segunda-feira, 15 de maio de 2023

O armazém

















Este caso enquadra-se perfeitamente numa das histórias passadas na avenida de Roma, embora o armazém em questão, que de verdade existiu e existe, se localize a mais de três quilómetros da dita avenida. 




Quando este caso da criança caída nos braços aconteceu já a nossa ligação começava a navegar em águas turvas. Eu não tinha a certeza do que estava preparado para acontecer no futuro. Ela, sim. Senhora de um calculismo levado ao extremo, aguardava pelo momento exato em que eu deixaria de ser útil. E aconteceu. Com voltas e reviravoltas, acabou por acontecer. Mas isso é outra história que não vale a pena contar integralmente.
Lidava com um problema complexo. Explosivo. Assim fica melhor. E ainda melhor, se afirmar que o problema podia transformar-se numa bomba altamente instável como instável é o trinitrato de gliceril, vulgo nitroglicerina. Podia explodir de um momento para o outro.
Naquela altura o problema estava adormecido. Desconhecíamos a perigosidade da criança que tínhamos nos braços. Ao mesmo tempo o bom senso sugeria que devíamos descartar-nos daquela criança o mais rápido possível.
Caso de polícia? De certa maneira, sim. Mas imputado a quem abandonou a criança à sua sorte. E certamente não fomos nós. Aliás, a expressão "ter a criança nos braços" não passava de uma metáfora.
Havia que tomar uma decisão firme e o mais rápido possível, ou o problema nem sequer passaria do estádio que permitia pô-lo ainda em equação.
Mas que criança queríamos largar a todo o custo e o mais rápido possível?

Então era ali o armazém da Anabela. 
«Este prédio foi construído de raiz com uma cave destinada a garagem, mas foi comprado como armazém.»
«As coisas que se faziam dantes!» 
«Tens razão, Mário.»
Avaliei a situação.
«Entras comigo ou ficas cá em cima à espera?» perguntei.
Sorriu, algo receosa. Sorri também. Já conhecia de antemão a resposta. Quatro anos de vivência a dois valiam o que valiam.
«Acho melhor ires só.»
Mais valia só do que mal acompanhado. Um provérbio que tinha muito a ver com a realidade do momento. Ela só ia atrapalhar com os seus medos.
«Ok.»
«Mas tem cuidado.» Avisou.
Vá lá, ao menos uma atenção.
«Porquê?»
Sabia mais do que eu?
«É um armazém de produtos de drogaria e também farmacêuticos e ainda mais coisas que não sei muito bem o que são e podem ser perigosas.»
Premonição, ou a Anabela sabia mais do que aparentava saber?
«Cá vou eu. Sim, terei cuidado. Vejamos o que vou encontrar lá em baixo. Fernando Pessoa disse um dia não saber o que o esperava o dia de amanhã antes de ser internado no hospital de S. Luís e aconteceu o que aconteceu.»
«Gostas muito de citar esse poeta. Já sei o que lhe aconteceu. Essa história não é inédita vinda de ti. Mas vais ver que corre tudo bem. Eu é que estou a ser alarmista. Fico então à tua espera e faço muita força para que tudo corra bem. Liga o contador, por favor.»
Ocorreu-me aquela de umas palavras de apoio a um futuro ditador se não lhe tivessem cortado as asas:
«Força, companheiro Vasco!»
Acenei com a cabeça e obedeci.
«Agradeço os teus avisos sobre a existência de perigo iminente lá em baixo e fica descansada que vou descer com todo o cuidado deste mundo. Olha...»
«Diz, amor.»
«Primeiro contratempo. Não há luz. Cortaram o fornecimento da energia.»
«Toma a lanterna. Se não fosse eu o que seria de ti?»
«Tens razão.»
A lanterna era de dimensões razoáveis. Experimentei o foco e fiquei satisfeito com o ensaio. De certeza que não me ia faltar luz lá em baixo.
Antes de descer, observei com atenção a rampa com inclinação de cerca de quarenta e cinco graus que dava acesso direto ao armazém.
Mas porque estávamos ali?
Muito simples. O inquilino, homem com mais de oitenta anos, tinha deixado de pagar a renda.
«Que faço agora, querido?»
