O PROJETO
Mas será melhor contar como tudo aconteceu.
Foi há muitos anos. Estávamos no fim do segundo período escolar quando duas colegas foram convidadas para fazerem parte da equipa pedagógica de um programa dirigido para os quatro primeiros anos do Ensino Básico. Era um programa ambicioso com verbas suficientes para ter êxito. Com um senão: a coordenadora era uma mulher teimosa e pouco inteligente, extremos que se tocavam de forma muito perigosa. Esse projeto, a realizar-se por etapas, pecou sempre por grandes atrasos de concretização devidos em grande parte a uma grande descoordenação entre os responsáveis, acrescendo o atraso duvidoso na atribuição das verbas e as habituais questiúnculas políticas. Adiante. A política escorregou-me sempre entre as mãos e dela sobrou-me nada. Por outras palavras, nunca quis nada com a política e penso que foi a coisa mais acertada que fiz em toda a minha vida.
Acho que fui admitido no Projeto porque a Sofia deve ter dito à Isabel que eu era um indivíduo muito competente e dedicado que até fazia os horários da escola enquanto os outros professores iam de férias. Portanto, com elevado espírito de sacrifício e outras mais coisas abonatórias. Aposto que lhe agradou especialmente aquela do espírito de sacrifício. Sempre se podia espremer o sumo do fruto até ao caroço.
Em julho entrei ao serviço. Comecei mal. Ofereci um mês inteirinho ao Projeto e tive de aturar a mulher mais intratável do mundo que ia substituir. Sim, a Donzília Pina. Uma feiona empertigada e com recalcamentos profundos por ter sido professora primária. Suportei-a conforme pude nesse mês de julho, com o tal espírito de sacrifício que a Sofia referira, mas noutro sentido desta vez. Tudo o que me transmitiu foi sacado à socapa. A safada não me explicou como se fazia o orçamento. Executou-o e eu limitei-me a fazer e refazer os cálculos, substituindo variáveis em fórmulas que não sabia a que se destinavam. Na verdade tive muito boa vontade. A Milu e a Eduarda eram as colegas que trabalhavam em conjunto comigo. A primeira só ligava aos seus queridos psicólogos e lambia as botas à Isabel Catita. Lambia e também engraxava. Quanto à Eduarda, uma socialista convicta, era amiga íntima da Isabel, supostamente social democrata. Uma espécie de submarino, admiti mais tarde. Tinha um bom trato com ela e podia ter sido perigoso se faltasse aos meus deveres. mas felizmente limitei-me a cumprir a minha tarefa. E ainda bem. Ela contava tudo o que se passava à sua volta à amiga. Portanto, sem que soubéssemos, ela era os olhos e os ouvidos do Imperador e convidava os outros à indolência porque pouco ou nada produzia. Tal desempenho tornava-a insuspeita.
Fazia ainda parte da equipa a Marta, secretária da diretora. A princípio dei-lhe outro nome. Chamei-lhe Guapa, porque era gira, a atirar para mulher fatal. Punha os homens em estado de sítio com o seu andar provocador e a voz excitante. Uma mulher nova, atraente sem ser bonita. Viria a ter um princípio de caso com ela, que foi interrompido inopinadamente pela entrada em cena de uma mulher do signo Caranguejo.
Os primeiros meses foram naturalmente de adaptação. Cedo consegui libertar-me do jugo da Donzília, porque, com a minha vinda para o Projeto, passou a dar mais apoio ao seu chefe. Foi muito bom para mim porque já estava a chegar ao limite da resistência. Contudo, não pude evitar a sua presença quando nos mudámos para um gabinete mais amplo. Não é que me importunasse, como aconteceu quando do orçamento que fez e refez quatro vezes e cujos cálculos eu também fiz e refiz quatro vezes. Irritava-me apenas a sua presença. Restos daquele mês em que fiz cálculos e mais cálculos sem saber ao certo o que estava fazendo e tive que suportar o seu feitio irascível. Valeu-me ficar com uma cópia da versão definitiva do orçamento que foi quatro vezes ao décimo andar e veio sempre todo rasurado porque era preciso, além de terem sido corrigidos alguns erros técnicos, fazer determinadas poupanças. Irritava-me também (e muito) porque nunca gostei de ouvir pessoas falarem sozinhas e ela pecava por excesso.
De início as coisas correram bem e até o relacionamento com as minhas colegas foi muito melhor do que esperava. No Natal ofereci-lhes uma cassete e um manuscrito do conto À Procura do Tempo Perdido, da autoria do meu amigo António Ildefonso, mas contado por mim, claro. Estava numa fase crucial da minha vida em que o paranormal transbordava da taça da abundância e sentia necessidade de transmitir, às pessoas que contactavam comigo com frequência, as passagens mais importantes daquilo que considerava difícil de explicar dentro do normal. O conto baseava-se num caso real de contornos perdidos para lá do explicável e tinha como personagem principal a Marta e como tema tudo do que se passou à volta de um desastre que sofreu. Foi atropelada por um táxi na avenida da República.
Como era lógico, à medida que ganhava ascendente no meu trabalho comecei a distanciar-me daquela galinha antipática, feia, pedante e ridícula que me tinha feito a vida negra em julho. Aliás, já não precisava dos seus projetos falhados de orçamento nem dos repetitivos esquemas de cálculo dos abonos a conceder aos núcleos do Projeto. Concebi um programa em Basic que efetuava todos os cálculos, sendo apenas necessário fazer o input dos dados (convém dizer que a informática dava os primeiros passos).
Ainda não tinha chegado o computador prometido, coisa que estava por poucos dias.
NÃO ME LEVES AINDA!
Entrando propriamente na história, um mês depois das minhas colegas serem destacadas para o Projeto tive um desentendimento grave na escola numa reunião com colegas do meu grupo. Talvez tivesse sido uma tempestade num copo de água, mas considerei, à minha maneira, grave. Discutia-se a Reforma Educativa e, a certa altura, a delegada de Ciências pediu a minha opinião. Disse que ainda não tinha lido nada e assim não podia pronunciar-me. Fui de imediato bombardeado com os olhares dardejantes das mulheres, em grande maioria, que estavam presentes na reunião, facto que me irritou bastante.
Quantas delas também não teriam lido o enfadonho e mal elaborado relatório? Bom, não interessa.
A reunião continuou e achei por bem que devia estar mais atento, pois conhecia o vespeiro com que estava lidando. Medida acertada. Como quem adivinha que chegou a sua hora sexual, a delegada de Ciências virou-se para o Raul à procura de um ponto de fraqueza. Estava brava e queria sangue. Acorri em defesa do Raul por dois motivos: primeiro, porque ela não tinha razão e em segundo lugar porque éramos os dois únicos homens presentes na reunião.
Aconteceu o bom e o bonito. O segundo ataque encheu o cálice. A hora sexual estava mesmo em função. Acusou-me de ler o Expresso em vez de dar atenção ao debate. Aí, explodi. Claro que era mentira. Tinha o semanário em questão em meu poder mas nem sequer o abrira.
Palavra puxa palavra, envolvemo-nos todos numa discussão nada edificante, uns dum lado e outros doutro, os documentos da Reforma foram postos em segundo plano e fiquei ainda mais irritado, fora de mim e mal visto por duas ou três cretinas que tomaram o partido da delegada. Senti-me de tal forma chateado que desejei com muita força sair daquela escola. Foi mesmo assim. Desejei.
Para onde? Por exemplo, ser também destacado para o Projeto. Era uma nova experiência e libertava-me de uma situação que estava a azedar e muito.Quantas delas também não teriam lido o enfadonho e mal elaborado relatório? Bom, não interessa.
A reunião continuou e achei por bem que devia estar mais atento, pois conhecia o vespeiro com que estava lidando. Medida acertada. Como quem adivinha que chegou a sua hora sexual, a delegada de Ciências virou-se para o Raul à procura de um ponto de fraqueza. Estava brava e queria sangue. Acorri em defesa do Raul por dois motivos: primeiro, porque ela não tinha razão e em segundo lugar porque éramos os dois únicos homens presentes na reunião.
Aconteceu o bom e o bonito. O segundo ataque encheu o cálice. A hora sexual estava mesmo em função. Acusou-me de ler o Expresso em vez de dar atenção ao debate. Aí, explodi. Claro que era mentira. Tinha o semanário em questão em meu poder mas nem sequer o abrira.
Palavra puxa palavra, envolvemo-nos todos numa discussão nada edificante, uns dum lado e outros doutro, os documentos da Reforma foram postos em segundo plano e fiquei ainda mais irritado, fora de mim e mal visto por duas ou três cretinas que tomaram o partido da delegada. Senti-me de tal forma chateado que desejei com muita força sair daquela escola. Foi mesmo assim. Desejei.
Em maio, por motivos que nada tinham a ver com o desejo formulado, marquei um encontro com a D. Ima na minha casa. Corriam ainda os ventos perigosos do lado da Esfinge e queria saber como evoluiria a situação. Por um lado, a sua beleza exótica ainda me atraía e por outro, talvez que o anjo-da-guarda tivesse razão em afastar as nossas órbitas do acontecer.
Lembro-me de ter pedido a uma amiga um gravador pequeno que escondi dentro de uma taça que estava num móvel da casa de jantar. Consegui gravar sem problemas parte da conversa que tivemos.
«Vejo sete» disse a dona Ima. «Tenha cuidado, senhor Mário!»
A Esfinge fazia parte de um hipotético grupo hermético e eu estava empenhado em infiltrar-me no mesmo grupo. Perigo iminente. Havia no ar a magia maldita do pó branco.
«A casa é boa e alegre.» Comentou, à entrada.
Mais alguns comentários apreciativos que escutei com atenção. Convidei-a sentar-se à mesa da casa de jantar, pois estávamos mais confortáveis e, além disso, tinha o gravador preparado, sem que ela soubesse, entenda-se. Ficou voltada para a janela e eu do lado esquerdo, no meu lugar habitual. Atrás de mim, escondido, o pequeno gravador que funcionava reagindo às vibrações sonoras.
«De facto têm-me acontecido coisas muito estranhas. Já estou habituado. Tenho aqui este livro...»
Sem motivo aparente, mostrei-lhe o livro do infeliz José Duro.
«Chama-se Fel e é um livro de poemas. Muito triste. Foi-me oferecido por uma colega há uns anos atrás.»
A colega em questão era a Beatriz Sousa. Uma amiga, ou mais que amiga, que conheci numa escola de Lisboa já depois de me efetivar. Considerava-a uma “espécie” de Florbela Espanca. Era casada, tinha filhas já adultas e julgava-se a mulher mais infeliz do mundo. Se houve alguém que me dedicou poemas, esse alguém foi ela. A sua amizade por mim quase que ultrapassava os limites da obsessão e chegou a correr o risco de transvasar para outros sentimentos que mantive prudentemente à distância porque não sentia a mínima atração por ela. O que havia entre nós era apenas amizade. Assim, nós não tínhamos a mesma órbita do acontecer.
Mas voltemos à vidente. Conforme já disse, a sessão começou com o tema José Duro e com uma descrição mais ou menos atabalhoada e muito apressada da Simbiose.
Nessa noite tive um encontro imediato com o desditoso poeta que tratava por tu a morte, com muitos inhos à mistura, tais como pinguinha, copinho, bocadinho. Foi um exagero de diminutivos que nunca consegui explicar. Talvez resultantes do nervosismo, ou talvez não. Quem o pode dizer?
«Resolvi fazer um petisco para o jantar e apeteceu-me água-pé. Tinha trazido para cá umas garrafas que a D. Flora me tinha dado e fui buscar uma. Abri-a e bebi logo um copinho. Comecei a ficar bem disposto. Sentei-me no chão e pus-me a falar, a falar para o gravador. Pouco tempo depois estava bem bebido. Há algum tempo que tinha acabado de petiscar. Na gravação até se ouviu o encher do copo e os momentos em que fiz uma saúde à garrafa. Disse tudo o que tinha a dizer. De repente, passei do verão para o inverno e então apareceu aquela rapariga. Lembrei-me dela e não queira saber... Enchi-me logo de tristeza e saudade.»
«Foi apanhado.»
«Tinha dezassete anos e ela quinze quando aceitou o namoro. Era muito bonita. Chamava-se Manuela.»
