sábado, 13 de maio de 2023

A desconhecida do Picoas Plazza


Mário conta mais uma história. Aconteceu depois de 2004...


T

alvez não seja difícil reconstituir o que aconteceu ao Mário o ano passado numa tarde de verão, embora gostasse mais de ter a versão original porque o caderno onde escrevi este caso desapareceu misteriosamente. Até invoquei o Santo António quando atei um lenço à perna de uma cadeira. Em vão. Não consegui descobrir o raio do caderno. É certo que não li o responso porque não o tinha. Agora que mo deram, não sei porque carga de água desisti da ideia.
Era então a época dos dias longos. Deve ter acontecido entre abril e fins de agosto, no local preferido do Mário na altura. A esplanada do Picoas Plazza, encravada num espaço perfeito, com lojas afreguesadas nos dois pisos, restaurantes, cafés, pizzaria, livraria, tabacaria e, como complemento, muita, muita gente. E também a Odete. Mas isso é outra história que até hoje não conheceu a luz do dia.

Recuemos então na máquina do tempo e foquemos um patusco a resolver exercícios de Matemática (pasme-se) do seu tempo da Faculdade.
Que está a fazer na esplanada, além de tentar resolver os ditos exercícios?
A apanhar calor e a chatear-se como uma pescada fora de água. É caso para dizer que agora os dias são mais longos e também vazios.
Estão a fazer-lhe sinal do balcão. A tosta mista está pronta. Acena com a cabeça e levanta-se para ir buscar a dita tosta e também uma imperial que a empregada colocou sobre um tabuleiro.
Regressa à mesa com uma sensação terrível de água na boca. Os pardais, condóminos do sítio, começaram a executar voos rasantes e a poisar à sua volta, feitos caças que voltaram da guerra. Olham para ele, não por curiosidade, mas à espera de uma migalha de pão. Os mais atrevidos sobem para a mesa. As pessoas das outras mesas continuam, insensíveis, nos seus mundos quase paralelos.
De repente, mesmo antes de consumirem na totalidade a oferenda, os pássaros levantam voo e desaparecem do seu campo de visão.
Que aconteceu?
Não conseguiu descobrir e conclui que nada de especial.
Entretanto chegam notícias. Uma mulher que não conhece pretende ocupar uma mesa pegada à sua, quando há muitas outras disponíveis. Faz um gesto de anuência e só então olha para ela com olhos de ver.
Não é a Odete. Já há muito tempo que não a vê por ali. Muito provavelmente, evita-o. A ideia fá-lo sorrir. Inverteram-se os tempos. Fez tudo e mais que tudo para lhe tirar a Maria dos cabelos soltos ao vento. E conseguiu. Agora pensa que chegou o seu tempo de vingança. Da sua vingança ridícula, o que só dá vontade de rir. Viu sempre nela uma amiga. Mais nada. Embora seja uma mulher interessante, mais nada.
«Nunca deste conta, Odete?»
A mulher já se sentou na mesa pegada à sua e prepara-se para colocar a mala sobre a cadeira ao seu lado e na frente de Mário. Portanto, está a entrar em domínios alheios. Mais precisamente nos seus domínios.
Tem um movimento de recuo. Reconheceu o erro.
«Pode deixar ficar a mala. Estou só.»
«O senhor está só…»
Reminiscência do passado.
«Obrigada.»
Aparenta ter pouco mais de quarenta anos e menos de cinquenta, não é gorda nem magra, o cabelo é curto a atirar para o loiro. Os lábios são carnudos. Os olhos estão tapados por uns óculos escuros. 
Após aquele exame rápido e discreto, Mário chega à conclusão que passou no exame, embora não compreenda o motivo porque foi o examinador. Talvez por isso continuou a olhá-la de soslaio.
Não sendo uma beleza do outro mundo, não era mulher que se deitasse fora, mas não podia deitar fora nem acolher uma mulher que nem sequer conhecia.
Com a sua chegada voltaram à cena dois ou três pardais para beneficiarem de algumas migalhas.
Entretém-se a dar as últimas dentadas na tosta que está cada vez mais saborosa à medida que desaparece do prato. Alguma coisa lhe diz que aquele momento de prazer vai ser interrompido.
Bruxo!
«Estou à espera duma amiga.» Diz ela.
Mário quer diálogo e não quer.
«Ah...»
Consulta o relógio. Tenta ler-lhe o pensamento. Não está a ser bem sucedida na tentativa de tomar de assalto o castelo bem guarnecido.
«Mas ainda é cedo.»
Retira os óculos de lentes escuras do rosto e deposita-os sobre a mesa. De repente lembra-lhe a mulher de vermelho com os seus óculos espelhados e os momentos conturbados que então viveu e que o tempo de hoje já quase apagou. Nada tem a ver com a outra. É inofensiva. A força do olhar perdeu-se com o gesto de desproteger os olhos.
«Perdão...»
A sua companheira de mesa interpelou-o.
Será que falou alto?
Se foi, é perigoso. Os pensamentos ficam a nu.
«Não percebi o que o senhor disse. Parece que falava de olhos, ou coisa parecida.»
«Foi quando tirou os óculos. Mas já não me lembro do que disse. Ah!, é isso. Esses óculos são muito escuros e devem diminuir-lhe a visão na esplanada. A esta hora o sol já não bate nas mesas.»
«Foi por esse motivo que os tirei.»
«Bem me pareceu.»
Definitivamente não é a mulher de vermelho (1). 
Até porque veste calças de ganga azuis e uma t-shirt também azul, de tom mais carregado.
Será alguém que viaja no tempo?
Agasta-se com aquela ideia absurda. Ultimamente tem passado por momentos estranhos.
Voltou a consultar o relógio. Está inquieta. Algo a perturba.
«A sua amiga já deve estar atrasada. Se calhar não vem.»
Está a meter-se onde não é chamado. Vai replicar e pô-lo no lugar.
«Não é isso. Olhei para o relógio só por olhar. Foi um gesto maquinal.»
«Compreendo. Acontece o mesmo comigo. Posso passar mais que uma hora sem olhar para o relógio e depois faço-o duas vezes no intervalo de cinco minutos.»
O assunto pareceu ter-se esgotado. Ficou a cerimónia do arquiteto no prato. Uma nica de tosta. Não sabe porquê mas acontece sempre da mesma maneira. Pena os pássaros não aproveitarem.
É ela quem tenta alimentar a chama antes que Mário volte a mergulhar no mundo silencioso dos números ou então na melancolia circular que o tem atormentado ultimamente. Ela situação permanece desde que a Maria soltou os cabelos ao vento (2).
«Pelo que vejo está a consultar um livro. Posso saber qual é o assunto?»
«Muito agreste» mostra-lhe o livro. «Decerto que não é do seu agrado. Primitivas.»
«Puro gosto ou mais do que isso?»
«Como dizer... sou professor de Matemática.»
«Engraçado! Eu também sou. Agora estou a fazer um trabalho de mestrado.»
«Necessidades de valorização que os tempos correntes impõem. Pediu licença sabática?»
«Certíssimo. Neste momento só quero terminar o mestrado o mais depressa possível e depois ir viver para Espanha.»
«Espanha. Porquê?»
Sorriu, algo embaraçada.
«Tenho lá o meu amor.»
«É espanhol?»
«Alfacinha de gema.»
Achou curiosa aquela revelação. E ele a julgar que se estava a atirar.  Tudo parecia ir nesse sentido. Tinha muitas mesas vagas e veio ocupar a que se ligava à sua. A seguir, meteu conversa, mostrou os olhos (que apreciou), olhou descaradamente para ele, meteu-se na sua vida e isso.
Um amante em Espanha não impedia que procurasse outro em Portugal.