«Telefona a saber o que aconteceu. Tens o contacto do inquilino, não tens?»
Um simples telefonema foi o bastante para descobrir o motivo porque deixara o inquilino de pagar a renda. Claro como a água. Como ninguém fica cá esquecido, logicamente ele também não ficou e partiu para morada incerta, perdida algures no azul constelado do céu e donde não se podem enviar cartas registadas com aviso de receção a informar, por exemplo, sobre rescisões de contratos de arrendamento.
«O meu marido morreu» comunicou a seco a viúva «e não tenho posses para continuar a pagar a renda. Se a senhora quiser ficar já com a chave...»
«E o recheio?»
«Não o posso retirar de lá. Pedem muito dinheiro.»
Ah!, então já se tinha informado.
«Está bem, eu logo vejo...»
E ali estava eu a descer a rampa que dava acesso direto ao armazém. Lá em baixo esperava-me o desconhecido. Nem parecia meu, uma pessoa cautelosa desde os tempos de menino e moço onde tudo de mal acontecia ao Slimpas, pois que ele era o miúdo mais desastrado do mundo.
Não consegui evitar uma descida mais rápida nos últimos metros.
«Porra!, ainda me espalho...» Deixei escapar um desabafo.
«Estás bem?» perguntou ela, lá do alto.
«Ótimo.»
Senti de imediato um cheiro intenso a uma mistura indefinida de produtos químicos e quase sufoquei. Uma campainha de alarme soou de imediato. Parecia que a coisa era brava e atos de valentão não eram aconselhados. Mas encolhi os ombros. Dos fracos não rezava a história.
«Vou ficar só uns minutos...» Pensei.
«Mas disseste "porra"...»
«Não foi nada de especial. Apenas tive que travar já cá em baixo. Xi patrão! Este cheiro intenso não augura nada de bom.»
Já não me ouviu. Acabava de mergulhar numa coisa parecida com o inferno dantesco e a primeira reação aconselhou-me a recuar de imediato. O cheiro era insuportável e parecia até que me faltava o ar. Mas a curiosidade venceu a fobia e aventurei-me a dar uma meia dúzia de passos no desconhecido.
«Estúpido que sou!»
Tinha a lanterna na mão e ainda não fizera uso da mesma.
«Ah! Assim, sim.»
O primeiro facho de luz foi convincente depois de ter apontado a lanterna para a parede mais próxima. Vi à minha direita uma quantidade razoável de frascos escuros, talvez de vinte litros, colocados sobre tábuas assentes em cepos de madeira. Eram ao todo três filas repletas de frascos, todos das mesmas dimensões. Suspeitei que não deviam conter coisa boa. Inimaginável. Obra de um imbecil ou então de um esclerosado, já fora da realidade. O velho devia estar fora de prazo, para não dizer completamente chalado. Bastava um pequeno tropeção num dos cepos onde assentavam as tábuas para cair no chão toda aquela frascaria e lá ia o Mário contador de histórias para o galheiro.
«Cruzes canhoto!»
Curioso, apontei melhor a lanterna para o sítio dos frascos.
«Vejamos o que é isto...»
Debrucei-me então para ler os rótulos dos frascos. O que li, deixou-me quase paralisado. A coisa ainda era pior do que imaginava.
«Que bonito serviço! Aquele maldito velho morreu duas vezes. Antes de morrer já não estava neste mundo.»
Pois era. Se os rótulos não enganassem havia ali, nada mais nada menos que três ácidos: azótico, clorídrico e sulfúrico. E, mais à esquerda, vários frascos castanhos talvez de dez litros com etanol e metanol. Uma bomba latente. E ó que bomba!
Li com atenção dois ou três rótulos dos frascos de vinte litros. A concentração dos ácidos assustou-me. Se qualquer um daqueles frascos tombasse era coisa séria. Agora uma fila deles...
E um fosforozinho para acender um cigarro?
Era um ver se te avias se o mesmo fosse deitado para a zona dos frascos, onde papéis, cartões e palhas abundavam no chão de cimento, nalguns sítios já esburacado. Aliás, o portão em chapa não oferecia qualquer segurança a um empurrão mais vigoroso. Qualquer vagabundo podia ali pernoitar. E vagabundos não faltavam na zona.
«Longe vá o agoiro. Afasta-te, ó 666 maldito!»