E continuei a descrição, nitidamente perturbado. Talvez hipnotizado. Não sei explicar mais.
Seguiu-se um resumo da Simbiose. Diga-se que muito mal resumido. Continuava acelerado, sem mostrar qualquer poder de síntese.
Depois, falei de uma fotografia em que eu e a Manuela estamos sentados no banco do José Duro, no parque da Corredoura de Portalegre.
Veio a seguir a descrição da ida ao convento do Varatojo, acompanhado da minha irmã, onde fomos mandar rezar uma missa por alma de alguns familiares e de um amigo já falecido.
Contei-lhe...
O franciscano que nos recebeu ficou baralhado logo de início e mal percebia o que dizíamos.
«Eu baralho as pessoas! Mas não é por querer...»
«Pois não, pois não.»
«Os senhores...» Balbuciou o franciscano.
«Só à terceira vez é que entendeu o nome das pessoas. Depois, aconteceu outra coisa: não era capaz de escrever, tal a força do bloqueio. Lá escreveu Clarinha e mais um ou dois nomes. De seguida, virou-se para mim e eu disse:»
«Também quero mandar rezar uma missa pelo José Duro.»
«Ah, sim?»
Continuei a evocar a Manuela. Foi praticamente no parque da Corredoura que o nosso amor ganhou raízes. José Duro era um poeta que só falava da morte. A sua mãe foi madrinha da minha avó e ele padrinho do nosso infortúnio, quero acreditar. Se não foi, que fique em paz.
Mostrei-lhe uma fotografia do álbum que trouxera para cima da mesa.
«Este é o busto do José Duro. Só falava da morte. Morreu muito cedo. Tuberculoso.»
«Desiludido com a vida que lhe foi madrasta. Mas... o que é mais engraçado é que o senhor foi levado a mandar rezar a missa...»
De facto não ia com nenhuma ideia.
Referi que tempos antes mandara rezar missas pela Manuela.
«Foi há uns tempos atrás. Mandei rezar missas porque ela morreu de uma forma trágica.»
«Acho que essa senhora nunca o há de deixar.»
Não comentei. Passei à Esfinge.
«Ela diz que é eterna. Tenho aqui um poema que fiz dedicado a ela. Chama-se Laboratório Secreto.»
Declamei-o, mais uma vez com voz acelerada. Mais parecia que estava a fazer um relato de futebol. Só eu é que falava. A pobre da vidente não conseguia interromper-me.
Esfinge e mais Esfinge. E a desgraçada sem poder falar!
Finalmente o relato tornou-se um pouco mais lento. Ou melhor: menos apressado.
«Estou convencido que não há quem me faça desviar daquilo que tenho na mente.»
«Não. E há ocasiões que dá pela aproximação, mas sente-se bem. Mas sinto outras aproximações contrárias.»
Falava da Manuela ou da Esfinge?
Contei-lhe um acordar com um cheiro a estrume de galinha.
«Ah!...»
«... fiquei pregado à cama.»
«Bem, isto de cheiros...»
Cortei mais uma vez a sua intervenção. Tentou de novo falar mas voltei a interrompê-la. Só à terceira vez conseguiu explicar, em parte, o seu ponto de vista.
«Conforme eles forem. Este cheiro... dá-me a impressão que é um campo. Que é qualquer...»
«Qualquer sítio onde estaria.»
«Sim. Nunca lhe cheirou a incenso?»
«Incenso, não. A minha ideia é que, quando acordei, parecia que estava a ser vigiado.»
A confusão estava a instalar-se.
«O que é certo é que já não está baralhado e...»
Voltei de novo à Esfinge.
«Quando quero falar com ela, foge como uma enguia. Ainda há dias disse-me: "Qualquer dia vamos fazer uma experiência. Mas ainda não chegou a altura."»
Um comentário da vidente:
«Não sei se é medo, ou se não quer aprofundar. Ou então tem medo de si.»
Foquei fundamentalmente a revelação que a Esfinge me fez sobre ser eterna, a propósito de um problema que sentia na garganta.
«Não me preocupo com isto porque sou eterna. Encontrei um livro.»
«Sobre as doenças?» perguntou.
Pertinente a pergunta. Sinal de grande intuição. De facto a Esfinge tinha a mania das doenças. Daí sonhar com a eternidade. Acabavam-se as doenças. Bania-se a morte.
Mas que livro terá encontrado?
«A sua casa está boa» insistiu. «O que me parece é que o senhor às vezes quer expandir-se e não pode.»
«Tenho vontade de expandir-me, mas muitas vezes acontece quando não devia ser. Lembra-se daquela vez que me disse que houve uma rapariga que me desviou o destino? Estava em transe e é capaz de não se lembrar.»
E logo falei na descrição que ela fez da casa de campo da Simone.
«Que se recorda, recorda. De vez em quando o pensamento dela passa por si. Ela tinha-o apanhado mesmo, se não fosse a separação, você ir para um lado e ter ficado cada um para seu lado. Porque ela também tem um bocadinho...»
«Desta coisa?»
«Sim. Mas, no fundo, não é má rapariga»
Referiu-se à Simone como se falasse no passado. Mas o tempo correu e o amor que sentia por mim transformou-se em ódio e o ódio era capaz de tudo!
«Nessa altura não pensava nisto. Agora... esta tem medo de mim!»
«Qual? A sua colega?»
Voltando de novo à Esfinge, falando de uma experiência que os dois íamos fazer (auditoria) e dissecando, de novo, o “laboratório secreto”. Obsessivamente, a Esfinge.
A título de finalização:
«O meu interesse fundamental não é ela, mas sim os conhecimentos dela. É uma pessoa muito fechada tem medo que conheça os seus segredos.»
«Tenho a impressão que não resulta, porque ela, ao mesmo tempo, não quer aprofundar...»
«Mas disse que foi muito mais além...»
«Dedicava-me à alquimia e vou voltar à astrologia.»
«Ela disse isso?»
«Sim. Ao falar do laboratório secreto, estou a defender-me...»
«A defender-se e a atacá-la ao mesmo tempo. Foge porque tem receio.»
Pedi-lhe para ir à marquise analisar um misterioso calendário que marcava datas fatais, sem que soubesse quem interferia com o mesmo e mudava as datas, aproveitei para virar a cassete e gravar no lado B. Da marquise veio o som assustador de alguns arrotos da vidente e, de seguida, uma previsão otimista:
«Só vejo uma coisa boa entre 23 e 25 deste mês...»
Pouco depois estava de regresso.
«Das primeiras vezes que falei consigo achava-o com qualidades esplêndidas para prosseguir mas estava muito fechado. Quer dizer... dali não passava. Precisava dum empurrão. Agora não. O senhor está convicto que é capaz de conseguir aquilo tudo que quiser.»
«Agora faço o que quero! Num destes dias vou a Estremoz.»
«Ah!... Ah!...»
«Tenho de lá ir...»
«Para saber se é verdade...»
Antecipação da vidente?
«Alguém me disse que ela se suicidou, mas uma tia afirmou que não, que ela morreu de uma doença má. Um cancro. Mas logo a seguir bloqueou! Fiquei sem saber o que se passou de verdade. Até porque naquele livro que escrevi, a personagem que se suicidou é ela e eu mandei-lhe o livro já quando estava na tropa. Nunca devia ter enviado o livro. Já estávamos zangados. Zangados, não. Tínhamos acabado o namoro há algum tempo. Não estava interessado nela.»
«Não estava... mas estava, porque, se não estivesse, não escrevia aquele livro, sendo ela a personagem principal.»
Os longos dias azuis...
«Mas ela era e não era a personagem principal na medida em que a outra personagem era o espelho da irrealização de uma pessoa. Tudo o que fiz foram profecias.»
Por exemplo a morte de Manuela.
«Agora estou a pagar o mal que fiz.»
«Se é que fez mal...»
«Não sou feliz, nem faço ninguém feliz.»
«Ninguém.»
«Ninguém. Tive muitas Patrícias, personagens do desencanto, mas só houve uma Manuela. A Patrícia é uma personagem da negação.»
«Ah sim.»
Falo-lhe do dia em que a fui buscar a casa e ela me perguntou, pelo caminho, se ia escrever um livro.
«“Eles não querem que eu diga, mas eu digo”. Não consegui atingir. E isso é muito importante. Lembra-se?»
«Quando estou assim...»
«Compreendo. Só queria saber quem é que me está a empurrar para escrever um livro.»
«...»
«E agora também estou a escrever outro. Ou melhor: já o tinha escrito, mas estou a modificá-lo. No fundo isto é tão negativo como o FEL. Vou ler para si um poema para ver como ele escrevia. Chama-se A Caveira. Só um momento...»
(Folheando o livro...).
Lembro-me de ter pedido a uma amiga um gravador pequeno que escondi dentro de uma taça que estava num móvel da casa de jantar. Consegui gravar sem problemas parte da conversa que tivemos.
«Vejo sete» disse a dona Ima. «Tenha cuidado, senhor Mário!»
A Esfinge fazia parte de um hipotético grupo hermético e eu estava empenhado em infiltrar-me no mesmo grupo. Perigo iminente. Havia no ar a magia maldita do pó branco.
«A casa é boa e alegre.» Comentou, à entrada.
Mais alguns comentários apreciativos que escutei com atenção. Convidei-a sentar-se à mesa da casa de jantar, pois estávamos mais confortáveis e, além disso, tinha o gravador preparado, sem que ela soubesse, entenda-se. Ficou voltada para a janela e eu do lado esquerdo, no meu lugar habitual. Atrás de mim, escondido, o pequeno gravador que funcionava reagindo às vibrações sonoras.
«De facto têm-me acontecido coisas muito estranhas. Já estou habituado. Tenho aqui este livro...»
Sem motivo aparente, mostrei-lhe o livro do infeliz José Duro.
«Chama-se Fel e é um livro de poemas. Muito triste. Foi-me oferecido por uma colega há uns anos atrás.»
A colega em questão era a Beatriz Sousa. Uma amiga, ou mais que amiga, que conheci numa escola de Lisboa já depois de me efetivar. Considerava-a uma “espécie” de Florbela Espanca. Era casada, tinha filhas já adultas e julgava-se a mulher mais infeliz do mundo. Se houve alguém que me dedicou poemas, esse alguém foi ela. A sua amizade por mim quase que ultrapassava os limites da obsessão e chegou a correr o risco de transvasar para outros sentimentos que mantive prudentemente à distância porque não sentia a mínima atração por ela. O que havia entre nós era apenas amizade. Assim, nós não tínhamos a mesma órbita do acontecer.
Mas voltemos à vidente. Conforme já disse, a sessão começou com o tema José Duro e com uma descrição mais ou menos atabalhoada e muito apressada da Simbiose.
Nessa noite tive um encontro imediato com o desditoso poeta que tratava por tu a morte, com muitos inhos à mistura, tais como pinguinha, copinho, bocadinho. Foi um exagero de diminutivos que nunca consegui explicar. Talvez resultantes do nervosismo, ou talvez não. Quem o pode dizer?
«Resolvi fazer um petisco para o jantar e apeteceu-me água-pé. Tinha trazido para cá umas garrafas que a D. Flora me tinha dado e fui buscar uma. Abri-a e bebi logo um copinho. Comecei a ficar bem disposto. Sentei-me no chão e pus-me a falar, a falar para o gravador. Pouco tempo depois estava bem bebido. Há algum tempo que tinha acabado de petiscar. Na gravação até se ouviu o encher do copo e os momentos em que fiz uma saúde à garrafa. Disse tudo o que tinha a dizer. De repente, passei do verão para o inverno e então apareceu aquela rapariga. Lembrei-me dela e não queira saber... Enchi-me logo de tristeza e saudade.»
«Foi apanhado.»
«Tinha dezassete anos e ela quinze quando aceitou o namoro. Era muito bonita. Chamava-se Manuela.»
E continuei a descrição, nitidamente perturbado. Talvez hipnotizado. Não sei explicar mais.
Seguiu-se um resumo da Simbiose. Diga-se que muito mal resumido. Continuava acelerado, sem mostrar qualquer poder de síntese.
Depois, falei de uma fotografia em que eu e a Manuela estamos sentados no banco do José Duro, no parque da Corredoura de Portalegre.
