terça-feira, 23 de maio de 2023

A lenda da oliveira e da moura encantada


Era uma vez uma oliveira… Ou melhor, uma mulher que se chamava Maria e amava as oliveiras. Tanto ou tão pouco, que talvez noutra encarnação tivesse sido uma oliveira.

Seja como for, parece que tanto a mulher como a oliveira não tinham liberdade.
Este vídeo é dedicado a essa mulher que amava as oliveiras com toda a força do seu coração. 
Um dia… 
Mas isso é outra história que contaram ao Mário. Ou talvez não tivesse sido bem assim que aconteceu. Parece que ele conheceu a Maria. 








A lenda da oliveira e da moura encantada


Como em todas as histórias fantásticas de bruxas, duendes, princesas, vizires e mouras encantadas...


...era uma vez uma oliveira frondosa, abençoada pela força da vida. Aparentemente vivia feliz com o destino que o Criador lhe dera. Nem só os humanos queriam sempre o que não tinham. Ela ansiava por liberdade, liberdade sem limites. Poder soltar as raízes da terra…





Um dia, o Criador deixou-a partir. Talvez não para a vida que sonhara, anos após anos presa à terra, em sonhos quase circulares, mas para a vida que Ele lhe destinou. Nunca se pode ter tudo. A oliveira teve quase nada.
Andou, andou... até que ficou fascinada por uma paisagem que a arrebatou. A imensidão do mar, perdendo-se de vista, e ela perdendo a vista, sem nunca se cansar, na contemplação hipnótica de um deus quase Deus. Não sabia porquê, mas o mar atraía-a e ficou horas e horas a venerá-lo, esquecida doutras paisagens bonitas que também apreciava. Assim, o mar passou a ser toda a sua vida. O resto era monotonia.



Os anos passaram e ela viveu a vida aleatória da sua condição de simples mortal. Não tinha consciência do que era ou de quem era.


Um amor-perfeito? 
Sim. Sem dúvida!


Mas seria que existiam amores perfeitos?
Abriu-se uma janela na memória que logo se fechou. Nem amores perfeitos, nem amores à primeira vista!
Então... talvez pudesse ser uma rosa. De preferência, vermelha!



Alguém contou-lhe que uma rosa vermelha chorou muito de paixão porque perdeu o seu amor. E ela queria ser feliz!
«Não, obrigada. Rosa vermelha, nem sequer em botão!»
«E outra flor?»



Sentiu-se desesperada com a solidão que a envolveu. Também não queria o amarelo do desespero. Situação complicada. A nova vida que tanto desejou começava a estar muito difícil. O melhor era adormecer à beira-mar e esperar pelo dia seguinte. Talvez o amanhã fosse um dia diferente, cheio de luz e calor para lhe iluminar a alma e aquecer o coração.
Se assim pensou, assim o fez. Adormeceu com a chegada do crepúsculo, mostrando um pôr do Sol muito vermelho e romântico, mas a tender irremediavelmente para um amarelo nostálgico e frio.




Acordou sobressaltada com o chilrear barulhento dos pardais. Sentia-se confusa. O brusco acordar trouxe-lhe ao pensamento recordações há muito esquecidas.
«Gostava tanto de voltar a ser oliveira! Poder receber de novo os beijos suaves do vento e também, por vezes, os reflexos das suas iras. Depender só da generosidade da terra e retribuir com os meus frutos...»
Esfregou os olhos, não querendo acreditar no que via. Já não tinha o mar na sua frente.
«Uma oliveira!»
Mostrava um rasgão enorme no tronco, onde muitos rebentos pareciam garantir a sobrevivência.




Deus fosse louvado! Tinha ouvido a sua prece. Não nascera para ser flor, nem para adorar os mistérios do mar.
Movida por um instinto irresistível, correu a abraçar a oliveira.
«Tão velhinha! Tens muito para contar, amiga! Deste sempre graças a Deus a tudo o que de bom Ele te deu. Mas também tiveste maus momentos. Um tronco que se partiu. Muitas folhas que secaram. Os frutos que caíram antes de chegar o tempo de serem colhidos. E mais...»
A oliveira estava no seu aconchego, sob as muralhas de um castelo mourisco.




De súbito, ouviu uma voz de trovão e assustou-se muito.
«Apanhei-te finalmente, maldita! Julgavas que fugias com o teu querido infiel? Vais ficar outra vez debaixo do meu poder. Lembra-te bem que me repudiaste!»
«O vizir!» pensou, assustada.

Queria-a para si e ela abominava-o. Antes a morte!
E ficou mais aterrorizada.
«Não quiseste ser minha. Então não serás de mais ninguém. E desta vez nunca mais vais esquecer-te de mim. Vou queimar-te viva!»
«Socorro! Alguém que me acuda!»
«Grita. Grita à vontade, traidora. Quebraste o acordo que fiz com o teu pai. Não mereces compaixão...»
«Que fiz de mal, meu senhor? Só abracei a oliveira. Amo muito as oliveiras! E também o mar. Que mal faz amar as oliveiras e o mar? Tem compaixão de mim!»
O vizir pegou fogo à oliveira e ficou a vê-la crepitar, agonizando em sofrimento, até que parte do tronco se tornou carvão.
Ela ainda o ouviu dizer:
«Degolei o teu infiel com o gume da cimitarra. Atirei a cabeça ao mar e o resto do corpo, deitei-o aos abutres. Quem se aproximar de ti cairá em encantamento. Será para sempre um réptil...»
O seu amor jazia no fundo do mar. Por isso ela gostava tanto do mar!





Anos mais tarde os cristãos tomaram o castelo de assalto e nem um mouro foi poupado. Depois, partiram para outras conquistas. Só ficou um combatente. Cansado da refrega, descansara à sombra de uma oliveira e tinha adormecido.

Ao acordar, viu uma linda mulher debruçada sobre ele. Tinha a cobrir o corpo esbelto um comprido manto azul celeste.
«É um sonho!»
Tentou beijar a mulher e logo se transformou numa lagartixa.
O castelo e as oliveiras resistiram ao passar dos tempos.




Um certo dia, um fotógrafo amador visitou o castelo e foi tirando fotografias com a sua máquina digital. Fotografou, fotografou... até que descobriu uma oliveira carbonizada.

«Que engraçado! Uma lagartixa à espreita do Sol...»
E tirou mais fotos.



A lagartixa assustou-se e fugiu.

«Estava tão perto!»
Pareceu-lhe que o terceiro disparo do flash ainda a tinha apanhado.
«Deixa-me ver...»
Na era digital tudo era possível.
«Mas o que é isto?!...»




Desligou a máquina e ficou a pensar:
«O vinho que bebi ao almoço está a fazer efeito. Abre os olhos, João!» 

Onde estava a oliveira carbonizada?
«Obrigada...»
«Ai bebi bebi!»
Jurava que tinha ouvido uma voz doce de mulher!
«João...» Queixou-se a esposa. «Estou mortinha de sede. Vamos embora! Que interesse achas neste castelo? E que cara é essa? Até parece que encontraste uma moura encantada!»
«Vou dar uma última volta.» Respondeu, intrigado.
«Mas não demores...»
E tirou mais uma foto ao castelo.
«Ah... estas alucinações! Também não bebi tanto como isso. Tenho que ir ao médico. É urgente!»

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