Cereus (1)
Desde criança que os gatos exerceram em Mário um fascínio permanente, e vice-versa, que nunca conseguiu explicar. Com quatro tenros anos já os atirava da varanda abaixo, embora a dona Francisca, mãe do Sérgio, desconhecesse essa faceta "extremosa" do Marinho.
Depois da morte muito sofrida da sua Princesa, que ocupa um lugar especial no seu coração, jurou que nunca mais teria gatos. Seria esse seu amor tigrino o derradeiro, mas ainda hoje, quando vai na rua e por acaso vê um gato, não resiste ao apelo atávico de estabelecer contacto com o felino, chamando-o por um qualquer nome inventado (olá, Pinóquio), e de fazer-lhe uma festa caso este se aproxime.
O mais estranho destes laços de ternura com os gatos, animais com uma personalidade própria que não se deixam dominar, é quase acreditar na afirmação incrível de um bruxo da região do Porto:
«O seu anjo-da-guarda é um gato.»
De chofre. nem mais nem menos.
Pensou logo na Princesa, que, por sinal era uma gata...
Mas não foram só histórias de gatos que contou. Também de cães, periquitos, pardais de telhado e duma tartaruga que se chamava “Porcalina” (pelo mau cheiro em que deixava a água do aquário) e que, uma vez, um dia não esteve para meias medidas e devorou uma das patas traseiras da companheira mais pequena.
Também em tempos passados foi colecionador de catos e plantas suculentas, conseguindo reunir mais de trezentas espécies, à custa de trocas e vendas de exemplares desenvolvidos numa pequena estufa e também no exterior, onde teve que travar uma guerra sem quartel com os caracóis. Colocava tabuleiros com as ditas plantas na sala dos professores e o resto era fácil. Vendia os catos num ápice. Quanto aos lucros investiu em livros da especialidade que o ajudaram a classificar os exemplares, usando etiquetas amarelas de plástico e escrevendo nelas, com lápis preto que as senhoras usavam para sombrear os olhos, o produto final que eram os seus nomes científicos.
Foi mais uma fase importante da sua vida de colecionador a que se dedicou de alma e coração, como aconteceu em tudo que mereceu a sua paixão ao longo da vida.
Com o decorrer dos anos foi crescendo uma coleção importante. Mas quando a sua vida deu uma volta, daquelas que modificam os hábitos, as relações e o amor, entendeu que também tinha chegado o momento de abandonar os catos, ficando apenas com meia dúzia dos exemplares de que mais gostava.
Não sei se alguma vez conseguiu o contacto com algum dos seus catos preferidos. Em boa verdade, as plantas, como qualquer ser vivo, nascem, crescem, reproduzem-se e morrem. São muito sensíveis ao estado de alma de quem cuida delas e, de certa forma, com elas convive. Se forem acarinhadas com palavras torna-se mais fácil ultrapassarem certas crises de desenvolvimento provocadas pelo frio ou pela exposição exagerada aos raios solares e pelas pragas, onde insetos rastejantes e os famigerados caracóis, e também as lesmas, lhes fazem a vida negra. Na fase de recuperação, além do tratamento, dizem que é muito bom falar-lhes com carinho ou simplesmente olhar para elas com uma expressão suave que reflete o pensamento positivo que a pessoa está a transmitir-lhes.
As plantas sentem. Talvez pensem, se quisermos entrar pelo perigoso campo da ficção científica.
E se também forem contadoras de histórias?
Chamo-me Cereus. Cereus peruvianus. Quero que saibam que as minhas raízes ancestrais são originárias de muito longe, mais precisamente da América do Sul, mas nasci em Portugal, no distrito de Lisboa. O meu pai verdadeiro, ao mesmo tempo meu irmão, na altura da nossa separação para sempre, tinha uma envergadura superior à que tenho no tempo atual, não só em altura como em termos de volume.
Trouxe nos cromossomas todas as suas memórias genéticas que foram aperfeiçoadas ao longo de gerações. Posso afirmar que as origens são muito anteriores ao aparecimento do homem como homem e vêm de há algumas dezenas de milhões de anos.
Paradoxalmente tenho também um pai adotivo, mais novo que o meu pai-irmão, que cuidou de mim a partir do momento da separação traumática do meu clã.
Recordo-me como se fosse ontem. Corria a década de oitenta e estávamos na força da primavera. O clã usufruía, com satisfação, dos benefícios da temperatura amena que se fazia sentir e como reflexo o ambiente que as rodeava era o melhor dos melhores.
Um dia o meu futuro pai adotivo apareceu na frente do clã e ficou muito sério a olhar para o meu pai-irmão. Deve ter sido amor à primeira vista porque naquele momento preparava-se para tomar uma decisão importante e não ia voltar atrás.
Mas como aconteceu?
Olhou em todas as direções, com um ar receoso. Depois, ganhou coragem, sacou de um canivete e avançou. Caso de polícia, pensei.
Mas o que ia fazer?
Não houve tempo para reagir nem nunca podíamos ter reagido, como é lógico. Foi um momento e zás! Um corte certeiro e separou-me da família. Chorei mais de desgosto do que de dor. Mas devia ter compreendido mais cedo que ele queria levar-me consigo. Foi o seu olhar muito sério que me enganou. Julgava que tinha sido só um momento de apreciação, mas ele queria mais. E teve mais. Pegou em mim e meteu-me dentro dum saco de supermercado. Fiquei às escuras, ainda mais indefeso. A seguir ouvi as suas passadas apressadas, de pessoa em fuga. Eventualmente um criminoso que fugia do local do crime.
Já em sua casa tirou-me do saco e mirou-me de alto a baixo. Pareceu-me que gostou do que viu.
E que ia fazer comigo?
Nada ou quase nada. Levou-me para a varanda virada para sul e tive a oportunidade de ver alguns parentes, todos catos. Da mesma família. Respiravam saúde e estavam todos etiquetados de amarelo. Então pensei:
É apenas um colecionador de catos...
Fui depositado cuidadosamente sobre uma tábua e depois ele voltou a entrar em casa. Fiquei chocado. Nem uma palavra de conforto. Só aquele seu olhar de apreciação que logo valeu um comentário de um dos meus novos companheiros:
«Quem és tu para o Mário te ter trazido? Colocou-te na tábua com mil cuidados. Mas és feio, sabes?, mesmo muito feio!»
Não respondi ao insulto. Limitei-me a identificar-me e a explicar o que tinha acontecido.
«Sou o Cereus. Fui cortado por um canivete. Tenho saudades da minha família»
Felizmente os outros ficaram-se pelo silêncio. Não me importei por me terem ignorado por completo. Afinal estava desgostoso de ter sido arrancado ao meu clã e o que mais queria no momento era fazer em paz e sossego o meu luto.
Fiquei um pouco mais descansado. O ambiente não era de todo desfavorável. Devia ter pensamentos positivos para recuperar totalmente da ferida provocada pela lâmina do canivete. Havia o perigo dos meus tecidos apodrecerem. Assim, tinha pela frente um novo destino, curto ou longo. Tudo dependia dos cuidados do meu pai adotivo e também do fator sorte.
Passaram-se os dias e continuei deitado na tábua. Ele aparecia para ver só como eu estava e nesses momentos breves era motivo dos reparos duros e insultuosos do cato que me interpelou da primeira vez, por sinal um Equinopsis multiplex bastante queimado pelos rigores do tempo e já um pouco envelhecido. Entendi logo as razões daquele ciúme. O meu pai adotivo já não olhava para ele com os mesmos olhos dos outros tempos. Estava velho e feio. Sinais do tempo, entendi. Há sempre um princípio e um fim. É inevitável.
Um dia apareceu com um saco de terra e um vaso e percebi que o meu destino ia mudar. Para melhor ou para pior. Não sabia. As feridas tinham cicatrizado. Sentia-me bem. Felizmente.
Vi-o deitar a terra no vaso até três quartos de altura. Quando estava a meter-me cuidadosamente na terra, em posição vertical, com a zona do corte a esconder-se na terra, pensei que era o último ato de lançamento dos dados. A partir daquele momento ficava à mercê da sorte, do meu pai adotivo e da minha vontade de sobreviver. Três em um.
Tinha sede e ele não deitou água na terra. Tinha fome e a terra estava seca. Revoltei-me, mas reconsiderei. O meu pai lá sabia. Era um colecionador experiente e transmitia boas vibrações. Assim, acreditava que ele fazia no momento o melhor por mim.
Só me deu de beber dois dias depois, quando teve a certeza absoluta que as feridas já não corriam o risco de gangrenarem. A partir de então passou a regar a terra de cinco em cinco dias.
Um dia, talvez só por coincidência, aconteceu uma coisa muito estranha e, ao mesmo tempo, muito boa. De um momento para o outro comecei a ler os seus pensamentos e confirmei que eram sempre positivos e de encorajamento quando tratava de mim e dos outros.
