quarta-feira, 17 de maio de 2023

A história de Cereus e Nora

 


 Cereus (1)

Desde criança que os gatos exerceram em Mário um fascínio permanente, e vice-versa, que nunca conseguiu explicar. Com quatro tenros anos já os atirava da varanda abaixo, embora a dona Francisca, mãe do Sérgio, desconhecesse essa faceta "extremosa" do Marinho.
Depois da morte muito sofrida da sua Princesa, que ocupa um lugar especial no seu coração, jurou que nunca mais teria gatos. Seria esse seu amor tigrino o derradeiro, mas ainda hoje, quando vai na rua e por acaso vê um gato, não resiste ao apelo atávico de estabelecer contacto com o felino, chamando-o por um qualquer nome inventado (olá, Pinóquio), e de fazer-lhe uma festa caso este se aproxime.
O mais estranho destes laços de ternura com os gatos, animais com uma personalidade própria que não se deixam dominar, é quase acreditar na afirmação incrível de um bruxo da região do Porto:
«O seu anjo-da-guarda é um gato.»

De chofre. nem mais nem menos.
Pensou logo na Princesa, que, por sinal era uma gata...
Mas não foram só histórias de gatos que contou. Também de cães, periquitos, pardais de telhado e duma tartaruga que se chamava “Porcalina” (pelo mau cheiro em que deixava a água do aquário) e que, uma vez, um dia não esteve para meias medidas e devorou uma das patas traseiras da companheira mais pequena.
Também em tempos passados foi colecionador de catos e plantas suculentas, conseguindo reunir mais de trezentas espécies, à custa de trocas e vendas de exemplares desenvolvidos numa pequena estufa e também no exterior, onde teve que travar uma guerra sem quartel com os caracóis. Colocava tabuleiros com as ditas plantas na sala dos professores e o resto era fácil. Vendia os catos num ápice. Quanto aos lucros investiu em livros da especialidade que o ajudaram a classificar os exemplares, usando etiquetas amarelas de plástico e escrevendo nelas, com lápis preto que as senhoras usavam para sombrear os olhos, o produto final que eram os seus nomes científicos.
Foi mais uma fase importante da sua vida de colecionador a que se dedicou de alma e coração, como aconteceu em tudo que mereceu a sua paixão ao longo da vida.
Com o decorrer dos anos foi crescendo uma coleção importante. Mas quando a sua vida deu uma volta, daquelas que modificam os hábitos, as relações e o amor, entendeu que também tinha chegado o momento de abandonar os catos, ficando apenas com meia dúzia dos exemplares de que mais gostava.

Não sei se alguma vez conseguiu o contacto com algum dos seus catos preferidos. Em boa verdade, as plantas, como qualquer ser vivo, nascem, crescem, reproduzem-se e morrem. São muito sensíveis ao estado de alma de quem cuida delas e, de certa forma, com elas convive. Se forem acarinhadas com palavras torna-se mais fácil ultrapassarem certas crises de desenvolvimento provocadas pelo frio ou pela exposição exagerada aos raios solares e pelas pragas, onde insetos rastejantes e os famigerados caracóis, e também as lesmas, lhes fazem a vida negra. Na fase de recuperação, além do tratamento, dizem que é muito bom falar-lhes com carinho ou simplesmente olhar para elas com uma expressão suave que reflete o pensamento positivo que a pessoa está a transmitir-lhes.
As plantas sentem. Talvez pensem, se quisermos entrar pelo perigoso campo da ficção científica.
E se também forem contadoras de histórias?


Chamo-me Cereus. Cereus peruvianus. Quero que saibam que as minhas raízes ancestrais são originárias de muito longe, mais precisamente da América do Sul, mas nasci em Portugal, no distrito de Lisboa. O meu pai verdadeiro, ao mesmo tempo meu irmão, na altura da nossa separação para sempre, tinha uma envergadura superior à que tenho no tempo atual, não só em altura como em termos de volume.
Trouxe nos cromossomas todas as suas memórias genéticas que foram aperfeiçoadas ao longo de gerações. Posso afirmar que as origens são muito anteriores ao aparecimento do homem como homem e vêm de há algumas dezenas de milhões de anos.
Paradoxalmente tenho também um pai adotivo, mais novo que o meu pai-irmão, que cuidou de mim a partir do momento da separação traumática do meu clã.
Recordo-me como se fosse ontem. Corria a década de oitenta e estávamos na força da primavera. O clã usufruía, com satisfação, dos benefícios da temperatura amena que se fazia sentir e como reflexo o ambiente que as rodeava era o melhor dos melhores.
Um dia o meu futuro pai adotivo apareceu na frente do clã e ficou muito sério a olhar para o meu pai-irmão. Deve ter sido amor à primeira vista porque naquele momento preparava-se para tomar uma decisão importante e não ia voltar atrás.
Mas como aconteceu?
Olhou em todas as direções, com um ar receoso. Depois, ganhou coragem, sacou de um canivete e avançou. Caso de polícia, pensei.
Mas o que ia fazer?
Não houve tempo para reagir nem nunca podíamos ter reagido, como é lógico. Foi um momento e zás! Um corte certeiro e separou-me da família. Chorei mais de desgosto do que de dor. Mas devia ter compreendido mais cedo que ele queria levar-me consigo. Foi o seu olhar muito sério que me enganou. Julgava que tinha sido só um momento de apreciação, mas ele queria mais. E teve mais. Pegou em mim e meteu-me dentro dum saco de supermercado. Fiquei às escuras, ainda mais indefeso. A seguir ouvi as suas passadas apressadas, de pessoa em fuga. Eventualmente um criminoso que fugia do local do crime.
Já em sua casa tirou-me do saco e mirou-me de alto a baixo. Pareceu-me que gostou do que viu.
E que ia fazer comigo?
Nada ou quase nada. Levou-me para a varanda virada para sul e tive a oportunidade de ver alguns parentes, todos catos. Da mesma família. Respiravam saúde e estavam todos etiquetados de amarelo. Então pensei:
É apenas um colecionador de catos...
Fui depositado cuidadosamente sobre uma tábua e depois ele voltou a entrar em casa. Fiquei chocado. Nem uma palavra de conforto. Só aquele seu olhar de apreciação que logo valeu um comentário de um dos meus novos companheiros:
«Quem és tu para o Mário te ter trazido? Colocou-te na tábua com mil cuidados. Mas és feio, sabes?, mesmo muito feio!»
Não respondi ao insulto. Limitei-me a identificar-me e a explicar o que tinha acontecido.
«Sou o Cereus. Fui cortado por um canivete. Tenho saudades da minha família»
Felizmente os outros ficaram-se pelo silêncio. Não me importei por me terem ignorado por completo. Afinal estava desgostoso de ter sido arrancado ao meu clã e o que mais queria no momento era fazer em paz e sossego o meu luto.
Fiquei um pouco mais descansado. O ambiente não era de todo desfavorável. Devia ter pensamentos positivos para recuperar totalmente da ferida provocada pela lâmina do canivete. Havia o perigo dos meus tecidos apodrecerem. Assim, tinha pela frente um novo destino, curto ou longo. Tudo dependia dos cuidados do meu pai adotivo e também do fator sorte.
Passaram-se os dias e continuei deitado na tábua. Ele aparecia para ver só como eu estava e nesses momentos breves era motivo dos reparos duros e insultuosos do cato que me interpelou da primeira vez, por sinal um Equinopsis multiplex bastante queimado pelos rigores do tempo e já um pouco envelhecido. Entendi logo as razões daquele ciúme. O meu pai adotivo já não olhava para ele com os mesmos olhos dos outros tempos. Estava velho e feio. Sinais do tempo, entendi. Há sempre um princípio e um fim. É inevitável.
Um dia apareceu com um saco de terra e um vaso e percebi que o meu destino ia mudar. Para melhor ou para pior. Não sabia. As feridas tinham cicatrizado. Sentia-me bem. Felizmente.
Vi-o deitar a terra no vaso até três quartos de altura. Quando estava a meter-me cuidadosamente na terra, em posição vertical, com a zona do corte a esconder-se na terra, pensei que era o último ato de lançamento dos dados. A partir daquele momento ficava à mercê da sorte, do meu pai adotivo e da minha vontade de sobreviver. Três em um.
Tinha sede e ele não deitou água na terra. Tinha fome e a terra estava seca. Revoltei-me, mas reconsiderei. O meu pai lá sabia. Era um colecionador experiente e transmitia boas vibrações. Assim, acreditava que ele fazia no momento o melhor por mim.
Só me deu de beber dois dias depois, quando teve a certeza absoluta que as feridas já não corriam o risco de gangrenarem. A partir de então passou a regar a terra de cinco em cinco dias.
Um dia, talvez só por coincidência, aconteceu uma coisa muito estranha e, ao mesmo tempo, muito boa. De um momento para o outro comecei a ler os seus pensamentos e confirmei que eram sempre positivos e de encorajamento quando tratava de mim e dos outros.
Senti-me grato e chamei por ele:
«Pai...»
Não me ouviu ou então não quis responder. Os outros insultaram-me.

«Cato feioso! Nem com graxa vais lá...»
«Vai-te curar, rameloso!»
«Não querem lá ver o pipi da tabela.»
Preferi ignorar os insultos. No entanto, gostei do último porque era mais um elogia que um insulto.
O tempo foi passando. Criei raízes e tornei-me quase independente. Porque o vaso tinha muita terra e de boa qualidade, muito rica em nutrientes, e a água nunca me faltou nem foi exagerada, na primeira primavera e princípio do verão cresci muito.

(Faço aqui um parêntesis. Quando nos enterram, nós ganhamos o direito à vida. Pelo contrário, quando os outros, como o meu pai adotivo, são enterrados é porque estão mortos, pelo menos nesta Terra, segundo ele pensa, de passagem...)

À medida que os anos corriam fui sendo mudado para vasos cada vez maiores e cresci saudavelmente, sempre acompanhado dos pensamentos positivos e de encorajamento do meu pai. Sentia pena de uma coisa. Eu esforçava-me muito para chegar ao meu pai, tentava estabelecer o fio de ligação, de comunhão com ele. Infelizmente não reagiu.
Não tardou que eu e outra planta de ascendência inferior, uma nespereira nascida dum caroço que ele colocou num vaso, quase à superfície da terra, nos tornássemos as plantas mais desenvolvidas do grupo. Logo ganhei ascendência sobre todos, inclusivamente sobre o Equinopsis que escondeu o ciúme doentio que sentia porque já não tinha força anímica para reagir contra mim.
Nasci nos primeiros dias de agosto e, como Leão que era, fui considerado o líder incontestado do grupo. Apenas a nespereira ainda não conseguia esconder um resquício de animosidade que logo desvalorizei perante os outros, não deixando de estar de olho nela porque a achei um perigo potencial para a minha ascendência em relação a todos. Não compreendi o motivo daquela distanciação manifestada, até porque nunca a piquei. O ato de picar era a minha arma final como cato que me orgulhava de ser.
Um dia o meu pai levou a nespereira consigo e senti-me ainda melhor. Havia uma certa rivalidade entre os dois e ela começava a levar a melhor sobre mim em altura.
Mas porque foi que levou a nespereira?
Provavelmente sentiu as minhas vibrações de fera acossada.
Eu devia ser especial para ele. Um espécimen perfeito de quem se devia orgulhar muito.
Sol que pouco brilhou, pensei. Puro engano o meu quando, tempos depois, também me levou da varanda onde se alinhava a sua coleção de catos prediletos. Notei o esforço que fez ao pegar no vaso e consegui ler-lhe os pensamentos.
Penso que nesta varanda já não te desenvolves mais, Cereus. É melhor levar-te para um novo local. Mereces um outro futuro.

