqui ninguém marcha. Sentido!»
Foi uma ocorrência providencial. Caída do céu. O polícia bigodes!
A árvore tombada, que agora agonizava, era uma testemunha muda de sonhos que viravam de página em cada dia. Não. Não estavam a fazer nada de mal. Um sonho de criança não se desfazia com um grito, com ameaças. Continuaria latente. À espera. Um sonho de criança era o avançar confiante no amanhã.
«Não me ouviram? Eu lhes digo! Toca a descer daí, seus malandrecos!»
E gesticulava, ainda cada vez mais ameaçador. Aumentava de tamanho, crescendo até aos píncaros da folhagem. Não havia possibilidade de fuga. Só o voo. Mário podia erguer-se no ar e fugir daquela presença ruim. Bastava levantar os braços, concentrar-se e transformava-se num deus alado todo-poderoso, a ponto de esquecer a presença do amigo e concentrar-se no poder que emanava do seu interior. Fechou os olhos e sentiu a magia do momento. Lá ia, entre as nuvens invisíveis, levado pelas asas do sonho. Em baixo ficavam as ruínas do jardim. O polícia continuava a crescer, insuflado por uma força desconhecida, mas não conseguia alcançá-lo. Fugia cada a vez para mais longe, braços estendidos e cabeça erguida, banhando-se no fresco da noite. Era bom voar. Tomar o rumo desejado. Ninguém o obrigava a nada. Naquele momento só queria voar. Voar alto, como as aves, acima de tudo. Voar no alto do mundo, no mar invisível da fantasia, sentindo no rosto o frio do ar que aspirava sofregamente. Em baixo, tudo era minúsculo. Avistava as luzes trémulas da vila que pareciam tão insignificantes lá do alto onde ele era dono e senhor. Podia apagá-las com um só um sopro. Se quisesse, deitava por terra o polícia incómodo que agora não passava de um boneco de papelão. Ele, Mário, até tinha mais força que o próprio super-homem.
«Que estavam a fazer ali em cima?»
(1) Uma revista de banda desenhada antiga que deu mais lugar ao "Cavaleiro Andante" já do tempo do Mário.
(2) Os verdes anos de Mário contador de histórias - "O conto e quinhentos"
(3) Os verdes anos de Mário contador de histórias - "Orelhudo, ladrão encartado de berlindes"
O ar do polícia bigodes já não era aterrador. Tinha-os reconhecido.
«Já dissemos, senhor guarda. Nada de mal. O Mário estava a contar-me as histórias do Comico.»
«Uhm! E quem é esse Comico?»
«É um jardineiro. Rimos muito das suas trafulhices. Além de calão, é muito desajeitado. Estão sempre a acontecer-lhe coisas anedóticas. Se ele não existisse tinha que ser inventado. Imagine que há dias caiu num buraco. Nem mais nem menos. Disfarçou bem. Pôs-se logo, lá no fundo do buraco, a cavar com um ancinho. O Mário é que viu. Que cena das antigas!»
«Não percebo patavina, mas adiante. Estava só a brincar convosco. Conheço muito bem os vossos pais. Subam outra vez para o cimo do tronco, mas com cuidado. E continuem com essas histórias. Enquanto estão distraídos não se lembram de fazer disparates.»
«O Orelhudo roubou-me todos os berlindes , senhor guarda.»
O visado levou as mãos aos bolsos. De repente tudo mudou. Agora movia-se em terreno pantanoso, movediço. Portanto, perigoso. Tinha que ter muito cuidado.
«Eu não roubei nada. Ele é que roubou o abafador ao Serafim Orelhudo que mora no Castelo!»
«Uhm! O Serafim Orelhudo. Não conheço ninguém com esse nome que more no Castelo.» Disse o polícia.
«Veio da América há uma semana.»
«Então é isso. E onde está esse berlinde abafador, Mário?»
Sorriu com ar mais inocente do mundo.
