A |
manheceu. Está um dia cinzento e feio como cinzentos e feios têm sido todos os dias de abril de 2000. O inverno empurrou a primavera para fora do seu tempo natural e instalou-se sem cerimónia. Depois dos longos dias azuis doutros tempos vieram agora os dias chuvosos de abril. O tempo está virado de pernas para o ar e parece que não há volta a dar. É demasiado tarde por mais que os congressos se sucedam com a intenção bondosa de baixarem as emissões catastróficas do dióxido de carbono. Os maus da fita do costume dizem quase todos que sim, que se vão esforçar por diminuir a emissão de gases responsáveis pelo aumento do efeito de estufa, mas tudo não passa de boas intenções desses lobos maus já que os cadernos de encargos têm outros números.
Mas não sei como cheguei aqui. Ou talvez saiba. O dia cinzento e nebuloso que se seguiu a muitos outros e não devia ser assim, certamente tem a ver com o meu estado de espírito. Pressinto maus augúrios mesmo nos pequenos acontecimentos que saem da rotina. Não entendo o que se passa. Desconfio que se prepara, algures, uma conspiração contra a minha pessoa e o futuro que não me estava destinado. Por enquanto não passa de uma conspiração do silêncio, mas sinto que estou a ser manipulado por forças contra as quais não posso dar resposta imediata. Parece que está a voltar o tempo do deus menor, embora com outras vestes, mais discretas mas também mais eficazes. Se deixar que aconteça, então quando acontecer será demasiado tarde. Óbvio.Nestes últimos dias mal deixo a cama dou conta de que não estou bem. É um problema da coluna, é um problema circulatório, ou então ainda outra coisa que não consigo atingir. O tempo de normalização anda à volta de uma hora. Por vezes mais. Prolonga-se pela manhã e só vejo melhoras a seguir ao almoço.
É um sinal de crepúsculo?, ou será que tenho outros horizontes mais ambiciosos para alcançar e não me deixam?
Acho que me acomodei na rotina dos longos dias cinzentos. O sol deixou de me aquecer (“E que sol é este que já não me aquece, Maria...? (1)”). Definitivamente. Hoje pela manhã, enquanto dava de comer aos periquitos e observava a sofreguidão com que o Piu comia, a frieza habitual da Tina e a fraqueza crescente da Lecas, que sofre de gota, tive a sensação que o simples ato de estar de cabeça baixa não me fazia bem.
Acabado o trabalho de tratar da higiene da gaiola e de fornecer os alimentos e água para os periquitos, fiquei no computador a lançar uma ficha de um livro que comprei ontem.
Entretanto ela chegou à sala e ficámos sentados à mesa. Ausentes um do outro, como vai sendo hábito. Cada um no seu mundo, como é costume. Com o silêncio feito rei e senhor.
Um estrondo no vidro. Um impacto forte. Um grande susto.
Levantei-me como uma mola e dirigi-me logo para a marquise. O estrondo veio do vidro por trás da televisão. Observei com atenção. Não vi nada de anormal. Observei melhor. De novo, nada. Seguiu-se uma pesquisa mais minuciosa em relação ao lado de fora. Também nada.
Ainda não convencido, repeti a observação e o olhar prendeu-se na ramagem de uma planta.
Que espetáculo estranho!
A planta estava florida...
Não foi a planta florida que me fez perder mais tempo. Por entre a folhagem havia uma outra coisa. Sim. Um pardal. Quedo. Talvez morto.
Senti a pulsação subir em flecha. Ela aproximou-se e também viu o pardal preso entre a folhagem e pediu-me de imediato para o tirar daquela posição estranha. Preso entre arbustos.
Valeria a pena?
O olhar estava centrado naquela pequena ave que não dava sinal de vida e que fizera, provavelmente, o seu último voo ao chocar com algo transparente, invisível aos seus olhos.
Fui compensado pela minha persistência ao dar conta que a folhagem se agitou. Olhei melhor. O pássaro não estava inerte. Na verdade, respirava.
«Está vivo!»
Emoção que não consegui esconder.
«Trá-lo para dentro!»
(«Sim, meu general...»)
Continuei a observar, bloqueado. A emoção do momento tardava em deixar o consciente dar ordens e ela insistiu que pegasse no pardal. Mas eu parecia hipnotizado. Aquele pardal trazia-me recordações da casa da praia.
Pássaros mortos, penas, maus olhados, mistérios, magia negra. Nada disto fazia sentido vir da vizinha, uma senhora aparentemente bondosa. Mas o certo é que os pássaros apareciam mortos junto ao quebra-vento e só uma vez assisti a uma embate de um pássaro e dessa vez contra um dos vidros da porta da sala.
Ainda não convencido, repeti a observação e o olhar prendeu-se na ramagem de uma planta.
Que espetáculo estranho!
A planta estava florida...
Não foi a planta florida que me fez perder mais tempo. Por entre a folhagem havia uma outra coisa. Sim. Um pardal. Quedo. Talvez morto.