«Obrigado, pai!»
Agradeci-lhe muito por todos os cuidados que ele me dispensou ao longo de todos aqueles anos da minha existência. Depois, despedi-me dos meus companheiros.
«Estou pronto, pai. Leva-me para o novo destino...»
Nem um só sorriso saiu do seu rosto. Sempre aquele olhar triste de pessoa que não era feliz.
Que lhe faltava na vida?
Tinha o suficiente para viver uma vida digna, uma namorada que parecia gostar dele. Sim, já os vira a trocar carícias, quando, um dia, ela esteve a ver a coleção. Até comentou:
«E este, como se chama, Mário?»
«Cereus. Cereus peruvianus monstruosus
«É feio! Três nomes, porquê?»

«O primeiro só diz respeito ao género. Os dois primeiros à espécie e os três à variedade. Percebeste, Rita?»
«Não sou assim tão estúpida como isso. Mas esse cato é mesmo feio como os trovões!»
Corei de vergonha. Até ela não apreciava a minha beleza agressiva.
Cereus peruvianus monstruosus. Quase desmaiei de desgosto. Aquele nome é que era feio!
Um dia, ainda quando vivia na varanda, rotulou-me com este nome, usando uma etiqueta amarela de plástico que enterrou na terra junto ao meu tronco.
«Eu, um monstro?»
Nunca fiz mal a ninguém. Nem sequer lancei um mau-olhado à danada da nespereira que crescia, a olhos vistos, bem perto de mim. E como me sentia perturbado!
Olhou muito sério para mim.
Estarei enganado?
Rejubilei. Finalmente ele entendia-me. Ia mudar de ideia.
Foi para dentro de casa e voltou com um livro na mão que começou a folhear na minha frente. Estava um dia soalheiro e lá fora não bulia uma folha. Fiquei expectante.
Que procurava no livro?
Não me parece.
Não lhe parecia, o quê?
Sobressaltei-me ao pensar que ia mudar-me o nome. Já não me importava de ser monstruosus desde que me continuasse a chamar Cereus.
Pegou numa borracha e começou a apagar. Não consegui ver porque as suas mãos finas tapavam-me o campo de visão. Bem me debrucei, mas não deu. A rigidez do meu corpo não permitia.
Que se passava na mente do meu pai adotivo?
Agora escrevia com um lápis que as senhoras costumam usar para avivar as sobrancelhas e não só. Estava em pulgas para descobrir.
Finalmente!
Colocou de novo a etiqueta na terra e pude ler. Chorei de alegria. Só tinha retirado o nome que fazia de mim um monstro.
Um engano imperdoável. Se o Cereus fosse livre de se mover de certeza que me dava uma surra com os seus espinhos. Ele não é assim tão feio como isso! Bom, bonito não é, mas...

«Pai... porque me fazes sofrer?»
Olhou para mim com estranheza. O tempo estava seco e o céu muito azul.
De onde vieram todas estas gotas de água que vejo no Cereus?
Quis explicar-lhe que chorava. Infelizmente, não me ouviu.
Como ia dizendo, quando tinha oito anos levou-me da varanda para uma nova casa, por sinal muito mais velha. Desanimei. Passar de cavalo para burro, nunca!
Parece que ouviu a queixa que deixei escapar.
A partir de agora vais ter toda a liberdade do mundo para te desenvolveres mais. Terra não te falta. Sol e água da chuva muito menos.

Então compreendi. Estava num quintal. Enorme. Daqueles à antiga. Com capoeira de um só galo com o seu séquito de galinhas permissivas e tudo mais.
Conheces a tua companheira?
Azar o meu. De novo aquela nespereira vaidosa. E estava enorme. Frondosa. Carregada de frutos. Infelizmente tinha que ultrapassar o complexo de inferioridade que tomou posse de mim. Eu, que nunca dei uma flor ao meu pai (se bem que as flores dos catos sejam belas, mas efémeras, como os amores inconsequentes que só duram um dia), imaginar agora quantas flores a nespereira lhe deu duma só vez...


Fiquei agradado com o cortejo de urtigas muito verdes que saudavam a nova companhia, ligeiramente curvadas pela brisa que soprava. Algumas serralhas tentavam sobreviver, erguendo-se entre aquela maioria altaneira. Viam-se malmequeres já com as suas belas flores brancas, com uma ou outra amarela a sobressair entre o branco puro da maioria.
E para lá da nespereira?
Uma pereira ainda a florir. Junto ao muro, uma roseira brava com rosas muito pequenas, cor da paixão.
E que mais?
Um tufo de erva do príncipe encostado à capoeira. Espinafres selvagens, rastejantes, disputando, palmo a palmo, com as urtigas o espaço disponível. Enfim, um mundo novo para explorar.
Tive um desgosto pouco tempo depois. A pereira secou e o meu pai substituiu-a por uma palmeira que logo se desenvolveu de uma forma assustadora. As suas raízes invadiram todos os domínios dos meus companheiros, enfraquecendo-os a olhos vistos, interferindo inclusivamente com o meu espaço subterrâneo.
Claro que fiquei com mau perder e enchi-me de desejos de afastar-me para longe da maldita palmeira que nem sequer frutificava. Mas não passei daí. O Deus de todos nós quis que ficasse agarrado à terra para sempre, até que me levasse, e assim nada mais podia fazer senão suportar as sucessivas agressões da palmeira invasora. Para mal dos meus pecados só as raízes não tinham picos senão já sabia o que tinha a fazer!
Tudo tem o reverso da medalha. Em cinco anos cresceu tanto ou tão pouco que o meu pai finalmente pressentiu o perigo e decidiu expulsar logo a palmeira. Três homens encarregaram-se de escavar à volta das raízes. Achei piada aos piropos  picantes que lhe dirigiram, tal a dificuldade da tarefa de a remover. Ela pressentia o perigo e agarrava-se à terra com força inusitada. Em vão. Finalmente tombou na terra e acabou por deixar-nos em paz.
Gritámos todos em coro:
«Viva o Mário!, viva!»
Mas quem seria o novo ocupante daquele espaço agora livre?
Um pessegueiro raquítico. Suspirámos de alívio.
Sentia-me feliz. Estava a passar os melhores tempos da minha vida. Só tinha pena de uma coisa. Faltava-me o afeto do meu pai. Via-o agora com menos frequência e já não me dispensava a atenção dos outros tempos. Tinha de compreender. Cresci muito e já era adulto.

Nunca me dei bem com a nespereira. Ficava eufórico quando a Boneca ou outro gato afiavam as unhas no seu tronco, fazendo-lhe feridas de alto a baixo. Por sua vez não podia evitar o seu sorriso sarcástico quando os caracóis se instalavam entre as minhas costilhas e devoravam a minha carne. Nesses momentos de dor valia-me a constante atenção do meu pai que dava caça impiedosa aos caracóis. Atirava-os para a capoeira e logo as galinhas lhes chamavam um figo. O galo, cortês, feito parvo, deixava que elas devorassem aqueles pitéus. Não era tão parvo como isso. No final do repasto tinha direito a sobremesa. E zumba! Vi-o saltar para cima da galinha mais próxima, que se agachou de imediato.
«Nem só de pão vive o homem...» Ouvi uma vez o meu pai dizer.