A minha constante relação nada amistosa com a besta mais uma vez posta à prova...
O armazém era enorme. Numa estimativa rápida admiti que devia ter de comprimento trinta metros e cerca de vinte de largura. E se fora feito de raiz para parque de estacionamento dos locatários do prédio, em boa verdade a quantidade de colunas robustas que existiam ali roubava espaço a muitos carros. Cabecinha pensadora, aquela da pessoa que resolveu transformar a garagem num armazém. À margem da lei, entenda-se.
Que mais havia?
Apontei de novo a lanterna para a frente e desloquei-me para a minha esquerda na direção da zona mais escuro. Do outro lado havia uma relativa claridade originada pela luz que entrava por uma pequena janela a cerca de dois metros de altura e rente ao solo no exterior e que estava protegida por um gradeamento.
Vislumbrei coisas belas, como, por exemplo, ácido acético glacial, em bidões de cinquenta litros. E outros compostos químicos diversos em caixas grandes de cartão: bórax, carbonato de cálcio, carbonato de sódio, hidróxido de sódio, cal viva, potassa cáustica, sulfato de titânio, garrafões de água de rosas e sei lá que mais.
«Falta-me o ar ou é sugestão?» perguntei aos meus botões.
Não quis ver mais. Subi de imediato a rampa. Lá em cima, junto ao portão, inspirei profundamente um ar menos poluído e julguei-me logo no paraíso. Pouco mais de dez minutos de permanência naquele ambiente venusiano tinham-me parecido uma eternidade.
«Anabela, nem imaginas a bomba que temos lá em baixo! Aquele velho louco podia ter levado para os anjinhos os pobres dos inquilinos. Eles não imaginam o material da pesada que há aqui.»
«Homem!, parece que deste várias voltas ao quarteirão. Não calculas como estás afogueado. Fala-me lá dessa bomba que descobriste. É assim tão perigoso ir lá abaixo?»
«Nem imaginas! Vem ver com os teus olhos, minha querida.»
«Não há perigo?»
Estendeu-me uma das mãos que segurei.
«Vamos, medricas!»
«Não me largues a mão.»
«Queres morrer em beleza, agarrada ao teu amor?»
«Não brinques com coisas sérias.»
Em pouco tempo estávamos na zona dos frascos.
«Não te lembres de tropeçar, Anabela! Se tiveres neste momento uma das tuas vertigens, nem tens tempo para saber como morreste se uma daquelas coisas lindas tombar!»
«Credo!, não estejas a agoirar. Então o que está nesses frascos?»
«Ácidos e álcool. Só isso.»
«E não é pouco. Vou mas é lá para cima. Já estou a sentir-me mal. Bem sabes que sofro de claustrofobia...»
«Pois. Sei disso. Vai, linda. Mas o que é isto?»
Antes do começo da rampa havia quatro bidões.
«Já vês. Leva-me lá acima que me falta o ar.»
Dito e feito. Não permaneceu no interior do armazém mais que cinco minutos.
Voltei ao inferno e comecei a analisar os tais bidões. Primeiro sobressalto. Dois deles estavam "babados".
Mas que tínhamos ali?
Decidi deixar para o fim.
A exploração da parte mais iluminada trouxe outras descobertas importantes. Mais uns tantos compostos químicos como sulfureto de hidrogénio, água oxigenada, sacos de resina, mais sulfato de titânio, sulfito de sódio, sacos de rações, sacos de algodão, de plástico, barris cheios de cápsulas para comprimidos, DDT (?), carvão, goma arábica, cânfora, balanças decimais, provetas graduadas com capacidades até um litro, almofarizes de vidro com batentes, gobelés, frascos de reagentes, funis de vidro, papel de filtro em doses industriais, seringas, copos, ferramentas de camiões, etc, etc...
Para que queria o velho, por exemplo, dez toneladas de rações certamente já impróprias para o consumo dos animais?
E as quatro enormes balanças, para que serviam?
E mais ainda... os diversos compostos químicos que deviam estar deteriorados, já sem qualquer interesse económico?
O homem tinha-se mesmo passado, tal como acontecia com a grande parte dos produtos químicos, certamente já fora de prazo para o devido uso mas dentro do prazo para provocarem uma explosão!
