sexta-feira, 5 de maio de 2023

O barulho

 




Nessa altura eram tempos diferentes no que respeitava ao relacionamento direto com as colegas nas escolas. A culpa não era delas nem dos rapazes. O sistema implantado assim o impunha. Uma separação obsessiva que começava nas salas de aula, com filas de carteira para o sexo feminino e outras para o masculino, e terminava com pátios separados por muros altos. Coisa estúpida, pois no exterior os rapazes e as raparigas juntavam-se e não podia acontecer de outra maneira. A não ser que os pais fossem esperar as filhas, coisa que não lembrava nem ao careca na pacata vila do Mário, onde não havia memória que algo de grave tivesse acontecido às suas filhas durante o trajeto da escola para casa.
O mais curioso de tudo é que não passou pela cabeça do Mário revoltar-se contra tal discriminação, até porque, primeiro era demasiado jovem para pensar em coisas de adultos e segundo porque prezava muito o escasso tempo de gozo íntimo no seu pátio onde jogava à bola com os colegas. Aí, além do jogo da bola, o rei dos reis, faziam corridas ou assim e até brigavam no seu milieu sem a intervenção de terceiros indesejáveis, dado que as salas de aula davam para o pátio das raparigas e depois havia um muro a separar os dois pátios, estando o dos rapazes a um nível mais alto, acessível após transposição de menos de meia dúzia de degraus cimentados. E mais. O pátio não era acessível à polícia, muito mal vista pela juventude que até era proibida de andar de bicicleta nos passeios, jogar à bola na via pública, ou de usar uma simples fisga que não se destinava apenas a caçar pássaros, por exemplo. Em casos extremos podia uma coisa simples como uma cabeça partida ou uma ferida numa perna, para não serem referidas outras partes do corpo. Assim, dava gozo, a si e aos colegas, ver os polícias passarem no exterior do pátio e gritar em vozeirão os mais variados impropérios, como "fora o chui" ou "vai-te embora ó bófia". A festa só acabava como o polícia de giro desaparecia das vistas ou o contínuo entrava em ação e começava a distribuir, indiscriminadamente, carolos a atirar para o doloroso. E aí não havia qualquer reação, pois todos receavam serem chamados ao Caça-Aviões, o austero diretor da escola que também era conhecido pelo homem dos sete ofícios, sendo o principal o de militar de carreira. O homem não era nada meigo, conforme o Mário me contou mais que uma vez. Eram testemunhas genuinas o Nini, o José e o Armando Slimpas. E que mais virtudes tinha o pátio, além de poderem jogar à bola nos intervalos e quando faltava algum professor? Por exemplo, faziam corridas de velocidade pura e insultavam os polícias quando os vissem passar no exterior. E outras coisas importantes como a que aconteceu um dia a Mário quando viu passar o Matias rumo à avenida dos cotovelos e logo a seguir a Micá. Safados! Iam colher a espiga...  

Quase exagerando, o pátio dos rapazes era uma espécie de paraíso, principalmente a seguir às aulas de Matemática e de Física, ou quando algum professor faltava, o que, em boa verdade, não constituía coisa rara. Então tinha que haver jogo, quer chovesse ou o pátio estivesse semeado de poças de água e lama à mistura. Sobreviviam a todas as intempéries para concretizarem os seus nobres desejos. Mas pobre do pai do Mário que não ganhava para os sapatos do filho.
«Vamos escolher equipas. O Mário e o Vítor são os capitães.» Propunha então o Slimpas.
Não sabia porquê, mas o Mário era sempre o primeiro a escolher.
«Primeiro, quero o Canhão
E logo todos diziam em uníssono:
«Che... bang! Che...... bang bang!»
O Maurício, alcunhado de Canhão, calçava uma botas cardadas que metiam respeito a qualquer um e canelada daquele calibre era coisa que o Mário não desejava apanhar. Portanto, uma ótima opção a sua. Embora o colega fosse um péssimo jogador, desmoralizava, e muito, os adversários. Já lhe bastava ter um ou outro acidente de percurso. E um desses acidentes não foi, não senhor, nada agradável. Uma vez a sua canela chocou com a canela do Prudente e ficaram os dois a ver estrelas, planetas e cometas.
«A minha canela foi para dentro, Prudente!» gemeu.
«E já viste a minha?»
«Oh!»
O Prudente era o emissário dos dias felizes quando o Caça-Aviões não vinha no comboio de Lisboa com destino à Figueira da Foz. Entrava na Feliteira e, quando chegava à estação-destino, deixava-se ficar a ver quem saía do comboio. Caso não visse o Caça nas redondezas, corria à desfilada pela avenida principal da vila até à escola para dar a boa notícia. Às vezes até era acompanhando por uns quantos que festejavam em conjunto o acontecimento.
«Boa, Prudente, vamos para a nossa jogatina!»
«O Tozé trouxe a bola?»
«Claro. E é nova. O Canhão deu cabo da outra há dias. Mas contribuiu com vinte e cinco tostões para ajudar o Tozé na compra de uma bola nova. Não te lembras?»
Quando ambas as canelas voltaram ao estado normal, o jogo  recomeçou e prolongou-se até ao toque para o intervalo, momento em que chegavam ao pátio os colegas dos outros anos. Ricos tempos que não voltam, Mário!