Veio a seguir a descrição da ida ao convento do Varatojo, acompanhado da minha irmã, onde fomos mandar rezar uma missa por alma de alguns familiares e de um amigo já falecido.
Contei-lhe...
O franciscano que nos recebeu ficou baralhado logo de início e mal percebia o que dizíamos.
«Eu baralho as pessoas! Mas não é por querer...»
«Pois não, pois não.»
«Os senhores...» Balbuciou o franciscano.
«Só à terceira vez é que entendeu o nome das pessoas. Depois, aconteceu outra coisa: não era capaz de escrever, tal a força do bloqueio. Lá escreveu Clarinha e mais um ou dois nomes. De seguida, virou-se para mim e eu disse:»
«Também quero mandar rezar uma missa pelo José Duro.»
«Ah, sim?»
Continuei a evocar a Manuela. Foi praticamente no parque da Corredoura que o nosso amor ganhou raízes. José Duro era um poeta que só falava da morte. A sua mãe foi madrinha da minha avó e ele padrinho do nosso infortúnio, quero acreditar. Se não foi, que fique em paz.
Mostrei-lhe uma fotografia do álbum que trouxera para cima da mesa.
«Este é o busto do José Duro. Só falava da morte. Morreu muito cedo. Tuberculoso.»
«Desiludido com a vida que lhe foi madrasta. Mas... o que é mais engraçado é que o senhor foi levado a mandar rezar a missa...»
De facto não ia com nenhuma ideia.
Referi que tempos antes mandara rezar missas pela Manuela.
«Foi há uns tempos atrás. Mandei rezar missas porque ela morreu de uma forma trágica.»
«Acho que essa senhora nunca o há de deixar.»
Não comentei. Passei à Esfinge.
«Ela diz que é eterna. Tenho aqui um poema que fiz dedicado a ela. Chama-se Laboratório Secreto.»
Declamei-o, mais uma vez com voz acelerada. Mais parecia que estava a fazer um relato de futebol. Só eu é que falava. A pobre da vidente não conseguia interromper-me.
Esfinge e mais Esfinge. E a desgraçada sem poder falar!
Finalmente o relato tornou-se um pouco mais lento. Ou melhor: menos apressado.
«Estou convencido que não há quem me faça desviar daquilo que tenho na mente.»
«Não. E há ocasiões que dá pela aproximação, mas sente-se bem. Mas sinto outras aproximações contrárias.»
Falava da Manuela ou da Esfinge?
Contei-lhe um acordar com um cheiro a estrume de galinha.
«Ah!...»
«... fiquei pregado à cama.»
«Bem, isto de cheiros...»
Cortei mais uma vez a sua intervenção. Tentou de novo falar mas voltei a interrompê-la. Só à terceira vez conseguiu explicar, em parte, o seu ponto de vista.
«Conforme eles forem. Este cheiro... dá-me a impressão que é um campo. Que é qualquer...»
«Qualquer sítio onde estaria.»
«Sim. Nunca lhe cheirou a incenso?»
«Incenso, não. A minha ideia é que, quando acordei, parecia que estava a ser vigiado.»
A confusão estava a instalar-se.
«O que é certo é que já não está baralhado e...»
Voltei de novo à Esfinge.
«Quando quero falar com ela, foge como uma enguia. Ainda há dias disse-me: "Qualquer dia vamos fazer uma experiência. Mas ainda não chegou a altura."»
Um comentário da vidente:
«Não sei se é medo, ou se não quer aprofundar. Ou então tem medo de si.»
Foquei fundamentalmente a revelação que a Esfinge me fez sobre ser eterna, a propósito de um problema que sentia na garganta.
«Não me preocupo com isto porque sou eterna. Encontrei um livro.»
«Sobre as doenças?» perguntou.
Pertinente a pergunta. Sinal de grande intuição. De facto a Esfinge tinha a mania das doenças. Daí sonhar com a eternidade. Acabavam-se as doenças. Bania-se a morte.
Mas que livro terá encontrado?
«A sua casa está boa» insistiu. «O que me parece é que o senhor às vezes quer expandir-se e não pode.»
«Tenho vontade de expandir-me, mas muitas vezes acontece quando não devia ser. Lembra-se daquela vez que me disse que houve uma rapariga que me desviou o destino? Estava em transe e é capaz de não se lembrar.»
E logo falei na descrição que ela fez da casa de campo da Simone.
«Que se recorda, recorda. De vez em quando o pensamento dela passa por si. Ela tinha-o apanhado mesmo, se não fosse a separação, você ir para um lado e ter ficado cada um para seu lado. Porque ela também tem um bocadinho...»
«Desta coisa?»
«Sim. Mas, no fundo, não é má rapariga»
Referiu-se à Simone como se falasse no passado. Mas o tempo correu e o amor que sentia por mim transformou-se em ódio e o ódio era capaz de tudo!
«Nessa altura não pensava nisto. Agora... esta tem medo de mim!»
«Qual? A sua colega?»
Voltando de novo à Esfinge, falando de uma experiência que os dois íamos fazer (auditoria) e dissecando, de novo, o “laboratório secreto”. Obsessivamente, a Esfinge.
A título de finalização:
«O meu interesse fundamental não é ela, mas sim os conhecimentos dela. É uma pessoa muito fechada tem medo que conheça os seus segredos.»
«Tenho a impressão que não resulta, porque ela, ao mesmo tempo, não quer aprofundar...»
«Mas disse que foi muito mais além...»
«Dedicava-me à alquimia e vou voltar à astrologia.»
«Ela disse isso?»
«Sim. Ao falar do laboratório secreto, estou a defender-me...»
«A defender-se e a atacá-la ao mesmo tempo. Foge porque tem receio.»
Pedi-lhe para ir à marquise analisar um misterioso calendário que marcava datas fatais, sem que soubesse quem interferia com o mesmo e mudava as datas, aproveitei para virar a cassete e gravar no lado B. Da marquise veio o som assustador de alguns arrotos da vidente e, de seguida, uma previsão otimista:
«Só vejo uma coisa boa entre 23 e 25 deste mês...»
Pouco depois estava de regresso.
«Das primeiras vezes que falei consigo achava-o com qualidades esplêndidas para prosseguir mas estava muito fechado. Quer dizer... dali não passava. Precisava dum empurrão. Agora não. O senhor está convicto que é capaz de conseguir aquilo tudo que quiser.»
«Agora faço o que quero! Num destes dias vou a Estremoz.»
«Ah!... Ah!...»
«Tenho de lá ir...»
«Para saber se é verdade...»
Antecipação da vidente?
«Alguém me disse que ela se suicidou, mas uma tia afirmou que não, que ela morreu de uma doença má. Um cancro. Mas logo a seguir bloqueou! Fiquei sem saber o que se passou de verdade. Até porque naquele livro que escrevi, a personagem que se suicidou é ela e eu mandei-lhe o livro já quando estava na tropa. Nunca devia ter enviado o livro. Já estávamos zangados. Zangados, não. Tínhamos acabado o namoro há algum tempo. Não estava interessado nela.»
«Não estava... mas estava, porque, se não estivesse, não escrevia aquele livro, sendo ela a personagem principal.»
Os longos dias azuis...
«Mas ela era e não era a personagem principal na medida em que a outra personagem era o espelho da irrealização de uma pessoa. Tudo o que fiz foram profecias.»
Por exemplo a morte de Manuela.
«Agora estou a pagar o mal que fiz.»
«Se é que fez mal...»
«Não sou feliz, nem faço ninguém feliz.»
«Ninguém.»
«Ninguém. Tive muitas Patrícias, personagens do desencanto, mas só houve uma Manuela. A Patrícia é uma personagem da negação.»
«Ah sim.»
Falo-lhe do dia em que a fui buscar a casa e ela me perguntou, pelo caminho, se ia escrever um livro.
«“Eles não querem que eu diga, mas eu digo”. Não consegui atingir. E isso é muito importante. Lembra-se?»
«Quando estou assim...»
«Compreendo. Só queria saber quem é que me está a empurrar para escrever um livro.»
«...»
«E agora também estou a escrever outro. Ou melhor: já o tinha escrito, mas estou a modificá-lo. No fundo isto é tão negativo como o FEL. Vou ler para si um poema para ver como ele escrevia. Chama-se A Caveira. Só um momento...»
(Folheando o livro...).
«Cá está...»
E li-lhe o soneto.
«O meu livro não fala sobre a morte, mas fala dos sonhos que tinha e ficaram por…»
«... se realizar.»
«Eu digo aqui uma coisa parecida, mas tem outro significado:
Mas no fundo do amanhã o hidrogénio irá encher balões rumo à eternidade e um dia chegarei aos anos-luz dos sonhos diluídos onde nascem outras estrelas…»
«Queria seguir tão além... Não vê mais porque o não deixam. O senhor já está muito melhor, porque já vai sem estar embaraçado e está a fazer porque quer, mas empurram-no para isso. E é em toda essa maneira que o senhor se sente feliz nesses momentos. É ou não é?»
«Sinto-me como um peixe na água. Tenho é que estar sozinho. Sozinho ou com pessoas que não interfiram comigo. Mas também sou capaz de escrever no meio da confusão.»
«Alheia-se à confusão e aquilo que está a sentir, está a transmitir para o papel. Vai bem. Por mais que lhe digam que não, eu digo que sim.»
Confessei-lhe que estava a dormir quatro horas por dia.
«Há um dia em que durmo mais e...»
«Já não se sente bem.»
Comecei a contar-lhe o que me aconteceu naquele dia em que ao acordar me vi ao espelho e não gostei do meu rosto.
«Não era a sua cara...»
«Era mais alongada e mais forte. Uma cara alucinada.»
Doía-me o ouvido. Sentia uma grande insegurança. Acabei por ir à médica que me disse que tinha cera nos ouvidos.
Contei a história da saída à rua para medir a tensão. Sentia-me inseguro. Mais parecia um velho a atravessar a Alameda. Não sei se falei do homem que vi. Rosto redondo e cabelo muito penteado para trás, todo acachapado. Fazia lembrar o meu padrinho de batismo, também meu tio e irmão do meu pai. Já falecido. Depois, aconteceu o que aconteceu no café do Norte, situado também na rua da casa da praia.
«Parecia um velho na rua. É a tal história do velho curvado de que a D. Flora fala que vê um velho curvado que me anda a fazer partidas. Um velho curvado... Cara cheia...»
«Mas mais baixo que o senhor...»
«Não sei.»
«Mais baixo e mais forte.»
«Um rosto redondo.»
«De cara cheia...»
«Diz que tem uma bengala e anda a fazer partidas; e que eu hei de passar muito até que descubra quem é que é ele.»
«Mas se descobrir… Às vezes eles tapam-se, escondem-se. Pois. Mas é que eles agarram-se à parte mais fraca. Eu digo-lhe... se o morrer é como eu estive, não custa nada.»
«Dona Ima, quando começou a ter estas inclinações?»
«Desde a idade de dez, onze anos.»
«Dez, onze anos. Mas sentia assim perturbações, ou...?»
«Não... Eu o que sentia... Por exemplo... estava a falar consigo e não gostava de si. E a minha mãe dizia:»
«Porquê?»
«Não gosto. Embirro com ela!»
«E assim comecei a ter perceções do bem e do mal; e depois...»
«Foi desenvolvendo.»
«A primeira coisa que eu vi de mal foi uma caveira e tudo cheio de corvos na passagem. Isso foi o mal que eu vi e depois foi uma reviravolta para o bem. Foi na igreja. Estava na igreja. Ou por outra, não foi bem assim. Fazia anos que tinha falecido o meu cunhado e a minha irmã mandava dizer uma missa todos os meses. Nesse dia disse-me: "Podias ir à frente e compravas flores na florista e já lá vou ter contigo". Eu comprei as flores, esperei pela minha irmã, e na missa vi... Até porque estava bem tanto ali como em Fátima. Eu estava...»
Tinha visto um crucifixo.
A fita da gravação chegara ao fim. Muitas coisas importantes ficaram por gravar. Uma delas, era mais ou menos assim:
«Um dia hei de ensiná-lo a voar. Vamos voar os dois juntos!»
A 24 de maio, já no fim da tarde, quando estava na sala de professores conversando com colegas do curso noturno, tocou o telefone perto da mesa em frente ao bar.
«É para ti.» Disse-me alguém.