Aquela máxima assentava que nem ginjas na obsessão do galo. Disso tinha a certeza.
Gostava de dizer ao meu pai muitas coisas. Quanto gosto dele. O muito que estou agradecido por ter-me tirado do anonimato com um simples golpe de canivete. Todo o cuidado que teve comigo nos primeiros anos da minha vida. Sei lá... tanta coisa! Infelizmente não me entendia.
Os anos continuam a passar e posso dizer que a vida é bela!
Já me esquecia que tenho um novo companheiro muito próximo de mim. É um cato espanhol com muitos espinhos que olha para mim de baixo para cima. Não consigo chegar a sério à fala com ele porque não o entendo. Fala pelos cotovelos e só percebo metade do que diz. Digamos que a sua língua é o  espanholês. Fala-me de alhos e eu respondo-lhe em bugalhos. É giro. Acabamos os dois por rir a bom rir. Tirando esse obstáculo, é um bom companheiro. E educado. Quando o vento sopra e ele verga, chega a tocar-me e não sinto nada porque encolhe os espinhos, tal como o gato recolhe as unhas para não ferir o dono quando brinca com ele. Depois, há os Aloe. São um pouco vaidosos, diga-se em abono da verdade. Sabem das suas virtudes curativas e deitam no inverno umas flores alaranjadas muito bonitas, no cimo de uma haste altaneira. Fora isso, são plantas suculentas, portanto duma casta inferior à minha.
Uma notícia de certo modo agradável. Ninguém ainda pediu ao meu pai para me cortar um pedaço, como ele fez ao meu pai-irmão. É a grande vantagem de ser um cato monstruosus. Assumo, embora tenha ficado agradecido pelo facto do meu pai ter apagado esta última palavra na etiqueta.
Mas há uma coisa desagradável que não consigo deixar de pensar. É que não suporto a vaidade insultuosa da maldita nespereira que está cada mais frondosa e altaneira. Na primavera enche-se de frutos que são as delícias dos donos da casa. Felizmente que o meu pai aprecia pouco nêsperas. Dá-me um consolo enorme.
Há alterações no quintal. As urtigas, com as quais travava diálogos interessantes, são cada vez mais raras. Dantes proliferavam à minha volta e até ao fundo do quintal e eram tantas ou tão poucas que não ligavam muito ao apetite voraz dos caracóis que se atiravam sobre as suas folhas muito verdes e tenras.
Uma novidade que não é para aplaudir e que provocou na harmonia do quintal uma alteração radical. Um familiar do meu pai apossou-se da terra e as pobres urtigas têm vindo a ser gradualmente substituídas por couves portuguesas, nabiças, alfaces, tomateiros, espinafres, salsa, etc, etc e tal. Isto para não falar nos espinafres silenciosos que não olham a meios para atingirem os seus objetivos expansionistas. O ambiente tornou-se insuportável com a algaraviada constante daqueles seres inferiores, de tal maneira que estou sempre ansioso que chegue o fim do verão para poder descansar um pouco. Impressiona-me especialmente o momento em que o homem se põe a colher esses vegetais. São lancinantes aqueles gritos das vítimas indefesas e isso complica-me com o sistema nervoso. Contudo, sei que são imprescindíveis na alimentação dos humanos.
Já não é a primeira vez que o homem olha para mim e para os outros catos e suculentas com um certo ar de desagrado, e numa das vezes consegui ler-lhe o pensamento. Gostaria de ver mais couves ou nabiças no meu lugar e do cato espanhol, no dos Aloe e dos restantes companheiros que estão encostados ao pequeno muro que liga com o empedrado. Julgo que, se não fosse a determinação do meu pai, há muito que o homem teria acabado com as nossas pobres vidas. Veja-se bem o disparate: sermos substituídos por insignificantes couves que não sabem dizer uma palavra direita e têm uma vida amorfa e curta.
Ainda bem que nasci cato!
Estou preocupado com uma coisa que aconteceu ontem, ao fim da tarde, quando recebi a visita semanal do meu pai. Até aí tudo bem. Mas ao vê-lo a olhar para mim de uma forma muito mais triste do que o costume adivinhei que ele não estava bem. Se ao menos lhe pudesse retribuir tudo o que de bom me tem feito, falar face a face com ele e saber dos males que o consomem...
Continuou perto de mim mais tempo do que o costume e chegou a mirar-me de alto a baixo.
Vou tirar uma fotografia ao Cereus com o telemóvel...
Depois, levou a mão ao bolso e sacou dum aparelho que devia o tal telemóvel e aí soltei uma exclamação de espanto.
Não é que ele tirava fotografias?
Hoje voltou ao quintal e procurou focar-me de outros ângulos.
Para quê tanta fotografia?
Vai deixar-me?
Sei pouco da sua vida mas o bastante para acreditar que não anda feliz. Aliás, sempre o conheci assim. Mas ultimamente parece mais distante, alheio a tudo o que o rodeia. Quanto a mim não tenho a mínima razão de queixa. Continua a limpar-me dos malditos caracóis que me roem as entranhas, a usar um pincel para retirar as teias de aranhas, seres que me causam uma certa angústia, embora nada tenha a recear deles. As moscas, sim, que se acautelem com as teias que as suas inimigas constroem na perfeição.
A propósito dos males do meu pai, queria contar um segredo relativo a algo de trágico que se passou há muitos anos no empedrado do quintal. Foi um pessegueiro que está perto das suculentas quem me contou o segredo, por sua vez contado por uma roseira agora já morta, que ainda por sua vez uma figueira, que durante o verão se enchia de saborosos figos moscatel, lhe contou. Essa, sim, foi testemunha da tragédia.
Nessa altura, segundo a versão da figueira, o Mário era quase um homem e o seu rosto estava rodeado por um halo de felicidade. A vida corria-lhe bem e o pessegueiro não me explicou porquê. Um dia, contudo, alguma coisa correu mal. A figueira viu-o descer as escadas trazendo consigo um molho de cartas manuscritas e uma caixa de fósforos. O seu rosto denunciava uma perturbação muito grande.
Então, o que fez?
Deitou as cartas para o chão, baixou-se, esfregou um fósforo na lixa da caixa e, pouco depois, uma chama começou a crescer e a tornar em cinzas as cartas. Não abandonou o local enquanto todas as cartas não foram consumidas pelo fogo. De alucinado, o seu rosto passou a triste, muito mais triste do que até então era. Deviam ser cartas de amor de uma antiga namorada.
Quantas frases belas foram consumidas pelas chamas impiedosas!
Confirmação! A figueira diagnosticou um caso de amor, talvez do primeiro amor que é sempre o mais marcante para os humanos sentimentais como ele, mesmo que esse amor seja de curta duração, comparado a uma nuvem passageira que nem sequer deita lágrimas.
Hoje o meu pai continua a olhar-me, mas não da forma como me olhava antigamente. Quero saber porque está tão triste e não consigo. Fechou-se, mais do que nunca, na sua concha.
Outro mal de amor?, ou ainda não esqueceu a primeira namorada?
Talvez a figueira soubesse mais do que contou. De certeza que lhe leu os pensamentos, mas já não está cá para contar. Infelizmente também foi banida do quintal porque cresceu muito, principalmente em largura. É pena, pois não há ninguém que saiba dizer-me o que está acontecendo com o meu pai. Que dor o atormenta.
Faço mais um esforço para descobrir o que está a acontecer. O olhar dele trespassa-me e parece ir para outro sítio que ultrapassa os limites do quintal e do enorme prédio que ocupa o espaço onde era a quinta do doutor Bandeira.
«Pai, o que aconteceu?»
Responde com o silêncio, como de costume.
«É aquela namorada? Mas já passaram tantos anos!»
Nada. Apenas tirou-me mais outra fotografia.
Ah!, finalmente consegui descobrir. Coisa horrível. O velho prédio onde nasceu está para venda. Mas não ficou triste apenas por isso. Vive só. Completamente só. Nunca mais vi com ele a companheira das carícias, nem com outra mulher. Tenho a impressão que ainda pensa na primeira, a que lhe escreveu aquelas cartas que se fizeram em cinzas e o vento levou para longe.
Se o prédio for vendido, um edifício novo invadirá todo o quintal.
Então... vou morrer em breve?
Se ao menos ele se lembrasse de cortar uma haste do meu corpo!
Fica descansado, Cereus peruvianus que, na altura certa, venho buscar um pouco de ti...
Há quanto tempo ele lê os meus pensamentos?
Sinto uma grande mágoa porque nunca mais me vou lembrar dele, como era, como cuidou de mim com tanto carinho desde o momento em que usou o canivete e me separou, com um só golpe, do meu pai-irmão. Será apenas um desconhecido que leva consigo um pouco de mim e que, com o tempo, vou esquecer.
Gostava tanto de me lembrar destes tempos que já passaram a correr e em que fui muito feliz!

Cereus (2)

Oi! Para todos os que ainda não me conhecem, chamo-me Cereus. Sou o Cereus peruvianus monstruosus, esse mesmo que o meu pai adotivo teve a caridade de retirar da etiqueta amarela o estigma sinistro monstruosus que tanto me traumatizou. Não tenho culpa das minhas costilhas se desenvolverem, desde que me conheço, duma forma anárquica, tal como os manuais da especialidade fazem referência. Por outro lado, o que interessa salientar no meu caso é que me sinto belo por dentro, ou não tivesse a formação moral que me foi dado pelo meu pai adotivo que muito prezo, respeito e adoro.
Decerto ficaram admirados com o meu cumprimento de introdução pouco peculiar ("oi"). Tudo tem uma explicação e o que não tem explicação, explicado está. São também influências do meu pai que em boa ou má altura se embeiçou por uma brasileira, uma tal Simone, sem sequer a ter visto pessoalmente. Coisas dos tempos modernos e que me trazem muito apreensivo. Mas lá chegaremos. Por agora quero apenas dizer que é só por sua causa que estou aqui a explanar os meus pensamentos, a pôr tudo no seu lugar, a arquivar o que foi importante, a deitar para o lixo o que é para ser esquecido e a reciclar o que não é nem uma coisa nem outra.
O contacto com a Natureza em que estou inserido, os pensamentos do meu pai e de um ou outro ser humano que tem passado pelo meu espaço ambiental, continuam a modelar o que sou e a transformar-me num ser vivo cada vez a tender mais para a perfeição que pretendo atingir e que não passa de uma utopia. Só tenho pena do meu futuro estar cada vez mais comprometido, isto segundo o aspeto apreensivo que captei há dias do meu pai. A casa foi definitivamente vendida e parece que a escritura está para breve. Não é que as notícias sejam pessimistas. Antes pelo contrário. O antigo senhorio já falou em substituição de janelas e da porta da rua e de uma pintura da fachada.
Mas... e se tudo não passar duma conversa de embalar o bebé só para este adormecer?
Se assim for, todo o espaço do quintal que eu e os meus amigos e inimigos (sim, porque, como qualquer ser vivo, também tenho inimigos e um deles sabem muito bem quem é) ocupamos e onde lutamos diariamente pela sobrevivência, de um momento para o outro pode ter um fim fatal. Mas não é sobre este drama que quero falar porque tudo tem solução. Eu próprio sinto-me confiante e esperançado que o meu futuro seja resguardado pelo que captei do subconsciente do meu pai.
Já fez dois cortes profundos no meu corpo que equivaleram à extração de dois novos irmãos-filhos, um dos quais deve ter ido para uma residência a poucos quilómetros daqui e o outro muito provavelmente está deliciado neste momento com os ares do Algarve. Além desta salvaguarda que fez, a pedido de duas pessoas suas amigas, prometeu que, quando chegasse a hora decisiva, levaria consigo uma parte do meu corpo e que, aliás, já escolhi: a mais alta e frondosa por ser a mais jovem e deficiente de informação sobre o passado que as engrenagens do tempo destruíram. Como ele, e agora estou a aflorar ligeiramente o caso da brasileira virtual, quero amar de novo a vida, renascer para só assim conseguir deixar para trás os golpes danados do destino que não foram nada, mesmo nada favoráveis. Queremos ambos recomeçar uma nova vida e, no meu caso, esquecer e renovar-me na continuação da espécie, nem que seja a um preço muito doloroso que é o de não saber todo o desenrolar dum caso perigosamente envolvente que o meu pai está a viver e que não parece ser o ideal que desejo para ele.
Afinal de quem é a vida?, e quem sou eu para ter o dom das profecias?
Lá chegarei. Agora vou falar do tempo que se passou depois que decidi escrever a história da minha vida, coisa pouco vulgar num cacto. No meu caso, um vulgaris Cereus peruvianus, definitivamente não monstruosus. E assim, antes de começar pelo ser que mais abomino na minha vida porque continua a fazer sombra à grandiosidade em que me transformei, é com muito orgulho que comunico que, desde o fim da primavera, dois novos e vigorosos rebentos, muito verdes, têm-se desenvolvidos a olhos vistos e até parecem a resposta lógica à agressão saudável que o meu pai adotivo fez em mim.
Não desejo mal à Nora (o meu pai deu-lhe este nome) e até fiquei muito incomodado, há uns tempos atrás, quando vi as suas folhas amarelecerem de repente e começarem a cair, umas atrás das outras. Doença ruim, pensei. A Nora definhava de dia para dia. Pensei o pior e tirei ilações. Ao mesmo tempo que a minha parte inconsciente me fazia sentir um rei a caminho da coroação, todo o outro bloco racional que se originara a partir da formação que o meu pai me deu era invadido por um sentimento de tristeza igual àquele que me tomava quando alguma coisa não ia bem com ele.
O meu pai também reparou que estava a acontecer uma coisa ruim com a infortunada Nora e olhou, algo desconfiado, para o meu lado.
Pai, eu não sou capaz de lançar maldições sobre os outros. Por favor, não me olhes assim! Não passo de um pobre Cereus...
Felizmente que desviou o olhar para outros sítios. Para ser franco mirava, ainda mais desconfiado, as couves e as alfaces, vegetais que considero de linhagem inferior. Compreendi o alcance do seu olhar. Foi só um momento, mas o bastante para atingir os seus pensamentos. 
Que ideia a dele fazer aquele desbaste desastroso na Nora!
Depois, encolheu os ombros e dirigiu-se para as escadas, que subiu. Voltou pouco tempo com uma tesoura de poda nas mãos e dirigiu-se para a infortunada Nora. 
Mais desbaste?, pensei. 
Entendi quando o vi a cortar os ramos secos.
Os dias passaram. Milagre ou não, começaram a nascer folhas novas na Nora.
Temos rainha!

Deixei de lado todos os ressentimos e dei graças ao afastamento da dama de negro, inimiga número um do meu pai e de quem ele fala muito nas histórias que escreve. Creio que, quando a evoca, está a referir-se à morte, esse ente abjeto que leva consigo, na hora fatal, quem está destinado.
Mas deixemos à margem estes maus pensamentos, esqueçamos a ambição de momento dum rei sem coroa e que fique tudo no seu lugar, antes dos acontecimentos quase funestos ligados à Nora e provocados por um ato de imprudência de quem a desbastou exageradamente. Ao mesmo tempo, não é bom para quem fez "aquele trabalho". 
Quanto às urtigas, convivi agradavelmente com elas durante todo o inverno e princípio da primavera, até que o familiar do meu pai voltou para amanhar a terra. Ainda tenho na memória os gritos lancinantes das infelizes à medida que eram arrancadas na terra com golpes violentos de enxada.
cato espanhol, esse não se cala. Continuo sem perceber patavina do que diz. Coitado! Quer fazer bom ambiente mas põe-me a cabeça em água. Bem pergunto aos outros vizinhos se o entendem: a Portulacaria afra, os aloe e seus primos, as gasterias e uma Echeveria secunda de folhas carnudas esverdeadas, que tem vindo a afirmar-se entre as companheiras da mesma família.