Senti a pulsação subir em flecha. Ela aproximou-se e também viu o pardal preso entre a folhagem e pediu-me de imediato para o tirar daquela posição estranha. Preso entre arbustos.
Valeria a pena?
O olhar estava centrado naquela pequena ave que não dava sinal de vida e que fizera, provavelmente, o seu último voo ao chocar com algo transparente, invisível aos seus olhos.
Fui compensado pela minha persistência ao dar conta que a folhagem se agitou. Olhei melhor. O pássaro não estava inerte. Na verdade, respirava.
«Está vivo!»
Emoção que não consegui esconder.
«Trá-lo para dentro!»
(«Sim, meu general...»)
Continuei a observar, bloqueado. A emoção do momento tardava em deixar o consciente dar ordens e ela insistiu que pegasse no pardal. Mas eu parecia hipnotizado. Aquele pardal trazia-me recordações da casa da praia.
Os pássaros morriam depois de embaterem no quebra-vento do terraço. Acontecia sempre ao fim-de-semana. Raras eram as vezes em que não encontrava pássaros mortos entre os catos, encostados ao quebra-vento. Durante o tempo de férias, nunca assisti a suicídios de pássaros. Alguma coisa estava errada. Por exemplo, alguém podia ter colocado os pássaros, já mortos, junto aos vasos. Só havia uma hipótese. Desconfiar da vizinha que limpava a casa e com quem tinha, por vezes, conversas sobre fantasmas.
Mas a mando de quem...?Pássaros mortos, penas, maus olhados, mistérios, magia negra. Nada disto fazia sentido vir da vizinha, uma senhora aparentemente bondosa. Mas o certo é que os pássaros apareciam mortos junto ao quebra-vento e só uma vez assisti a uma embate de um pássaro e dessa vez contra um dos vidros da porta da sala.
Assustei-me com o ruído, mas adivinhei logo a causa.
Abri a porta e espreitei, receoso, para o chão do terraço. E lá estava. Um pardal de telhado. Inerte.
Estaria morto?
Com uma certa repulsa peguei nele e trouxe-o para dentro, depositando-o de imediato sobre o tampo circular da mesa pé-de-galo. Cocei a cabeça, indeciso. O pardal não se mexia. Talvez a água resolvesse o problema. Procurei uma tigela rasa no louceiro e enchia-a com água. A seguir, mergulhei a cabeça da pequena ave na água e assisti de imediato a uma reação miraculosa.
Tinha executado aquele ato como último recurso, com pouca convicção.
Para meu espanto, o pequeno animal reagiu. Pouco depois defecava. Já tinha pardal.
Senti-me feliz.
Pu-lo em cima da mesa. Tombou. Só tinha os olhos abertos. Mais nada. Era uma coisa aparentemente morta. Mexi-lhe na cabeça e borrifei-a com água. Não reagiu.
Teria alguma lesão interna?
Insisti. Desta vez agarrei-lhe a cabeça com muito cuidado e, de seguida,
mergulhei-a na água.
Déjà vu!
Como reação ao choque, defecou. Bom sinal, pensei. De facto o prenúncio bateu certo. Demorou o seu tempo. A reação não era a desejada. Estava a perder tempo.
O que fazer?
Resposta pronta. Ergui o indicador direito e consegui que se equilibrasse nele com as pequenas patas. Aproximei-me de uma janela aberta da marquise. Não reagiu. Instinto de defesa, pensei. Estava mais seguro no abrigo do meu indicador, dizia-lhe o instinto.
«Então? Vá lá, Zacarias...»
Onde fui buscar o nome?
Mas esta história não é do Piu que tem para sempre um lugar guardado no meu coração.
«O que é que xe paxa?»
«Cala-te, ave curiosa. Tenho saudades tuas. Devia ter-te levado comigo. Mas não eras meu...»
Em tempos recuados, disseram-me que, se falasse com o periquito, este aprendia a falar. Não acreditei. Com o tempo afeiçoei-me ao periquito e ele a mim e dessa empatia surgiu uma coisa estranha. Comecei a falar com ele, tal como falava com a Princesa Bolinhas. Só que a resposta da gata resumia-se a miados com expressões diferentes e com o Piu foi diferente. De um momento para o outro começou a falar.
Mas foi assim que o ensinei a falar.
Um dia, ouvi-o dizer:
«Ó Piu!»
Não queria acreditar. Excitado, chamei todo o mundo da casa.
«Estás louco!»
«Ó Piu!»
A verdadeira história devia ser a dele. Um periquito muito inteligente que nunca esquecerei.
Só mais um reparo. Quando entrava na salinha, via-o logo a espreitar entre as "duas esposas", não deixando sempre de perguntar:
«O que é que xe paxa?»
«Isso quero eu saber, Piu de uma figa. Deixas a Tina dar tareias na desgraçada da Lecas e não fazes nada, meu sacrista?»
Mentira. Quando acontecia a cena das tareias e eu estava prestava presente, gritava para mim, num tom de muita aflição:
«Ó Piu! Ó Piu!»
Como quem dizia:
«Ajuda-me!»