Atendi. Do outro lado da linha identifiquei uma voz feminina.
«Vou fazer-te uma proposta honesta.»
Era a Sofia.
Fiquei com a respiração suspensa, quase a adivinhar o que me ia propor. Uma proposta honesta não podia ser outra coisa senão para dar explicações a um dos filhos. Enganei-me redondamente. Perguntou-me se queria trabalhar no Projeto.
(E a D. Ima dissera:
«Só vejo uma coisa boa entre 23 e 25 deste mês...»)
«Se for na parte financeira...» Disse.
«Não era bem isso. Mas posso falar com a Isabel.»
Aceitei logo e em Junho tive uma entrevista com a diretora do Projeto, a Isabel Catita. Achei-a logo uma pessoa muito aérea, de decisões rápidas, tipo “não me chateiem que eu também não”.
«Este é o Mário, o colega de que te falei. É um ótimo elemento para as nossas contas.»
«Acho bem. A Donzília diz anda assoberbada de trabalho e o nosso chefe queixa-se que ela não lhe dá assistência. Arranja-me um formulário, ó Sofia. Vamos tratar imediatamente do destacamento do teu amigo Almeida.»
Mas no fundo do amanhã o hidrogénio irá encher balões rumo à eternidade e um dia chegarei aos anos-luz dos sonhos diluídos onde nascem outras estrelas…»
«Queria seguir tão além... Não vê mais porque o não deixam. O senhor já está muito melhor, porque já vai sem estar embaraçado e está a fazer porque quer, mas empurram-no para isso. E é em toda essa maneira que o senhor se sente feliz nesses momentos. É ou não é?»
«Sinto-me como um peixe na água. Tenho é que estar sozinho. Sozinho ou com pessoas que não interfiram comigo. Mas também sou capaz de escrever no meio da confusão.»
«Alheia-se à confusão e aquilo que está a sentir, está a transmitir para o papel. Vai bem. Por mais que lhe digam que não, eu digo que sim.»
Confessei-lhe que estava a dormir quatro horas por dia.
«Há um dia em que durmo mais e...»
«Já não se sente bem.»
Comecei a contar-lhe o que me aconteceu naquele dia em que ao acordar me vi ao espelho e não gostei do meu rosto.
«Não era a sua cara...»
«Era mais alongada e mais forte. Uma cara alucinada.»
Doía-me o ouvido. Sentia uma grande insegurança. Acabei por ir à médica que me disse que tinha cera nos ouvidos.
Contei a história da saída à rua para medir a tensão. Sentia-me inseguro. Mais parecia um velho a atravessar a Alameda. Não sei se falei do homem que vi. Rosto redondo e cabelo muito penteado para trás, todo acachapado. Fazia lembrar o meu padrinho de batismo, também meu tio e irmão do meu pai. Já falecido. Depois, aconteceu o que aconteceu no café do Norte, situado também na rua da casa da praia.
«Parecia um velho na rua. É a tal história do velho curvado de que a D. Flora fala que vê um velho curvado que me anda a fazer partidas. Um velho curvado... Cara cheia...»
«Mas mais baixo que o senhor...»
«Não sei.»
«Mais baixo e mais forte.»
«Um rosto redondo.»
«De cara cheia...»
«Diz que tem uma bengala e anda a fazer partidas; e que eu hei de passar muito até que descubra quem é que é ele.»
«Mas se descobrir… Às vezes eles tapam-se, escondem-se. Pois. Mas é que eles agarram-se à parte mais fraca. Eu digo-lhe... se o morrer é como eu estive, não custa nada.»
«Dona Ima, quando começou a ter estas inclinações?»
«Desde a idade de dez, onze anos.»
«Dez, onze anos. Mas sentia assim perturbações, ou...?»
«Não... Eu o que sentia... Por exemplo... estava a falar consigo e não gostava de si. E a minha mãe dizia:»
«Porquê?»
«Não gosto. Embirro com ela!»
«E assim comecei a ter perceções do bem e do mal; e depois...»
«Foi desenvolvendo.»
«A primeira coisa que eu vi de mal foi uma caveira e tudo cheio de corvos na passagem. Isso foi o mal que eu vi e depois foi uma reviravolta para o bem. Foi na igreja. Estava na igreja. Ou por outra, não foi bem assim. Fazia anos que tinha falecido o meu cunhado e a minha irmã mandava dizer uma missa todos os meses. Nesse dia disse-me: "Podias ir à frente e compravas flores na florista e já lá vou ter contigo". Eu comprei as flores, esperei pela minha irmã, e na missa vi... Até porque estava bem tanto ali como em Fátima. Eu estava...»
Tinha visto um crucifixo.
A fita da gravação chegara ao fim. Muitas coisas importantes ficaram por gravar. Uma delas, era mais ou menos assim:
«Um dia hei de ensiná-lo a voar. Vamos voar os dois juntos!»
A 24 de maio, já no fim da tarde, quando estava na sala de professores conversando com colegas do curso noturno, tocou o telefone perto da mesa em frente ao bar.
«É para ti.» Disse-me alguém.
Atendi. Do outro lado da linha identifiquei uma voz feminina.
«Vou fazer-te uma proposta honesta.»
Era a Sofia.
Fiquei com a respiração suspensa, quase a adivinhar o que me ia propor. Uma proposta honesta não podia ser outra coisa senão para dar explicações a um dos filhos. Enganei-me redondamente. Perguntou-me se queria trabalhar no Projeto.
(E a D. Ima dissera:
«Só vejo uma coisa boa entre 23 e 25 deste mês...»)
«Se for na parte financeira...» Disse.
«Não era bem isso. Mas posso falar com a Isabel.»
Aceitei logo e em Junho tive uma entrevista com a diretora do Projeto, a Isabel Catita. Achei-a logo uma pessoa muito aérea, de decisões rápidas, tipo “não me chateiem que eu também não”.
«Este é o Mário, o colega de que te falei. É um ótimo elemento para as nossas contas.»
«Acho bem. A Donzília diz anda assoberbada de trabalho e o nosso chefe queixa-se que ela não lhe dá assistência. Arranja-me um formulário, ó Sofia. Vamos tratar imediatamente do destacamento do teu amigo Almeida.»
«Mário.» Retificou a Sofia.
Onde me fui meter!
Era de facto uma mulher muito despistada, impetuosa e parecia andar sempre muito atarefada. Não sei se me ouviu nos cinco minutos que durou a entrevista. Tratava de muitos assuntos ao mesmo tempo e também dormia nas reuniões, conforme pude constatar mais tarde.Acho que fui admitido no Projeto porque a Sofia deve ter dito à Isabel que eu era um indivíduo muito competente e dedicado que até fazia os horários da escola enquanto os outros professores iam de férias. Portanto, com elevado espírito de sacrifício e outras mais coisas abonatórias. Aposto que lhe agradou especialmente aquela do espírito de sacrifício. Sempre se podia espremer o sumo do fruto até ao caroço.
Em julho entrei ao serviço. Comecei mal. Ofereci um mês inteirinho ao Projeto e tive de aturar a mulher mais intratável do mundo que ia substituir. Sim, a Donzília Pina. Uma feiona empertigada e com recalcamentos profundos por ter sido professora primária. Suportei-a conforme pude nesse mês de julho, com o tal espírito de sacrifício que a Sofia referira, mas noutro sentido desta vez. Tudo o que me transmitiu foi sacado à socapa. A safada não me explicou como se fazia o orçamento. Executou-o e eu limitei-me a fazer e refazer os cálculos, substituindo variáveis em fórmulas que não sabia a que se destinavam. Na verdade tive muito boa vontade. A Milu e a Eduarda eram as colegas que trabalhavam em conjunto comigo. A primeira só ligava aos seus queridos psicólogos e lambia as botas à Isabel Catita. Lambia e também engraxava. Quanto à Eduarda, uma socialista convicta, era amiga íntima da Isabel, supostamente social democrata. Uma espécie de submarino, admiti mais tarde. Tinha um bom trato com ela e podia ter sido perigoso se faltasse aos meus deveres. mas felizmente limitei-me a cumprir a minha tarefa. E ainda bem. Ela contava tudo o que se passava à sua volta à amiga. Portanto, sem que soubéssemos, ela era os olhos e os ouvidos do Imperador e convidava os outros à indolência porque pouco ou nada produzia. Tal desempenho tornava-a insuspeita.
Fazia ainda parte da equipa a Marta, secretária da diretora. A princípio dei-lhe outro nome. Chamei-lhe Guapa, porque era gira, a atirar para mulher fatal. Punha os homens em estado de sítio com o seu andar provocador e a voz excitante. Uma mulher nova, atraente sem ser bonita. Viria a ter um princípio de caso com ela, que foi interrompido inopinadamente pela entrada em cena de uma mulher do signo Caranguejo.
Os primeiros meses foram naturalmente de adaptação. Cedo consegui libertar-me do jugo da Donzília, porque, com a minha vinda para o Projeto, passou a dar mais apoio ao seu chefe. Foi muito bom para mim porque já estava a chegar ao limite da resistência. Contudo, não pude evitar a sua presença quando nos mudámos para um gabinete mais amplo. Não é que me importunasse, como aconteceu quando do orçamento que fez e refez quatro vezes e cujos cálculos eu também fiz e refiz quatro vezes. Irritava-me apenas a sua presença. Restos daquele mês em que fiz cálculos e mais cálculos sem saber ao certo o que estava fazendo e tive que suportar o seu feitio irascível. Valeu-me ficar com uma cópia da versão definitiva do orçamento que foi quatro vezes ao décimo andar e veio sempre todo rasurado porque era preciso, além de terem sido corrigidos alguns erros técnicos, fazer determinadas poupanças. Irritava-me também (e muito) porque nunca gostei de ouvir pessoas falarem sozinhas e ela pecava por excesso.
De início as coisas correram bem e até o relacionamento com as minhas colegas foi muito melhor do que esperava. No Natal ofereci-lhes uma cassete e um manuscrito do conto À Procura do Tempo Perdido, da autoria do meu amigo António Ildefonso, mas contado por mim, claro. Estava numa fase crucial da minha vida em que o paranormal transbordava da taça da abundância e sentia necessidade de transmitir, às pessoas que contactavam comigo com frequência, as passagens mais importantes daquilo que considerava difícil de explicar dentro do normal. O conto baseava-se num caso real de contornos perdidos para lá do explicável e tinha como personagem principal a Marta e como tema tudo do que se passou à volta de um desastre que sofreu. Foi atropelada por um táxi na avenida da República.
Como era lógico, à medida que ganhava ascendente no meu trabalho comecei a distanciar-me daquela galinha antipática, feia, pedante e ridícula que me tinha feito a vida negra em julho. Aliás, já não precisava dos seus projetos falhados de orçamento nem dos repetitivos esquemas de cálculo dos abonos a conceder aos núcleos do Projeto. Concebi um programa em Basic que efetuava todos os cálculos, sendo apenas necessário fazer o input dos dados (convém dizer que a informática dava os primeiros passos).
Ainda não tinha chegado o computador prometido, coisa que estava por poucos dias.
NÃO ME LEVES AINDA!
Tiro e queda. Logo a seguir comecei a sentir-me mal disposto, talvez porque os varões estavam demasiado frios. Talvez a indisposição passasse, pensei. Mas não. Sentia-me cada vez pior. Gelado. Completamente gelado. Consegui aguentar mais uns minutos. Estava em Entrecampos. Eram só mais duas paragens ou três. Não. Não conseguia.
Saí de imediato e decidi fazer o resto do percurso a pé. Pouco passava das oito e meia. Tinha tempo de ser ainda o primeiro a chegar ao gabinete. Fazia-me bem apanhar o ar fresco da manhã.
Mas...?, não era aquele o caminho habitual. Desviava-me para poente e assim não ia encontrar o cruzamento.
Cheguei à avenida de Berna e preparei-me para atravessar para o outro passeio. Já do outro lado do passeio, parei. Que se passava? Uma força poderosa arrastava-me em direção à igreja de Fátima e não conseguia resistir. Em breve estava junto ao portão de entrada. Subi os degraus. Abri uma das portas laterais. Ouvi logo uma voz arrastada de um ancião que parecia vir de muito longe. Era o padre de voz monocórdica que celebrava a missa. O mesmo que um dia, a meu pedido, celebrou uma missa em intenção da Manuela.