«Vamos dar mais uma volta...»
Havia uma zona com mais frascos grandes em frente aos garrafões com água de rosas. Eram pelo menos dez.
«Frascos castanhos!»
Pois é. Mais álcool metílico.
«E nem uma garrafa de vinho!» ironizei.
Quando me dispunha a sair, dei de caras com uma caixa metálica preta encostada à parede onde estava todo o arsenal de vidro que já mencionei.
«Olá!» deixei escapar uma exclamação, ao mesmo tempo de espanto e esperança. «Isto parece ser um cofre. Talvez seja a minha salvação.»
Imaginei-a cheia de libras em ouro, preferencialmente da rainha Vitória.
Agarrei na caixa. Adeus, libras. A caixa não pesava muito. Não era preciso abri-la. Estava vazia, tinha quase a certeza. Mas jogando pelo seguro, levei-a para cima. Talvez tivesse papéis importante. Por exemplo, títulos. O ideal era serem ações de um Banco. Ao portador. De preferência, muitas.
«Que trazes aí?»
Voltei à realidade.
«O que vês.»
«Dá cá.»
Avaliou o peso.
«É leve, não é, Anabela?»
«O que tiver lá dentro é a dividir pelos dois.» Disse esta.
Bruxo!
Bruxo, não. Bruxa! Não dava ponto sem nó.
Não lhe chegava já o que ia herdar futuramente duma velhota simpática mas avarenta?
E eu ia beneficiar com alguma coisa?
De nada valia refilar para meu proveito. Cão que ladra, não morde. Seria sempre pela vida fora o eterno parvo. Boas ações... só de empresas sólidas!
 
Saltando no tempo, três ou quatro semanas… 
Estávamos a fazer o balanço à casa da mãe da Anabela. Depois do insucesso duma operação, entregou a chave do andar à filha e nunca mais se ouviu falar do seu segundo andar, nem pediu para ir a casa. Um mistério insondável de quem se agarrara às coisas materiais com unhas e dentes e depois, de um momento para o outro, se despojava delas.
Grande sorte a tua, Anabela!
«Olha, vamos começar pela sala grande. Se não te importas, pões a biblioteca em ordem. Há vários livros em caixotes, como uma enciclopédia. Tiras os livros que não interessarem e ficas com espaço para os outros.»
«Primeiro quero fazer uma experiência no quarto sinistro. Não demoro.»
Passavam-se coisas estranhas naquele quarto e queria, de uma vez por todas, investigar em profundidade sobre tudo o que me fora contado.
«Cuidado!, não te exponhas. Nunca me senti bem a entrar nesse quarto.»
«Agradeço o teu aviso. Já estou habituado a resolver enigmas. Isto é mato para mim.» Gabei-me.
Fia-te, Mário...
Olhei em volta. Parecia-me que tinha ouvido uma voz de aviso.
«Estou mas é a ser caguinchas!»
«Não percebi.»
«Não disse nada.»
«Vai lá então, mas não demores. Há coisas para fazer.»
Tinha visto no dito quarto, sobre a cómoda, uma moldura grande com uma fotografia de uma mulher que me pareceu ter um olhar estranho. Segundo a Anabela, as coisas estranhas tinham origem ali.
«Agora é que vamos tirar isto a limpo.» Disse, entrando no quarto. «Aposto que é tudo treta. Quem é esta senhora de ar severo?»
«Dizes bem. Ar severo. Nem imaginas o medo que me inspirava!»
«Quem é a senhora que está nesta fotografia, Anabela?»
«É a fotografia da minha avó paterna. Conforme já disse, era uma pessoa muito severa. Achava-a ruim. Mas era miúda, percebes? As crianças dizem o que pensam, mas aumentam.»
Não quis ouvir mais. Entrei no quarto e encostei a porta. Dei logo conta do caos instalado. Chamava-se quarto dos lobos pela grande desarrumação que reinava nele. Ou por outro motivo. Não interessava.
Encostei-me à cómoda e fixei a mulher do olhar estranho. Concordei com a Anabela. Tinha um ar de pessoa ruim de se lhe tirar o chapéu. Decidi não valorizar a observação, pois precisava de toda a frieza do mundo.
«Ó tu, vamos a ver quem ganha!» desafiei.