Senti-me grato e chamei por ele:
«Pai...»
Não me ouviu ou então não quis responder. Os outros insultaram-me.
«Cato feioso! Nem com graxa vais lá...»
«Vai-te curar, rameloso!»
«Não querem lá ver o pipi da tabela.»
Preferi ignorar os insultos. No entanto, gostei do último porque era mais um elogia que um insulto.
O tempo foi passando. Criei raízes e tornei-me quase independente. Porque o vaso tinha muita terra e de boa qualidade, muito rica em nutrientes, e a água nunca me faltou nem foi exagerada, na primeira primavera e princípio do verão cresci muito.
(Faço aqui um parêntesis. Quando nos enterram, nós ganhamos o direito à vida. Pelo contrário, quando os outros, como o meu pai adotivo, são enterrados é porque estão mortos, pelo menos nesta Terra, segundo ele pensa, de passagem...)
À medida que os anos corriam fui sendo mudado para vasos cada vez maiores e cresci saudavelmente, sempre acompanhado dos pensamentos positivos e de encorajamento do meu pai. Sentia pena de uma coisa. Eu esforçava-me muito para chegar ao meu pai, tentava estabelecer o fio de ligação, de comunhão com ele. Infelizmente não reagiu.
Não tardou que eu e outra planta de ascendência inferior, uma nespereira nascida dum caroço que ele colocou num vaso, quase à superfície da terra, nos tornássemos as plantas mais desenvolvidas do grupo. Logo ganhei ascendência sobre todos, inclusivamente sobre o Equinopsis que escondeu o ciúme doentio que sentia porque já não tinha força anímica para reagir contra mim.
Nasci nos primeiros dias de agosto e, como Leão que era, fui considerado o líder incontestado do grupo. Apenas a nespereira ainda não conseguia esconder um resquício de animosidade que logo desvalorizei perante os outros, não deixando de estar de olho nela porque a achei um perigo potencial para a minha ascendência em relação a todos. Não compreendi o motivo daquela distanciação manifestada, até porque nunca a piquei. O ato de picar era a minha arma final como cato que me orgulhava de ser.
Um dia o meu pai levou a nespereira consigo e senti-me ainda melhor. Havia uma certa rivalidade entre os dois e ela começava a levar a melhor sobre mim em altura.
Mas porque foi que levou a nespereira?
Provavelmente sentiu as minhas vibrações de fera acossada.
Eu devia ser especial para ele. Um espécimen perfeito de quem se devia orgulhar muito.
Sol que pouco brilhou, pensei. Puro engano o meu quando, tempos depois, também me levou da varanda onde se alinhava a sua coleção de catos prediletos. Notei o esforço que fez ao pegar no vaso e consegui ler-lhe os pensamentos.
Penso que nesta varanda já não te desenvolves mais, Cereus. É melhor levar-te para um novo local. Mereces um outro futuro.
«Obrigado, pai!»
Agradeci-lhe muito por todos os cuidados que ele me dispensou ao longo de todos aqueles anos da minha existência. Depois, despedi-me dos meus companheiros.
«Estou pronto, pai. Leva-me para o novo destino...»
Nem um só sorriso saiu do seu rosto. Sempre aquele olhar triste de pessoa que não era feliz.
Que lhe faltava na vida?
Tinha o suficiente para viver uma vida digna, uma namorada que parecia gostar dele. Sim, já os vira a trocar carícias, quando, um dia, ela esteve a ver a coleção. Até comentou:
«E este, como se chama, Mário?»
«Cereus. Cereus peruvianus monstruosus.»
«É feio! Três nomes, porquê?»
«O primeiro só diz respeito ao género. Os dois primeiros à espécie e os três à variedade. Percebeste, Rita?»
«Não sou assim tão estúpida como isso. Mas esse cato é mesmo feio como os trovões!»
Corei de vergonha. Até ela não apreciava a minha beleza agressiva.
Cereus peruvianus monstruosus. Quase desmaiei de desgosto. Aquele nome é que era feio!
Um dia, ainda quando vivia na varanda, rotulou-me com este nome, usando uma etiqueta amarela de plástico que enterrou na terra junto ao meu tronco.
«Eu, um monstro?»
Nunca fiz mal a ninguém. Nem sequer lancei um mau-olhado à danada da nespereira que crescia, a olhos vistos, bem perto de mim. E como me sentia perturbado!
Olhou muito sério para mim.
Estarei enganado?
Rejubilei. Finalmente ele entendia-me. Ia mudar de ideia.
Foi para dentro de casa e voltou com um livro na mão que começou a folhear na minha frente. Estava um dia soalheiro e lá fora não bulia uma folha. Fiquei expectante.
Que procurava no livro?
Não me parece.
Não lhe parecia, o quê?
Sobressaltei-me ao pensar que ia mudar-me o nome. Já não me importava de ser monstruosus desde que me continuasse a chamar Cereus.
Pegou numa borracha e começou a apagar. Não consegui ver porque as suas mãos finas tapavam-me o campo de visão. Bem me debrucei, mas não deu. A rigidez do meu corpo não permitia.
Que se passava na mente do meu pai adotivo?
Agora escrevia com um lápis que as senhoras costumam usar para avivar as sobrancelhas e não só. Estava em pulgas para descobrir.
Finalmente!
Colocou de novo a etiqueta na terra e pude ler. Chorei de alegria. Só tinha retirado o nome que fazia de mim um monstro.
Um engano imperdoável. Se o Cereus fosse livre de se mover de certeza que me dava uma surra com os seus espinhos. Ele não é assim tão feio como isso! Bom, bonito não é, mas...
«Pai... porque me fazes sofrer?»
Olhou para mim com estranheza. O tempo estava seco e o céu muito azul.
De onde vieram todas estas gotas de água que vejo no Cereus?
Quis explicar-lhe que chorava. Infelizmente, não me ouviu.
Como ia dizendo, quando tinha oito anos levou-me da varanda para uma nova casa, por sinal muito mais velha. Desanimei. Passar de cavalo para burro, nunca!
Parece que ouviu a queixa que deixei escapar.
A partir de agora vais ter toda a liberdade do mundo para te desenvolveres mais. Terra não te falta. Sol e água da chuva muito menos.
Então compreendi. Estava num quintal. Enorme. Daqueles à antiga. Com capoeira de um só galo com o seu séquito de galinhas permissivas e tudo mais.
Conheces a tua companheira?
Azar o meu. De novo aquela nespereira vaidosa. E estava enorme. Frondosa. Carregada de frutos. Infelizmente tinha que ultrapassar o complexo de inferioridade que tomou posse de mim. Eu, que nunca dei uma flor ao meu pai (se bem que as flores dos catos sejam belas, mas efémeras, como os amores inconsequentes que só duram um dia), imaginar agora quantas flores a nespereira lhe deu duma só vez...
Uma pereira ainda a florir. Junto ao muro, uma roseira brava com rosas muito pequenas, cor da paixão.
E que mais?
Tive um desgosto pouco tempo depois. A pereira secou e o meu pai substituiu-a por uma palmeira que logo se desenvolveu de uma forma assustadora. As suas raízes invadiram todos os domínios dos meus companheiros, enfraquecendo-os a olhos vistos, interferindo inclusivamente com o meu espaço subterrâneo.
Claro que fiquei com mau perder e enchi-me de desejos de afastar-me para longe da maldita palmeira que nem sequer frutificava. Mas não passei daí. O Deus de todos nós quis que ficasse agarrado à terra para sempre, até que me levasse, e assim nada mais podia fazer senão suportar as sucessivas agressões da palmeira invasora. Para mal dos meus pecados só as raízes não tinham picos senão já sabia o que tinha a fazer!
Tudo tem o reverso da medalha. Em cinco anos cresceu tanto ou tão pouco que o meu pai finalmente pressentiu o perigo e decidiu expulsar logo a palmeira. Três homens encarregaram-se de escavar à volta das raízes. Achei piada aos piropos picantes que lhe dirigiram, tal a dificuldade da tarefa de a remover. Ela pressentia o perigo e agarrava-se à terra com força inusitada. Em vão. Finalmente tombou na terra e acabou por deixar-nos em paz.
Gritámos todos em coro:
«Viva o Mário!, viva!»
Mas quem seria o novo ocupante daquele espaço agora livre?
Um pessegueiro raquítico. Suspirámos de alívio.
Sentia-me feliz. Estava a passar os melhores tempos da minha vida. Só tinha pena de uma coisa. Faltava-me o afeto do meu pai. Via-o agora com menos frequência e já não me dispensava a atenção dos outros tempos. Tinha de compreender. Cresci muito e já era adulto.