«Ai ai ai que vais prá cozinha!»
A sua frase mais comprida.
«Pois... queres é vir cá para fora...»
Aproximava-se logo de uma das portas da gaiola.
Pouco depois tinha-o a subir do indicador ao longo do braço até se abrigar no ombro amigo.
Com os dedos da outra mão fui acariciando as penas do pardal. Não reagiu. Certamente sabia-lhe bem a massagem que estava fazer-lhe.
Finalmente veio o apelo da liberdade porque não era ave de gaiola. Bateu asas e voou.
Ainda bem, Zacarias. Foi uma obra complicada convencer-te a partires para outras madrugadas.
E se apanhasse boleia?
Abri a porta e espreitei, receoso, para o chão do terraço. E lá estava. Um pardal de telhado. Inerte.
Estaria morto?
Com uma certa repulsa peguei nele e trouxe-o para dentro, depositando-o de imediato sobre o tampo circular da mesa pé-de-galo. Cocei a cabeça, indeciso. O pardal não se mexia. Talvez a água resolvesse o problema. Procurei uma tigela rasa no louceiro e enchia-a com água. A seguir, mergulhei a cabeça da pequena ave na água e assisti de imediato a uma reação miraculosa.
Tinha executado aquele ato como último recurso, com pouca convicção.
Para meu espanto, o pequeno animal reagiu. Pouco depois defecava. Já tinha pardal.
Senti-me feliz.
«Trá-lo para dentro...» Repetiu.
Obedeci.Pu-lo em cima da mesa. Tombou. Só tinha os olhos abertos. Mais nada. Era uma coisa aparentemente morta. Mexi-lhe na cabeça e borrifei-a com água. Não reagiu.
Teria alguma lesão interna?
Insisti. Desta vez agarrei-lhe a cabeça com muito cuidado e, de seguida,
mergulhei-a na água.
Déjà vu!
Como reação ao choque, defecou. Bom sinal, pensei. De facto o prenúncio bateu certo. Demorou o seu tempo. A reação não era a desejada. Estava a perder tempo.
O que fazer?
Resposta pronta. Ergui o indicador direito e consegui que se equilibrasse nele com as pequenas patas. Aproximei-me de uma janela aberta da marquise. Não reagiu. Instinto de defesa, pensei. Estava mais seguro no abrigo do meu indicador, dizia-lhe o instinto.
«Então? Vá lá, Zacarias...»
Onde fui buscar o nome?
O Piu, o periquito de cor azul de rara beleza rara que ensinei a falar, também procurava abrigo, quer no indicador esquerdo, quer no direito. Por vezes, virava-se para o mostrador do relógio de pulso e encetava uma conversação intervalada com bicadas sucessivas no vidro, enfim... uma longa algaraviada que não entendia.
Morreu à sede. Indiferença ou crueldade, não sei. Nesse tempo já não morava na casa do rio. Infelizmente para ele.Mas esta história não é do Piu que tem para sempre um lugar guardado no meu coração.
«O que é que xe paxa?»
«Cala-te, ave curiosa. Tenho saudades tuas. Devia ter-te levado comigo. Mas não eras meu...»
Em tempos recuados, disseram-me que, se falasse com o periquito, este aprendia a falar. Não acreditei. Com o tempo afeiçoei-me ao periquito e ele a mim e dessa empatia surgiu uma coisa estranha. Comecei a falar com ele, tal como falava com a Princesa Bolinhas. Só que a resposta da gata resumia-se a miados com expressões diferentes e com o Piu foi diferente. De um momento para o outro começou a falar.
Mas foi assim que o ensinei a falar.
Um dia, ouvi-o dizer:
«Ó Piu!»
Não queria acreditar. Excitado, chamei todo o mundo da casa.
«Estás louco!»
«Ó Piu!»
A verdadeira história devia ser a dele. Um periquito muito inteligente que nunca esquecerei.
Só mais um reparo. Quando entrava na salinha, via-o logo a espreitar entre as "duas esposas", não deixando sempre de perguntar:
«O que é que xe paxa?»
«Isso quero eu saber, Piu de uma figa. Deixas a Tina dar tareias na desgraçada da Lecas e não fazes nada, meu sacrista?»
Mentira. Quando acontecia a cena das tareias e eu estava prestava presente, gritava para mim, num tom de muita aflição:
«Ó Piu! Ó Piu!»
Como quem dizia:
«Ajuda-me!»
«Ai ai ai que vais prá cozinha!»
A sua frase mais comprida.
«Pois... queres é vir cá para fora...»
Aproximava-se logo de uma das portas da gaiola.
Pouco depois tinha-o a subir do indicador ao longo do braço até se abrigar no ombro amigo.
«O quê? Ele já não quer ser livre?»
Finalmente veio o apelo da liberdade porque não era ave de gaiola. Bateu asas e voou.
Ainda bem, Zacarias. Foi uma obra complicada convencer-te a partires para outras madrugadas.
E se apanhasse boleia?
Bem dito e bem feito. mas demorou tempo.
Sem comentários:
Enviar um comentário