Então, fixei o olhar na imagem. Nada. Achei à partida que era inofensiva.
Ou estava enganado?
O olhar era tão penetrante que me senti logo invadido por uma espécie de corrente de ar gelado.
«Anabela!»
Apareceu logo. Parecia que estava atrás da porta.
«Então? Que cara é essa?»
«Então, nada» disfarcei. «Mas vou continuar. Olha, podes deixar a porta aberta.
Pelo sim, pelo não.
Decidi jogar mais forte. Ciente dos meus poderes, concentrei-me todo no olhar nela. Cada vez mais. Mais ainda.
«Hum! Está a ser mais complicado do que julgava.»
Coisa incrível! Quanto mais fixava o olhar mais sentia uma espécie de atração forte que tendia a desligar-me do meu mundo material. E outra vez a sensação de frio. Era horrível.
«Vejamos se me vences, bruxa maldita!»
E continuei de olhar fixo na fotografia.
«Oh!»
Estava a entrar dentro dela, tinha a certeza! Cada vez mais dentro dela. E mais. Ainda mais. Aquilo era horrível. Dominava-me. De hipnotizador passei a hipnotizado. Queria desistir e não conseguia. Era como se tivesse tomado uma dose de LSD.
Sabia lá quais eram os efeitos dessa droga! Só sabia é que aquele olhar tinha um poder diabólico e eu só queria voltar e não conseguia.
Quem me mandou ser fanfarrão?
«Que se passa?»
«Nada. Não... não é nada.»
«Mas disseste "oh!"...»
«Talvez.»
«Talvez, não é certo. Alguma coisa foi!»
«Como assim?»
«Ouvi um grito, Mário! Eras tu a gritar...»
«Mas eu não gritei, Anabela! Só disse "oh".»
«Estás vidrado! O que aconteceu? Bebeste alguma coisa? Não me digas... há por aqui garrafas!»
«Não aconteceu nada.» Menti.
«Não aconteceu nada e estás a pôr a moldura de pernas para o ar?»
Pois era.
«É cá por uma coisa. Ela fica de castigo.»
«Isso costuma fazer-se ao Santo António quando não satisfaz um pedido de casamento...»
«Castigo. A megera precisa de ser castigada. Não se brinca comigo!»
«Não te conheço!»
Pois, não Anabela. Um dia, vais conhecer-me verdadeiramente.
Tentei esquecer a avó da Anabela. A maldição guardada no "quarto dos mistérios". A desarrumação. O pó. E, principalmente, a cena de quase terror em que me vi envolvido.
Ficou de exemplo. Tão depressa não me ia meter em alhadas daquelas.
«E agora vamos ao trabalho» disse, já mais calmo. «Os livros que estão nos caixotes merecem ter melhor sorte do que estarem escondidos, a ganharem humidade. E os outros, os técnicos, trocam-se com eles, não é?»
«Exato.» Confirmou.
«E onde estão os tais caixotes?»
«Na despensa.»
«Quem teve a ideia de encaixotar "As Farpas"?»
«Perguntas bem. E também estão uns tantos romances de Steinbeck, Hemingway e de outros escritores conhecidos. A escolha fica ao teu critério. Esconde na estante, atrás dos outros, os livros em pior estado e os que são menos importantes.»
Vamos lá então ver esses caixotes. Mas não me empurres, Anabela. Quase que ia caindo!»
«Eu não fiz nada.»
«Então quem foi?»
«Ai bebeste, bebeste...»
«Juro pelas alminhas...»
«Que jura é essa?»
Vinha dos meus tempos de miúdo, quando eu e o Slimpas andávamos nas nossas andanças pela vila.
Embora sem qualquer especialização para bibliotecário, sempre gostei de arrumar livros. E sentia-me muito à-vontade a ordená-los por temas. Tinha a experiência da biblioteca da escola que informatizei. Criei um programa próprio em Clipper para gerir a base de dados cujos dados foram carregados por colegas e alunos a quem dei formação prévia. Um projeto onde não ganhei uma única hora extraordinário nem qualquer redução no meu horário de professor. Carolice parva que hoje não voltaria a fazer certamente por motivos relacionados com ingratidão à mistura com indiferença e inveja. Quando me reformasse não voltaria à escola, nem para os almoços natalícios. Mas ponto final. Fico nauseado quando me lembro desses tempos.