Nunca me dei bem com a nespereira. Ficava eufórico quando a Boneca ou outro gato afiavam as unhas no seu tronco, fazendo-lhe feridas de alto a baixo. Por sua vez não podia evitar o seu sorriso sarcástico quando os caracóis se instalavam entre as minhas costilhas e devoravam a minha carne. Nesses momentos de dor valia-me a constante atenção do meu pai que dava caça impiedosa aos caracóis. Atirava-os para a capoeira e logo as galinhas lhes chamavam um figo. O galo, cortês, feito parvo, deixava que elas devorassem aqueles pitéus. Não era tão parvo como isso. No final do repasto tinha direito a sobremesa. E zumba! Vi-o saltar para cima da galinha mais próxima, que se agachou de imediato.
«Nem só de pão vive o homem...» Ouvi uma vez o meu pai dizer.
Gostava de dizer ao meu pai muitas coisas. Quanto gosto dele. O muito que estou agradecido por ter-me tirado do anonimato com um simples golpe de canivete. Todo o cuidado que teve comigo nos primeiros anos da minha vida. Sei lá... tanta coisa! Infelizmente não me entendia.
Os anos continuam a passar e posso dizer que a vida é bela!
Já me esquecia que tenho um novo companheiro muito próximo de mim. É um cato espanhol com muitos espinhos que olha para mim de baixo para cima. Não consigo chegar a sério à fala com ele porque não o entendo. Fala pelos cotovelos e só percebo metade do que diz. Digamos que a sua língua é o espanholês. Fala-me de alhos e eu respondo-lhe em bugalhos. É giro. Acabamos os dois por rir a bom rir. Tirando esse obstáculo, é um bom companheiro. E educado. Quando o vento sopra e ele verga, chega a tocar-me e não sinto nada porque encolhe os espinhos, tal como o gato recolhe as unhas para não ferir o dono quando brinca com ele. Depois, há os Aloe. São um pouco vaidosos, diga-se em abono da verdade. Sabem das suas virtudes curativas e deitam no inverno umas flores alaranjadas muito bonitas, no cimo de uma haste altaneira. Fora isso, são plantas suculentas, portanto duma casta inferior à minha.
Uma notícia de certo modo agradável. Ninguém ainda pediu ao meu pai para me cortar um pedaço, como ele fez ao meu pai-irmão. É a grande vantagem de ser um cato monstruosus. Assumo, embora tenha ficado agradecido pelo facto do meu pai ter apagado esta última palavra na etiqueta.
Mas há uma coisa desagradável que não consigo deixar de pensar. É que não suporto a vaidade insultuosa da maldita nespereira que está cada mais frondosa e altaneira. Na primavera enche-se de frutos que são as delícias dos donos da casa. Felizmente que o meu pai aprecia pouco nêsperas. Dá-me um consolo enorme.
Há alterações no quintal. As urtigas, com as quais travava diálogos interessantes, são cada vez mais raras. Dantes proliferavam à minha volta e até ao fundo do quintal e eram tantas ou tão poucas que não ligavam muito ao apetite voraz dos caracóis que se atiravam sobre as suas folhas muito verdes e tenras.
Uma novidade que não é para aplaudir e que provocou na harmonia do quintal uma alteração radical. Um familiar do meu pai apossou-se da terra e as pobres urtigas têm vindo a ser gradualmente substituídas por couves portuguesas, nabiças, alfaces, tomateiros, espinafres, salsa, etc, etc e tal. Isto para não falar nos espinafres silenciosos que não olham a meios para atingirem os seus objetivos expansionistas. O ambiente tornou-se insuportável com a algaraviada constante daqueles seres inferiores, de tal maneira que estou sempre ansioso que chegue o fim do verão para poder descansar um pouco. Impressiona-me especialmente o momento em que o homem se põe a colher esses vegetais. São lancinantes aqueles gritos das vítimas indefesas e isso complica-me com o sistema nervoso. Contudo, sei que são imprescindíveis na alimentação dos humanos.
Ainda bem que nasci cato!
Estou preocupado com uma coisa que aconteceu ontem, ao fim da tarde, quando recebi a visita semanal do meu pai. Até aí tudo bem. Mas ao vê-lo a olhar para mim de uma forma muito mais triste do que o costume adivinhei que ele não estava bem. Se ao menos lhe pudesse retribuir tudo o que de bom me tem feito, falar face a face com ele e saber dos males que o consomem...
Continuou perto de mim mais tempo do que o costume e chegou a mirar-me de alto a baixo.
Vou tirar uma fotografia ao Cereus com o telemóvel...
Depois, levou a mão ao bolso e sacou dum aparelho que devia o tal telemóvel e aí soltei uma exclamação de espanto.
Não é que ele tirava fotografias?
Hoje voltou ao quintal e procurou focar-me de outros ângulos.
Para quê tanta fotografia?
Vai deixar-me?
Sei pouco da sua vida mas o bastante para acreditar que não anda feliz. Aliás, sempre o conheci assim. Mas ultimamente parece mais distante, alheio a tudo o que o rodeia. Quanto a mim não tenho a mínima razão de queixa. Continua a limpar-me dos malditos caracóis que me roem as entranhas, a usar um pincel para retirar as teias de aranhas, seres que me causam uma certa angústia, embora nada tenha a recear deles. As moscas, sim, que se acautelem com as teias que as suas inimigas constroem na perfeição.
A propósito dos males do meu pai, queria contar um segredo relativo a algo de trágico que se passou há muitos anos no empedrado do quintal. Foi um pessegueiro que está perto das suculentas quem me contou o segredo, por sua vez contado por uma roseira agora já morta, que ainda por sua vez uma figueira, que durante o verão se enchia de saborosos figos moscatel, lhe contou. Essa, sim, foi testemunha da tragédia.
Nessa altura, segundo a versão da figueira, o Mário era quase um homem e o seu rosto estava rodeado por um halo de felicidade. A vida corria-lhe bem e o pessegueiro não me explicou porquê. Um dia, contudo, alguma coisa correu mal. A figueira viu-o descer as escadas trazendo consigo um molho de cartas manuscritas e uma caixa de fósforos. O seu rosto denunciava uma perturbação muito grande.
Então, o que fez?
Deitou as cartas para o chão, baixou-se, esfregou um fósforo na lixa da caixa e, pouco depois, uma chama começou a crescer e a tornar em cinzas as cartas. Não abandonou o local enquanto todas as cartas não foram consumidas pelo fogo. De alucinado, o seu rosto passou a triste, muito mais triste do que até então era. Deviam ser cartas de amor de uma antiga namorada.
Quantas frases belas foram consumidas pelas chamas impiedosas!
Confirmação! A figueira diagnosticou um caso de amor, talvez do primeiro amor que é sempre o mais marcante para os humanos sentimentais como ele, mesmo que esse amor seja de curta duração, comparado a uma nuvem passageira que nem sequer deita lágrimas.
Hoje o meu pai continua a olhar-me, mas não da forma como me olhava antigamente. Quero saber porque está tão triste e não consigo. Fechou-se, mais do que nunca, na sua concha.
Outro mal de amor?, ou ainda não esqueceu a primeira namorada?
Talvez a figueira soubesse mais do que contou. De certeza que lhe leu os pensamentos, mas já não está cá para contar. Infelizmente também foi banida do quintal porque cresceu muito, principalmente em largura. É pena, pois não há ninguém que saiba dizer-me o que está acontecendo com o meu pai. Que dor o atormenta.
Faço mais um esforço para descobrir o que está a acontecer. O olhar dele trespassa-me e parece ir para outro sítio que ultrapassa os limites do quintal e do enorme prédio que ocupa o espaço onde era a quinta do doutor Bandeira.
«Pai, o que aconteceu?»
Responde com o silêncio, como de costume.
«É aquela namorada? Mas já passaram tantos anos!»
Nada. Apenas tirou-me mais outra fotografia.
Ah!, finalmente consegui descobrir. Coisa horrível. O velho prédio onde nasceu está para venda. Mas não ficou triste apenas por isso. Vive só. Completamente só. Nunca mais vi com ele a companheira das carícias, nem com outra mulher. Tenho a impressão que ainda pensa na primeira, a que lhe escreveu aquelas cartas que se fizeram em cinzas e o vento levou para longe.
Se o prédio for vendido, um edifício novo invadirá todo o quintal.
Então... vou morrer em breve?
Se ao menos ele se lembrasse de cortar uma haste do meu corpo!
Fica descansado, Cereus peruvianus que, na altura certa, venho buscar um pouco de ti...
Há quanto tempo ele lê os meus pensamentos?
Sinto uma grande mágoa porque nunca mais me vou lembrar dele, como era, como cuidou de mim com tanto carinho desde o momento em que usou o canivete e me separou, com um só golpe, do meu pai-irmão. Será apenas um desconhecido que leva consigo um pouco de mim e que, com o tempo, vou esquecer.