Ai Mário, Mário, já não tens hipótese de emenda! Estás quase sempre a fazer leituras erradas. A desconhecida só quer conversa e até o seu namorado de Espanha pode não existir. Quer conversa, pronto. 
O tempo custa a passar, entendes?
 
O silêncio prolongou-se e aproveitou para arrumar as ideias. Tentando não ser agressivo, procurou que ela não se refugiasse em terrenos de crença.
«Deixemos o seu amor em descanso. Oxalá o reveja o mais depressa possível, tal como deseja. Diga-me uma coisa: está a gostar do seu trabalho?»
«Muito. Muito mais do que julgava. Mas o meu sonho é ir o mais depressa possível para Espanha, onde vive o meu amor.»
Outra vez o seu amor.
«Parece que a sua amiga se demora. Posso oferecer-lhe um café... um sumo?»
«Obrigada. É muito amável. A minha amiga está quase a chegar. Combinámos o encontro às cinco.»
«São cinco e vinte e cinco...»
«O tempo passa a correr.»
Ele que o diga.

«Vou andando para a Bertrand. Ela já deve estar à espera...»
Nada feito. Recuo nítido.
Num gesto mecânico, Mário consulta o relógio. O tempo, que nunca descansa, está a chegar ao fim, a triturar as expectativas criadas pela desconhecida.
Notou indecisão no gesto de se levantar. Ainda quis saber como se sentia com a vida que fazia fora das aulas.

«Tenho sempre um vazio a preencher. Um enorme vazio. Mas sabe... não sou capaz de ficar de braços cruzados. Dou atenção à minha coleção de selos, às histórias que escrevo e às longas caminhadas que me ajudam a pôr as ideias transviadas no sítio. E mais, se for necessário.»
«E a Matemática?»
«É mais um motivo para matar a saudade dos meus tempos de Faculdade. Mas faço-o raramente.»
«É romancista?»

«Escrevo essencialmente contos.»
Mentiu. O escritor era o Ildefonso. Mas não fazia mal. De certeza que ele não se ia zangar.
«Vou andando. Gostaria de ficar mais tempo a falar consigo, mas não posso. Talvez que um dia nos encontremos para falarmos um pouco dos seus contos, quem sabe, ler um ou outro. Vem muitas vezes para aqui?»
«Algumas...»
Levantou-se.
Trocaram um cumprimento selado por um aperto de mão e ficou a vê-la a afastar-se para os lados da Bertrand. Por mais estranho que parecesse não a seguiu até à livraria. Ficou por ali, mais entregue aos seus pensamentos circulares do que aos exercícios de Primitivas. 

(1) A mulher de vermelho
(2) Adeus, utopia

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