Atirei-me ao trabalho. Havia muitos livros que tinham no interior folhas de papel com anotações, alguns dos quais ficavam à vista e davam mau aspeto à estante. Tudo o que era estranho aos livros foi logo retirado e guardado num dos caixotes que ficou vazio.

Conforme já disse, à saída, antes do início da rampa, estavam então bidões com compostos altamente tóxicos, um deles a babar-se.
«Esta agora! O velho estava mesmo louco!»
E o DDT?, para que guardava aquele inseticida, altamente nocivo, há muito tempo proibido?
Não tínhamos uma criança perigosa entre braços, mas sim muitas. Mais que a bomba atómica era a bomba de hidrogénio. Bang! E lá íamos para os anjinhos.
Resolvi fazer um relatório exaustivo de tudo o que havia naquele armazém, enquanto a minha companheira já sonhava com a gestão dos milhares de contos que lhe tinham caído do céu. Claro que os milhares eram seus, mas nunca imaginara tê-los de imediato pois a mãe ficara incapacitada, física e moralmente. Não voltaria a entrar na sua casa.
Como íamos livrar-nos daquelas toneladas de produtos tóxicos e sucatas?
Era humanamente impossível fazermos desaparecer toda a carga. Nem mesmo o Mandrake, herói do "Mundo de Aventuras", poderia valer-nos com a sua magia.
«Que vamos fazer, Anabela?»
«Não sei.»
«Não podemos contar com a viúva. Segundo me parece, está falida. Com todos aqueles produtos alterados, há muito tempo que o velho saiu do mundo dos negócios.»
Chegámos à conclusão que, para resolvermos o problema, devíamos consultar uma empresa especializada.
A solução veio, mas trouxe consigo um sabor amargo. Quinze mil contos para a remoção total do perigoso despojo encontrado. Muito dinheiro. Uma grande injustiça se a fatura fosse paga pela Anabela, legítima proprietária do armazém e não do seu recheio.
Felizmente as coisas ficaram bem encaminhadas com a vistoria dos bombeiros, acompanhados pela polícia, após um telefonema da minha companheira. Apreensivos, entraram todos com máscaras e fiquei a pensar. Durante dias e dias a fio mergulhei naquela atmosfera de gases provavelmente perigosos porque me lembrei de fazer um relatório de toda a existência no armazém sem pensar no molho de brócolos que podia ter arranjado para a saúde. Mas a decisão que tomei teve o seu lado bom. Face ao relatório que fiz daquele arsenal que podia levar pelos ares, de um momento para o outro, o prédio de sete andares, e também graças à pressão feita pela comunicação social e ainda devido à rápida boa vontade do Ministério do Ambiente (um enigma) tudo se resolveu favoravelmente. Numa semana foram removidos por uma empresa especializada todos os produtos tóxicos e inflamáveis, bem como a sucata (que não era pouca). E quem pagou integralmente a fatura foi o Estado.
Pasmem! Um estranho milagre que ainda hoje está por descobrir.
Uma pequena nota: não queria ter as insónias da maior parte dos moradores do prédio quando souberam da existência da bomba que permaneceu adormecida sabe-se lá durante quantos anos!
Talvez que a movimentação deles pelas instâncias superiores tivesse ajudado a desbloquear a situação. Ou alguém influente que morasse no prédio. Ou outro motivo qualquer.
Só terminou o pesadelo quando tivemos acesso a um armazém vazio, um cenário em oposição àquele que viemos encontrar quando se abriu o portão e eu tive acesso à rampa que conduzia diretamente à bomba em letargia. Ao mesmo tempo, foi uma dupla sorte para a minha companheira que abriu, mais cedo do que pensava, o baú cheio de escudos guardado ciosamente por alguém que julgava ser a sua fiel depositária por uma eternidade que significava "até que a morte a levasse".
E a minha pessoa?
Depois que o armazém ficou vazio e que a Anabela tomou de assalto o tal baú, previ que, num futuro próximo, seria empurrado para fora da órbita do seu acontecer. Tudo por uma questão de dinheiro. Por amor, nunca!
Dizem que o inferno é cá, mas até à data não vi nada disso. 
Ah! Já me esquecia... A caixa preta sempre estava vazia.


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