Gostava tanto de me lembrar destes tempos que já passaram a correr e em que fui muito feliz!
Cereus (2)
Decerto ficaram admirados com o meu cumprimento de introdução pouco peculiar ("oi"). Tudo tem uma explicação e o que não tem explicação, explicado está. São também influências do meu pai que em boa ou má altura se embeiçou por uma brasileira, uma tal Simone, sem sequer a ter visto pessoalmente. Coisas dos tempos modernos e que me trazem muito apreensivo. Mas lá chegaremos. Por agora quero apenas dizer que é só por sua causa que estou aqui a explanar os meus pensamentos, a pôr tudo no seu lugar, a arquivar o que foi importante, a deitar para o lixo o que é para ser esquecido e a reciclar o que não é nem uma coisa nem outra.
O contacto com a Natureza em que estou inserido, os pensamentos do meu pai e de um ou outro ser humano que tem passado pelo meu espaço ambiental, continuam a modelar o que sou e a transformar-me num ser vivo cada vez a tender mais para a perfeição que pretendo atingir e que não passa de uma utopia. Só tenho pena do meu futuro estar cada vez mais comprometido, isto segundo o aspeto apreensivo que captei há dias do meu pai. A casa foi definitivamente vendida e parece que a escritura está para breve. Não é que as notícias sejam pessimistas. Antes pelo contrário. O antigo senhorio já falou em substituição de janelas e da porta da rua e de uma pintura da fachada.
Mas... e se tudo não passar duma conversa de embalar o bebé só para este adormecer?
Se assim for, todo o espaço do quintal que eu e os meus amigos e inimigos (sim, porque, como qualquer ser vivo, também tenho inimigos e um deles sabem muito bem quem é) ocupamos e onde lutamos diariamente pela sobrevivência, de um momento para o outro pode ter um fim fatal. Mas não é sobre este drama que quero falar porque tudo tem solução. Eu próprio sinto-me confiante e esperançado que o meu futuro seja resguardado pelo que captei do subconsciente do meu pai.
Afinal de quem é a vida?, e quem sou eu para ter o dom das profecias?
Lá chegarei. Agora vou falar do tempo que se passou depois que decidi escrever a história da minha vida, coisa pouco vulgar num cacto. No meu caso, um vulgaris Cereus peruvianus, definitivamente não monstruosus. E assim, antes de começar pelo ser que mais abomino na minha vida porque continua a fazer sombra à grandiosidade em que me transformei, é com muito orgulho que comunico que, desde o fim da primavera, dois novos e vigorosos rebentos, muito verdes, têm-se desenvolvidos a olhos vistos e até parecem a resposta lógica à agressão saudável que o meu pai adotivo fez em mim.
Não desejo mal à Nora (o meu pai deu-lhe este nome) e até fiquei muito incomodado, há uns tempos atrás, quando vi as suas folhas amarelecerem de repente e começarem a cair, umas atrás das outras. Doença ruim, pensei. A Nora definhava de dia para dia. Pensei o pior e tirei ilações. Ao mesmo tempo que a minha parte inconsciente me fazia sentir um rei a caminho da coroação, todo o outro bloco racional que se originara a partir da formação que o meu pai me deu era invadido por um sentimento de tristeza igual àquele que me tomava quando alguma coisa não ia bem com ele.
O meu pai também reparou que estava a acontecer uma coisa ruim com a infortunada Nora e olhou, algo desconfiado, para o meu lado.
Pai, eu não sou capaz de lançar maldições sobre os outros. Por favor, não me olhes assim! Não passo de um pobre Cereus...
Felizmente que desviou o olhar para outros sítios. Para ser franco mirava, ainda mais desconfiado, as couves e as alfaces, vegetais que considero de linhagem inferior. Compreendi o alcance do seu olhar. Foi só um momento, mas o bastante para atingir os seus pensamentos.
Que ideia a dele fazer aquele desbaste desastroso na Nora!
Depois, encolheu os ombros e dirigiu-se para as escadas, que subiu. Voltou pouco tempo com uma tesoura de poda nas mãos e dirigiu-se para a infortunada Nora.
Mais desbaste?, pensei.
Entendi quando o vi a cortar os ramos secos.
Os dias passaram. Milagre ou não, começaram a nascer folhas novas na Nora.
Temos rainha!
Deixei de lado todos os ressentimos e dei graças ao afastamento da dama de negro, inimiga número um do meu pai e de quem ele fala muito nas histórias que escreve. Creio que, quando a evoca, está a referir-se à morte, esse ente abjeto que leva consigo, na hora fatal, quem está destinado.
Mas deixemos à margem estes maus pensamentos, esqueçamos a ambição de momento dum rei sem coroa e que fique tudo no seu lugar, antes dos acontecimentos quase funestos ligados à Nora e provocados por um ato de imprudência de quem a desbastou exageradamente. Ao mesmo tempo, não é bom para quem fez "aquele trabalho".
Quanto às urtigas, convivi agradavelmente com elas durante todo o inverno e princípio da primavera, até que o familiar do meu pai voltou para amanhar a terra. Ainda tenho na memória os gritos lancinantes das infelizes à medida que eram arrancadas na terra com golpes violentos de enxada.
O cato espanhol, esse não se cala. Continuo sem perceber patavina do que diz. Coitado! Quer fazer bom ambiente mas põe-me a cabeça em água. Bem pergunto aos outros vizinhos se o entendem: a Portulacaria afra, os aloe e seus primos, as gasterias e uma Echeveria secunda de folhas carnudas esverdeadas, que tem vindo a afirmar-se entre as companheiras da mesma família.
Caso enterrado definitivamente?
Tudo aconteceu no imprevisível mundo das conversas instantâneas, onde é possível uma relação existir sem que exista.
Um dia destes aproximou-se de mim e notei um brilho especial no seu olhar. Quis perguntar-lhe o que se passava de novo, mas claro que não me ouviu. Até os pensamentos, que muitas vezes conseguia ler, estavam escondidos. Enquanto procedia a uma rotineira sessão de limpeza das teias de aranha que me envolviam e dos malditos caracóis que me roíam as entranhas, observei que trazia consigo umas fotocópias que depositou sobre o murete onde apoiava a parte inferior do meu corpo.
Pouco depois sentou-se no murete e começou a ler...
Mas o problema agora é outro e veio, mais rápido que o vento, do outro lado do Atlântico. O mês de abril despediu-se com muitos "ois" brasileiros, inconsequentes e dei com o meu pai a sonhar no virtual um sonho perigoso porque criou de imediato uma forte e irracional envolvência.
Parece que sim, agora que ele vai contar ao amigo escritor uma história sobre esse amor da juventude que o marcou para sempre. De certa forma é uma homenagem que, embora tardia, acaba por ser feita. Que ela descanse para sempre em paz!
Hoje está uma noite morna. Convida a uma boa caminhada ao acaso. Assim posso refletir melhor. Preciso de arrumar as ideias. Desta vez não espero a onda na praia dos desencontros, longas horas, onde os sonhos começam e não acabam, até os sonhos que nunca tive. Não há ausência. Existes tu. A minha onda que ainda está para lá da linha do horizonte.
E de repente acontece, como que por magia. O céu da noite foi aquecido pelo riscar efémero de uma estrela cadente. E logo o desejo nasceu. E logo se realizou.
Mas que desejo?
Mistério!
Desde o nascer do dia, os meus pensamentos filtram tudo e todos que não sejam um simples nome, um olhar, uma "emoção" traduzida num rosto corado de vergonha por uma frase vulgar.
E que mistério é este, que magia, que não me deixa pensar noutro nome senão o de Simone?
É muito estranha a vida no dia a dia. De repente, tudo muda e o "outro eu que não eu mas eu" descobre no oculto o nascimento de uma amizade, quiçá amor, que o oceano não vai separar. O olhar perde-se virtualmente nas distâncias que o mar esconde, galga milhares de quilómetros, desesperadamente louco, à procura de ti, Simone.
Aconteceu ontem. O feitiço germinou em meia dúzia de frases trocadas. Frases banais, mas que provocaram uma estranha cumplicidade. Aconteceu ainda ontem e sem ti sinto-me vazio. Ausente.
Racionalmente não devia ser assim. Não posso ser eu, nem tão pouco o Mário com a sua descontração habitual que estou sempre a sublimar. O Mário conquistou a Maria e eu deixei-a partir, cabelos soltos ao vento, e pedi-lhe para nunca olhar para trás, ao mesmo tempo que ele insistia para sonhar todos os dias com ele.
Agora há um vazio que nos separa. A mim e ao Mário. Para ele nunca houve noites estreladas, nem precisou de esperar pela onda que não vem. Consegue tudo o que deseja. Sim, se desejar tem o mundo a seus pés. O dinheiro. O amor. O dom de adivinhar. De vencer. De saber perder. De perdoar e castigar. De destruir. E, principalmente, de acertar no cavalo certo e saber perder o cavalo errado.