«A única verdade é que ele roubou-me os berlindes todos. O tal Serafim e o abafador não existem nem nunca existiram. Só serviram para ganhar tempo porque o brutamontes queria bater-me.»
O polícia virou-se para o "ladrão encartado de berlindes" (3), apontando o indicador acusador.
O Emílio, mergulhado na areia movediça até à cintura, concluiu de imediato que devia contar a verdade e só a verdade.
«Ele há dias partiu-me a bilha com uma pedrada. Ia a passar na várzea e ele, zás, partiu-me a bilha com uma pedra porque tinha as costas quentes. O Sérgio estava com ele. Cheia de água, senhor guarda. A bilha estava cheia de água. E então agora vinguei-me. Vai daí, tirei-lhe os berlindes.»
«Eu não parti bilha nenhuma!»
A arte de saber mentir tão bem como o Pinóquio e sem o nariz crescer.
«Acalma-te, Mário. Mas quem é esse Sérgio?»
«É um amigo mais velho muito fixe. Protege-me.»
«Está tudo esclarecido com bilha ou sem bilha. Vá, dá os berlindes ao rapaz e ficamos por aqui. Porque estou bem disposto, sabes, Orelhudo?»
«Eu chamo-me Emílio, senhor guarda.»
«Ou isso. Tanto faz para o caso.»
Sentiu-se o maior porque já dominava a situação.
«Não é a primeira vez que me rouba os berlindes e também ao Armando. É ruim como as cobras. Peçonhento.»
«Pronto, Mário. Chega. Ele está a dar-te os berlindes.»
«São sete. Toma.» Disse o Emílio.
«Sete? Ele tem mais nos bolsos, senhor guarda!»
O bigodes voltou-se para o ladrão encartado de berlindes.
«Todos. Ouviste?»
«Mas...»
«Depressa que estou a perder a paciência...»
«E tem um abafador no bolso de trás. O coração.»
«Agora é ele o ladrão!» desabafou o Emílio.
Sorriu para o polícia. Entretanto o Orelhudo rebuscava no bolso de trás das calças.
«Pronto. O abafador. E que mais ainda? Não me vou esquecer deste dia, não...»
«Tens razão... ainda há mais. Senhor guarda...»
«Diz lá, Mário.»
«Acho que ele tem uma fisga escondida dentro da camisa.»
«É verdade?»
Enterrado até ao pescoço. Baixou os olhos, completamente rendido.
«Com que então uma fisga. Dá cá, meu menino.»
Até parecia que o Mário era bruxo. Sempre havia uma fisga escondida dentro da camisa do Emílio.
«Ala que se faz tarde, Orelhudo.»
«Não me chamo Orelhudo. Sou o Emílio. Aonde vamos, senhor guarda»
«Está bem, chamas-te Emílio. Se não te importas vamos até à esquadra para termos uma conversinha.»
Só então o Slimpas aproximou-se do amigo. O perigo já morava longe.
«Então?»
«O gajo vai levar para contar. E ainda por cima deixou-me os berlindes que tinha consigo. Até este coração...»
«Boa! Conta-me como foi, pá...»
«E tu deste à sola. Grande amigo que tenho. Toma os dois berlindes. O teu e o que ganhaste. Não me esqueci.»
«Só?»
«Se fizeres a cara da velha levas mais um.»
Acordo selado. O Armando Slimpas tirou do bolso dos calções um lenço muito ranhoso que pôs de imediato em volta da cabeça e dispôs-se a fazer, pela milésima vez, a cara da velha...
Um salto para o futuro...
O Mário continua concentrado no centro das histórias e prepara-se para fazer saltar para a ribalta uma personagem que marcou uma época ainda, esta ainda na sua juventude..
O seu primeiro amor, uma flor que desabrochou e quase a seguir morreu, é e será sempre um marco importante na sua vida. Nunca a irá esquecer. Sente uma infinita saudade, mas esta quase é ofuscada por uma dúvida obsessiva sobre o motivo da sua relação com a Manuela ter sido tão curta e mal conseguida.
