quinta-feira, 18 de maio de 2023

Toalhas sujas atrás das portas

 

A Autarquia (deriva do grego "autárkeia") é o tipo de governo em que uma pessoa ou grupo de pessoas concentram o poder sobre uma nação. É um termo usado em economia, na filosofia e na administração pública. 
Debrucemo-nos sobre uma entidade autónoma, auxiliar e descentralizada da administração pública. Embora fiscalizada e tutelada pelo Estado, tem património formado com recursos próprios. A sua finalidade é executar serviços que interessem à coletividade.

Não deixa de ser verdade que qualquer autarquia executa serviços que interessam à coletividade. E são muitos. Não os vou enumerar. Aliás, não é esse o objetivo. Mas quero destacar um, muito importante e decisivo para a continuidade dos mesmos que estão no poder, sem prejuízo dos outros. O apoio à terceira idade. E a esse respeito há muitas autarquias que fazem bem o seu trabalho de casa, não o nego. Fazem bem, durante todo o tempo de regência (diga-se que em certas autarquias as dinastias funcionam de uma forma infalível) e sem mácula. Outras que deixam, aparentemente, os seus créditos para uma meia dúzia de beneméritos e tiram, mais tarde, os dividendos de uma forma que não se pode considerar honesta. Digamos que se aproveitam da bondade dos outros para alcançarem os seus fins que são, como se sabe, a sobrevivência no poder. É vê-los em grande azáfama em véspera de eleições (mas os opositores não ficam melhor na fotografia, bem sabemos) a prometeram o que não podem dar, até a Lua... se houver quem acredite numa das fábulas de La Fontaine mais conhecidas em que é falado do lobo, da raposa e do queijo. Finalmente, há alguns autarcas camuflados em benfeitores que têm toalhas sujas atrás da porta. E sabemos muito bem o que significa tal expressão.
Mas não pretendo alargar-me. Quanto mais desenvolvo o assunto, mais o polvo que tem as tais toalhas sujas atrás da porta desliza, muda de cor e lança uma nuvem densa de tinta (1), neste caso não para confundir os predadores e assim conseguir escapar, mas para "deitar areia para os olhos" dos mais sagazes que desconfiam, há muito, dos seus objetivos.

Esta história que se segue, sobre o poder autárquico, a terceira idade e as empresas que prestam os seus serviços às autarquias, vai ser contada duma forma agilizada e tentando ser sarcástica. A história está por aí a romper e o que parece, é... embora não pareça.
É corrente, em certas épocas do ano, haver tasquinhas de comes e bebes localizadas em recintos autárquicos. Tudo bem. Não tenho nada contra. Até gosto. Não porque sou um bom garfo, mas sim porque gosto de misturar-me com o povo, ouvir o povo, as suas críticas, os seus apreços ingénuos, as suas mágoas e os seus anseios. E não me sinto a mais porque também faço parte dele.