Não. Não sou eu a pensar em ti, Simone, e a desejar ter-te comigo. A amar-te (meu estranho amor!) e a ver-te como te vi ontem:
«Você é linda!»
O "outro eu que não eu mas eu" saiu à rua nesta noite morna de abril e abraçou tudo o que os seus olhos viram porque estavam sempre a ver-te e a ler duas palavras mágicas: "Sempre Simone". A própria lua, envergonhada no seu insignificante quarto crescente e mais baixo no firmamento, talvez Vénus (que me perdoem os astrónomos), quando contemplados nas suas distâncias proibidas à minha qualidade de simples mortal, diziam:
«Simone... Simone!»
E "eu que não eu mas eu", via-te. O teu olhar sedutor, a tua boca apetecível, o teu corpo desnudo e abandonado. Tudo em ti parecia ser meu, como se te conhecesse há muito e tivéssemos dormido na mesma cama...
Sei que é loucura. Só nos conhecemos pelas palavras que trocámos, embora eu esteja em vantagem porque já ouvi a tua voz e creio que foi ela que me aproximou fatalmente de ti. Sei que é loucura, mas é bom!
Pobre do Mário e também de mim... de não termos a sorte de gostar tanto de ti e de poder dizer-te:
«Tu és linda!»
Que faço à minha vida, Simone?
Ah!, se pudesse estar agora contigo, à beira-mar, ouvindo o ruído das ondas e vê-las espraiarem-se, a beijarem as areias douradas e se pudéssemos ficar muito juntos, colados como um só, eternamente invisíveis, esperando sem pressa pela onda que há de vir num orgasmo final?
Mas não. Perco sempre tudo o que ganho.
Tu sabes, Simone!... Sempre Simone... se já te perdi, ou se continuas ainda na rota do acontecer...
Que fizeste à tua vida, pai?
Já sei a resposta. No fundo este teu amor no virtual é uma continuação dos amores impossíveis que tens vivido.
O maio tem sido generoso em muitas e muitas provas de amor que, com a sua força, ofuscaram a verdade incontornável do virtual.
Enlouqueceste, pai! Já não és o mesmo. Nunca mais vi o teu semblante carregado nem senti, tão pouco, aquelas nuvens negras habituais a envolverem-te e a fazerem baixar o teu astral. Tens lutado contra tudo e agora estás a vencer a batalha do virtual para onde te atiraram todos os que te amam e não te amam. Se dependesse só de ti, a distância que os separa seria anulada num instante. Mas não conheço ainda a verdadeira dimensão desse perigoso mundo virtual, nem quero fazer futurologia.
Se todos os meses que vêm a seguir fossem como maio...
Aliás, junho já entrou a fundo e não voltei a ter notícias do teu amor, pai. Se se mantém com a força de maio, se começou a entrar numa órbita de obscuridade. Acho-te apreensivo.
Que te preocupa, pai?
Os vossos diálogos na tela dos corações caídos já perderam a força dos primeiros tempos?
Eu por cá fico rodeado pelos meus amigos, falando com eles de tudo e de todos, mas conservando o teu segredo. Podia antever o teu futuro, pai. Imaginar que essa paixão que o abril viu nascer e o maio criar fortes raízes, podia inverter o seu sentido ao longo de junho e acabar tragicamente nos últimos dias de julho, desfazendo-se como uma simples bola de sabão...
Os meus rebentos estão a desenvolver-se a olhos vistos e sinto-me orgulhoso por eles. O Aloe de virtudes curativas acredita que não foi por coincidência que eles se formaram logo após os cortes drásticos com o fim da propagação da espécie.
A Nora, como de costume não se pronunciou. Merece o benefício da dúvida depois de ter passado por maus momentos. Talvez um dia a ensine a comunicar. Comigo e com os outros amigos do quintal.
Quanto às urtigas, infelizmente deixei de as ver por perto.
Mas que fez agora o meu pai?
Vinha na minha direção e voltou para trás. Tento ler-lhe o pensamento e só dou pela existência de tristeza no seu rosto.
Não pode ser!
Parou junto ao sítio onde, um dia, queimou as cartas de amor. Não quero acreditar que ela voltou! Só sei que está a olhar para as cinzas que já não existem.
Pareceu captar a minha preocupação e voltou-se para mim, como que a dizer que não me preocupe, pois há de sobreviver. Que envelheceu nestes últimos tempos, lá isso envelheceu.
Mas que estou para aqui a dizer?
Não passo de um cato vulgar, completamente alucinado, que julgou libertar-se do seu imobilismo genético e voar, em liberdade absoluta, graças ao milagre do seu pensamento. Infelizmente, continuo a ser o Cereus... Cereus peruvianus, sempre não monstruosus.
«Oi, cato espanhol... que pensas de tudo isto? Pelo menos uma vez na vida diz alguma coisa que eu perceba.»
«Oi...»
Finalmente disseste uma palavra que entendi.
O SONHO DE NORA
Começo por apresentar-me. Chamo-me Nora, a árvore mais frondosa e alta do quintal e sou bela, caprichosa, sensível, talvez um pouco volúvel, e muitas mais coisas que sei ou que não quero dizer. Todos os anos, pela primavera, orgulho-me de ter uma prole de filhos. E ainda mais um dado: sou a irmã emprestada do Cereus peruvianus, o filho adotivo predileto do Mário, contador de histórias e não só. Rs. Não vou falar dessa parte do “não só”. Ah! Falta ainda dizer que tenho sobejamente mais de vinte anos e vim da casa do meu pai adotivo diretamente para este quintal, cada vez mais dominado pela presença avassaladora das ervas daninhas, onde também se veem diversas plantas medicinais e comestíveis. Bom, mas acho que já tudo foi dito pelo Cereus.
Ponto importante que surge em forma de pergunta:
Como aconteceu o fenómeno do meu nascimento?
Vou explicar de imediato como vim parar a esta Terra de passagem. Não sei o que quer dizer "Terra de passagem" e aproveito desde já para avisar que situações análogas a esta vão acontecer e esclareço também que não tenho a inteligência e o saber do meu irmão, isto já para não falar do meu pai. Lamento não ser como o Cereus. Não tenho o dom de comunicar. Nem com eles, nem com a maior parte das plantas do quintal. Esse dom só foi concedido ao Cereus, o que lamento. É triste, mas pura verdade. Repito que não sou inteligente. Nem sequer tive oportunidade de aprender a ler.
Comecei a minha apresentação com um “olá”, um cumprimento um pouco diferente do habitual “oi” do meu irmão que, por algum motivo, se julga com direito a usufruir de raízes sedeadas no outro lado do Atlântico, talvez por um motivo ligado às tendências obsessivas do nosso pai, o ano passado, em maio, no tempo no tempo em que a paixão saiu à rua e ia virando do avesso a sua vida.
Então, vamos... “olá”, sou Nora, a nespereira do quintal dos pais do Mário e tenho muita pena de não ter assistido às tropelias dos seus tenros anos quando ele era o Marinho e de seguida se tornou o Marinho (quase Mário). A roseira contou-me. Ocupa um espaço ao fundo do quintal, precisamente onde já foi uma capoeira de galináceos e viveu uma figueira enorme que foi contemporânea desse menino traquinas que nunca se cansava de pôr em estado de sítio quase tudo o que se cruzava com ele. Ora a figueira passou o testemunho à roseira e, um dia, quando o vento ficou de feição, esta contactou comigo, para grande espanto meu, pois nunca tinha conseguido o contacto com os meus companheiros do quintal.
Nasci em Lisboa, em pleno verão, numa marquise agradavelmente quente, como resultado de um desejo do meu pai.
Uma vez comprou nêsperas e guardou alguns caroços que deixou secar. Dias mais tarde enterrou dois caroços na terra de um vaso e daí resultou o meu nascimento e da minha irmã falsa gémea. Lembro-me desde sempre do Cereus. Quando vim ao mundo já ele lutava pela vida, sempre acarinhado pelo Mário, o que me causou desde o princípio terríveis ciúmes que não consegui esconder. Sei que é um defeito que, muitas vezes, tem resultados catastróficos e o Mário que o diga, pois sofreu na pele as consequências do ciúme doentio de uma mulher. A rutura tinha que acontecer, mais tarde ou mais cedo. E foi assim que o amor entre os dois se perdeu. Não sei muito bem o que estou a dizer, mas acabo de traduzir tal qual como me foi contado. E o Mário nunca mais voltou a ser o mesmo.