Não voltei a contactar com as roseiras que agora estão quase em extinção nos fundos do quintal onde, noutros tempos recuados, viveu a enorme figueira que conhecia parte dos segredos do meu pai. O "diz-se diz-se que aquele disse porque lhe disseram". Cada vez tem mais o sabor a lenda sobre o seu amor do tempo de jovem relacionado com as cartas que foram queimadas e que se fizeram em cinza, lentamente.
Caso enterrado definitivamente?
Tudo aconteceu no imprevisível mundo das conversas instantâneas, onde é possível uma relação existir sem que exista.
Um dia destes aproximou-se de mim e notei um brilho especial no seu olhar. Quis perguntar-lhe o que se passava de novo, mas claro que não me ouviu. Até os pensamentos, que muitas vezes conseguia ler, estavam escondidos. Enquanto procedia a uma rotineira sessão de limpeza das teias de aranha que me envolviam e dos malditos caracóis que me roíam as entranhas, observei que trazia consigo umas fotocópias que depositou sobre o murete onde apoiava a parte inferior do meu corpo.
Pouco depois sentou-se no murete e começou a ler...
Mas o problema agora é outro e veio, mais rápido que o vento, do outro lado do Atlântico. O mês de abril despediu-se com muitos "ois" brasileiros, inconsequentes e dei com o meu pai a sonhar no virtual um sonho perigoso porque criou de imediato uma forte e irracional envolvência.
Parece que sim, agora que ele vai contar ao amigo escritor uma história sobre esse amor da juventude que o marcou para sempre. De certa forma é uma homenagem que, embora tardia, acaba por ser feita. Que ela descanse para sempre em paz!

Hoje está uma noite morna. Convida a uma boa caminhada ao acaso. Assim posso refletir melhor. Preciso de arrumar as ideias. Desta vez não espero a onda na praia dos desencontros, longas horas, onde os sonhos começam e não acabam, até os sonhos que nunca tive. Não há ausência. Existes tu. A minha onda que ainda está para lá da linha do horizonte.
E de repente acontece, como que por magia. O céu da noite foi aquecido pelo riscar efémero de uma estrela cadente. E logo o desejo nasceu. E logo se realizou.
Mas que desejo?
Mistério!
Desde o nascer do dia, os meus pensamentos filtram tudo e todos que não sejam um simples nome, um olhar, uma "emoção" traduzida num rosto corado de vergonha por uma frase vulgar.
E que mistério é este, que magia, que não me deixa pensar noutro nome senão o de Simone?
É muito estranha a vida no dia a dia. De repente, tudo muda e o "outro eu que não eu mas eu" descobre no oculto o nascimento de uma amizade, quiçá amor, que o oceano não vai separar. O olhar perde-se virtualmente nas distâncias que o mar esconde, galga milhares de quilómetros, desesperadamente louco, à procura de ti, Simone.
Aconteceu ontem. O feitiço germinou em meia dúzia de frases trocadas. Frases banais, mas que provocaram uma estranha cumplicidade. Aconteceu ainda ontem e sem ti sinto-me vazio. Ausente.

Racionalmente não devia ser assim. Não posso ser eu, nem tão pouco o Mário com a sua descontração habitual que estou sempre a sublimar. O Mário conquistou a Maria e eu deixei-a partir, cabelos soltos ao vento, e pedi-lhe para nunca olhar para trás, ao mesmo tempo que ele insistia para sonhar todos os dias com ele.
Agora há um vazio que nos separa. A mim e ao Mário. Para ele nunca houve noites estreladas, nem precisou de esperar pela onda que não vem. Consegue tudo o que deseja. Sim, se desejar tem o mundo a seus pés. O dinheiro. O amor. O dom de adivinhar. De vencer. De saber perder. De perdoar e castigar. De destruir. E, principalmente, de acertar no cavalo certo e saber perder o cavalo errado.
Não. Não sou eu a pensar em ti, Simone, e a desejar ter-te comigo. A amar-te (meu estranho amor!) e a ver-te como te vi ontem:
«Você é linda!»
O "outro eu que não eu mas eu" saiu à rua nesta noite morna de abril e abraçou tudo o que os seus olhos viram porque estavam sempre a ver-te e a ler duas palavras mágicas: "Sempre Simone". A própria lua, envergonhada no seu insignificante quarto crescente e mais baixo no firmamento, talvez Vénus (que me perdoem os astrónomos), quando contemplados nas suas distâncias proibidas à minha qualidade de simples mortal, diziam:
«Simone... Simone!»
E "eu que não eu mas eu", via-te. O teu olhar sedutor, a tua boca apetecível, o teu corpo desnudo e abandonado. Tudo em ti parecia ser meu, como se te conhecesse há muito e tivéssemos dormido na mesma cama...
Sei que é loucura. Só nos conhecemos pelas palavras que trocámos, embora eu esteja em vantagem porque já ouvi a tua voz e creio que foi ela que me aproximou fatalmente de ti. Sei que é loucura, mas é bom!
Pobre do Mário e também de mim... de não termos a sorte de gostar tanto de ti e de poder dizer-te:
«Tu és linda!»
Que faço à minha vida, Simone?
Ah!, se pudesse estar agora contigo, à beira-mar, ouvindo o ruído das ondas e vê-las espraiarem-se, a beijarem as areias douradas e se pudéssemos ficar muito juntos, colados como um só, eternamente invisíveis, esperando sem pressa pela onda que há de vir num orgasmo final?
Mas não. Perco sempre tudo o que ganho.
Tu sabes, Simone!... Sempre Simone... se já te perdi, ou se continuas ainda na rota do acontecer...


Que fizeste à tua vida, pai?
Já sei a resposta. No fundo este teu amor no virtual é uma continuação dos amores impossíveis que tens vivido.
O maio tem sido generoso em muitas e muitas provas de amor que, com a sua força, ofuscaram a verdade incontornável do virtual.
Enlouqueceste, pai! Já não és o mesmo. Nunca mais vi o teu semblante carregado nem senti, tão pouco, aquelas nuvens negras habituais a envolverem-te e a fazerem baixar o teu astral. Tens lutado contra tudo e agora estás a vencer a batalha do virtual para onde te atiraram todos os que te amam e não te amam. Se dependesse só de ti, a distância que os separa seria anulada num instante. Mas não conheço ainda a verdadeira dimensão desse perigoso mundo virtual, nem quero fazer futurologia.
Se todos os meses que vêm a seguir fossem como maio...
Aliás, junho já entrou a fundo e não voltei a ter notícias do teu amor, pai. Se se mantém com a força de maio, se começou a entrar numa órbita de obscuridade. Acho-te apreensivo.
Que te preocupa, pai?
Os vossos diálogos na tela dos corações caídos já perderam a força dos primeiros tempos?
Eu por cá fico rodeado pelos meus amigos, falando com eles de tudo e de todos, mas conservando o teu segredo. Podia antever o teu futuro, pai. Imaginar que essa paixão que o abril viu nascer e o maio criar fortes raízes, podia inverter o seu sentido ao longo de junho e acabar tragicamente nos últimos dias de julho, desfazendo-se como uma simples bola de sabão...
Os meus rebentos estão a desenvolver-se a olhos vistos e sinto-me orgulhoso por eles. O Aloe de virtudes curativas acredita que não foi por coincidência que eles se formaram logo após os cortes drásticos com o fim da propagação da espécie.
A Nora, como de costume não se pronunciou. Merece o benefício da dúvida depois de ter passado por maus momentos. Talvez um dia a ensine a comunicar. Comigo e com os outros amigos do quintal.

Quanto às urtigas, infelizmente deixei de as ver por perto.
Mas que fez agora o meu pai?
Vinha na minha direção e voltou para trás. Tento ler-lhe o pensamento e só dou pela existência de tristeza no seu rosto.
Não pode ser!
Parou junto ao sítio onde, um dia, queimou as cartas de amor. Não quero acreditar que ela voltou! Só sei que está a olhar para as cinzas que já não existem.
Pareceu captar a minha preocupação e voltou-se para mim, como que a dizer que não me preocupe, pois há de sobreviver. Que envelheceu nestes últimos tempos, lá isso envelheceu.
Mas que estou para aqui a dizer?
Não passo de um cato vulgar, completamente alucinado, que julgou libertar-se do seu imobilismo genético e voar, em liberdade absoluta, graças ao milagre do seu pensamento. Infelizmente, continuo a ser o Cereus... Cereus peruvianus, sempre não monstruosus.
«Oi, cato espanhol... que pensas de tudo isto? Pelo menos uma vez na vida diz alguma coisa que eu perceba.»
«Oi...»
Finalmente disseste uma palavra que entendi.