Agora (quantos são hoje?) vão seguir-se novas encruzilhadas até que nada tenham a ver com a fogosidade própria da juventude e que vão culminar com um amor calmo que será aquecido pelo último tição a consumir-se lentamente na lareira. É o crepúsculo que chega. Mas isso é já futuro. Não é chamado para os verdes anos do Mário.
Nova alteração no tecido do espaço-tempo...
Enquanto espera pelo Armando Slimpas, entretêm-se a jogar com dois berlindes tirados dos pirolitos. O junho chegou ao fim e com ele a feira tradicional que se realiza na várzea. Quanto aos berlindes achou-os na feira, no sítio onde esteve uma barraca de comes e bebes.
«Que estás a fazer no meio da rua, Marinho?»
«Olá, Paulito. Sempre voltaste da Austrália. Bem me disse a tua tia que voltavas num destes dias. Até já estava admirada com a tua demora.»
«Já sabes como ela é. Cuidou de mim em miúdo, até aos seis anos. Olha uma coisa?»
«Diz, Paulito.»
«Ainda atiras os gatos pela varanda abaixo?»
Corou de vergonha.
«Claro que não. Gosto muito de gatos. O Tarzan ainda joga comigo com as bolas de pingue-pongue que vêm nas caixas da Farinha Amparo que o teu tio vende na mercearia. É um gato muito inteligente. Joga a guarda-redes.»
«O meu tio que tem a mercearia?»
«Não. O Tarzan, porra!»
«E a tua mãe não te põe pimenta na língua?»
«Ora, Paulito. Estamos a falar de homem para homem.»
«Ah, pois.»
«Bom, é quase assim.»
O Paulito, amigo da Austrália, achou por bem mudar de assunto.
«Olha, trouxe-te uma coisa.»
«És fixe. Que coisa?»
Fez-lhe um gesto, ao mesmo tempo que sorria. A seguir voltou costas e saiu da rua na direção do passeio. O Marinho viu-o entrar na porta do prédio em frente.
«Que será? De certeza que não é um canguru.» Pensou.
E continuou a brincar com os dois berlindes.
«O Armando nunca mais chega!»
«Mas cheguei eu.»
Reconheceu a voz e não era a do Paulito.
«Orelhudo!»
«Diz outra vez!»
«Desculpa, Emílio. Assustei-me.»
Outra vez o ladrão dos berlindes...
«Bom, por esta passas. Mas os berlindes é que não. E estes estão novinhos em folha. Onde os encontraste?»
«Junto a uma barraca da feira.»
«Ah, deixa-me vê-los ao perto.»
«Não!»
«Não?»
«Bom, mas têm dono.»
E estendeu-lhe o braço com os dois berlindes.
«De facto eles estão novos. Tens mais?»
Não esperou pela resposta do miúdo e agarrou-o com força.
«Em que bolso estão?»
O Marinho não respondeu, mas a reação do Orelhudo foi convincente.
«Bruto! Pronto, só tenho mais dois. Se me largares, dou-tos.»
«Então vamos a isso.»
«Meus ricos berlindes!» lamentou-se o Marinho, num sussurro.
Por sorte, nesse momento chegou o Paulito.
«Que se passa aqui, Emílio?»
«Estás cá, Paulito? Não sabia...»
«Não. Não estou. É o meu fantasma.»
«Então?»
«Não vês que é o meu fantasma, cretino? E de quem são esses berlindes que tens nas mãos?»
Ao mesmo tempo que fez a pergunta tinha cerrado um punho. Então o Marinho imaginou que ele ia dar um soco na cara do Emílio.
«São meus. Encontrei-os na feira.»
«Mentiroso! Ele roubou-me os berlindes, Paulito!»
«Abafei-os com o caracol.»
E retirou do bolso das calças o abafador.
«Mostra lá, para ver se é o caracol. Parece-me mais o coração, sabes?»