Sentei-me num dos últimos bancos. O olhar fixou-se numa zona à direita do altar. A imagem da Senhora de Fátima, esculpida no mármore, fascinava-me. Tentei desviar o olhar e concentrar-me na preleção do pároco. Senti que a voz veio ainda mais de longe. O primeiro plano estava ali. No rosto da imagem. Triste. Muito triste. Mais triste que a tristeza que os olhos da Manuela espelhavam. Queria entender. Tinha os olhos humedecidos. Sentia pena. Muita pena. Já não eram só os olhos humedecidos. As lágrimas corriam-me pelo rosto. Soluçava. Soluçava sem saber porquê. Não conseguia controlar-me.
«Não me leves ainda!»
Mas não era eu!
Que queria dizer? Não! Não estava doente. Não tinha uma doença fatal. Mas porque não conseguia suster as lágrimas?
Deixei que as lágrimas continuassem a correr. O fenómeno durou mais alguns minutos e decorreu sempre de olhos na imagem que parecia ser a razão de tudo o que estava a acontecer.
Quem pediu com a minha voz com tanto fervor e ansiedade para "não ser levado ainda"?
Aos poucos fui-me acalmando. Tirei o lenço do bolso e limpei o rosto. Parecia que a minha estranha missão tinha acabado. Levantei-me. Fiz o sinal da cruz e voltei-me, encaminhando-me para a saída.
Ainda não estava bem quando entrei no serviço. Fui o único a sair no sexto andar. Quase choquei com a chefe de Gabinete que vi, especada, na minha frente. Não me admirei com a sua presença. Não foi a única vez que encontrei a doutora Ivette no hall dos elevadores do sexto andar, por vezes mais cedo, mas nunca a vi tão pensativa e ausente como neste dia em que também eu estivera ausente de mim mesmo. Pensativa, de mão no queixo, talvez controlasse a entrada da equipa do Projeto. Havia algumas colegas que pisavam o risco e a Isabel Catita era completamente alheia a essa realidade. Tudo passava ao seu lado. E a doutora Yvette sabia.
Cumprimentei-a. Mal me falou. Encolhi os ombros e encaminhei-me para o gabinete.
Que terá pensado da expressão que viu no meu rosto?
Também ficará por descobrir quem foi que pediu nessa manhã, na igreja de Fátima, para "não ser levado ainda" e por quem chorei no momento convulsivamente. O que quer que tenha sido, muito provavelmente aquilo apossou-se de mim no autocarro e só voltei a ser eu quando entrei no gabinete.
QUANDO O LEÃO EXPERIMENTOU A SUA FORÇA
Foi no mês de dezembro que se deu a minha brusca ascensão ao poder. Aumentei a influência à custa do antagonismo existente entre a Isabel Catita e a doutora Ivette.Entretanto chegou finalmente o computador que foi comprado a uma firma de que era gerente um filho da Eduarda. Tratei pessoalmente da compra. Era um Phillips da gama NMS que trabalhava a 12 Mh e possuía monitor monocromático com placa gráfica Hércules. Bom para a época.
Rapidamente aprendi a tirar o maior partido dele, usando uma folha de cálculo francesa, de nome Multiplan, o processador de texto Word Star e o dBase III Plus, um programa gestor de bases de dados que funcionava com uma linguagem de programação próxima do Basic, que me lançou no mundo da programação. Progredi rapidamente, tirando partido dos comandos diretos. Era cedo ainda para começar a programar.
O computador tornou-me o centro das atenções. Havia necessidade de tratar os dados vindos de todas as partes do país. Coisa boa para mim.Vi a oportunidade e ofereci-me. Uma ordem da diretora do Projeto e logo as minhas colegas largaram os seus trabalhos e passaram a ajudar-me na organização dos documentos a serem informatizados. Adaptei um programa em linguagem Basic para dBase exclusivamente destinado à leitura e alteração de dados. Pela primeira vez, desde que entrara para o Projeto, sentia-me o astro principal daquele "sistema solar" que formávamos. A missão era ciclópica e não dera conta. Precisava de mais auxiliares informáticos para fazer a introdução dos dados. As minhas colegas fugiam do computador como o diabo da cruz. Não podia contar com elas.
Para complicar ainda mais a situação, o OTJ despediu-se porque entretanto encontrou um emprego mais compensatório e o que o substituíra estava longe de chegar aos seus calcanhares. Solicitei de imediato que fossem admitidos, a título precário, dois jovens com conhecimentos informáticos.
O computador tornou-me o centro das atenções. Havia necessidade de tratar os dados vindos de todas as partes do país. Coisa boa para mim.Vi a oportunidade e ofereci-me. Uma ordem da diretora do Projeto e logo as minhas colegas largaram os seus trabalhos e passaram a ajudar-me na organização dos documentos a serem informatizados. Adaptei um programa em linguagem Basic para dBase exclusivamente destinado à leitura e alteração de dados. Pela primeira vez, desde que entrara para o Projeto, sentia-me o astro principal daquele "sistema solar" que formávamos. A missão era ciclópica e não dera conta. Precisava de mais auxiliares informáticos para fazer a introdução dos dados. As minhas colegas fugiam do computador como o diabo da cruz. Não podia contar com elas.
Para complicar ainda mais a situação, o OTJ despediu-se porque entretanto encontrou um emprego mais compensatório e o que o substituíra estava longe de chegar aos seus calcanhares. Solicitei de imediato que fossem admitidos, a título precário, dois jovens com conhecimentos informáticos.
Estavam completados dois concelhos e quatro já em vias de acabamento quando a tarefa foi interrompida. Do pedido feito nem uma resposta. A Isabel Catita nunca chegou a ver o meu trabalho porque já tinha outras ideias em mente, ou fora influenciada.
O inevitável aconteceu. Uma manhã, como se de um furacão se tratasse, irrompeu na sala, acompanhada da Luísa Coimbra, uma adjunta das cúpulas.
«Mário, você está a fazer um ótimo trabalho mas temos de entregar os dados a uma empresa. São milhares de dados e têm de ser tratados escola a escola. A Luísa já fez os contactos com a Cerelina, que vai encarregar-se do trabalho. Não leve a mal. Sei muito bem que está a dar o máximo.»
Cínica! Untaram-te as mãos...
Mandou-me fazer o trabalho concelho a concelho. As minhas colegas tinham preparado os mapas. Perdemos mais de uma semana em todo este processo e de repente dava-me ordem para parar. A ira subiu-me à cabeça, mas contive-me no último momento. Face à alteração verificada, ela tinha razão, mas não gostei do modo brusco como agiu. Depois, a Luísa Coimbra atravessou-se no meu caminho e também não gostei. Achava que era golpista e ia tirar proveito com a ideia de criar uma gigantesca base de dados. Ao mesmo tempo, tentava pôr-me fora da corrida. O Projeto passava a receber os dados gravados em fita magnética pela Cerelina e eram tratados informaticamente pelo GP, um gabinete satélite das cúpulas. Havia ainda que fazer a codificação dos documentos enviados para nós, o que era um processo muito complicado. Cheguei mesmo a comentar, mais por intuição, que havia grandes inconvenientes no processo. A Isabel Catita nem sequer perguntou porquê. A outra fizera-lhe uma eficiente e profunda lavagem ao cérebro. Ou então estavam feitas uma com a outra.
Quando saíram, não consegui suster uma frase profética:
«Cheira-me a esturro, Eduarda...»
Por coincidência, quando elas entraram na sala, tratava os dados vindos de Estarreja.
Mas a minha ascendência não parara ainda. A nova proposta da diretora foi formalizada na presença da doutora Ivette. Não entendi porquê mas descobri que ela ficou de pé atrás. Tal como eu, farejou o perigo à distância.
Da Cerelina estiveram dois representantes, bem como dois engenheiros informáticos do GP. Como representante das cúpulas, a golpista da Luísa Coimbra. E eu, claro. Agora mais ligado à chefe de Gabinete que à diretora do Projeto.
Dessa reunião resultou o seguinte:
1. Aprovação do orçamento apresentado pela empresa, no montante de 120 contos e relativo aos primeiros meses. Era um maná que começava a cair do céu.
2. A responsabilidade do programa, em Fortran, com módulos de layout e de impressão, era imputada aos engenheiros do GP, Carlos Fernandes e Luís Mártires.
3. Até 13 de janeiro eu receberia as disquetes com os ficheiros e os programas. Aí começava o trabalho de verificação e impressão, uma vez que as bandas magnéticas seriam entregues no GP pela firma.
Foram estes os três pontos principais resultantes do encontro no gabinete da doutora Ivette, onde tive oportunidade de confirmar a animosidade existente entre esta e a Isabel Catita. Curiosamente, notei um ascendente e intransigência da chefe de Gabinete e uma submissão (?) quase total da Isabel Catita. Via-se com clareza quem mandava. Mas a guerra era só entre as duas mulheres ou também entre duas fações das cúpulas?
E qual era o meu papel?
Por mais estranho que parecesse, naquela fase estava ao serviço da Chefe de Gabinete e contra a Isabel Catita! Sentia-me um pouco baralhado, quase traidor, mas quem mandava mais era a Chefe de Gabinete.
Passei a ser chamado com frequência ao gabinete da doutora Ivette onde também trabalhavam as três secretárias do Ministro da Educação. Ela perguntava-me como iam as coisas. E eu respondia que as coisas não iam nada bem. O boicote talvez viesse ao mesmo tempo de vários sítios. Do GP. Da Cerelina. Ou dos dois.
Quem sabia... se da própria Isabel Catita?
Surgiu o primeiro contratempo quando as bandas foram entregues no sítio indevido. Aparentemente a Cerelina e o GP não se entenderam. Havias graves problemas técnicos e os prazos a cumprir aproximavam-se vertiginosamente. A codificação estava a ser feita por duas tarefeiras e havia gralhas por todos os lados que tive que emendar. O tempo passava e não havia resultados. A situação tornava-se insustentável.
Em 25 de janeiro apresentei um relatório detalhado à chefe de Gabinete. Cometi, no entanto, um erro grave. Fiz passar o relatório pelas vias legais, isto é, pela Isabel Catita. Claro que o relatório foi congelado o tempo suficiente para nunca chegar às mãos da doutora Ivette, uma vez que alguns dias depois "caiu" o Secretário de Estado, chefe da doutora Ivette e, por consequência, toda a sua equipa.
Com esse acontecimento tinha perdido a grande oportunidade de ganhar mais poder. Mesmo assim, ainda consegui ficar à tona de água durante mais uns tempos.
Os contactos continuaram e tive oportunidade de apurar como evoluía o processo, se é que havia alguma evolução.
Estava marcado um encontro no GP para 19 de março entre as partes envolvidas: o GP, a Cerelina e o Projeto. Mais uma vez cheirou-me a esturro.Movido por um pressentimento apareci às três da tarde, uma hora antes do combinado. Dirigi-me ao gabinete de trabalho do engenheiro Luís Mártires.
Encontrei-o deveras preocupado.
«Como está, engenheiro?»
Cumprimentei-o. O seu nome soava a verdade. Via-se que sofria. E de que maneira! Porquê?
«Olá, doutor. Eu estou bem. O programa é que não está. Bloqueou.»
Tinha a pele nua e viscosa, lembrando uma rã. O homem transpirava abundantemente das mãos. Estranho. Muito estranho. Talvez sofresse de hipertiroidismo.
«Está a referir-se ao programa em Fortran?»
«Sim.»
«Temos atraso...»
«Mas resolve-se.»
«Assim espero.»
Lembrava-me de uma disquete que levara ao GP uns dias antes para os dados serem ordenados pelo VAX. Misteriosamente o ficheiro ficou oculto.
«Não sei o que aconteceu!»
«E agora?»
Encolheu os ombros. As mãos deviam estar mais viscosas que o habitual.
Agora?
Felizmente que o ficheiro permanecia intacto no disco rígido. Mas o que tinha acontecido era muito estranho. Cheirava-me a pirataria. Talvez tivesse razão.
«Engenheiro de olhos verdes...» Pensei. «Como foi que te deram o canudo?»