«Vamos então?»
«Aonde?»
«Às tasquinhas.»
«Fazer o quê?»
«Ora... fazer o quê. Logo vemos o que fazem os outros.»
E lá foram.
«Levas dinheiro? É que lá não há multibanco!»
«Bem sei. Rebentaram com a ATM usando uma botija de gás.»
Está sempre a acontecer. No entanto não é o caso. Não há ATM e pronto.
Fazem a caminhada em silêncio. Ela à frente e ele atrás. Não por acaso. Por cortesia.
Há sempre o momento da chegada se não houver um percalço pelo caminho. Os passeios estão num estado lastimoso.
«Ena pá! Tanta gente.»
«Não digas gente. Diz povo!»
Desvia o esboço de tema de conversa para outro lado.
«Ainda bem que os músicos mal se ouvem.»
«Porquê?»
«Assim não levo com tomates.»
«Nem nunca levarias.»
«Pois é» coçou uma narina. «Mas porque dizes isso?»
«Julgas-te o artista principal? Toma juízo. Estás aqui para comer e não para desafinares.»
«Mas podia cantar "O gato do Barnabé... que é manso como um cordeiro." Conheces a canção? É dos tempos áureos da nossa vila de ontem.»
Não respondeu.
«Onde há uma mesa livre? Tanta gente! É do lado direito... é do lado esquerdo...»
«Sempre houve esquerda e direita. Agora estamos um pouco mais à esquerda. Sim, o governo... é inédito! Parece que a geringonça funciona e o diabo não vai chegar. Mas estamos a ir para a esquerda e não gosto de desvios.»
Tentou empurrar a companheira para a direita.
«Então?»
«Então o quê? Não vês aquela mesa vaga, cegueta?»
«Ah sim. À direita. Mas é para seis pessoas.»
«Não importa. Tem bancos corridos.»
«Certo. Se chegarem mais pessoas, corremos com elas ou elas correm connosco. Psst! Faz o obséquio.»
A rapariga fez o obséquio e interpretou o gesto da companheira dele.
«Não te disse?»
«Não me disseste nada.»
«Cala-te.»
Sentaram-se frente a frente.
«Que vamos comer?»
Ele limitou-se a olhá-la. Lógico. Porque estavam frente a frente.
Chegou um homem de bigode e cabelos grisalhos. O bigode e os cabelos, claro.
«O que há pronto a sair?»
O homem enumerou: bacalhau assado, jardineira, iscas, caldeirada à moda da casa, bitoque, punh… (2) de bacalhau, dobrada, feijoada de chocos, cozido de grão, carne de porco à portuguesa...
«Então... não te decides?»
Indecisão momentânea.
«Eu quero carne de porco à portuguesa.»
«Com amêijoas ou sem amêijoas?»
«À portuguesa. Servem meias doses?» perguntou. «E tu?»
«É para eu falar?»
«Estás parvo?»
«Estou?»
«Então?»
«Pode ser dobrada.»
O homem do bigode e também dos cabelos brancos opinou:
«Boa escolha. E para beberem?»
Era sempre boa escolha. O bacalhau ou a dobrada estavam de comer e chorar por mais. Claro que o homem não ia aconselhar outra escolha.
«Para mim um jarrinho de tinto.»
«Pode ser Fanta Laranja.»
Ele olhou em volta e perguntou:
«Porquê tanta gente?»
O homem do bigode (fica agora assinalado assim) sorriu.
«A Câmara e as Juntas de Freguesia ofereceram o almoço aos reformados. Sopa, prato de carne ou bacalhau, pão, vinho ou água, doce e peça de fruta. E café, já me esquecia. É da tradição nesta época. Amanhã despacha-se a segunda leva. E para a semana ainda há mais.»
«Acho bem se não tiver em vista fins eleitoralistas ou isso.»
«As eleições são só daqui a um ano. Informou. «Dois meses antes é que é fartar, vilanagem. Viagem e comezainas não vão faltar. Se bem me lembro, havia um autarca lá para o norte que até oferecia eletrodomésticos.»
«É verdade. E quem paga a despesa das autarquias com este almoço?»
«Pagamos nós com taxas e taxinhas.» Disse ela.
«Desculpem, tenho que ir buscar uma travessa ao balcão.»
Mas as coisas não ficavam por ali.
«Bem parecia.» Disse ele.
«Não te parecia nada porque ficaste calado que nem um rato.»
«Gosto mais dos ratos do campo do que dos da cidade. Assados no espeto são uma delícia.»
«Não sejas estúpido!»
«Pergunta aos guerreiros do Sandokan. Li há muitos anos num livro da Salgari.»
«Ia a perguntar... que livro?, mas, antes, quem é esse Sandokan?»
«Deixa» assobiou para o lado. «Está uma tarde quente. Nem parece fins de outubro. O clima está mudado. Temos que nos preparar para os fenómenos climáticos extremos.»
«Pois sim. Queres comer um gelado?»
«Estou a fazer a digestão.»
«Mentiroso. Nem sequer vieram as travessas...»
Mas as coisas não ficavam por ali, repito. E aproveito para me apresentar. Sou o narrador, mas não o escritor.
O homem do bigode voltou.