O SONHO DE NORA

Olá! Chamo-me Nora. Já fui uma semente. É uma história longa e muito complicada. Vou começar, pois aconteceu o momento de aflorar, depois de uma longa viagem iniciada a partir do centro das histórias , o homem que me adoptou.
Começo por apresentar-me. Chamo-me Nora, a árvore mais frondosa e alta do quintal e sou bela, caprichosa, sensível, talvez um pouco volúvel, e muitas mais coisas que sei ou que não quero dizer. Todos os anos, pela primavera, orgulho-me de ter uma prole de filhos. E ainda mais um dado: sou a irmã emprestada do  Cereus peruvianus, o filho adotivo predileto do Mário, contador de histórias e não só. Rs. Não vou falar dessa parte do “não só”. Ah! Falta ainda dizer que tenho sobejamente mais de vinte anos e vim da casa do meu pai adotivo diretamente para este quintal, cada vez mais dominado pela presença avassaladora das ervas daninhas, onde também se veem diversas plantas medicinais e comestíveis. Bom, mas acho que já tudo foi dito pelo Cereus.
Ponto importante que surge em forma de pergunta:
Como aconteceu o fenómeno do meu nascimento?
Vou explicar de imediato como vim parar a esta Terra de passagem. Não sei o que quer dizer "Terra de passagem" e aproveito desde já para avisar que situações análogas a esta vão acontecer e esclareço também que não tenho a inteligência e o saber do meu irmão, isto já para não falar do meu pai. Lamento não ser como o Cereus. Não tenho o dom de comunicar. Nem com eles, nem com a maior parte das plantas do quintal. Esse dom só foi concedido ao Cereus, o que lamento. É triste, mas pura verdade. Repito que não sou inteligente. Nem sequer tive oportunidade de aprender a ler.
Comecei a minha apresentação com um “olá”, um cumprimento um pouco diferente do habitual “oi” do meu irmão que, por algum motivo, se julga com direito a usufruir de raízes sedeadas no outro lado do Atlântico, talvez por um motivo ligado às tendências obsessivas do nosso pai, o ano passado, em maio, no tempo no tempo em que a paixão saiu à rua e ia virando do avesso a sua vida.
Então, vamos... “olá”, sou Nora, a nespereira do quintal dos pais do Mário e tenho muita pena de não ter assistido às tropelias dos seus tenros anos quando ele era o Marinho e de seguida se tornou o Marinho (quase Mário). A roseira contou-me. Ocupa um espaço ao fundo do quintal, precisamente onde já foi uma capoeira de galináceos e viveu uma figueira enorme que foi contemporânea desse menino traquinas que nunca se cansava de pôr em estado de sítio quase tudo o que se cruzava com ele. Ora a figueira passou o testemunho à roseira e, um dia, quando o vento ficou de feição, esta contactou comigo, para grande espanto meu, pois nunca tinha conseguido o contacto com os meus companheiros do quintal.
Nasci em Lisboa, em pleno verão, numa marquise agradavelmente quente, como resultado de um desejo do meu pai.
Uma vez comprou nêsperas e guardou alguns caroços que deixou secar. Dias mais tarde enterrou dois caroços na terra de um vaso e daí resultou o meu nascimento e da minha irmã falsa gémea. Lembro-me desde sempre do Cereus. Quando vim ao mundo já ele lutava pela vida, sempre acarinhado pelo Mário, o que me causou desde o princípio terríveis ciúmes que não consegui esconder. Sei que é um defeito que, muitas vezes, tem resultados catastróficos e o Mário que o diga, pois sofreu na pele as consequências do ciúme doentio de uma mulher. A rutura tinha que acontecer, mais tarde ou mais cedo. E foi assim que o amor entre os dois se perdeu. Não sei muito bem o que estou a dizer, mas acabo de traduzir tal qual como me foi contado. E o Mário nunca mais voltou a ser o mesmo.
Mas estou aqui para falar de mim e não dos desamores do meu pai, desamores que continuaram pela vida fora.
Eu o Cereus passámos os primeiros anos lado a lado e senti-me desde o princípio uma planta mal amada, porque ele foi sempre o menino do papá que, para meu desgosto, só tinha olhos e atenções para ele. Apenas me olhou uma vez com atenção porque aconteceu um fenómeno e só um cego como uma pobre urtiga não teria vislumbrado. É que a minha irmã falsa gémea foi-se atrofiando com o decorrer do tempo. Esse fenómeno perturbou-me muito, pois julguei-me uma espécie de antropófaga. Ainda estou a ver o Mário, olhando muito perturbado para o vaso.
«Mas então...» Deve ter pensado. «Que aconteceu à irmã?»
Tratava-se do seguimento à letra da lei da selva, da sobrevivência do mais forte, quando o espaço disponível só podia ser para um. A luta foi terrível e impiedosa.
Olhou, olhou. Encolheu os ombros e saiu da marquise. Pouco depois estava de volta com um objeto redondo em vidro, por onde começou a espreitar. Parecia intrigado.
Mais tarde soube que aquilo era uma lupa.
Claro que nunca mais vi a minha irmã gémea. Ou melhor: passou a fazer parte de mim, como coisa semelhante a dois em um. E eu e o Cereus continuámos a crescer juntos, sempre de candeias às avessas. Até que um dia o Mário levou-me consigo.
Apesar de não nos darmos bem, senti a falta da presença do Cereus. Cereus peruvianus monstruosus. Seu nome completo.
A roseira disse-me que ele abominava o último nome. É que jurava a raízes juntas não ser um monstro. Considerava-se um cacto de bem. E concordo. Para mim escondeu os sentimentos nobres e deixou que os outros aflorassem. Dizem os humanos que agridem sempre aqueles de quem mais gostam. Não consigo entender. É com eles. Respeito esse sentimento estranho. Lá têm a sua lógica e que a tenham.
Não estive muito tempo na marquise a aturar as malcriadices dos pedantes dos outros catos. Felizmente para mim, talvez porque já estava muito crescida, o meu pai levou-me para outro destino no porta-bagagens do Renault de cor creme que trocara pelo Datsun já consumido pela ferrugem e com problemas fatais no sistema de arrefecimento.
E que vi no fim da viagem?
Um quintal onde o meu pai me plantou. O lar de agora e do futuro, se não for deitado abaixo para ser substituído por mais um monstro abominável. E, alegria das alegrias, dias mais tarde vi o meu irmão ser plantado na extrema do quintal que dava para o empedrado. Sorri para ele, mas recebeu o meu sorriso com uma certa frieza. Creio que não havia motivos para tal.
Ainda ficou pior a nossa relação porque eu tinha sido fixada no meio do quintal e daí podia abranger tudo o que se estendia de norte para sul e no sentido nascente-poente e vice-versa, o que me agradou muito, pois sou muito cusca, apanágio do meu sexo. Foi então que, com terra tão rica em nutrientes, cresci a olhos vistos e tornei-me dominadora. Já podia olhar o Cereus de cima para baixo.
Se sempre desejei chegar à conversa com ele, mais difícil se tornou. Considerava-se superior (e era) a tudo e todos. Tolerava a presença dos vizinhos. Apenas tolerava. O seu ídolo era o Mário e sempre acreditei que seria capaz de tudo para o ver feliz. E, coisa estranha!, sempre que estava triste, via o nosso pai mais tempo perto do Cereus. Parecia mesmo que falavam. Mas eu não tinha os dons do meu irmão emprestado, que sabia ler no papel e também nos olhos do pai.
Continuei a crescer e a dominar, sem que o Cereus desse pela minha presença e o meu pai procurasse abrigo na minha sombra acolhedora onde podia rever os seus escritos, desde que trouxesse de cima uma cadeira. Quanto mais crescia, mais sofria por o meu irmão me pôr de parte.
Até que um dia tive os meus primeiros momentos de felicidade. Como que por magia, os meus troncos floriram em todo o perímetro e então tive os primeiros filhos. Muitos! Doces, suculentos, tentadores. Que inveja vi no Cereus e nos outros catos e plantas gordas! As próprias urtigas, malvas e raras papoilas guardaram uma distância razoável, admiradas. Não sabiam muito bem o que estava a acontecer comigo e eu não lhes podia dizer que era uma dádiva de Deus, ou um milagre da Natureza. Ao mesmo tempo tinha consciência que sabiam porque a minha amiga roseira encarregou-se de lhes transmitir a boa nova. Boa nova para mim, claro. Estavam todos mordidos de inveja. Já bastava ser a mais altaneira de todas as plantas do quintal e a mais bonita também. Havia um senão. Certas aves, como os pardais e os melros, não deixavam em paz os meus filhos e picavam-nos constantemente, deixando feridas em chaga até aos caroços. Nada podia fazer e isso danou-me. Mais tarde compreendi que também que as aves eram filhas de Deus e lutavam, como eu e todas as outras plantas do quintal, pela sobrevivência.
Há poucos anos tive graves problemas de saúde. As minhas folhas amareleceram antes de tempo e caíram. Senti que morria aos poucos. Estranhamente foi o momento em que as urtigas se aproximaram de mim, primeiro com curiosidade e depois com uma certa preocupação. O próprio Cereus abandonou o ar superior e glacial e abriu mão de um semblante pensativo, julgando adivinhar que eu estava de partida, mas ainda não foi dessa vez que chegámos ao contacto.
Eu sabia a causa da minha doença. O homem do quintal, que tratava das couves, alfaces, feijões e demais plantas inferiores, era o culpado. Não sei se agiu tocado pela ignorância. Até talvez tivesse boas intenções. Mas cheio de boas intenções está o mundo. Meteu-se em assuntos que não conhecia muito bem e desbastou-me excessivamente por cima. Não podia ter sido outra coisa a causa do meu enfraquecimento. Só sei que estive entre a vida e a morte. As minhas folhas continuavam a secar. Enfraquecia a olhos vistos. As próprias raízes, que sugavam o alimento, estavam definhando.
Então foi a partir dessa altura que o Cereus começou a ver-me com outros olhos. Humanizou-se. Tenho a certeza que o seu pensamento positivo deu-me forças para ultrapassar a grave doença que o homem do quintal provocou inadvertidamente. O meu pai também se preocupou. Foi o momento da viragem na nossa relação muda. Comecei a perceber que ele também tinha amor por mim. Não era bem isto que queria dizer. Apago atrás e digo, com toda a certeza, que só então percebi o quanto ele gostava de mim.
Esta sou eu, a nespereira que domina todo o quintal e se tornou cada vez mais forte, resistente e sedutora. E sou tal qual o meu pai. Não tenho ninguém a quem amar. À minha volta só vejo duas nespereiras raquíticas, distantes, entregues a uma morte inevitavelmente próxima. Nasceram na zona mais pobre do quintal, na pouca terra existente debaixo das gretas entre as pedras da calçada que formam a parte estéril e estão condenadas a desaparecer à míngua de alimento e excesso de poluição originada pelas águas das máquinas de lavar roupa que caem diretamente no empedrado.
Falando ainda de amor, para não correr o risco de repetir o que foi dito, vou avançar no tempo e cingir-me às memórias recentes.
Em primeiro lugar, o Mário já não diz «Oi, Simone, querida!, por cá tudo bem e você, como está?» e nem sequer morre de desejos por ouvir o sotaque que vem do outro lado do Atlântico. Felizmente não foi tão longe como desejava. A coisa esteve preta, mesmo muito preta. O desgraçado do homem ficou atordoado como se tivesse apanhado na praia uma insolação forte. Felizmente que Alguém lá em cima gostava muito dele e não deixou que a aventura se arrastasse para outros locais mais perigosos, com pântanos traiçoeiros. Isto foi o que li pela primeira vez do seu pensamento, talvez ajudada pelos poderes paranormais do Cereus. Mas lá chegarei.
Também sei que estamos de passagem nesta Terra de contrastes, à espera duma vida espiritual eterna, o que duvido. Para mim foi o acaso que me pôs cá. Uma simples ideia do meu pai. Dois caroços num vaso e aconteceu. Mas, continuando... foi ainda em pleno desenvolvimento do seu caso com a dita Simone, os tais episódios escaldantes do “oi tudo bem por aí”, que ele conheceu em novembro outra mulher. Mas o homem estava em maré de azar. Ela só lhe ofereceu a amizade, um sentimento muito nobre mas que não era o que ele buscava. Talvez que a amizade fosse uma armadilha. Mas adiante.
A roseira defende outra ideia. Segundo ela, há uma coisa chamada destino que gere o desenrolar da vida de todos os seres vivos e, palavras suas, há que deixar fluir as águas do rio, não fazer represas para que assim cheguem depressa à foz. Continuo a dizer que não percebo muito bem o alcance do que vou dizendo, pois estou ainda numa fase de aprendizagem. A propósito, ela também disse que estamos cá para aprender, ganhar experiência, aceitar sem relutância tudo o que de bom e mau nos acontece. Ainda disse mais: “somos partículas de Deus e tendemos para Ele”.
Curioso... continuo a pensar com muita intensidade no acaso. Que Deus me perdoe, se é que Ele existe.
Parece que o Mário gostava dela. Aparentemente, o comportamento dele foi digno. Desde princípio que disse a verdade, embora referisse que “nunca diria nunca”.
Estranho, não é?
E isso o que quer dizer?
A roseira explicou-me. Um dia, podia acontecer. Mas fiquei na mesma.
Então... o amor é assim?
Concordo com ela. O “que será, será” escondeu-se atrás da amizade.
Nessa altura vi-o bastante preocupado e foi quando nos procurou mais. Talvez tenha sido por esse motivo que comecei a ler também os seus pensamentos. Estava tão desesperado que até se esqueceu de dar folhas velhas de couves aos galináceos que se chegavam a ele, por trás da rede, mal o viam aproximar-se. Entre outras coisas, deixou também de tirar fotografias às flores. Eu até achava curioso o modo como as tirava. Por exemplo a uma rosa, aproximava-se muito, parecendo medir a distância com um golpe de vista e então, click. De seguida, via logo o resultado. Se a foto não estava com queria, então click. E depois, outra vez click.
O meu pai mudou radicalmente.
Que se passava naqueles olhos cobertos pela neblina que lhe turvava a vista?
O que descobri, comoveu-me. Foi estranho. De repente, senti que chorávamos os dois e ouvi-o dizer que um homem não chora, uma ova. Li-lhe de imediato o desejo. Queria esquecer e continuar à procura. Sempre à procura, até que encontrasse. Foi a partir desse momento mágico que comecei a pensar muito acerca da natureza complicada das coisas que se passavam entre os humanos. O Cereus ajudou-me. Pela primeira vez senti que começávamos a estar mais próximos. Finalmente quebrava-se o gelo que me separava dele e também passei a ter uma janela donde podia ver melhor o meu pai.
Antes julgava que a vida entre os humanos de sexos opostos, quando eles se ligavam, não era mais que um momento de ocasião, de um lançamento mútuo de feromonas. Essa relação era boa, mas durava o que durasse. E isso ele não queria. Usar e deitar fora. Não. Ele procurava outra coisa diferente do sexo pelo sexo, da amizade pela amizade. Nada de fumos de verão, ou brisas suaves de outono. Queria trocar só com uma mulher outros sentimentos que até podiam envolver sexo, mas que estavam para além do prazer, da própria paixão. Era isso. O amor.
Mas onde encontrar o amor?
Sentimento raro nos tempos modernos, disseram em uníssono a roseira e o Cereus. De grosso modo, era tão inverosímil, tão utópico como, por exemplo, uma urtiga ganhar mobilidade, ou não me causar repulsa. Bom, parece que exagerei nas metáforas e o melhor é ser mais direta. Explicando em linguagem clara, o homem teve um princípio de mal de amor porque se enganou na avaliação que fez. Volto a evocar a roseira. Talvez não se tenha enganado tanto como isso e houvesse obstáculos complicados que o impedissem de chegar ao objetivo que queria atingir. Felizmente que ele era Leão e deu logo a volta por cima, começando a sair aos poucos da ressaca. Aí tiro-lhe o meu chapéu. Ou melhor: com ausência de vento, curvo os meus troncos possantes e flexíveis para o saudar:
«Estou feliz por voltares, Mário!»
Acabo de receber um sinal do Cereus.
Quem diria há uns tempos atrás?
Agora estamos numa perfeita sintonia. O meu coração abriu-se e amei o momento. Sorri ao dar conta que estava a falar a linguagem usada pelo Mário no tempo em que a brasileira lhe moeu o juízo.
«Amo manga. Amo-te Mário.» Dizia.
Voltei-me para o meu amigo.
«Que podemos fazer por ele?»
Esperei. Julgava que as mensagens eram instantâneas, mas não. Tentei de novo. A resposta chegou.
«Estava a pensar o mesmo que tu. Como ajudá-lo? Já tenho uma ideia. E vou precisar do teu auxílio. As árvores do jardim que está a nascente sabem o que devem fazer.»
Comecei a sonhar. Os humanos como o Mário falam de probabilidades mínimas em que o acontece é quase impossível de dar-se. Mas sonhando, a tal probabilidade mínima aumenta.
«Qual é a tua ideia?»
«Olha... já ouviste dizer que mordedura de cão se cura com mordedura de outro cão, ou coisa parecida?»
Detesto metáforas. Mais valia ele não me ter ensinado o seu significado.
«E onde estão essas árvores que nos vão ajudar? Falaste em jardim. Nunca saí daqui desde que o meu pai me trouxe de Lisboa, bem sabes.»
«Junto à porta
«Fico na mesma.»
«É melhor não te dizer mais. Confia em mim. Quando chegar a altura, digo-te o que deves fazer. Eu li quase tudo o que escreveu. Lembras-te do Mário fazer leituras silenciosas sentado no murete junto a mim?»
«Sim. Vi mais do que uma vez. E confesso que tive ciúmes. Ele gosta mais de ti do que de mim, mas não interessa. Agora só quero que seja feliz.»
«E vai ser feliz, acredita, Nora. Palavra de Cereus.»
«Acredito em ti.»
E mais, que escondi.
«E também tiveste oportunidade de dar uma espreitadela. Nas tardes soalheiras refugiou-se a ler, acolhido na tua sombra.»
«Ah sim, é verdade. Mas não te esqueças que não sei ler. Não desenvolvi as tuas aptidões. Longe disso e lamento muito. És único. Admiro-te muito.»
«Desculpa. Um dia ensino-te. E vou-te ensinar também a voar.»
«Voar.»
Comecei a sonhar...
«Obrigado, Cereus.»
«És feminina, Nora. Deves dizer... obrigada.»
«Obrigada.»
«De nada.»
E vi-o sorrir pela primeira vez. O sorriso que mostrou e que só eu vi entrou por mim como uma bênção.
«Quando me vais ensinar a voar?»
«Mais cedo do que pensas.»
«Que bom!»
«Para já não te podes queixar muito, pois ensinei-te a ler os pensamentos.»
«Alguns.»
«Com o tempo desenvolverás todo o mecanismo telepático. Já vais muito bem. E olha uma coisa... no campo dos sentimentos estás mais evoluída do que eu. Conseguiste chorar quando o Mário chorou e foi coisa que nunca fiz na vida.»
«És um duro!»
«Pois sou.»
«Mas voltando atrás. O que posso fazer?»
«Muito simples. Amanhã é sábado e ele vem de Lisboa.»
«E então?»
«Há de descer as escadas e vir aqui ter connosco. Isto antes de ir à rua comprar pão. O resto conto-te depois.»
«Como sabes que vai comprar pão?»
«Ora, é o costume.»
«Ah sim. Fico em pulgas, Cereus...»
«Nora, tem paciência. Este nome fica-te bem. Bendito o nosso pai que o pôs.»
«Perfeitamente. E obrigada pelo teu piropo.»
Ficámos nesta situação. Daqui ao futuro recente será um pulo...
«Estás muito bonita hoje, Nora. E tratas bem os teus filhos.»
Senti-me corar das raízes às folhas mais altaneiras.
Nora, tem cuidado. Não deixes que te leia os pensamentos. Esconde-os antes que seja tarde.
«Obrigada pela parte que me toca. Mas afinal o que tenho de fazer?»
«Muito simples. Atraí-lo para as tuas nêsperas. Sugerir que são gostosas. Para conseguires, usa a tua sedução.»
Era bom de dizer. Difícil de resultar.
«Mas já são poucas! O maio está a despedir-se...»
«O poder de sugestão tem muita importância. Já te expliquei como deves fazer.»
«Tens razão. Concretamente...»
«Deves fazer nascer nele o desejo de degustar três nêsperas.»
Degustar?
Pela certa vou dizer disparate, mas não posso ficar calada.
«Se ele degustar, não as come!»
«Não é isso, burra.»
Eu não disse?
Irritei-me. Agora chamava-me nomes. Que culpa tinha de nunca ter aprendido a ler?
«Desculpa. Fui bruto. Degustar é comer, apreciando. Provar. Não ligues a estes repentes. Sabes, habituei-me a lidar com o enfastiado do cato espanhol e estou sempre a dar-lhe para trás. E à noite? Não chega aí o ruído do seu ressonar? Um petisco dos ruins.»
«Por acaso não chega. Mas diz-me de vez qual é a tua ideia. Como tudo vai decorrer.»
«Tens razão. E esta missão não pode falhar. Ele é nosso pai e já fez muito por nós. Chegou a altura de agradecermos e não podemos falhar.»
Explicou-me. Ele tinha que comer três nêsperas das mais saborosas e deitar os caroços num pote.
Era a primeira parte da missão.