(Mas… ingenuidade a minha! Havia ali muita matéria para ser devidamente investigada. E não só nesta fase do campeonato. Por exemplo, como é que as verbas do Projeto, um instrumento com fins educativos, criado e subsidiado pelo Governo, estiveram, primeiro depositadas no Banco Fonsecas e Burnay e depois no BCP? Nunca na Caixa Geral de Depósitos E muito mais. Tanto nevoeiro à minha volta!)
O inevitável aconteceu. Uma manhã, como se de um furacão se tratasse, irrompeu na sala, acompanhada da Luísa Coimbra, uma adjunta das cúpulas.
«Mário, você está a fazer um ótimo trabalho mas temos de entregar os dados a uma empresa. São milhares de dados e têm de ser tratados escola a escola. A Luísa já fez os contactos com a Cerelina, que vai encarregar-se do trabalho. Não leve a mal. Sei muito bem que está a dar o máximo.»
Cínica! Untaram-te as mãos...
Mandou-me fazer o trabalho concelho a concelho. As minhas colegas tinham preparado os mapas. Perdemos mais de uma semana em todo este processo e de repente dava-me ordem para parar. A ira subiu-me à cabeça, mas contive-me no último momento. Face à alteração verificada, ela tinha razão, mas não gostei do modo brusco como agiu. Depois, a Luísa Coimbra atravessou-se no meu caminho e também não gostei. Achava que era golpista e ia tirar proveito com a ideia de criar uma gigantesca base de dados. Ao mesmo tempo, tentava pôr-me fora da corrida. O Projeto passava a receber os dados gravados em fita magnética pela Cerelina e eram tratados informaticamente pelo GP, um gabinete satélite das cúpulas. Havia ainda que fazer a codificação dos documentos enviados para nós, o que era um processo muito complicado. Cheguei mesmo a comentar, mais por intuição, que havia grandes inconvenientes no processo. A Isabel Catita nem sequer perguntou porquê. A outra fizera-lhe uma eficiente e profunda lavagem ao cérebro. Ou então estavam feitas uma com a outra.
Quando saíram, não consegui suster uma frase profética:
«Cheira-me a esturro, Eduarda...»
Por coincidência, quando elas entraram na sala, tratava os dados vindos de Estarreja.
Mas a minha ascendência não parara ainda. A nova proposta da diretora foi formalizada na presença da doutora Ivette. Não entendi porquê mas descobri que ela ficou de pé atrás. Tal como eu, farejou o perigo à distância.
Da Cerelina estiveram dois representantes, bem como dois engenheiros informáticos do GP. Como representante das cúpulas, a golpista da Luísa Coimbra. E eu, claro. Agora mais ligado à chefe de Gabinete que à diretora do Projeto.
Dessa reunião resultou o seguinte:
1. Aprovação do orçamento apresentado pela empresa, no montante de 120 contos e relativo aos primeiros meses. Era um maná que começava a cair do céu.
2. A responsabilidade do programa, em Fortran, com módulos de layout e de impressão, era imputada aos engenheiros do GP, Carlos Fernandes e Luís Mártires.
3. Até 13 de janeiro eu receberia as disquetes com os ficheiros e os programas. Aí começava o trabalho de verificação e impressão, uma vez que as bandas magnéticas seriam entregues no GP pela firma.
Foram estes os três pontos principais resultantes do encontro no gabinete da doutora Ivette, onde tive oportunidade de confirmar a animosidade existente entre esta e a Isabel Catita. Curiosamente, notei um ascendente e intransigência da chefe de Gabinete e uma submissão (?) quase total da Isabel Catita. Via-se com clareza quem mandava. Mas a guerra era só entre as duas mulheres ou também entre duas fações das cúpulas?
E qual era o meu papel?
Por mais estranho que parecesse, naquela fase estava ao serviço da Chefe de Gabinete e contra a Isabel Catita! Sentia-me um pouco baralhado, quase traidor, mas quem mandava mais era a Chefe de Gabinete.
Passei a ser chamado com frequência ao gabinete da doutora Ivette onde também trabalhavam as três secretárias do Ministro da Educação. Ela perguntava-me como iam as coisas. E eu respondia que as coisas não iam nada bem. O boicote talvez viesse ao mesmo tempo de vários sítios. Do GP. Da Cerelina. Ou dos dois.
Quem sabia... se da própria Isabel Catita?
Surgiu o primeiro contratempo quando as bandas foram entregues no sítio indevido. Aparentemente a Cerelina e o GP não se entenderam. Havias graves problemas técnicos e os prazos a cumprir aproximavam-se vertiginosamente. A codificação estava a ser feita por duas tarefeiras e havia gralhas por todos os lados que tive que emendar. O tempo passava e não havia resultados. A situação tornava-se insustentável.
Em 25 de janeiro apresentei um relatório detalhado à chefe de Gabinete. Cometi, no entanto, um erro grave. Fiz passar o relatório pelas vias legais, isto é, pela Isabel Catita. Claro que o relatório foi congelado o tempo suficiente para nunca chegar às mãos da doutora Ivette, uma vez que alguns dias depois "caiu" o Secretário de Estado, chefe da doutora Ivette e, por consequência, toda a sua equipa.
Com esse acontecimento tinha perdido a grande oportunidade de ganhar mais poder. Mesmo assim, ainda consegui ficar à tona de água durante mais uns tempos.
Os contactos continuaram e tive oportunidade de apurar como evoluía o processo, se é que havia alguma evolução.
Estava marcado um encontro no GP para 19 de março entre as partes envolvidas: o GP, a Cerelina e o Projeto. Mais uma vez cheirou-me a esturro.Movido por um pressentimento apareci às três da tarde, uma hora antes do combinado. Dirigi-me ao gabinete de trabalho do engenheiro Luís Mártires.
Encontrei-o deveras preocupado.
«Como está, engenheiro?»
Cumprimentei-o. O seu nome soava a verdade. Via-se que sofria. E de que maneira! Porquê?
«Olá, doutor. Eu estou bem. O programa é que não está. Bloqueou.»
Tinha a pele nua e viscosa, lembrando uma rã. O homem transpirava abundantemente das mãos. Estranho. Muito estranho. Talvez sofresse de hipertiroidismo.
«Está a referir-se ao programa em Fortran?»
«Sim.»
«Temos atraso...»
«Mas resolve-se.»
«Assim espero.»
Lembrava-me de uma disquete que levara ao GP uns dias antes para os dados serem ordenados pelo VAX. Misteriosamente o ficheiro ficou oculto.
«Não sei o que aconteceu!»
«E agora?»
Encolheu os ombros. As mãos deviam estar mais viscosas que o habitual.
Agora?
Felizmente que o ficheiro permanecia intacto no disco rígido. Mas o que tinha acontecido era muito estranho. Cheirava-me a pirataria. Talvez tivesse razão.
«Engenheiro de olhos verdes...» Pensei. «Como foi que te deram o canudo?»
(Mas… ingenuidade a minha! Havia ali muita matéria para ser devidamente investigada. E não só nesta fase do campeonato. Por exemplo, como é que as verbas do Projeto, um instrumento com fins educativos, criado e subsidiado pelo Governo, estiveram, primeiro depositadas no Banco Fonsecas e Burnay e depois no BCP? Nunca na Caixa Geral de Depósitos E muito mais. Tanto nevoeiro à minha volta!)
Olé, taxas de juros atraentes!
Voltei a mim.
«Então não vamos adiantar nada na reunião de hoje.»
«O representante da Cerelina não pode vir.»
«Ótimo! Tudo a rolar sobre esferas.» Ironizei.
«Posso dar-lhe mais alguns dados. O programa não vai ter menu.»
«Não me diga!»
«Também não vai ser possível alterar os dados, mês a mês.»
Entendi. Assim não havia falcatruas nos dados. Mas se houvesse erros de lançamento, como alterar? E os muitos erros imputados à descodificação?
A história do velho, do rapaz e do burro.
«Compreendo. Diga mais, engenheiro.»
Voltei a mim.
«Então não vamos adiantar nada na reunião de hoje.»
«O representante da Cerelina não pode vir.»
«Ótimo! Tudo a rolar sobre esferas.» Ironizei.
«Posso dar-lhe mais alguns dados. O programa não vai ter menu.»
«Não me diga!»
«Também não vai ser possível alterar os dados, mês a mês.»
Entendi. Assim não havia falcatruas nos dados. Mas se houvesse erros de lançamento, como alterar? E os muitos erros imputados à descodificação?
A história do velho, do rapaz e do burro.
«Compreendo. Diga mais, engenheiro.»
E o engenheiro disse.
«A Cerelina sempre vai lançar os dados dos ficheiros das oito componentes, mês a mês.»
Porquinho na engorda. Estava a ver o filme.
E mais. Havia fichas de novembro entradas tardiamente e ainda não entregues à Cerelina.
Como fazer entrar esses dados se não havia lugar à alteração dos mesmos?«A Cerelina sempre vai lançar os dados dos ficheiros das oito componentes, mês a mês.»
Porquinho na engorda. Estava a ver o filme.
E mais. Havia fichas de novembro entradas tardiamente e ainda não entregues à Cerelina.
«Agora vou revelar-lhe uma coisa, mas não conte a ninguém» confidenciou o engenheiro. «Sabe que a Luísa Coimbra tem um caso com o Guilherme?»
«E quem é o Guilherme?»
«O chefe máximo da Cerelina...»
«Agora cheira-me mesmo muito a esturro.»
«Ó se cheira!»
Um mês mais tarde a Luísa Coimbra e o Guilherme tomaram de assalto o VAX sob pretexto de aproveitarem ao máximo as capacidades de memória do mesmo e não tardou que o mesmo se avariasse.
«E quem é o Guilherme?»
«O chefe máximo da Cerelina...»
«Agora cheira-me mesmo muito a esturro.»
«Ó se cheira!»
Um mês mais tarde a Luísa Coimbra e o Guilherme tomaram de assalto o VAX sob pretexto de aproveitarem ao máximo as capacidades de memória do mesmo e não tardou que o mesmo se avariasse.
Entretanto já tinha informação que o Projeto ia adquirir um computador mais potente que o VAX pela módica quantia de dez mil contos.
Mais palavras para quê?
Mais palavras para quê?
UMA PORTA GRANDE PARA SAIR
Durante o jantar de Natal é que tomei consciência da luta titânica entre dois chefes máximos das cúpulas.O problema era político ou uma questão pura e simplesmente de estratégia que tinha como objetivo único a conquista do poder?
A festa foi agradável, com boa comida, boa bebida. Sentia-me bem. A conversa com as minhas colegas era agradável. Respirava-se o espírito do Natal. A distribuição aleatória de prendas (calhou-me um pequeno urso de peluche que ofereci de imediato a não sei quem) foi uma ideia que caiu bem. E o discurso tradicional de Natal do chefe máximo prometia consolidar o bom ambiente criado. Não imaginava que a noite festiva fosse toldada pelas palavras da pessoa donde menos esperava. De repente o discurso deixou de ser cordial e próprio da quadra natalícia, infletindo para outros campos, que, a princípio, considerei obscuros. Fiquei mais atento. Queria compreender melhor. E compreendi logo a seguir. Então era isso. A guerra atingira uma fase decisiva.
Fiquei a pensar numa frase enigmática dita pelo chefe máximo, ao falar da existência "de uma porta estreita para entrar e de uma porta muito larga para sair". Portanto, alguém ia sair pela porta grande, e sem glória, e até podia ser ele.
Mas não foi. Simbolicamente o meu poder começava nessa noite a esbater-se. Teria ido longe se a doutora Ivette estivesse a ganhar a batalha com a Isabel Catita. Mas não aconteceu.
Os problemas continuaram pelo fevereiro fora. Entretanto a doutora Ivette saiu de cena porque a sua fação perdeu. Quanto à Isabel Catita ganhou ascendente. Mas continuou a dormir nas reuniões.
Para falar verdade, nunca fui feliz neste Projeto que tinha tanto de megalómano como de surrealista.
A MULHER FATAL
A Marta era a secretária do Projeto. Uma mulher vistosa que, quando se gingava, fazia oscilar qualquer homem em rota de passagem por ela. Também dei por isso, mas de uma forma mais atenuada. Aliás, compreende-se, porque passei a vê-la todos os dias, no corredor que dava acesso aos gabinetes, mais sentada do que de pé, apesar de mostrar, com generosidade, as coxas apetecíveis.Mas naquele fim de tarde, que podia ter sido fatal, de nada lhe serviu o corpo virtuoso para atravessar a avenida da República sem a mínima beliscadura.