«É o caracol! Estás cegueta, ó quê?»
Como resposta levou um carolo no alto da cabeça.
«Ai!»
Já com o abafador nas mãos, virou-o e revirou-o.
«Alguma vez viste o universo?»
«Só ouvi falar dele.»
«Então, olha...»
Abriu a mão e mostrou-lhe o berlinde.
«Ah! É bonito.»
«Um dois três abafador. Não há berlinde no mundo com mais poder que este.»
«Eu... eu sei.»
«E agora some-te daqui antes que me passe uma coisa esquisita pela cabeça...»
Incrível o que aconteceu! O Paulito chegou, disse, atacou, voltou a dizer e o Orelhudo foi-se à sua vida.
«Obrigado, amigo Paulito.»
«É para isto que servem os amigos. E pega lá no universo. É para ti. Bem como o caracol.
«Sempre é o caraco?»
«Sim. Gozei com ele. Era só para o baralhar.»
E foi assim que o Marinho ficou na posse do abafador mais poderoso do mundo.
«Já dissemos, senhor guarda. Nada de mal. O Mário estava a contar-me as histórias do Comico.»
«Uhm! E quem é esse Comico?»
«É um jardineiro. Rimos muito das suas trafulhices. Além de calão, é muito desajeitado. Estão sempre a acontecer-lhe coisas anedóticas. Se ele não existisse tinha que ser inventado. Imagine que há dias caiu num buraco. Nem mais nem menos. Disfarçou bem. Pôs-se logo, lá no fundo do buraco, a cavar com um ancinho. O Mário é que viu. Que cena das antigas!»
«Não percebo patavina, mas adiante. Estava só a brincar convosco. Conheço muito bem os vossos pais. Subam outra vez para o cimo do tronco, mas com cuidado. E continuem com essas histórias. Enquanto estão distraídos não se lembram de fazer disparates.»
«O Orelhudo roubou-me todos os berlindes , senhor guarda.»
O visado levou as mãos aos bolsos. De repente tudo mudou. Agora movia-se em terreno pantanoso, movediço. Portanto, perigoso. Tinha que ter muito cuidado.
«Eu não roubei nada. Ele é que roubou o abafador ao Serafim Orelhudo que mora no Castelo!»
«Uhm! O Serafim Orelhudo. Não conheço ninguém com esse nome que more no Castelo.» Disse o polícia.
«Veio da América há uma semana.»
«Então é isso. E onde está esse berlinde abafador, Mário?»
Sorriu com ar mais inocente do mundo.
«A única verdade é que ele roubou-me os berlindes todos. O tal Serafim e o abafador não existem nem nunca existiram. Só serviram para ganhar tempo porque o brutamontes queria bater-me.»
O polícia virou-se para o "ladrão encartado de berlindes" (3), apontando o indicador acusador.
O Emílio, mergulhado na areia movediça até à cintura, concluiu de imediato que devia contar a verdade e só a verdade.
«Ele há dias partiu-me a bilha com uma pedrada. Ia a passar na várzea e ele, zás, partiu-me a bilha com uma pedra porque tinha as costas quentes. O Sérgio estava com ele. Cheia de água, senhor guarda. A bilha estava cheia de água. E então agora vinguei-me. Vai daí, tirei-lhe os berlindes.»
«Eu não parti bilha nenhuma!»
A arte de saber mentir tão bem como o Pinóquio e sem o nariz crescer.
«Acalma-te, Mário. Mas quem é esse Sérgio?»
«É um amigo mais velho muito fixe. Protege-me.»
«Está tudo esclarecido com bilha ou sem bilha. Vá, dá os berlindes ao rapaz e ficamos por aqui. Porque estou bem disposto, sabes, Orelhudo?»
«Eu chamo-me Emílio, senhor guarda.»
«Ou isso. Tanto faz para o caso.»
Sentiu-se o maior porque já dominava a situação.
