Segunda-FEIRA, 8 DE FEVEREIRO DE 2010, DATA EM QUE ESCREVI MAIS UMA HISTÓRIA RELACIONADA COM O MÁRIO E A MARIA. ESTE PODIA TER MONTADO O CAVALO DA CORAGEM, MAS O ABISMO DA DIFERENÇA DE IDADES NÃO DEIXOU QUE O SONHO DE MÁRIO SE CONCRETIZASSE. NÃO FOSSE ISSO...?
O Mito da Caverna narrado há quase 2500 anos por Platão é uma metáfora que a filosofia utiliza, em qualquer tempo, para descrever a situação geral em que se encontra a humanidade. Segundo o filósofo, estamos condenados a ver sombras na nossa frente e a acreditar que são a verdade ao nosso dispor.
Platão imaginou um quadro extremo. A maioria da humanidade condenada a uma infeliz condição. Imaginou todos presos desde a infância no fundo de uma caverna, imobilizados, obrigados pelas correntes que os atavam a olharem sempre a parede em frente.
E o que veriam?
Admitindo a hipótese de algumas pessoas deslocarem-se por detrás do muro, num e noutro sentido, levando à cabeça estatuetas de homens, de animais, vasos, bacias e outras vasilhames, e havendo ainda uma fraca iluminação, os prisioneiros daquele lugar obscurecido só poderiam divisar sombras. Para eles essas imagens eram a realidade.
Platão, dando sequência à sua narrativa, admite que se alguém resolvesse libertar um daqueles prisioneiros da sua pesarosa ignorância e o levasse, ainda que arrastado, para longe da caverna, este, no primeiro instante, ficaria ofuscado pela extrema luminosidade do Sol. Mas, depois, mais adaptado, iria desvendando aos poucos, como se estivesse a recuperar, as manchas, as imagens, e, finalmente, todos os objetos maravilhosos que o cercavam, constatando que havia outro mundo, precisamente o oposto ao do subterrâneo em que fora criado. Abria-se, escancarava-se o mundo da ciência e o do conhecimento das formas perfeitas.
Existem dois mundos. O visível, que marca o tempo em que o homem esteve preso na semi-obscuridade da caverna, julgando que as sombras eram a realidade. E o outro mundo, o inteligível, o daqueles que conseguem superar a ignorância em que nasceram e viveram, virtude de poucos. Os que conseguem soltar-se dos ferros que os prendiam e assim superar a ignorância em que nasceram, voltando-se para a esfera das essências maiores do bem e do belo.
Tudo o que se vê é propriedade dos sentidos e dominado pela subjectividade, considerando-se território do homem comum preso às coisas do dia a dia. O outro é o campo ondulante do sábio, do amigo da sabedoria que sofre por ter que conviver desconfortavelmente com os chamados homens obscurantistas da caverna e que gozaram com ele quando falou da existência do outro mundo maravilhoso. Não acreditam nele porque não atingem a grandiosidade das suas ideias. Será sempre para eles um excêntrico, um visionário, quando não um louco se levado ao extremo.
«Vou arriscar. Umas calças por dez euros...»
Quando chegou a Cascais teve logo um contratempo nas proximidades da zona da feira. Os lugares de estacionamento estavam todos ocupados e teve que procurar lugar para o Golf num sítio mais afastado.
A amiga tinha-lhe feito dois avisos importantes, o primeiro relacionado com a dificuldade em estacionar (e que comprovou) e o segundo, bem mais importante, relacionado com os primeiros preços de oferta dos artigos. Aí não devia mostrar muito interesse numas calças que lhe chamassem a atenção ou noutro artigo. Fazia duas ou três perguntas e só depois apreçava o artigo que lhe interessava.
«E não te deixes ir pela primeira oferta. Regateia. Outra coisa: vê se a peça de vestuário que queres comprar está em bom estado. Há peças genuínas e contrafeitas. As primeiras têm pequenos defeitos de fabrico. Abre bem os olhos. Observa com atenção.» Disse a amiga.
Não gostava de regatear preços, nem, tão pouco, de comprar gato por lebre.
«E como vou descobrir esses defeitos?»
«Se não deres por eles é porque estes não são relevantes.»
«E os contrafeitos?»
«Tens olhos para ver e dedos para apalpar. Se te parecer que são de qualidade, não hesites.»
Mário franziu o sobrolho.
«É fácil para ti. Bom, vamos a ver como me saio. Mas... não queres ir comigo?»