Parece que saiu perturbada do serviço, depois de ter sido repreendida pela Isabel Catita (foi o que constou). Anoitecia, embora não estivesse ainda lusco-fusco. Como estava atrasada, atravessou a correr as faixas da avenida. Queria apanhar do outro lado o autocarro 21. O trânsito estava entupido em todas as faixas descendentes, menos na última.
Azar o seu. Foi atropelada por um táxi que a projetou para a frente.
Era bom mergulhar no passado recente. Mergulhar mais fundo. Obsessivamente. Tal como o astrónomo cujo desejo supremo foi desvendar o segredo dos primeiros segundos da formação do Universo.
«Aconteceu no tempo ou está a acontecer? Como será possível se, por vezes, o tempo parece não ter tempo?»
Tinha um enigma para resolver. Baseava-se em três objetos que apanhei do chão poucos dias antes do acidente da Marta ter acontecido. Primeiro foi um objeto que identifiquei como tendo a forma de um pneu, perto do cimo do elevador da Glória (talvez no jardim). Seguiu-se um pequeno canivete ferrugento com a ponta virada para o edifício onde funcionava o Projeto. E um objeto em chumbo, daqueles que se usavam para calibrar as rodas dos carros. Associei estas descobertas com alguém dentro do Projeto e tive a intuição que significavam um aviso sério e devia travar o que de mau pudesse vir a acontecer. Pensei, pensei e nada. Depois, dispus os três objetos no chão da sala e fiquei a olhar para eles. Só então reparei que formavam os vértices de um triângulo. Deixei ficar os três objetos tal como os tinha posto.
Mais tarde encontrei uma etiqueta em branco, daquelas que se punham nas chaves. Representava talvez um nome que faltava descobrir.
Só depois aconteceu o acidente da Marta, felizmente com consequências menos graves do que se supunha. Mas não se livrou de um traumatismo craniano que a abalou muito, física e psicologicamente. Por esse motivo, depois das mais de quarenta e oito horas que permaneceu no hospital em observação, ficou em casa, deitada na cama, no mais absoluto repouso.
Quando se apresentou no serviço ainda vinha muito debilitada.
ACIDENTE NOUTRA DIMENSÃO
Procurava uma pétala. Ou talvez a mancha de sangue de um acidente que não existiu.Hoje estou na posse de novos conhecimentos e razoavelmente clarificadores. São mais algumas peças para melhorar o puzzle que tanto me tem intrigado. Esta descoberta, por exemplo: um triângulo pode bloquear um acontecimento que esteja registado numa das páginas ocultas do livro do futuro.
E o que é preciso fazer?
Muito simples. Basta uma tentativa para empurrar o tempo para outra dimensão. Assim, o mesmo acontecimento vai ocorrer de duas maneiras diferentes. Mas não basta o triângulo. Este apenas trava. O destino fica suspenso.
«Se fosse um autocarro...»
Eis a chave. E agora lembro-me do quarto objeto que era uma etiqueta destinada, por coincidência, a uma chave. Um táxi em vez de um autocarro. O acidente fatal parece ter acontecido noutra dimensão onde a Marta foi substituída por um duplo, duplo esse escolhido não sei por quem. E eu fiquei à espera. Tal como no conto "À procura do tempo perdido". Mas não no cimo da escada. Nem ao anoitecer.
Já era noite escura. O mais estranho disto tudo é que não tenho uma única palavra, escrita ou gravada, sobre este caso e tive que me valer da memória.
Embora a Marta tenha sido atropelada e sofrido um traumatismo craniano, afinal foi noutra dimensão que veio a acontecer, e com outra vítima, o acidente fatal que lhe estava destinado.
Quando saí do Projeto era já noite. Uma noite anormalmente cálida de fevereiro. Estava extenuado. Tinha em mãos um trabalho informático de verificação de erros que foram hipoteticamente imputados a duas codificadoras (o que veio mais tarde a confirmar-se; aliás, os erros justificavam-se, embora fossem em número que considerava exagerado, porque o tempo destinado às funcionárias para fazerem a codificação de milhares de dados era muito curto e aconteceu o que aconteceu).
Depois de várias horas duma pesquisa violenta e cansativa que me obrigou a um enorme esforço de concentração sob o ponto de vista da visão, pois as distâncias ao teclado, monitor e documentos de dois tipos não eram as mesmas e obrigavam a constantes focagens, vi-me na rua, atordoado, aéreo, com sintomas fortes de desorientação.Já era noite escura. O mais estranho disto tudo é que não tenho uma única palavra, escrita ou gravada, sobre este caso e tive que me valer da memória.
Embora a Marta tenha sido atropelada e sofrido um traumatismo craniano, afinal foi noutra dimensão que veio a acontecer, e com outra vítima, o acidente fatal que lhe estava destinado.
Quando saí do Projeto era já noite. Uma noite anormalmente cálida de fevereiro. Estava extenuado. Tinha em mãos um trabalho informático de verificação de erros que foram hipoteticamente imputados a duas codificadoras (o que veio mais tarde a confirmar-se; aliás, os erros justificavam-se, embora fossem em número que considerava exagerado, porque o tempo destinado às funcionárias para fazerem a codificação de milhares de dados era muito curto e aconteceu o que aconteceu).
Fui andando em frente. Ou melhor: liguei o "piloto automático" em direção ao Campo Pequeno. Caminhei como um autómato. Foram cinco minutos a andar até atingir a zona das paragens de autocarros.
Quando cheguei ao Campo Pequeno, fiquei indeciso em relação ao autocarro que devia apanhar. Tinha três hipóteses: o 1 e o 36; o 17B; o 47. Apático, deixei-me ficar olhando as extensas filas de pessoas. Era isso. À espera. Também eu estava à espera. Sem reagir. Talvez a criar a nova dimensão.
Mas quem era o construtor das imagens que passariam pouco depois pela minha vista aparentemente alucinada?
O subconsciente?
Alguém exterior...?
O certo é que a morte veio sem aviso. E o instrumento fatal foi o 21 da Carris. Vi-o, um pouco antes de acontecer o imprevisível. Vinha do lado do Saldanha, na mesma faixa em que ocorrera o acidente da Marta, e parou em frente aos semáforos. Deduzi que caíra o sinal vermelho. Esqueci-me do autocarro, voltando-me para uma fila que estava formada para o 47. Finalmente decidi que ia para casa naquela carreira. A fila parecia-me menos extensa. No entanto, não tive tempo de dar um passo em frente. Ouvi de súbito um grito aflitivo e, quase simultâneo, o ruído dum embate forte. Virei-me. O autocarro imobilizara-se e havia um corpo caído, à frente. Perto do corpo vi um saco de plástico de cor verde. Ironia, a cor. O verde significava esperança, mas não foi esse o caso.
Quando cheguei ao Campo Pequeno, fiquei indeciso em relação ao autocarro que devia apanhar. Tinha três hipóteses: o 1 e o 36; o 17B; o 47. Apático, deixei-me ficar olhando as extensas filas de pessoas. Era isso. À espera. Também eu estava à espera. Sem reagir. Talvez a criar a nova dimensão.
Mas quem era o construtor das imagens que passariam pouco depois pela minha vista aparentemente alucinada?
O subconsciente?
Alguém exterior...?
O certo é que a morte veio sem aviso. E o instrumento fatal foi o 21 da Carris. Vi-o, um pouco antes de acontecer o imprevisível. Vinha do lado do Saldanha, na mesma faixa em que ocorrera o acidente da Marta, e parou em frente aos semáforos. Deduzi que caíra o sinal vermelho. Esqueci-me do autocarro, voltando-me para uma fila que estava formada para o 47. Finalmente decidi que ia para casa naquela carreira. A fila parecia-me menos extensa. No entanto, não tive tempo de dar um passo em frente. Ouvi de súbito um grito aflitivo e, quase simultâneo, o ruído dum embate forte. Virei-me. O autocarro imobilizara-se e havia um corpo caído, à frente. Perto do corpo vi um saco de plástico de cor verde. Ironia, a cor. O verde significava esperança, mas não foi esse o caso.
O homem não se movia. Estava inconsciente ou talvez morto.
Virei-me para as pessoas das filas. Estranhamente, ninguém reagiu. E eu, também como elas, estava colado ao chão. O que mais me impressionava era o silêncio à minha volta. Saíram algumas pessoas do autocarro, incluindo o próprio condutor. Aproximaram-se do corpo inanimado, mas não se baixaram. Limitaram-se a olhar. Como eu. Não passávamos de espetadores.
Recordo-me de ter admitido a possibilidade de estar numa outra dimensão.Quanto tempo estive a assistir...?
Encaminhei-me para a paragem do 47 quando entravam as últimas pessoas. Consegui apanhar um lugar sentado. Achei estranho ninguém falar do acidente. Conversavam, animadamente, como se nada tivesse acontecido. Revoltei-me. Que pessoas eram aquelas? Certamente tinham gelo na alma. A sua indiferença era notória. Alguma coisa estava mal. Eu próprio reagira da pior maneira. Fui um mero observador à distância, mais de um filme do que da realidade que tive na frente. Ou então tudo foi fruto do cansaço e só eu vi aquelas imagens desagradáveis.
Quando cheguei a casa revi tudo o que acontecera e voltei a achar estranho. De facto, fora muito estranho o que tinha passado pelos meus olhos.
Mais estranho foi ainda o Correio da Manhã (o tal jornal das desgraças) do dia seguinte não trazer qualquer notícia do desastre.
Foi assim que vi o acidente. É certo que estava extremamente cansado e podia ter tido uma alucinação. Nunca saberei a verdade. Se o triângulo travou e a etiqueta branca transferiu a tragédia para outro sítio e para outra vítima. Se fui o criador inconsciente daquele desastre violento que pode não ter acontecido.
Falei recentemente com a Marta. Contou-me que nos dias a seguir ao acidente, quando teve alta, veio sempre de táxi para o Projeto. Estava ainda traumatizada e não conseguia atravessar sozinha a avenida. Só quando venceu o medo é que voltou a utilizar o autocarro.
Não tardou que ocorresse um acidente no cruzamento da avenida da República com a Elias Garcia. Uma ambulância e um Renault chocaram com grande aparato e o primeiro veículo voltou-se.
Já no edifício do Ministério, a Marta confidenciou-me que tinha assistido ao choque e conversara no momento com uma mulher que, por sua vez, tinha assistido ao acidente dela. Viu a Marta atravessar a avenida, ao mesmo tempo que o táxi se aproximava, na única fila onde o trânsito não estava congestionado. Levou as mãos à cabeça. Era inevitável acontecer o atropelamento.
«E gritou.» Comentei.
«Pois gritou. Como sabe, doutor?»
Não tardou que ocorresse um acidente no cruzamento da avenida da República com a Elias Garcia. Uma ambulância e um Renault chocaram com grande aparato e o primeiro veículo voltou-se.
Já no edifício do Ministério, a Marta confidenciou-me que tinha assistido ao choque e conversara no momento com uma mulher que, por sua vez, tinha assistido ao acidente dela. Viu a Marta atravessar a avenida, ao mesmo tempo que o táxi se aproximava, na única fila onde o trânsito não estava congestionado. Levou as mãos à cabeça. Era inevitável acontecer o atropelamento.
«E gritou.» Comentei.
«Pois gritou. Como sabe, doutor?»
«Adivinhei...»
Como no outro desastre. Lembrei-me dos momentos que se seguiram ao embate. Enquanto observava o corpo inerte e o silêncio era senhor absoluto, algures no meu cérebro ainda ecoava o grito aflitivo de uma testemunha do desastre.
«Se tivesse sido um autocarro...» Disse a Marta.
Curiosamente, uma frase sua.
Nunca poderei comprovar que existiu, noutro tempo e noutra dimensão, o acidente que estava para acontecer à Marta e que o triângulo, que entretanto formei com os três objetos achados e que tinham muito em comum, travou uma situação fatalmente escrita para acontecer. Sonho, não foi. As imagens que vi eram demasiado ricas para terem sido sonhadas. Aliás, nos sonhos, a permanência dessas imagens tende a esbater-se com o passar do tempo e neste caso nunca mais me esqueci das cenas estranhas que passaram pelos meus olhos naquela cálida noite de fevereiro, tão fora do tempo normal para a época como as ditas imagens que parecem ter acontecido noutro espaço material e temporal.