Está desgostoso. Veio-lhe à memória a tarde passada na Quinta Formosa [1]. Por mais gentil que tenha sido nunca irá namorar a Juliana. Tem tantas raparigas para escolher e foi enamorar-se por aquela ingrata que não sabe o que é o amor. Ou sabe? Provavelmente até gosta de outro. Um amor secreto. Sim. Deve ter um amor secreto. Tem que descobrir. É altura de ressuscitar a lendária "bola de cortiça" que tanto intrigou os colegas. Na verdade, um embuste dos grandes.
Já almoçou e voltou à escola. Talvez um jogo com os mais velhos venha a calhar. Alguns deles são já casados e dão por bem empregado o tempo a seguir ao almoço para darem uns pontapés na bola. É coisa rápida, pois têm que voltar aos empregos. Suados, sapatos cheios de pó, mas felizes.
Assoma ao muro que separa o seu pátio do de uma associação desportiva, onde faz ginástica em tempos letivos.
«Já lá estão...»
Mesmo a tempo de saltar o muro e juntar-se aos adultos. Quando tirar o sétimo ano do liceu vai para a Académica.
Vais, Mário?
Em boa verdade, Lisboa será o seu destino. Nunca gostou de praxes.
Quando se prepara para saltar o muro, hesita. Acaba de ver o Aníbal, que é o contínuo da associação. Ao mesmo tempo os outros acenam-lhe. Está indeciso. Que vai fazer? Por um lado, o jogo atrai-o. Por outro, tem receio de ser descoberto pelo famigerado Aníbal que não é nada meigo.
É então que se aproxima do muro o Narciso. Está casado com uma segunda prima sua.
«Falta um, Mário. Salta o muro.»
«E o Aníbal?»
«Deixa, ele é zarolho. E se houver alguma coisa, protejo-te.»
Então, estava bem. Saltou o muro e foi alimentar o seu maior vício.

Mais um dia. É o segundo intervalo da manhã. O pátio está mais cheio de rapaziada do que nunca. No outro pátio deve acontecer o mesmo. Gostava de ser mosca e misturar-se entre elas. De preferência no grupo da Alice. De certeza que estão a falar dele. Mal ou bem. Imprevisível. É tal e qual como quando se está desfolhando um malmequer. Aliás... Volta a si. Repara que se formaram pequenos grupos. Não quer conversas fiadas. Alheia-se de tudo porque está preocupado. É terça-feira e já gastou a semanada. Os dez escudos em prata que lhe deu o pai voaram como que por encanto e precisa de dinheiro para comprar uma prenda para o Batistinha pulga elétrica que faz anos na quinta-feira e convidou-o para a festa. Vão estar na festa quase todos os colegas da turma e a Alice comprometeu-se a ensinar-lhe a dançar.
«Só se forem músicas lentas. Não gosto de palhaçadas, Alice.»
«Bem te conheço. O que tu queres é encosto, menino.»
Sorriem ambos. Aquela cumplicidade com a Alice é uma coisa complicada. Um dia vão passear para os lados da avenida dos cotovelos, logo a seguir à escola. Do lado direito fica a quinta do Martinho, onde, por vezes, vai parar a bola que foi chutada por um pé imprevidente. Mas isso é ao menos. Porque do lado direito fica um campo de trigo. Uma real seara ondulante salpicada do vermelho das papoilas quando o verão começa a espreitar.
Onde vai arranjar dinheiro?
Talvez precise de comprar uns cadernos. Podre do seu pai que vai fingir que acredita nele...
Encosta-se ao muro e imagina como vai ser dançar com a Alice perante o ar de gozo dos restantes colegas. Não se importa que fique comprometido. Precisa mesmo de aprender a dar passos de dança. É tempo.
«Ainda bem que te encontro, Mário?»
«Então?»
«Hoje não temos a treta da "Morgadinha dos Canaviais".»
«O professor está doente?»
«Pior. Foi-se embora. Apanharam-no aos beijos com uma aluna do sétimo. Uma escandaleira das grandes.»
«Minha alma está parva! E onde foi isso?»
«Na sala sete. Alguém abriu a porta e deu com aquela triste cena.»
«Triste cena? Não. Alegre. Só depois é que a coisa deu para o torto.»
«Ou isso. Sempre vais aos anos do Batistinha?»
«Se arranjar cheta. Olha, tenho pena do professor Matias. Quem vier a seguir de certeza que não vai dar aulas melhor do que ele.»
O amigo concordou.
«Tens razão. O tipo até é um gajo porreiro.»
«Não é isso.»
«Então?»
«Deixa para lá.»