«Os reformados fazem com frequência excursões a Fátima e outros locais e pagam uma bagatela que nem sequer dá para o almoço. Bom para os que têm poucos recursos, mas há muitos que se aproveitam. Acresce que, nas reparações em casa não pagam a mão de obra. Algumas autarquias apoiam as famílias mais necessitadas, como, por exemplo, comparticipando nas obras de restauro das casas que habitam e nas despesas com medicamentos, e aí vêm os reformados que são quem mais necessita visto que é nestas idades que as doenças atacam mais. Há mais, mas mais não me lembro.»
Como era mais que não se lembrava?
«Não sabia! E as nossas autarquias apoiam...?»
Claro que ele estava farto de saber.
«Pois. Mas estão a fazer-me sinal.» Olhou para os lados do balcão. «Acho que são as travessas para os senhores...»
«Então vá...» Está na moda. Antes, dizia-se "então vá" com outro sentido. Digo? "Então vá à merda!". Era isso. desculpem. Está dito.
As travessas? Ficámos suspensos nas palavras do homem do bigode que disse estarem a fazer-lhe sinal.
Dirigiu-se ao balcão.
Estava tudo insonso.
«Então?» perguntou o homem do bigode.
«Ainda não provei.» Disse ele.
«Nem eu.»
Pouco depois...
Estava tudo insonso. Frase agora no seu lugar.
«Pode dar-me o sal, por favor? Uma nica não ficava mal...» Disse um deles. Um ou outro. Tanto faz.
«Foi tudo feito para os reformados. Eles podem querer comer outra coisa. Por exemplo, dieta. Mas pagam.»
«E se pedirem para repetir?»
«Positivo. É um favor que fazem à Segurança Social.»
«Compreendo. Comer até morrer.»
A comida começa a ser comida.
«Quer picante?»
«Pode ser.»
«Olha lá!»
«Pois é... as "almorroidas" (3)!»
«Eles comem muito?»
«Nem imagina! No primeiro ano até faltou. Agora estamos prevenidos.»
«É... O sal é que faz mal.»
Mais uma vez: mas as coisas não ficaram por ali.
«Posso fazer uma pergunta indiscreta?»
«Claro. Todas.»
«Sabe quanto o dono do restaurante recebe por cada refeição para os reformados?»
«Seis euros, seis euros e meio…»
«Mas isso é pouco!» comentou ela.
E foi então que o homem do bigode se debruçou sobre a mesa e começou a desbobinar. Então era assim... a autarquia e as juntas chegavam a demorar seis meses para pagar. Além de pagaram mal por refeição, cometiam outro pecado capital que era pagar tarde e a más horas.
A seguir o homem do bigode começou a abrir o leque. Confessou que fazia empreitadas para a Câmara e era sempre um problema para lhe pagarem.
«Uma bola de neve.»
Se a Câmara não pagava, o empreiteiro também não pagava aos empregados e aos fornecedores. Estes ficavam com grandes dificuldades. Os primeiros pediam fiado ou usavam, até poderem, os tais cartões de crédito com juros proibitivos (olá, Unibanco e similares! O Estado agradece as "dádivas" para o imposto de selo e isso; podem continuar com as taxas altas). Os segundos viam-se em palpos de aranha com os bancos. Os bancos, além daquilo que já sabíamos...
«Também olá BPN. E olá BPP, BES, BANIF, CGD. Um forrobodó do caraças. Saudações cordiais para os tubarões e os testas de ferro...»
A propósito, virão grandes surpresas no futuro. Principalmente no BES. Estejam atentos porque fiz uma viagem ao futuro. Como de costume, quando se trata de tubarões, é difícil apanhá-los. Eu sei lá porquè os processos se arrastam com recursos e outras manobras de diversão! Ou melhor, por acaso até sei e não digo.
Tudo bem, meus? Paga, Zé Povo. Paga e não bu... buzines!
Voltando ao homem do bigode, esqueci-me de dizer que cofiou o bigode mais que seis vezes.
Uma vez achou que um ano era demais para a Câmara lhe pagar uma dívida e teve que contratar um advogado para os encostar à parede. Remédio santo. Em quinze dias resolveu o problema. Com um senão. Teve sérias dificuldades em fazer mais empreitadas para a Câmara.
«Já calculam como consegui...»
«Julgo ter adivinhado.» Admitiu ele. «Alguns funcionam como "testas de ferro". Mas a verdade é que nunca se chega aos tubarões, embora ultimamente tenham aparecido indícios do contrário...»
Indícios?
Ele enganou-se. Certezas a navegarem à vista, mas "naufragando" quando se chega mais perto.
Ela olha para ele e sussurra:
«Não digas o que estás a pensar que vais dentro...»
«Dentro já estou.»
«Recebeste ameaças de morte?»
«Se sim, dizes que deliro.»
«Estou do teu lado. Continua a delirar.»
«E se me aproveitar?»
«Faz isso. Eles são tantos que não vai notar-se. É só mais um mergulhado no esterco.»
Sussurrando para ela...
«Esterco. Nem de propósito. Ele agora vai falar das toalhas.»
«Toalhas brancas e felpudas?»
«Claro que não!»
O homem do bigode cofiou outra vez o dito cujo, usou o nariz como aspirador e pareceu dizer que cheirava mal. Muito mal. E não era dos porcos que engordavam nas "pocilgas industriais" que medravam, por aqui e ali, sem a ASAE à vista.