Às dez e meia da manhã desceu as escadas. Disse-me a roseira que ele, quando era o Marinho (quase Mário), descia sobre as escadas num mergulho perfeito, depois de segurar-se nas grades e tomar balanço. Aterrava sempre em segurança no quintal. Agora os tempos eram outros.
Como um autómato, dirigiu-se até à cave e voltou, pouco depois, com um pote de vidro.
Já no quintal, encheu-o de terra. Foi o momento de entrar em cena e tentar seduzi-lo.
Nora, onde te foste meter!
Olhou para mim, algo curioso.
«Ainda na quinta-feira só havia meia dúzia de nêsperas lá no alto e agora estou a ver estas tão madurinhas, aqui à mão de semear! Devo andar com visões...»
Foi mais fácil do que julgava.
Oh não! Está a atirar os caroços para o chão!
«Mário! Não é assim que deves fazer...»
Olhou para mim, admirado.
«Vá... apanha-os.»
Respirei de alívio. Obedeceu. Começou a enterrar os caroços na terra que enchia o pote.
Menino bonito!
«Como nos tempos antigos... Esta bela nespereira nasceu de dois caroços que há muitos anos pus num vaso. Quantos...? Sem dúvida, mais de vinte anos!»
«Querido pai!»
«Parece que ouvi uma voz. Hoje não tenho andado bem.»
O que se seguiu depois já me contou o Cereus. Fiquei para morrer. O incrível que aconteceu para os lados do jardim.
«Foi tudo calculado ao segundo. Quando o Mário chegou ao jardim e se preparava para descer a rua habitual com destino à padaria, bruscamente desviou-se para a direita e olhou ainda mais para a direita.»
«E então?»
Continuou a descrever o que se foi passando. No passeio da transversal vinha uma amiga de infância. Era a força do destino, mas não dos seus destinos. O outro estava quase a acontecer.
Ela perguntou-lhe onde ia.
«Vou comprar pão. É assim todos os sábados, mais ou menos a esta hora.»
«Queres tomar um café? Conversamos um pouco.»
«Pode ser. Ainda tenho muito tempo.»
As árvores localizadas nas proximidades da porta tinham desempenhado o seu papel na perfeição, ao encaminhá-lo para o desvio, à hora certa e para a pessoa certa que era só um meio para atingir um fim que ele não conhecia e era o fim certo.
Houve um momento de hesitação porque os dois queriam ir buscar os cafés. Ele insistiu e venceu a pequena escaramuça. Tinha que ser ele. Tudo continuava a bater certo.
«Fica a tomar conta desta mesa...» Disse ele.
Resumindo. Dentro do café só havia na altura uma cliente ao balcão. Reparou que vestia um casaco creme e calças ao tom, talvez branco sujo. O empregado perguntou ao Mário se queria levar o jornal.
«Obrigado. Vou conversar com uma amiga.»
«É oferta. O jornal da cidade está a comemorar o aniversário.»
«Então levo.»
«Se soubesse da oferta tinha pago menos uma semana na assinatura.» Disse a mulher vestida de branco.
Trocaram um sorriso rápido, aparentemente sem significado e ela saiu, logo de seguida. Entretanto o Mário já tinha as duas chávenas de descafeinado na sua frente. Pegou nelas e pensou logo se não ia haver caldeirada. Era exímio em problemas de pouca monta como entornar o conteúdo de uma chávena.
Foi então que viu a amiga acompanhada da mulher de branco. Pouco depois estavam os três numa conversa aparentemente normal.
E pronto. O destino desviado seria cumprido.