Às dez e meia da manhã desceu as escadas. Disse-me a roseira que ele, quando era o Marinho (quase Mário), descia sobre as escadas num mergulho perfeito, depois de segurar-se nas grades e tomar balanço. Aterrava sempre em segurança no quintal. Agora os tempos eram outros.
Como um autómato, dirigiu-se até à cave e voltou, pouco depois, com um pote de vidro.
Já no quintal, encheu-o de terra. Foi o momento de entrar em cena e tentar seduzi-lo.
Nora, onde te foste meter!
Olhou para mim, algo curioso.
«Ainda na quinta-feira só havia meia dúzia de nêsperas lá no alto e agora estou a ver estas tão madurinhas, aqui à mão de semear! Devo andar com visões...»
Foi mais fácil do que julgava.
Oh não! Está a atirar os caroços para o chão!
«Mário! Não é assim que deves fazer...»
Olhou para mim, admirado.
«Vá... apanha-os.»
Respirei de alívio. Obedeceu. Começou a enterrar os caroços na terra que enchia o pote.
Menino bonito!
«Como nos tempos antigos... Esta bela nespereira nasceu de dois caroços que há muitos anos pus num vaso. Quantos...? Sem dúvida, mais de vinte anos!»
«Querido pai!»
«Parece que ouvi uma voz. Hoje não tenho andado bem.»
O que se seguiu depois já me contou o Cereus. Fiquei para morrer. O incrível que aconteceu para os lados do jardim.
«Foi tudo calculado ao segundo. Quando o Mário chegou ao jardim e se preparava para descer a rua habitual com destino à padaria, bruscamente desviou-se para a direita e olhou ainda mais para a direita.»
«E então?»
Continuou a descrever o que se foi passando. No passeio da transversal vinha uma amiga de infância. Era a força do destino, mas não dos seus destinos. O outro estava quase a acontecer.
Ela perguntou-lhe onde ia.
«Vou comprar pão. É assim todos os sábados, mais ou menos a esta hora.»
«Queres tomar um café? Conversamos um pouco.»
«Pode ser. Ainda tenho muito tempo.»
As árvores localizadas nas proximidades da porta tinham desempenhado o seu papel na perfeição, ao encaminhá-lo para o desvio, à hora certa e para a pessoa certa que era só um meio para atingir um fim que ele não conhecia e era o fim certo.
Houve um momento de hesitação porque os dois queriam ir buscar os cafés. Ele insistiu e venceu a pequena escaramuça. Tinha que ser ele. Tudo continuava a bater certo.
«Fica a tomar conta desta mesa...» Disse ele.
Resumindo. Dentro do café só havia na altura uma cliente ao balcão. Reparou que vestia um casaco creme e calças ao tom, talvez branco sujo. O empregado perguntou ao Mário se queria levar o jornal.
«Obrigado. Vou conversar com uma amiga.»
«É oferta. O jornal da cidade está a comemorar o aniversário.»
«Então levo.»
«Se soubesse da oferta tinha pago menos uma semana na assinatura.» Disse a mulher vestida de branco.
Trocaram um sorriso rápido, aparentemente sem significado e ela saiu, logo de seguida. Entretanto o Mário já tinha as duas chávenas de descafeinado na sua frente. Pegou nelas e pensou logo se não ia haver caldeirada. Era exímio em problemas de pouca monta como entornar o conteúdo de uma chávena.
Foi então que viu a amiga acompanhada da mulher de branco. Pouco depois estavam os três numa conversa aparentemente normal.
E pronto. O destino desviado seria cumprido.
«Achas que vai resultar, Cereus?»
«Fizemos tudo o que tínhamos a fazer. Conseguir o encontro. Agora está nas mãos dele e da mulher do vestido branco. Na atração que sintam ou não. E por aí em frente.»
«As tuas amigas foram impecáveis. Acho que o desviaram da rota no momento crucial. Gostava de conhecê-las, mas como conseguir, se estou aqui agarrada à terra?»
«Deixa comigo, querida Nora. Posso ajudar-te.»
«Sim? Que bom!»
«É assim... Vou ensinar-te um truque. Logo à noite, quando toda aquela gente estúpida, que tu já conheces de ginjeira, adormecer, vamos voar até encontrarmos o lugar onde estão as árvores, junto à porta e então trocamos uns dedos de conversa com elas. Vais ver que é fácil libertar o espírito.»
O espírito?
«Que bom! Mas eu tenho espírito?»
«Claro que tens.»
«Estou abismada, Cereus! Tu és um espanto. Consegues tudo o que queres. Até me deste um espírito!»
«Isso julgas tu. Já o tens contigo desde que nasceste. Mas o espírito não pode errar eternamente no plano astral. Tem compromissos com o corpo grosseiro. Volta sempre.»
«Agora só desejo que anoiteça depressa...»
«Isso, a acontecer, seria um engano. O relógio do tempo não adianta nem atrasa.»
«Tens sempre razão.»
«E sabes uma coisa que nunca te disse?»
«Sim?»
«Gosto muito de ti. Sempre foram muitos anos juntos.»
Senti que corava de novo.
«Só mais uma coisa sobre as árvores: além de provocarem o ligeiro desvio, mas decisivo, do Mário, não fizeram mais nada?»
«És perspicaz. Sim. As árvores soltaram odores especiais de atração que só foram sentidos pelos dois.»
«E então o nosso pai e a desconhecida sentiram-se atraídos um pelo outro.»
«Passou-se uma semana e aconteceu muita coisa. Diria que foi milagre. Acreditas que estão apaixonados e vai ser muito difícil alguém separá-los?»
«Vês problemas?»
«Muitos obstáculos. E agora só depende deles. Nós preparámos o encontro. Agora têm que se entender.»
«Vai tudo correr bem. Depois do nosso esforço não vão perder a oportunidade. Tanto um como o outro devem estar carentes. Seria irracional perderem-se por ninharias. Mas que têm que nadar contra a corrente, lá isso têm.»
«Nora... sinto-me outro ao pé de ti.»
«Como assim?»
«Estou a ficar baralhado. Não me lances esse olhar dengoso que não respondo por mim.»
«Cereus?»
«Nora?»
«Alguma vez irão desconfiar que fomos nós que os enviámos para os braços um do outro?»
«Nunca se sabe.»
«Pois não.»
«E esta história acaba aqui.»
«Que pena!»
«Talvez um dia possamos saber o que aconteceu ao Mário e à desconhecida.»
«Nós dois?»
«Sim, nós dois. De futuro vamos estar mais juntos.»
«Como assim?»
«Lembra-te que vou ser o teu professor de voo. A propósito, gostaste do primeiro voo?»
«Sim! As árvores do jardim são muito simpáticas!»
Cereus demorou a falar.
«Brevemente partiremos para sempre, rumo ao desconhecido.»
«E nunca mais voltamos? O pai vai sentir a nossa falta!»
«Se tudo correr bem só vai lembrar-se de nós com um misto de saudade e dúvida.»
«Saudade compreendo. Agora dúvida...»
«Sim. Os teus troncos e folhas e também o meu corpo espinhoso perderão de repente o sentido da vida e morrerão em pouco tempo. Nora, pensa bem. Uma vez abandonado o nosso corpo nunca mais podemos voltar.»
Mas estou decidida.
«Ensina-me a voar, Cereus!»
«Nem quero eu outra coisa.»
«É fácil aprender a voar?»
«Não te preocupes, Nora. Para o sítio onde vamos, seremos um só
Nora e Cereus…
O sonho de Nora, a nespereira que um dia absorveu a sua irmã gémea, não morreu à nascença, mas parece que estava condenado ao fracasso. Nada teve a ver com outro sonho que contribuiu para a aproximação de dois corações solitários e sedentos de amor. Mário e Rita seguiram o seu caminho, juntos, depois da ajuda preciosa de Nora e Cereus. E também de outros. Quanto à Nora e ao Cereus, tudo levava a crer que a sua vida se uniria para a eternidade mal os seus espíritos se desprendessem dos corpos grosseiros.
Concluída a primeira fase, deixaram-se ficar planando sobre o quintal. Em baixo, os companheiros, presos à terra que os mantinha vivos, estavam longe de imaginar a alteração radical no futuro do poderoso cato e da companheira esbelta que dominava o quintal nas alturas. Quanto ao pai adotivo tinha encontrado o seu caminho e já não precisava do apoio mental dos dois vegetais pensantes. A sua contribuição para que encontrasse a felicidade tinha sido determinante. Nada sabiam acerca da personalidade e dos verdadeiros sentimentos da nova companheira de Mário. Tinham ouvido falar vagamente da inexistência de uma linha do coração no estudo quirológico que este fizera nas suas mãos, o que, em princípio, não era um bom indício. Uma mulher com uma componente racional muito forte em nada ajudava quanto a uma eventual colisão com um Mário sonhador, muito menos materialista, mas fortemente determinado. Acreditavam que o planeamento, feito ao segundo por Alguém lá em cima que talvez gostasse muito deles, não podia estar de forma alguma votado ao fracasso. Era preciso haver esperança e que ambos temperassem os impulsos muito diferentes de forma a encontrarem o equilíbrio. De facto estavam condenados a entender-se, mesmo que depois do mar de rosas, de sonhos e de fantasias surgisse o implacável mar tormentoso, de ondas alterosas, em que se debateriam ao serem arrastados para o largo, onde os sonhos se afundavam e se iniciava a vida real com os dois entregues de uma vez por todas a uma viagem que já não admitia regresso.