«Amanhã não posso. Podemos combinar para outro domingo.»
Estranhou a recusa. Parecia-lhe que a amiga tinha um fraco por ele. Algum mouro tinha chegado à costa.
«Deixa, Odete, se não for amanhã nunca mais vou. Mas estava mais seguro com a tua presença.»
«Olha mais uma coisa...»
«Sou todo ouvidos.»
«Tem cuidado com o que comes.»
Fez-lhe um gesto de pessoa entendida.
«Descansa que só vou depois do almoço.»
«Isso isso. Vejo que já aprendeste.»
«Bem sabes que nas aulas de Formação sou especialista em “Defesa do Consumidor”.»
«Pura teoria.»
«E não só.»
E ali estava ele à procura de pechinchas para as quais exigia alguma qualidade e bom preço. Tarefa difícil para quem não estava habituado, mas não impossível de obter algum sucesso.
Mas não foram as calças Lee de ganga azul, nem as camisas etiquetadas com a marca Ralph Lauren, bem como um expositor feito em latão e vidro que comprou para guardar os seus minerais e fósseis, que marcaram positivamente a sua estreia na feira tradicional dos domingos em Cascais. Um encontro inesperado foi bem mais importante do que os escudos que entretanto poupou nas compras feitas.
Chamou-lhe a atenção a beleza selvagem da mulher que empurrava um carrinho de bebé. Os olhares cruzaram-se e os seus olhos de predadora também mostraram interesse no homem que fixou o olhar nela.
«Doutor Mário!»
«Já meti a pata na poça!» pensou.
«Olá, Cátia!»
«Que bom encontrá-lo!»
Continuava perigosamente atraente.
Os seus olhos toldaram-se de lágrimas. Não entendia o que estava a passar-se. Ela era uma mulher fria e agora estava a chorar. Por mais voltas que desse à cabeça voltava sempre à estaca zero.
Foi então que ela desabafou:
«Estou grávida.»
«Fale mais baixo, Cátia! Podem ouvir-nos. Mas então o que é que se passou?»
Reagi bem. Estava preparado para tudo. Tudo e mais alguma coisa. Nem que essa coisa fosse para a bomba de neutrões. E ainda bem porque era mesmo a bomba de neutrões. Deixei-a desabafar. Não queria. De maneira nenhuma. Falou de injeções e de aborto.
«Mas... não quer mesmo? Já pensou bem?»
Notei uma transfiguração brusca no seu rosto. Como se tivesse falado do diabo ou ela visse o diabo. Não queria! De maneira nenhuma. Claro que o diabo não era eu.
«Há quanto tempo...?»
«Pouco mais de um mês.»
Pus-lhe uma mão sobre o ombro. Tentaria ajudá-la dentro das minhas possibilidades. Não na parte clínica, mas podíamos falar. Teria todo o meu apoio.
Porquê eu? Havia três professoras na turma de Formação e eu era o único homem. Contudo, ela não procurou as minhas colegas para desabafar, contando-me tudo, sem a mínima hesitação. Abominava o homem. Era filho da senhoria da casa que habitava. Só queria sair de lá. O mais depressa possível. Não podia ver aquele monstro na sua frente.
Mas meteste-te debaixo dele e na altura achaste que foi bom!
Entretanto tocou para os alunos entrarem. Disse-lhe para contactar comigo mal regressasse da terra. Quanto ao resto, que tivesse muito cuidado e não deixasse a sua vida na mão de curiosos. Que procurasse pessoas entendidas no assunto.
«Mas... não quer mesmo?»
Cruzes canhoto! Voltou a ficar transtornada. Li ódio nos olhos dela. Que razões teria para odiar assim tanto o pai do filho que não queria ter?
Nessa noite, quando cheguei a casa, nem sequer vi televisão. Um cansaço enorme tinha-se apoderado de mim. Só queria deitar-me e o mais depressa possível.
Essa agora! Quem havia de dizer [1]?
«E eu também.»
Parecia que tinham ficado num impasse. Ambos se sentiam comprometidos, principalmente Mário. Não devia ter olhado para a jovem daquela forma. Mas o que não tinha remédio remediado estava.
«Está admirado, doutor?»
Se estava! E mais do que isso.
«Pelos vistos...» Fixou o olhar na pequenita. «E ainda bem que assentou...»
«Ganhei juízo. Casei com um homem muito bom e que me respeita.»
E as suas ambições desmedidas?
Pela forma como vestia não andava folgada na vida. Mas, adiante.