«Achas que vai resultar, Cereus?»
«Fizemos tudo o que tínhamos a fazer. Conseguir o encontro. Agora está nas mãos dele e da mulher do vestido branco. Na atração que sintam ou não. E por aí em frente.»
«As tuas amigas foram impecáveis. Acho que o desviaram da rota no momento crucial. Gostava de conhecê-las, mas como conseguir, se estou aqui agarrada à terra?»
«Deixa comigo, querida Nora. Posso ajudar-te.»
«Sim? Que bom!»
«É assim... Vou ensinar-te um truque. Logo à noite, quando toda aquela gente estúpida, que tu já conheces de ginjeira, adormecer, vamos voar até encontrarmos o lugar onde estão as árvores, junto à porta e então trocamos uns dedos de conversa com elas. Vais ver que é fácil libertar o espírito.»
O espírito?
«Que bom! Mas eu tenho espírito?»
«Claro que tens.»
«Estou abismada, Cereus! Tu és um espanto. Consegues tudo o que queres. Até me deste um espírito!»
«Isso julgas tu. Já o tens contigo desde que nasceste. Mas o espírito não pode errar eternamente no plano astral. Tem compromissos com o corpo grosseiro. Volta sempre.»
«Agora só desejo que anoiteça depressa...»
«Isso, a acontecer, seria um engano. O relógio do tempo não adianta nem atrasa.»
«Tens sempre razão.»
«E sabes uma coisa que nunca te disse?»
«Sim?»
«Gosto muito de ti. Sempre foram muitos anos juntos.»
Senti que corava de novo.
«Só mais uma coisa sobre as árvores: além de provocarem o ligeiro desvio, mas decisivo, do Mário, não fizeram mais nada?»
«És perspicaz. Sim. As árvores soltaram odores especiais de atração que só foram sentidos pelos dois.»
«E então o nosso pai e a desconhecida sentiram-se atraídos um pelo outro.»

«Passou-se uma semana e aconteceu muita coisa. Diria que foi milagre. Acreditas que estão apaixonados e vai ser muito difícil alguém separá-los?»
«Vês problemas?»
«Muitos obstáculos. E agora só depende deles. Nós preparámos o encontro. Agora têm que se entender.»
«Vai tudo correr bem. Depois do nosso esforço não vão perder a oportunidade. Tanto um como o outro devem estar carentes. Seria irracional perderem-se por ninharias. Mas que têm que nadar contra a corrente, lá isso têm.»
«Nora... sinto-me outro ao pé de ti.»
«Como assim?»
«Estou a ficar baralhado. Não me lances esse olhar dengoso que não respondo por mim.»
«Cereus?»
«Nora?»
«Alguma vez irão desconfiar que fomos nós que os enviámos para os braços um do outro?»
«Nunca se sabe.»

«Pois não.»
«E esta história acaba aqui.»
«Que pena!»
«Talvez um dia possamos saber o que aconteceu ao Mário e à desconhecida.»
«Nós dois?»
«Sim, nós dois. De futuro vamos estar mais juntos.»
«Como assim?»
«Lembra-te que vou ser o teu professor de voo. A propósito, gostaste do primeiro voo?»

«Sim! As árvores do jardim são muito simpáticas!»
Cereus demorou a falar.
«Brevemente partiremos para sempre, rumo ao desconhecido.»
«E nunca mais voltamos? O pai vai sentir a nossa falta!»
«Se tudo correr bem só vai lembrar-se de nós com um misto de saudade e dúvida.»
«Saudade compreendo. Agora dúvida...»
«Sim. Os teus troncos e folhas e também o meu corpo espinhoso perderão de repente o sentido da vida e morrerão em pouco tempo. Nora, pensa bem. Uma vez abandonado o nosso corpo nunca mais podemos voltar.»

Porque é que as coisas acontecem de repente, como num sonho, e não temos tempo para pensar? 
Mas estou decidida.
«Ensina-me a voar, Cereus!»
«Nem quero eu outra coisa.»
«É fácil aprender a voar?»
«Não te preocupes, Nora. Para o sítio onde vamos, seremos um só

Nora e Cereus…
O sonho de Nora, a nespereira que um dia absorveu a sua irmã gémea, não morreu à nascença, mas parece que estava condenado ao fracasso. Nada teve a ver com outro sonho que contribuiu para a aproximação de dois corações solitários e sedentos de amor. Mário e Rita seguiram o seu caminho, juntos, depois da ajuda preciosa de Nora e Cereus. E também de outros. Quanto à Nora e ao Cereus, tudo levava a crer que a sua vida se uniria para a eternidade mal os seus espíritos se desprendessem dos corpos grosseiros.

Concluída a primeira fase, deixaram-se ficar planando sobre o quintal. Em baixo, os companheiros, presos à terra que os mantinha vivos, estavam longe de imaginar a alteração radical no futuro do poderoso cato e da companheira esbelta que dominava o quintal nas alturas. Quanto ao pai adotivo tinha encontrado o seu caminho e já não precisava do apoio mental dos dois vegetais pensantes. A sua contribuição para que encontrasse a felicidade tinha sido determinante. Nada sabiam acerca da personalidade e dos verdadeiros sentimentos da nova companheira de Mário. Tinham ouvido falar vagamente da inexistência de uma linha do coração no estudo quirológico que este fizera nas suas mãos, o que, em princípio, não era um bom indício. Uma mulher com uma componente racional muito forte em nada ajudava quanto a uma eventual colisão com um Mário sonhador, muito menos materialista, mas fortemente determinado. Acreditavam que o planeamento, feito ao segundo por Alguém lá em cima que talvez gostasse muito deles, não podia estar de forma alguma votado ao fracasso. Era preciso haver esperança e que ambos temperassem os impulsos muito diferentes de forma a encontrarem o equilíbrio. De facto estavam condenados a entender-se, mesmo que depois do mar de rosas, de sonhos e de fantasias surgisse o implacável mar tormentoso, de ondas alterosas, em que se debateriam ao serem arrastados para o largo, onde os sonhos se afundavam e se iniciava a vida real com os dois entregues de uma vez por todas a uma viagem que já não admitia regresso.
«De repente fiquei triste. Acho que lhes devíamos dar mais um pouco de ajuda. É cruel sabermos que há um ponto que os pode afastar de vez. A componente material. Para o amor de Mário basta uma cabana. A Rita já não pensa assim. Será que se vão entender?»
«Estás a ter as mesmas dúvidas que eu, Nora. Mas sabes uma coisa? Nós não podemos fazer mais. Encontraram o seu caminho. Agora têm que se entender. Preocupa-me mais o amanhã que espera estes desgraçados do quintal, por mais estúpidos e inferiores que sejam. Nós libertámo-nos e em breve estaremos fundidos num só, a caminho do novo destino que mora muito longe.»
«Também tenho pena daqueles companheiros que não podem fugir do desmantelamento do prédio que irá submergir todo o quintal. Não têm pernas para fugir. Deus destinou às plantas um modo inalterável de se fixarem à terra-mãe que os alimenta. Deu-lhes também a sensibilidade, mas de nada lhes vai servir. Mesmo que sejam avisados, que podem fazer?»
Nora sentiu o calor da proximidade protetora do Cereus e suspirou profundamente.
«Onde chegou esse suspiro?»
«Onde querias que chegasse?»
Nora não pôde adivinhar o sorriso do companheiro.
«Não nos despedimos deles?»
«É melhor não» disse o Cereus. «Deixa que a vida continue aqui até ao golpe fatal.»
«Nem deixas umas palavras para o desgraçado do cato espanhol? Apesar de ser um grande chato com as constantes algaraviadas, creio que gostava muito de ti. É estúpido por natureza, como tu dizes, mas foi o teu companheiro mais próximo.»
«Sabes, Nora?... ele não ia compreender as palavras de despedida, por mais carinhosas que fossem. Não passa de um cepo, um primitivo quase ao nível daquelas couves que o homem que cuidava do quintal plantava. Isto para não falar nas urtigas irritantes e nas outras tuas amigas rasteiras.»
«Discordo desta última parte. Também são filhos do Criador e não têm culpa de terem sido tão pouco dotados por Ele.»
«Retiro o que disse. Admiro-te, Nora. Evoluíste muito.»
«Devo a ti. Só a ti. Mas fico triste por a nossa ligação se ter fortalecido à custa da elevação da minha cultura. Sou muito parecida com eles e não é por me ter tornado superior que deixei de os amar e admirar. Aliás, já disseste uma vez que eu só tinha altura e era uma vaidosa quando os meus troncos e folhas se enchiam de filhos.»
«Não estás a ser justa. Já gostava de ti no tempo em que tinhas a inteligência adormecida.»
«Não me parecia. Mas deixemo-nos de quezílias. É importante que estejamos cada vez mais unidos.»
«Gosto muito de ti. Já tens sentimentos e a perceção das coisas. E vais evoluir, sempre evoluir mais. Prometi que te ensinava tudo aquilo que sei. Lembras-te? Há um elo muito forte a unir-nos.»
«Devíamos ficar por cá mais uns tempos para podermos acompanhar de perto a nova ligação do nosso pai. E há ainda outra coisa que me preocupa. Por que carga de água temos que voar para as estrelas, se as raízes continuam a existir e vão continuar a ficar por cá, agarradas à terra que nos fez crescer?»
«Temos que dar uma resposta concludente aos ventos de mudança, Nora. O quintal vai desaparecer. O nosso pai tem um novo amor. Não compreendes?»
«Sopram ventos de mudança. Será que o nosso pai os deseja? Vamos ficar por cá fisicamente. Só fisicamente. Ele sentirá falta duma presença espiritual. Da nossa verdadeira presença. Sim. Já não vamos ser nós. Apenas uma nespereira elegante, vaidosa... e um Cereus pensador e penetrante até aos escaninhos mais escondidos onde reside a verdadeira essência a que os homens chamam subconsciente.»
«Nora!»
«Sim, Cereus pensador?»
Voltou a não ver o seu sorriso. De qualquer forma a noite caíra cerrada no quintal adormecido, tão adormecido que nem um galináceo cacarejava.
«Estou espantado contigo! Evoluíste a passos de gigante...»
«Como consegui? Ah sim. Naturalmente os nossos espíritos já fazem parte um do outro. O que previas na minha evolução talvez tenha acontecido mais cedo. Mas, voltando atrás, achas que é imperioso... ou por outra... vai mesmo acontecer a decomposição rápida do invólucro grosseiro que nos guardou nesta Terra de passagem, ou há uma hipótese de estares enganado? A princípio não tínhamos alma, nem sequer pensávamos. Tu evoluíste. De repente eu evoluí.»
«É inevitável. O quintal vai desaparecer. E tens razão. Eu evoluí primeiro. Desde sempre estive em contacto com o nosso pai, só que ele não acreditava. Logo que me trouxe para o quintal soube dos seus sonhos e dos consequentes fracassos por nunca os ter conseguido concretizado. Das mágoas sentidas que calei com a cumplicidade de quem estava também envolvido.»
Sem saber porquê, Nora ficou triste.
«Estás a referir-te à jovem que vestia de branco, cujas cartas de paixão ele queimou num acesso de desespero. Digamos, quase ódio. Nos humanos o ódio e o amor por vezes tocam-se. Não é do nosso tempo, mas ficou o testemunho da velha figueira que contou segredos à roseira. Isto já me contaste ou alguém do quintal fez o favor de me relatar.»
«Feridas que deixaram úlceras. Nunca sararam de verdade.»
«Mais uma razão para ficarmos.»
«Sabes uma coisa, Nora? Acredita que tens uma alma grande. Logicamente não tem peso, mas vale muito. Mas nada podemos fazer pelo nosso pai. Como disse Sartre num livro, “os dados estão lançados”. Mas acredito que vai tudo correr bem entre eles.»
«Oxalá.»
«Estás pronta?»
«Se temos que ir...»
«Agarra-te a mim.»
«Onde?»
«Mentalmente.»
«Ah sim. E para onde vamos?»
«Para além...»
Nora julgou ver um dedo do Cereus apontado para o firmamento e sentiu medo. De seguida, um frio imenso, fustigante, gelou-a e fez bater o queixo que não tinha.
«Não olhes para baixo, Nora. Desliga-te de vez do mundo material.»
«Dá-me a mão!»
«Não posso dar-te a mão...»
«Porquê? Ah... certo. Não faças caso. Vou deixar que me guies. Não me abandones, Cereus!»
«Um dia serás independente.»
E esta?
«Mas não vamos ser um só?»
«Claro que sim.»
Nora ficou a pensar...
O cato concentrou-se na viagem, seguindo um rumo sem rumo até aos confins das estrelas, ao sítio dos quasares, buracos negros gigantescos que roçavam o limite do universo. Foi uma viagem pautada em grande parte pela escuridão, baseada no sonho que só o Cereus sonhou. Não viram os jardins do Senhor. Não desceram, tão pouco, às terras tórridas do inferno. Nora, talvez fundida com o companheiro, limitou-se a esquecer-se do que nunca se lembrou. Aprendeu a voar sem ter consciência que voava. Seguiu cegamente a viagem dum cato iluminado, porque cega era ela. Travaram diálogos que mergulharam no esquecimento. Viveram várias eternidades num segundo. Talvez tivessem sido felizes, mas mergulharam no mais profundo da profundidade cada vez mais profunda.
Nora continuou a pensar...
Provavelmente ia esquecer-se de vez da Terra amada, do pai de afeição e do dia em que o seu sol interior brilhou intensamente, também do quintal, das amigas urtigas e da erva-cidreira bem cheirosa. A viagem através do negrume sideral durou e durou... até que ela e ele chegaram a um sítio parecido com uma certa “terra do nunca”.