«De repente fiquei triste. Acho que lhes devíamos dar mais um pouco de ajuda. É cruel sabermos que há um ponto que os pode afastar de vez. A componente material. Para o amor de Mário basta uma cabana. A Rita já não pensa assim. Será que se vão entender?»
«Estás a ter as mesmas dúvidas que eu, Nora. Mas sabes uma coisa? Nós não podemos fazer mais. Encontraram o seu caminho. Agora têm que se entender. Preocupa-me mais o amanhã que espera estes desgraçados do quintal, por mais estúpidos e inferiores que sejam. Nós libertámo-nos e em breve estaremos fundidos num só, a caminho do novo destino que mora muito longe.»
«Também tenho pena daqueles companheiros que não podem fugir do desmantelamento do prédio que irá submergir todo o quintal. Não têm pernas para fugir. Deus destinou às plantas um modo inalterável de se fixarem à terra-mãe que os alimenta. Deu-lhes também a sensibilidade, mas de nada lhes vai servir. Mesmo que sejam avisados, que podem fazer?»
Nora sentiu o calor da proximidade protetora do Cereus e suspirou profundamente.
«Onde chegou esse suspiro?»
«Onde querias que chegasse?»
Nora não pôde adivinhar o sorriso do companheiro.
«Não nos despedimos deles?»
«É melhor não» disse o Cereus. «Deixa que a vida continue aqui até ao golpe fatal.»
«Nem deixas umas palavras para o desgraçado do cato espanhol? Apesar de ser um grande chato com as constantes algaraviadas, creio que gostava muito de ti. É estúpido por natureza, como tu dizes, mas foi o teu companheiro mais próximo.»
«Sabes, Nora?... ele não ia compreender as palavras de despedida, por mais carinhosas que fossem. Não passa de um cepo, um primitivo quase ao nível daquelas couves que o homem que cuidava do quintal plantava. Isto para não falar nas urtigas irritantes e nas outras tuas amigas rasteiras.»
«Discordo desta última parte. Também são filhos do Criador e não têm culpa de terem sido tão pouco dotados por Ele.»
«Retiro o que disse. Admiro-te, Nora. Evoluíste muito.»
«Devo a ti. Só a ti. Mas fico triste por a nossa ligação se ter fortalecido à custa da elevação da minha cultura. Sou muito parecida com eles e não é por me ter tornado superior que deixei de os amar e admirar. Aliás, já disseste uma vez que eu só tinha altura e era uma vaidosa quando os meus troncos e folhas se enchiam de filhos.»
«Não estás a ser justa. Já gostava de ti no tempo em que tinhas a inteligência adormecida.»
«Não me parecia. Mas deixemo-nos de quezílias. É importante que estejamos cada vez mais unidos.»
«Gosto muito de ti. Já tens sentimentos e a perceção das coisas. E vais evoluir, sempre evoluir mais. Prometi que te ensinava tudo aquilo que sei. Lembras-te? Há um elo muito forte a unir-nos.»
«Devíamos ficar por cá mais uns tempos para podermos acompanhar de perto a nova ligação do nosso pai. E há ainda outra coisa que me preocupa. Por que carga de água temos que voar para as estrelas, se as raízes continuam a existir e vão continuar a ficar por cá, agarradas à terra que nos fez crescer?»
«Temos que dar uma resposta concludente aos ventos de mudança, Nora. O quintal vai desaparecer. O nosso pai tem um novo amor. Não compreendes?»
«Sopram ventos de mudança. Será que o nosso pai os deseja? Vamos ficar por cá fisicamente. Só fisicamente. Ele sentirá falta duma presença espiritual. Da nossa verdadeira presença. Sim. Já não vamos ser nós. Apenas uma nespereira elegante, vaidosa... e um Cereus pensador e penetrante até aos escaninhos mais escondidos onde reside a verdadeira essência a que os homens chamam subconsciente.»
«Nora!»
«Sim, Cereus pensador?»
Voltou a não ver o seu sorriso. De qualquer forma a noite caíra cerrada no quintal adormecido, tão adormecido que nem um galináceo cacarejava.
«Estou espantado contigo! Evoluíste a passos de gigante...»
«Como consegui? Ah sim. Naturalmente os nossos espíritos já fazem parte um do outro. O que previas na minha evolução talvez tenha acontecido mais cedo. Mas, voltando atrás, achas que é imperioso... ou por outra... vai mesmo acontecer a decomposição rápida do invólucro grosseiro que nos guardou nesta Terra de passagem, ou há uma hipótese de estares enganado? A princípio não tínhamos alma, nem sequer pensávamos. Tu evoluíste. De repente eu evoluí.»
«É inevitável. O quintal vai desaparecer. E tens razão. Eu evoluí primeiro. Desde sempre estive em contacto com o nosso pai, só que ele não acreditava. Logo que me trouxe para o quintal soube dos seus sonhos e dos consequentes fracassos por nunca os ter conseguido concretizado. Das mágoas sentidas que calei com a cumplicidade de quem estava também envolvido.»
Sem saber porquê, Nora ficou triste.
«Estás a referir-te à jovem que vestia de branco, cujas cartas de paixão ele queimou num acesso de desespero. Digamos, quase ódio. Nos humanos o ódio e o amor por vezes tocam-se. Não é do nosso tempo, mas ficou o testemunho da velha figueira que contou segredos à roseira. Isto já me contaste ou alguém do quintal fez o favor de me relatar.»
«Feridas que deixaram úlceras. Nunca sararam de verdade.»
«Mais uma razão para ficarmos.»
«Sabes uma coisa, Nora? Acredita que tens uma alma grande. Logicamente não tem peso, mas vale muito. Mas nada podemos fazer pelo nosso pai. Como disse Sartre num livro, “os dados estão lançados”. Mas acredito que vai tudo correr bem entre eles.»
«Oxalá.»
«Estás pronta?»
«Se temos que ir...»
«Agarra-te a mim.»
«Onde?»
«Mentalmente.»
«Ah sim. E para onde vamos?»
«Para além...»
Nora julgou ver um dedo do Cereus apontado para o firmamento e sentiu medo. De seguida, um frio imenso, fustigante, gelou-a e fez bater o queixo que não tinha.
«Não olhes para baixo, Nora. Desliga-te de vez do mundo material.»
«Dá-me a mão!»
«Não posso dar-te a mão...»
«Porquê? Ah... certo. Não faças caso. Vou deixar que me guies. Não me abandones, Cereus!»
«Um dia serás independente.»
E esta?
«Mas não vamos ser um só?»
«Claro que sim.»
Nora ficou a pensar...
O cato concentrou-se na viagem, seguindo um rumo sem rumo até aos confins das estrelas, ao sítio dos quasares, buracos negros gigantescos que roçavam o limite do universo. Foi uma viagem pautada em grande parte pela escuridão, baseada no sonho que só o Cereus sonhou. Não viram os jardins do Senhor. Não desceram, tão pouco, às terras tórridas do inferno. Nora, talvez fundida com o companheiro, limitou-se a esquecer-se do que nunca se lembrou. Aprendeu a voar sem ter consciência que voava. Seguiu cegamente a viagem dum cato iluminado, porque cega era ela. Travaram diálogos que mergulharam no esquecimento. Viveram várias eternidades num segundo. Talvez tivessem sido felizes, mas mergulharam no mais profundo da profundidade cada vez mais profunda.
Nora continuou a pensar...
Provavelmente ia esquecer-se de vez da Terra amada, do pai de afeição e do dia em que o seu sol interior brilhou intensamente, também do quintal, das amigas urtigas e da erva-cidreira bem cheirosa. A viagem através do negrume sideral durou e durou... até que ela e ele chegaram a um sítio parecido com uma certa “terra do nunca”.
Nora não se lembrava se foram felizes e se ficaram mais uma eternidade, fundidos no ideal comum, ou desesperadamente sós, não se concretizando o pressuposto gravado nas memórias agora apagadas; não se lembrava se partiu com o companheiro para a eternidade e algo imprevisível falhou; se viveram na escuridão uma vida intensa iluminada pela luz invisível do sonho; se teve acesso total à prometida e inesgotável base de dados; se ele a ensinou a voar e de imediato ela se perdeu no azul constelado do céu do futuro; se chegaram aos confins inimagináveis dos quasares e voltaram para trás; se... tantos mais “ses” até chegar a uma situação, aparentemente ilógica, de retorno. Ilógica, mas real.