«Fico feliz, Cátia. Como se chama a menina?»
«Carla. Tive muita sorte, doutor!»
Se teve! Para quem soube que esteve à beira do abismo...
«A sua filha é muito bonita.»
«Sai à mãe...» Não disse.
«Obrigada.»
«Ia-se perdendo, Cátia. Vi o caso mal parado. Depois que saiu da escola não voltei a vê-la, mas tive notícias de si pela Lisete que me disse que a Cátia andava com grandes problemas. Ainda bem que os ultrapassou e que deu uma volta à vida. Pode crer que estou muito contente.»
«Foi o meu marido que me tirou da lama. É mais velho uns bons anos, mas trata-me bem.»
Mário pegou com delicadeza nos deditos da bebé.
«Tem os olhos da mãe.» Arriscou-se finalmente a dizer.
Notou um ligeiro rubor a tingir-lhe o rosto.
«Ainda não lhe agradeci tudo o que fez por mim. Andava muito de cabeça perdida e as suas palavras amigas deram-me conforto e alento.»
«De nada. Sim, foi um mau período na sua vida. Felizmente já passou.»
Também ele andava de cabeça perdida com uma colega mais nova. Não conseguiu montar o cavalo da coragem.
«A doutora Maria...?»
Nem de propósito. Que queria dizer com aquela entoação de voz?
«Como era de prever, seguiu a sua vida profissional. Só deu aulas no ano seguinte e numa outra escola. Era professora provisória.»
«Ah! Pois. Mas nunca mais a viu?»
«Poucas vezes. Que quer dizer com esse “ah”?»
Ela sorriu, algo embaraçada.
«Diga. Não tenha vergonha.»
«Sempre me pareceu que os senhores se entendiam muito bem.»
Mário sentiu-se atingido.
«Como assim?»
«Acho que ela gostava do doutor. Na altura comentei com a Lisete e a minha colega tinha a mesma opinião.»
Então ela observa-os.
«Por vezes, o que parece não é, Cátia»
«Doutor, fui sempre muito boa observadora...»
Continuava com um olhar estranho, mas sedutor.
«Na aula de Formação, quando os via sentados à secretária, a conversarem, sentia que os vossos olhares tinham qualquer coisa de...»
«De...?»
«Encantamento. Bebiam as palavras um do outro.»
Mário emendou.
«Apenas éramos dois bons amigos.»
«Desculpe, doutor...»
«Não tem problema.»
Mário ficou muito sério, aparentemente a olhar para a antiga aluna do curso nocturno. Mas o pensamento já tinha voado para longe, onde eram as terras da utopia...
Sonho que fujo com uns cabelos longos, soltos ao vento. Mas os nossos tempos não são iguais. Pudesse contar-lhe um segredo e talvez fosse minha a trigueira de olhos doces que pareciam dizer sim aos meus, presos nos seus.
Porque não vou conseguir fugir contigo, nos caminhos que se cruzam sei que te vou perdendo, rosa em botão do meu jardim. E depois, pétalas ao vento. Cabelos longos. Lonjura. Desencanto. Tristeza. Rio que corre para a foz…
Se o teu destino fosse o preço do amor, teria todo o dinheiro do mundo para seres o meu destino. Mas sem te ter, és a quimera que só custa o dinheiro que não existe. Assim, serás a minha última utopia.
Os teus olhos pareciam dizer sim. Olhos muito abertos. De gazela assustada. Olhos que queria beijar, mas não podia. Era proibido beijar-te. Só em pensamento imagina que dizias que sim. Que um dia virias ao meu encontro!
Infelizmente não foi assim.
Ainda sonho com o teu corpo nu que o vestido da pureza escondeu. Com as mãos que tomaram as colinas dos teus seios. Sonho que te abraço. E beijo os teus lábios que sabem a morangos silvestres. E... é tudo um sonho!
Já passaste por mim, cabelos soltos ao vento. Longe da órbita do nosso acontecer.
Trigueira que me encantaste, agora que sei que te perdi e que sou de outra mulher que é o meu fatalismo, não sei se posso viver sem ti.
Volta, cabelos soltos ao vento, diz-me que vais voltar! Volta de braços abertos e não tragas lágrimas de tristeza nos olhos.
Quantos sonhos belos correndo ao meu encontro, correndo, correndo sempre, sem sequer descobrir se foste um sonho e sonhei, se te tive ou não pude ter...
Vem para mim, utopia, que só eu sei quanto te amei e nunca te disse!


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