Intervalo do segundo tempo da tarde de um dia qualquer. Está um dia sereno de céu azul. Pouco importa para se juntar a maralha. Desde que não chova está tudo bem. E desta vez há poucos grupos formados. Porquê? Talvez porque sim, ou talvez porque não. Por vezes, acontece. Só que aquilo que vai acontecer é coisa rara de acontecer.
Não sabe quem apelidou aquele jogo de barulho.
De repente alguém dá um chuto na bola para o ar e todos ficam a vê-la subir. Pelas leis da Física terá cair. Até o Caça, diretor da escola e professor de Física que dá as aulas a ler o manual, afirmou mais que uma vez. E assim acontece. A multidão jovem agita-se e corre para o sítio onde a bola vai cair. Alguns caem. Outros riem de gozo. E há de haver um alguém que apanha a bola. É o "Totinha das canelas"! Mário nunca o viu jogar à bola. Que vai fazer? Tontice sua. O Totinha deu um forte pontapé na bola que ainda subiu mais alto do que da última vez. Grande e imprevisível Totinha! Pareces uma mosca morta e deste cá um destes pontapés! Cuidado com este "Totinha das canelas"!
Muitos pares de olhos olham para o alto, até que a bola, fatalmente, cai. E outra vez o dono da bola é o Totinha. A malta entusiasma-se e grita: «Totinha! Totinha!». E ele entusiasma-se também. Tanto ou tão pouco que escorrega ao chutar a bola na terra batida e estatela-se no chão. Então instala-se um silêncio inquietante. É que ele é filho do secretário da escola e tudo pode acontecer se partir uma perna ou assim. Até pode ser proibido jogar à bola no pátio.
Felizmente! Levantou-se e está a sacudir o pó das calças. Alguns batem palmas.
«Então? Ainda não tocou para a entrada!» exclama, levantando os braços.
E a bola continuou a subir e a descer e os acontecimentos sucederam-se. O barulho só acabou ao toque para a entrada.
Chamavam barulho àquele jogo caótico porque o maralhal gritava muito, ou porque se prestava à confusão?
Uma coisa é certa. O barulho apareceu de repente no pátio. Primeiro, estranhou-se. E depois entranhou-se.

A festa de anos do Batistinha pulga elétrica foi mais ou menos proveitosa para o Mário. A Alice ensinou-o a dançar e depois as outras colegas também dançaram com ele. Ganhou experiência e as pisadelas tornaram-se menos frequentes. Estava lançado.
«Então, Mário, não é assim tão difícil, não achas?»
«Desde que as músicas sejam lentas, está tudo nos trinques.»
«Bem sei o que queres.»
«Achas, Alice?»
Quase dezasseis anos, Mário! Vê lá onde te vais meter.
«E tu que não comentasses, Ernesto de uma figa
«Disseste alguma coisa, Mário?»
«Não, Alice. Falava só com os meus botões. Vamos dar uma volta por aí?»
«E a festa?»
«Que se lixe. Está no fim.»
«Onde queres ir?»
Ignorou a pergunta.
«Não faças barulho à saída, Alice.»
Chamavam-lhe avenida dos cotovelos porque as pessoas que se cruzavam na dita cuja quase se tocavam...



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