«Não é a primeira vez que me rouba os berlindes e também ao Armando. É ruim como as cobras. Peçonhento.»
«Pronto, Mário. Chega. Ele está a dar-te os berlindes.»
«São sete. Toma.» Disse o Emílio.
«Sete? Ele tem mais nos bolsos, senhor guarda!»
O bigodes voltou-se para o ladrão encartado de berlindes.
«Todos. Ouviste?»
«Mas...»
«Depressa que estou a perder a paciência...»
«E tem um abafador no bolso de trás. O coração.»
«Agora é ele o ladrão!» desabafou o Emílio.
Sorriu para o polícia. Entretanto o Orelhudo rebuscava no bolso de trás das calças.
«Pronto. O abafador. E que mais ainda? Não me vou esquecer deste dia, não...»
«Tens razão... ainda há mais. Senhor guarda...»
«Diz lá, Mário.»
«Acho que ele tem uma fisga escondida dentro da camisa.»
«É verdade?»
Enterrado até ao pescoço. Baixou os olhos, completamente rendido.
«Com que então uma fisga. Dá cá, meu menino.»
Até parecia que o Mário era bruxo. Sempre havia uma fisga escondida dentro da camisa do Emílio.
«Ala que se faz tarde, Orelhudo.»
«Não me chamo Orelhudo. Sou o Emílio. Aonde vamos, senhor guarda»
«Está bem, chamas-te Emílio. Se não te importas vamos até à esquadra para termos uma conversinha.»
Só então o Slimpas aproximou-se do amigo. O perigo já morava longe.
«Então?»
«O gajo vai levar para contar. E ainda por cima deixou-me os berlindes que tinha consigo. Até este coração...»
«Boa! Conta-me como foi, pá...»
«E tu deste à sola. Grande amigo que tenho. Toma os dois berlindes. O teu e o que ganhaste. Não me esqueci.»
«Só?»
«Se fizeres a cara da velha levas mais um.»
Acordo selado. O Armando Slimpas tirou do bolso dos calções um lenço muito ranhoso que pôs de imediato em volta da cabeça e dispôs-se a fazer, pela milésima vez, a cara da velha...
Um salto para o futuro...
O Mário continua concentrado no centro das histórias e prepara-se para fazer saltar para a ribalta uma personagem que marcou uma época ainda, esta ainda na sua juventude..
O seu primeiro amor, uma flor que desabrochou e quase a seguir morreu, é e será sempre um marco importante na sua vida. Nunca a irá esquecer. Sente uma infinita saudade, mas esta quase é ofuscada por uma dúvida obsessiva sobre o motivo da sua relação com a Manuela ter sido tão curta e mal conseguida.
Agora (quantos são hoje?) vão seguir-se novas encruzilhadas até que nada tenham a ver com a fogosidade própria da juventude e que vão culminar com um amor calmo que será aquecido pelo último tição a consumir-se lentamente na lareira. É o crepúsculo que chega. Mas isso é já futuro. Não é chamado para os verdes anos do Mário.
Nova alteração no tecido do espaço-tempo...
Enquanto espera pelo Armando Slimpas, entretêm-se a jogar com dois berlindes tirados dos pirolitos. O junho chegou ao fim e com ele a feira tradicional que se realiza na várzea. Quanto aos berlindes achou-os na feira, no sítio onde esteve uma barraca de comes e bebes.
«Que estás a fazer no meio da rua, Marinho?»
«Olá, Paulito. Sempre voltaste da Austrália. Bem me disse a tua tia que voltavas num destes dias. Até já estava admirada com a tua demora.»
«Já sabes como ela é. Cuidou de mim em miúdo, até aos seis anos. Olha uma coisa?»
«Diz, Paulito.»
«Ainda atiras os gatos pela varanda abaixo?»
Corou de vergonha.
«Claro que não. Gosto muito de gatos. O Tarzan ainda joga comigo com as bolas de pingue-pongue que vêm nas caixas da Farinha Amparo que o teu tio vende na mercearia. É um gato muito inteligente. Joga a guarda-redes.»