Flutuava agora sobre as plantas do quintal, rente ao seu corpo grosseiro que ainda não tinha sido desagregado, molécula a molécula, conforme a previsão de Cereus, o pensador.
Tinham partido em iminência de fusão e agora regressava com a sensação amarga de ser uma só entidade.
Depois de um momento de hesitação aproximou-se mais do seu vulto frondoso até que houve uma aparente colisão semelhante a um encaixe de duas peças e concluiu que acabava de “entrar de novo dentro de si”.
Deixou-se ficar no escuro à espera de ouvir o cantar do galo, sinal que o dia clareava. Aos poucos foi vendo os contornos familiares dos ocupantes do quintal e fazendo pequenas descobertas. Os Aloes tinham invadido um dos flancos do cato espanhol. As urtigas e demais ervas daninhas ganhavam terreno e competiam “ombro a ombro” com a erva-do-príncipe e a erva-cidreira. E claro, o possante Cereus apresentava rebentos novos.
Deduziu que era fim de junho.
«Cereus...»
Silêncio no quintal.
«Responde, Cereus!» insistiu.
«Amigo cato espanhol... sabes o que se passa com o Cereus?»
«Estás cega, Nora?»
O cato evoluíra. Já regateava.
«Bem o vejo, amigo. Mas ele não fala?»
«Emudeceu há uma semana.»
Um semana? Então...
«E tu também. Que se passou com os dois?»
«Ah sim. Tive uma dor aguda no corpo todo.»
Não era ali que, de momento, devia estar.
Novo choque, agora algo semelhante ao desencaixe de duas peças e o imediato desprendimento da nespereira, a sua camuflagem grosseira.
Onde procurar o seu pai de afeição?
Tentou falar no jardim com as árvores. Não conseguiu. Depois voou pelo espaço do desejo durante todo o tempo do mundo, já que o tempo não tinha tempo para si, no rasto do pai.
Encontrou outra família na casa antiga. Numa semana ele tinha saído daquela casa. Pouco lógico. O tempo das plantas não era síncrono com o tempo dos humanos.
«Ah... como não me lembrei!» pensou. «Se ainda vivem juntos, só pode ser num sítio...»
Claro que não tocou à campainha da porta, nem usou o elevador. Num instante estava dentro de casa e noutro a percorrer todos os compartimentos da mesma, mas não teve êxito. Deixou-se ficar, pensativa, no canto mais escuro da sala.
«Se não moram aqui, adeus esperança de ainda viverem juntos» desabafou. «Pobre do meu pai! Que falhou?»
O tempo foi-se escoando e cada vez mais se acentuava a sensação de fracasso.
«Mas...»
Desceu até junto de uma mesa baixa e focou o olhar, ou isso de olhos, numa moldura. Um sorriso iluminou-lhe o espírito.
«Ele sempre conseguiu!»
A Rita não gostava de ter em casa fotografias do Mário e ali estava uma!
«Deu certo! Deu certo!»
Gritou aos quatro ventos, mas os sons foram abafados pela existência inevitável do vazio.
Sentiu abrir-se a porta da rua e ficou expectante, aguardando que entrassem na sala.
«Olha o Loris!» disse uma voz feminina. «Não o deixes entrar na sala que arranha as carpetes...»
O gato apareceu e começou de imediato a afiar as unhas na carpete azul.
«Não te dizia?»
«Não lhe ligues.» Disse Mário. Vais ver que logo desiste. Dá-me é um beijo que já tenho saudades.»
«E eu também...»
«Que belo par fazem!» pensou. «Mas ele envelheceu um pouco. Quanto tempo já se passou?»
«Pai... ouve-me... estou aqui, ao teu lado!»
«Coisa estranha...» Disse Mário.
«Que aconteceu?»
«Pareceu-me ouvir uma voz. Muito fina. Vinha do lado da janela.»
«Não me assustes. És incorrigível. Tu e as vozes do outro mundo...»
Nora esgueirou-se, desta vez pela porta que dava para o hall, não sem antes ter pisado a cauda ao gato que soltou de imediato um miado estridente, ao mesmo que os pelos se eriçavam.
«Que se passa com o Loris?»
«Os gatos veem coisas que os humanos não dão conta...»
Não ia voltar ao quintal, condenado a desaparecer, nem ao hipotético mundo das “terras do nunca”.
«Juntos seremos um só, uma ova! Provavelmente traíste-me e fiquei só. És como certos homens que não podem ver uma burra de saias. Vou voltar ao quintal. Guardo tão gratas recordações daquele sítio. Dos meus amigos. Da chuva, do granizo e do vento agreste. Do sol que que me aquecia, mas queimava as minhas folhas. Dos meus filhos cheios de doçura que tanto encantavam quem os comia. Das histórias que ouvia. Dos amores e desamores do meu pai adotivo. Do ingrato do Cereus que emudeceu.»
Sempre era verdade! A casa e o quintal, tinham desaparecido para sempre.
A ÚLTIMA ABENCERRAGEM
Só que eu vou ser o último dos últimos. Mas não tenham pena de mim por ser a última abencerragem.
Quanto a mim, Cereus junior, nasci também no quintal, já quando decorria o período decadente do grande Cereus. O desfecho fatal adivinhava-se e o nosso pai adotivo decidiu como se impunha. Um golpe único de faca afiada e eis que me separei do todo que constituíamos, eu e o meu pai-irmão.
Dias mais tarde fui mudado para um vaso que existia lá em cima, na varanda de chão cimentado. Aos poucos, fui ganhando raízes, o único meio de me agarrar à vida. Vida que foi fugindo, aos poucos ao Cereus, até que um golpe de vento o deitou por terra, onde ficou, agonizando.
Meses mais tarde o meu pai adotivo mudou-se para outra casa porque a casa onde morava foi vendida a um construtor civil que a mandou demolir e arrasar o quintal. Levou-me consigo. Do quintal conservo apenas a recordação do silêncio de Nora, a nespereira frondosa e orgulhosa dos seus frutos e também dos outros companheiros, nomeadamente o cato espanhol que, dizia-se, falava pelos cotovelos e ninguém o entendia. Quanto às plantas inferiores, couves, alfaces, tomateiros, urtigas, ervas daninhas, etc, delas também nada posso dizer.
Agora estou numa varanda altaneira donde vejo as pessoas passarem, bem como os carros e tudo o mais. No tudo o mais, incluo uns animais a que chamam cães e gatos. Já não sou visitado pelas borboletas, abelhas, nem pelas joaninhas. Dou-me bem com os meus novos companheiros, especialmente com a companheira mais próxima, uma pequena oliveira que já deu frutos nos últimos três anos. Estou num ambiente que muito me agrada, com sol quanto baste, que também é apreciado por um gatarrão tigrino, demasiado obeso, que se chama Loris e a quem o meu pai adotivo dedica muita atenção e carinho.
Estou a crescer e a engordar a olhos vistos, sinal de que sou bem tratado e que a mudança de ares me fez bem. Quanto às feridas causadas pelas agressões contínuas dos malditos caracóis do quintal fazem já parte do passado. Ficaram só, para memória furura, as cicatrizes.
E que posso dizer do meu pai adotivo?
Está mais velho. Mais caseiro. Menos pensativo. Também com uns quilitos a mais. É o que posso dizer. Não possuo o dom do meu pai-irmão, dom muito apreciado e, ao mesmo tempo, invejado pela Nora, segundo opinião do cato espanhol, num dos raros momentos em que o ouvi e entendi. E como esse dom não mora comigo, pouco mais posso acrescentar. Quando ele vem à varanda, aprecia o sol, os seus filhos adotivos, especialmente a oliveira. Quando é preciso, rega as nossas terras, fortalece-as com adubo. Paz não me falta. E é tudo.
Penso que o Cereus e a Nora eram os seus filhos preferidos. Já cá não estão. A Nora teve um final de vida dramático.
Como vai ser o meu amanhã?
A probabilidade de ter renovos é mínima. Se um dia o vaso que me acolhe for mudado, não poderá ser substituído por outro muito maior. Assim, o meu destino é continuar a viver com a solidão até que a morte me leve.
Assim, serei fatalmente a última abencerragem.Só faço um pedido ao Criador. Que a morte me leve antes do meu pai adotivo. Não quero continuar a viver na incógnita do amanhã. Ser metido num saco de plástico e deitado, sem dó nem piedade, no contentor do lixo. Com o meu pai adotivo, que jamais me vai abandonar, terei certamente uma velhice que vai conduzir-me ao desfecho digno que todas as plantas desejam ter. Morrer de pé!


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