Nora não se lembrava se foram felizes e se ficaram mais uma eternidade, fundidos no ideal comum, ou desesperadamente sós, não se concretizando o pressuposto gravado nas memórias agora apagadas; não se lembrava se partiu com o companheiro para a eternidade e algo imprevisível falhou; se viveram na escuridão uma vida intensa iluminada pela luz invisível do sonho; se teve acesso total à prometida e inesgotável base de dados; se ele a ensinou a voar e de imediato ela se perdeu no azul constelado do céu do futuro; se chegaram aos confins inimagináveis dos quasares e voltaram para trás; se... tantos mais “ses” até chegar a uma situação, aparentemente ilógica, de retorno. Ilógica, mas real.
Flutuava agora sobre as plantas do quintal, rente ao seu corpo grosseiro que ainda não tinha sido desagregado, molécula a molécula, conforme a previsão de Cereus, o pensador.
Tinham partido em iminência de fusão e agora regressava com a sensação amarga de ser uma só entidade.
Depois de um momento de hesitação aproximou-se mais do seu vulto frondoso até que houve uma aparente colisão semelhante a um encaixe de duas peças e concluiu que acabava de “entrar de novo dentro de si”.
Deixou-se ficar no escuro à espera de ouvir o cantar do galo, sinal que o dia clareava. Aos poucos foi vendo os contornos familiares dos ocupantes do quintal e fazendo pequenas descobertas. Os Aloes tinham invadido um dos flancos do cato espanhol. As urtigas e demais ervas daninhas ganhavam terreno e competiam “ombro a ombro” com a erva-do-príncipe e a erva-cidreira. E claro, o possante Cereus apresentava rebentos novos.
Deduziu que era fim de junho.
«Cereus...»
Silêncio no quintal.
«Responde, Cereus!» insistiu.
«Amigo cato espanhol... sabes o que se passa com o Cereus?»
«Estás cega, Nora?»
O cato evoluíra. Já regateava.
«Bem o vejo, amigo. Mas ele não fala?»
«Emudeceu há uma semana.»
Um semana? Então...
«E tu também. Que se passou com os dois?»
«Ah sim. Tive uma dor aguda no corpo todo.»
Não era ali que, de momento, devia estar.
Novo choque, agora algo semelhante ao desencaixe de duas peças e o imediato desprendimento da nespereira, a sua camuflagem grosseira.
Onde procurar o seu pai de afeição?
Tentou falar no jardim com as árvores. Não conseguiu. Depois voou pelo espaço do desejo durante todo o tempo do mundo, já que o tempo não tinha tempo para si, no rasto do pai.
Encontrou outra família na casa antiga. Numa semana ele tinha saído daquela casa. Pouco lógico. O tempo das plantas não era síncrono com o tempo dos humanos.
«Ah... como não me lembrei!» pensou. «Se ainda vivem juntos, só pode ser num sítio...»
Claro que não tocou à campainha da porta, nem usou o elevador. Num instante estava dentro de casa e noutro a percorrer todos os compartimentos da mesma, mas não teve êxito. Deixou-se ficar, pensativa, no canto mais escuro da sala.
«Se não moram aqui, adeus esperança de ainda viverem juntos» desabafou. «Pobre do meu pai! Que falhou?»
O tempo foi-se escoando e cada vez mais se acentuava a sensação de fracasso.
«Mas...»
Desceu até junto de uma mesa baixa e focou o olhar, ou isso de olhos, numa moldura. Um sorriso iluminou-lhe o espírito.
«Ele sempre conseguiu!»
A Rita não gostava de ter em casa fotografias do Mário e ali estava uma!
«Deu certo! Deu certo!»
Gritou aos quatro ventos, mas os sons foram abafados pela existência inevitável do vazio.
Sentiu abrir-se a porta da rua e ficou expectante, aguardando que entrassem na sala.
«Olha o Loris!» disse uma voz feminina. «Não o deixes entrar na sala que arranha as carpetes...»
O gato apareceu e começou de imediato a afiar as unhas na carpete azul.
«Não te dizia?»
«Não lhe ligues.» Disse Mário. Vais ver que logo desiste. Dá-me é um beijo que já tenho saudades.»
«E eu também...»
«Que belo par fazem!» pensou. «Mas ele envelheceu um pouco. Quanto tempo já se passou?»
«Pai... ouve-me... estou aqui, ao teu lado!»
«Coisa estranha...» Disse Mário.
«Que aconteceu?»
«Pareceu-me ouvir uma voz. Muito fina. Vinha do lado da janela.»
«Não me assustes. És incorrigível. Tu e as vozes do outro mundo...»
Nora esgueirou-se, desta vez pela porta que dava para o hall, não sem antes ter pisado a cauda ao gato que soltou de imediato um miado estridente, ao mesmo que os pelos se eriçavam.
«Que se passa com o Loris?»
«Os gatos veem coisas que os humanos não dão conta...»

«Que coisas, Mário?»
Não ia voltar ao quintal, condenado a desaparecer, nem ao hipotético mundo das “terras do nunca”.
Deixou-os em discussão acalorada e optou por sair por uma porta.

E o que aconteceu ao Cereus peruvianos monstruosus?
«Juntos seremos um só, uma ova! Provavelmente traíste-me e fiquei só. És como certos homens que não podem ver uma burra de saias. Vou voltar ao quintal. Guardo tão gratas recordações daquele sítio. Dos meus amigos. Da chuva, do granizo e do vento agreste. Do sol que que me aquecia, mas queimava as minhas folhas. Dos meus filhos cheios de doçura que tanto encantavam quem os comia. Das histórias que ouvia. Dos amores e desamores do meu pai adotivo. Do ingrato do Cereus que emudeceu.»
Se bem o pensou, melhor o fez.
«Ah!»
Nem queria acreditar no que estava vendo…

 


Sempre era verdade! A casa e o quintal, tinham desaparecido para sempre.

«O Cereus tinha razão.»
Então, ganhou altura e desapareceu de imediato para o invisível mais invisível que podia existir e era agora o seu verdadeiro mundo.

A ÚLTIMA ABENCERRAGEM


Sei que um dia vou partir. Como já partiram os meus ascendentes que também viram partir os seus. É a lei que nos rege, com Deus ou sem Deus. Dos seres vivos mais inferiores aos que estão no topo.
Só que eu vou ser o último dos últimos. Mas não tenham pena de mim por ser a última abencerragem.
Grande parte da vida do meu pai-irmão ocorreu no quintal do Mário, nosso pai adotivo e toda essa vivência já foi contada.
Quanto a mim, Cereus junior, nasci também no quintal, já quando decorria o período decadente do grande Cereus. O desfecho fatal adivinhava-se e o nosso pai adotivo decidiu como se impunha. Um golpe único de faca afiada e eis que me separei do todo que constituíamos, eu e o meu pai-irmão.
Dias mais tarde fui mudado para um vaso que existia lá em cima, na varanda de chão cimentado.  Aos poucos, fui ganhando raízes, o único meio de me agarrar à vida. Vida que foi fugindo, aos poucos ao Cereus, até que um golpe de vento o deitou por terra, onde ficou, agonizando.
Meses mais tarde o meu pai adotivo mudou-se para outra casa porque a casa onde morava foi vendida a um construtor civil que a mandou demolir e arrasar o quintal. Levou-me consigo. Do quintal conservo apenas a recordação do silêncio de Nora, a nespereira frondosa e orgulhosa dos seus frutos e também dos outros companheiros, nomeadamente o cato espanhol que, dizia-se, falava pelos cotovelos e ninguém o entendia. Quanto às plantas inferiores, couves, alfaces, tomateiros, urtigas, ervas daninhas, etc, delas também nada posso dizer.
Agora estou numa varanda altaneira donde vejo as pessoas passarem, bem como os carros e tudo o mais. No tudo o mais, incluo uns animais a que chamam cães e gatos. Já não sou visitado pelas borboletas, abelhas, nem pelas  joaninhas. Dou-me bem com os meus novos companheiros, especialmente com a companheira mais próxima, uma pequena oliveira que já deu frutos nos últimos três anos. Estou num ambiente que muito me agrada, com sol quanto baste, que também é apreciado por um gatarrão tigrino, demasiado obeso, que se chama Loris e a quem o meu pai adotivo dedica muita atenção e carinho.
Estou a crescer e a engordar a olhos vistos, sinal de que sou bem tratado e que a mudança de ares me fez bem. Quanto às feridas causadas pelas agressões contínuas dos malditos caracóis do quintal fazem já parte do passado. Ficaram só, para memória furura, as cicatrizes.
E que posso dizer do meu pai adotivo?
Está mais velho. Mais caseiro. Menos pensativo. Também com uns quilitos a mais. É o que posso dizer. Não possuo o dom do meu pai-irmão, dom muito apreciado e, ao mesmo tempo, invejado pela Nora, segundo opinião do cato espanhol, num dos raros momentos em que o ouvi e entendi. E como esse dom não mora comigo, pouco mais posso acrescentar. Quando ele vem à varanda, aprecia o sol, os seus filhos adotivos, especialmente a oliveira. Quando é preciso, rega as nossas terras, fortalece-as com adubo. Paz não me falta. E é tudo.
Penso que o Cereus e a Nora eram os seus filhos preferidos. Já cá não estão. A Nora teve um final de vida dramático.
Como vai ser o meu amanhã?
A probabilidade de ter renovos é mínima. Se um dia o vaso que me acolhe for mudado, não poderá ser substituído por outro muito maior. Assim, o meu destino é continuar a viver com a solidão até que a morte me leve.
Assim, serei fatalmente a última abencerragem.Só faço um pedido ao Criador. Que a morte me leve antes do meu pai adotivo. Não quero continuar a viver na incógnita do amanhã. Ser metido num saco de plástico e deitado, sem dó nem piedade, no contentor do lixo. Com o meu pai adotivo, que jamais me vai abandonar, terei certamente uma velhice que vai conduzir-me ao desfecho digno que todas as plantas desejam ter. Morrer de pé! 

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