«O meu tio que tem a mercearia?»
«Não. O Tarzan, porra!»
«E a tua mãe não te põe pimenta na língua?»
«Ora, Paulito. Estamos a falar de homem para homem.»
«Ah, pois.»
«Bom, é quase assim.»
O Paulito, amigo da Austrália, achou por bem mudar de assunto.
«Olha, trouxe-te uma coisa.»
«És fixe. Que coisa?»
Fez-lhe um gesto, ao mesmo tempo que sorria. A seguir voltou costas e saiu da rua na direção do passeio. O Marinho viu-o entrar na porta do prédio em frente.
«Que será? De certeza que não é um canguru.» Pensou.
E continuou a brincar com os dois berlindes.
«O Armando nunca mais chega!»
«Mas cheguei eu.»
Reconheceu a voz e não era a do Paulito.
«Orelhudo!»
«Diz outra vez!»
«Desculpa, Emílio. Assustei-me.»
Outra vez o ladrão dos berlindes...
«Bom, por esta passas. Mas os berlindes é que não. E estes estão novinhos em folha. Onde os encontraste?»
«Junto a uma barraca da feira.»
«Ah, deixa-me vê-los ao perto.»
«Não!»
«Não?»
«Bom, mas têm dono.»
E estendeu-lhe o braço com os dois berlindes.
«De facto eles estão novos. Tens mais?»
Não esperou pela resposta do miúdo e agarrou-o com força.
«Em que bolso estão?»
O Marinho não respondeu, mas a reação do Orelhudo foi convincente.
«Bruto! Pronto, só tenho mais dois. Se me largares, dou-tos.»
«Então vamos a isso.»
«Meus ricos berlindes!» lamentou-se o Marinho, num sussurro.
Por sorte, nesse momento chegou o Paulito.
«Que se passa aqui, Emílio?»
«Estás cá, Paulito? Não sabia...»
«Não. Não estou. É o meu fantasma.»
«Então?»
«Não vês que é o meu fantasma, cretino? E de quem são esses berlindes que tens nas mãos?»
Ao mesmo tempo que fez a pergunta tinha cerrado um punho. Então o Marinho imaginou que ele ia dar um soco na cara do Emílio.
«São meus. Encontrei-os na feira.»
«Mentiroso! Ele roubou-me os berlindes, Paulito!»
«Abafei-os com o caracol.»
E retirou do bolso das calças o abafador.
«Mostra lá, para ver se é o caracol. Parece-me mais o coração, sabes?»
«É o caracol! Estás cegueta, ó quê?»
Como resposta levou um carolo no alto da cabeça.
«Ai!»
Já com o abafador nas mãos, virou-o e revirou-o.
«Alguma vez viste o universo?»
«Só ouvi falar dele.»
«Então, olha...»
Abriu a mão e mostrou-lhe o berlinde.
«Ah! É bonito.»
«Um dois três abafador. Não há berlinde no mundo com mais poder que este.»
«Eu... eu sei.»
«E agora some-te daqui antes que me passe uma coisa esquisita pela cabeça...»
Incrível o que aconteceu! O Paulito chegou, disse, atacou, voltou a dizer e o Orelhudo foi-se à sua vida.
«Obrigado, amigo Paulito.»
«É para isto que servem os amigos. E pega lá no universo. É para ti. Bem como o caracol.
«Sempre é o caraco?»
«Sim. Gozei com ele. Era só para o baralhar.»
E foi assim que o Marinho ficou na posse do abafador mais poderoso do mundo.
(1) Uma revista de banda desenhada antiga que deu mais lugar ao "Cavaleiro Andante" já do tempo do Mário.
(2) Os verdes anos de Mário contador de histórias - "O conto e quinhentos"
(3) Os verdes anos de Mário contador de histórias - "Orelhudo, ladrão encartado de berlindes"

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