O sol está alto e prepara-se para descer, mas para pôr a história mais pretensamente ionesca, o autor vai acrescentar uma bucha fora do tempo, em jeito de interlúdio.
Sabiam que há anos, numa certa noite, vi cair, do teto de um certo e determinado casino, baratas anafadas... uma, duas três..., numa zona nobre e podre, de nome Forte Knox e que a ASAE não soube disso porque não lhe interessava saber, ou então porque não podia agir no casino, segundo afirmação de um dos muitos-todos inspetores que não saem dos gabinetes para descerem à praça onde se desenrola a realidade?
Constou então que foi um jogador, mais revoltado que os outros, que trouxe uma caixinha de fósforos cheia de "infelizes baratas" que foram "obrigadas" a subir ao teto e lá ficaram a morar. Mas houve três que caíram. Quando caem as próximas, ou se já caíram, não sei.
Mas só uma coisa, na realidade ninguém levou baratas para o casino, nem houve um caso de geração espontânea. Falta de higiene, sim.
O homem do bigode continuou...
«Foi então que descobri que há muita gente graúda com toalhas sujas atrás da porta. Os senhores nem imaginam... Depois, temos a dinastia.»
«Dinastia?»
Quando o partido tem forte implantação por tradição, as dívidas acumuladas pelas autarquias transmitem-se de sucessor em sucessor e assim têm possibilidade de esconder as ditas dívidas.
Esconde-te, dívida... até um dia!
«Mas... sucessores?»
«A partidarite é uma coisa muito má. Cega.»
«Ah sim.»
Quanto à oposição, esta fica calada porque não sabe se no dia de amanhã é ela que entra em ação. Mas duvido que consigam subir ao poleiro Isto digo eu. Esta "república" está bem implantada. Eu diria: fortemente implantada.
Ele pagou a conta e despediu-se do homem do bigode.
«Tive muito gosto em falar consigo. O café estava bom.»
«Obrigado.»
«E as toalhas sujas?»
«São muitas. Por mais que se lavem...»
Lavagem de dinheiro. Que invenção é esta?
Deram alguns passos e ela deteve-o com o braço.
«Tu não tomaste café!»
«Não faz mal. Como tudo estava bom...»
«Onde vamos?» perguntou ela. «Há uma exibição de acordeões. Queres ouvir?»
«De ouvir tanta coisa fiquei surdo. Hoje nem a música me motiva. Já viste o molho de brócolos em que o país está metido? E agora com aquela geringonça controlada a belo prazer por um manhoso especialista em rasteiras...»
«Rasteiras?»
«Pergunta ao Seguro e ao Passos...»
«O T... dos Bancos e o outro que tem amigos do outro mundo, como aquele que lhe paga para que o pobrezinho possa viver à grande e à francesa, ainda afirmavam, há uns anos, quando Portugal estava em pré-falência: "Está tudo bem."»
«Só nos emprestavam dinheiro a juros altíssimos e as reservas estavam no fundo. Agora vamos a ver o que nos vai pôr esta geringonça no sapatinho do Natal.»
«Feliz Natal!»
«Natal Feliz... quem me dera!»
«O outro anda a miar muito...»
«Quem é o outro?» perguntou ele.
«Perigo. As paredes têm ouvidos...»
«Mas já estamos na rua!»
Culpa minha. Do narrador que sou eu. Esqueci-me de dizer que, entretanto, eles tinham saído do pavilhão onde se situavam as tascas e tudo isso.
«O outro é o outro. Não me digas que não sabes!» esclareceu.
«Pois. O outro. Mas voltámos ao tempo da PIDE?» perguntou ele.
«Olha uma coisa... por acaso também tens alguma toalha suja escondida atrás da tua porta? Ou por exemplo, esqueletos dentro do armário?»
«Porquê?»
«É que está na moda.»
«Nem sabes o que me apetecia fazer agora...»
Devia ser ele mas calhou ela. É mais coisa dele "ele".
«Assaltar um banco.»
«Para quê?»
«Não gostavas de poder sacar o dinheiro que aqueles sacanas já nos roubaram?»
«Então vamos.»
«Assaltar um banco?»
«Até ao jardim. Sentamo-nos num banco, de preferência na sombra acolhedora de uma árvore frondosa. Depois, ficamos muito calados.»
«Sim. Mas ainda há dessas árvores frondosas?»
«Algumas, sim. Diz a voz do povo que ele vai mandando abater as árvores à socapa...»
«Mas quem é ele?»
«Ele. Bem sabes que há muitos "eles".»

(1) "A principal substância da tinta é composta por melanina que também dá a coloração dos cabelos e pele dos seres humanos. A nuvem de tinta também possui cheiro, sendo capaz de confundir predadores como tubarões que dependem muito do olfato para localizar a presa.
A camuflagem dos polvos é obtida através de algumas células especializadas de sua pele, podendo alterar a cor aparente e a opacidade da sua epiderme. Cromatóforos que contêm pigmentos de cores como amarelo, laranja, vermelho, marrom e preto.

(2) Cuidado com a Língua!

(3) O Google perguntou: «Quis dizer hemorroidas?»

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