«Se tivesse sido um autocarro...» Disse a Marta.
Curiosamente, uma frase sua.
Nunca poderei comprovar que existiu, noutro tempo e noutra dimensão, o acidente que estava para acontecer à Marta e que o triângulo, que entretanto formei com os três objetos achados e que tinham muito em comum, travou uma situação fatalmente escrita para acontecer. Sonho, não foi. As imagens que vi eram demasiado ricas para terem sido sonhadas. Aliás, nos sonhos, a permanência dessas imagens tende a esbater-se com o passar do tempo e neste caso nunca mais me esqueci das cenas estranhas que passaram pelos meus olhos naquela cálida noite de fevereiro, tão fora do tempo normal para a época como as ditas imagens que parecem ter acontecido noutro espaço material e temporal.
A MARTA TEVE UM PESADELO
A Marta apresentou-se ao serviço. Vinha muito pálida e com ar cansado.«Sente-se ao pé de mim. Que se passa consigo?»
Contou-me um pesadelo que tivera. O cenário comparava-se ao que aconteceu na praça chinesa onde morreram muitos jovens por um ideal. Um grito de revolta abafado pela força bruta e acéfala da repressão.
Estava no interior de um edifício que não conseguiu identificar e donde tinha dificuldade em sair.
Quando conseguiu sair, viu a praça deserta e assustou-se. Do interior do edifício entretanto tinha assistido a cenas de grande violência com tanques e armas de raios laser. Lá fora procurava o filho. Temia pela sua sorte. No momento ia na rua uma única pessoa que aparentava ter quarenta anos. Dirigiu-se ao seu encontro e deu-lhe notícias do filho. Fora atingido nas pernas. Não havia hipótese de se salvar por causa das radiações. Ela própria também fora atingida com gravidade. Viu as pernas desaparecerem, lentamente.
Perguntei-lhe pelo marido.
«Não estava presente. A única preocupação era o meu filho.»
Pressenti que a Marta estava a passar por uma crise grave no casamento.
Quando conseguiu sair, viu a praça deserta e assustou-se. Do interior do edifício entretanto tinha assistido a cenas de grande violência com tanques e armas de raios laser. Lá fora procurava o filho. Temia pela sua sorte. No momento ia na rua uma única pessoa que aparentava ter quarenta anos. Dirigiu-se ao seu encontro e deu-lhe notícias do filho. Fora atingido nas pernas. Não havia hipótese de se salvar por causa das radiações. Ela própria também fora atingida com gravidade. Viu as pernas desaparecerem, lentamente.
Perguntei-lhe pelo marido.
«Não estava presente. A única preocupação era o meu filho.»
Pressenti que a Marta estava a passar por uma crise grave no casamento.
MISTÉRIO NO SEGUNDO ANDAR
A Sofia disse-me que estava na altura de levar os documentos de despesas e receitas para serem classificados pela doutora Selma.
«Perguntas lá em baixo qual é o gabinete dela. Tens tudo ordenado?»
«Sim. Tenho os documentos ordenados, cada um com um número.»
«Ótimo.»
Não foi difícil encontrar o gabinete. Bati levemente à porta e aguardei. Apareceu uma mulher mestiça, muito bem penteada, a espreitar. Exibiu um ar de interrogação. Mostrei-lhe de imediato os papéis que trazia, esticando o braço direito.
«Boa tarde. Sou do Projeto.»
«Ah sim. Já o conhecia de vista. Faz favor de entrar.»
«Obrigado.»
Não sei se foi uma corrente de ar ou outra coisa que quero afastar. O certo é que os documentos voaram todos da minha mão e ficámos os dois, sorridentes, de rabo para o ar a apanhar os ditos papéis que se tinham espalhado por todo o gabinete.
Ainda hoje estou para saber como foi. É que as folhas estavam bem seguras. Tinha a certeza.
Havia mais duas mulheres.
«Agora ficou tudo desordenado.»
«Não se preocupe. As folhas estão numeradas, não estão?»
«Pois estão.»
«Eu depois ponho-as na ordem. Mas entre. Eu sou a Selma. As minhas colaboradoras...» Virou-se para as duas mulheres que tentavam esconder o riso de gozo que deixaram escapar no momento da tragédia dos papéis voadores.
«A Conceição e a Rosa.»«Ótimo.»
Não foi difícil encontrar o gabinete. Bati levemente à porta e aguardei. Apareceu uma mulher mestiça, muito bem penteada, a espreitar. Exibiu um ar de interrogação. Mostrei-lhe de imediato os papéis que trazia, esticando o braço direito.
«Boa tarde. Sou do Projeto.»
«Ah sim. Já o conhecia de vista. Faz favor de entrar.»
«Obrigado.»
Não sei se foi uma corrente de ar ou outra coisa que quero afastar. O certo é que os documentos voaram todos da minha mão e ficámos os dois, sorridentes, de rabo para o ar a apanhar os ditos papéis que se tinham espalhado por todo o gabinete.
Ainda hoje estou para saber como foi. É que as folhas estavam bem seguras. Tinha a certeza.
Havia mais duas mulheres.
«Agora ficou tudo desordenado.»
«Não se preocupe. As folhas estão numeradas, não estão?»
«Pois estão.»
«Eu depois ponho-as na ordem. Mas entre. Eu sou a Selma. As minhas colaboradoras...» Virou-se para as duas mulheres que tentavam esconder o riso de gozo que deixaram escapar no momento da tragédia dos papéis voadores.
«Muito prazer. Doutora Selma...»
«Só Selma. Não quer que o trate por doutor Mário, pois não?»
«Sabe o meu nome!» sussurrei.
«Claro que não. Mas ainda estou a pensar como aconteceu aquilo.»
«Não se preocupe. Já é habitual.» Disse a mulher que se chamava Conceição.
«Habitual?»
«Ela quer dizer que acontecem coisas estranhas neste gabinete. Não ligue, Mário.»
Ai ligo ligo...
Senti-me como peixe na água.
«Que coisas, Selma?»
As duas mulheres olharam de soslaio uma para a outra. Não deixei escapar aquele momento.
«Acredita no paranormal?»
Sorri.
«Sim.»
Parecia que estávamos na mesma onda.
Seguiu-se uma conversa interessante que nada tinha a ver com a missão que me levara àquele gabinete e em que falei mais do que ouvi.
Fiquei a saber entre outras coisas que ela acreditava no fenómeno da reencarnação. Depois, o paranormal parecia acontecer à sua volta com muita frequência. Contou-me, por exemplo, que, uns dias antes da morte do pai, ouviu uma voz em sussurro dizer que ele tinha morrido.«Sabe o meu nome!» sussurrei.
«Claro que não. Mas ainda estou a pensar como aconteceu aquilo.»
«Não se preocupe. Já é habitual.» Disse a mulher que se chamava Conceição.
«Habitual?»
«Ela quer dizer que acontecem coisas estranhas neste gabinete. Não ligue, Mário.»
Ai ligo ligo...
Senti-me como peixe na água.
«Que coisas, Selma?»
As duas mulheres olharam de soslaio uma para a outra. Não deixei escapar aquele momento.
«Acredita no paranormal?»
Sorri.
«Sim.»
Parecia que estávamos na mesma onda.
Seguiu-se uma conversa interessante que nada tinha a ver com a missão que me levara àquele gabinete e em que falei mais do que ouvi.
Sem saber porquê, concentrei-me num vaso que tinha uma violeta com flores azuladas. Ela seguiu o meu olhar.
«É bonita, não é?»
«Pois é. As suas flores têm um tom de azul fora do comum. Só que a violeta não deve ser exposta ao sol. Sabia, Selma?»
«Há problema?» perguntou.
«E grande. Muito provavelmente já deve ter as folhas queimadas.»
«Não é possível!» meteu-se a Rosa. «Ainda ontem estive a regar a terra e a violeta tinha as folhas muito verdes.»
«Se fosse a si ia ver ao perto.»
«Vai lá, Rosa.» Disse a Selma.
Já ia a caminho do parapeito interior da janela quando recebeu a ordem.
«Ah!»
Sempre tinha razão. As folhas viradas para fora, mais expostas aos raios solares, estavam todas queimadas.
Olharam as três para mim, estupefactas.
«Como sabia...?» perguntou a Selma.
«Também estou habituado a que aconteçam coisas estranhas.»
Um empate técnico entre as folhas que voaram misteriosamente e as outras folhas que se queimaram por exposição aos raios solares...
Alguns dias depois passei por lá outra vez.
«Vou ao segundo andar.»
«Vê se não ficas lá toda a tarde.» Gozou a Eduarda. «Depois conta-nos.»
«Isso queriam vocês...»
Ela não estava.
Fiquei a conversar com as colegas e uma delas contou-me que, por vezes, acontecia que certos objetos se moviam naquela sala sem que alguém interferisse com eles. E apontando para a secretária da Selma, afirmou:
«Há dias aquilo não passava de estremecer...»
«O furador?»
«Sim.»
«E o que disse a doutora Selma?»
«Riu-se...»
Voltaria ao gabinete por duas ou três vezes, mas não aconteceu mais nada de anormal. Quanto às nossas conversas estas continuaram "interessantes e esclarecedoras".
«Pois é. As suas flores têm um tom de azul fora do comum. Só que a violeta não deve ser exposta ao sol. Sabia, Selma?»
«Há problema?» perguntou.
«E grande. Muito provavelmente já deve ter as folhas queimadas.»
«Não é possível!» meteu-se a Rosa. «Ainda ontem estive a regar a terra e a violeta tinha as folhas muito verdes.»
«Se fosse a si ia ver ao perto.»
«Vai lá, Rosa.» Disse a Selma.
Já ia a caminho do parapeito interior da janela quando recebeu a ordem.
«Ah!»
Sempre tinha razão. As folhas viradas para fora, mais expostas aos raios solares, estavam todas queimadas.
Olharam as três para mim, estupefactas.
«Como sabia...?» perguntou a Selma.
«Também estou habituado a que aconteçam coisas estranhas.»
Um empate técnico entre as folhas que voaram misteriosamente e as outras folhas que se queimaram por exposição aos raios solares...
Alguns dias depois passei por lá outra vez.
«Vou ao segundo andar.»
«Vê se não ficas lá toda a tarde.» Gozou a Eduarda. «Depois conta-nos.»
«Isso queriam vocês...»
Ela não estava.
Fiquei a conversar com as colegas e uma delas contou-me que, por vezes, acontecia que certos objetos se moviam naquela sala sem que alguém interferisse com eles. E apontando para a secretária da Selma, afirmou:
«Há dias aquilo não passava de estremecer...»
«O furador?»
«Sim.»
«E o que disse a doutora Selma?»
«Riu-se...»
Voltaria ao gabinete por duas ou três vezes, mas não aconteceu mais nada de anormal. Quanto às nossas conversas estas continuaram "interessantes e esclarecedoras".
DEIXOU UM RASTO DE AZUL
Dias mais tarde fomos almoçar ao Clemente, um restaurante nas proximidades do local de trabalho. Eu, a Marta e outra colega.A Marta estava vestida de azul forte. Havia nela algo de novo. Achei-a ainda mais atraente, mais provocante do que nunca. O vestido, muito cingido ao peito generoso, moldava-o de uma forma que me fascinava, pois que este parecia transbordar. Era uma mulher vistosa, muito capaz de pôr à roda a cabeça de um homem. Imprevisível nas reações com os homens, confessou com simplicidade que o seu gingar nos corredores desorientava os homens, principalmente um cinquentão, forte, careca, que não sabia onde colocar-se quando se cruzava com ela. Gozava com isso e gingava ainda mais o corpo. Comigo a sensação era outra. Não precisava de encontrá-la nos corredores, conforme já disse. Tinha-a na minha presença em cada momento que quisesse. Quando entrava na minha sala. Quando ia ter com ela por um motivo profissional, quando ela vinha ter comigo pelas mesmas razões. Fora sempre assim e só agora dava conta como gingava o corpo com arte.Comecei a interessar-me verdadeiramente pela Marta um dia em que saímos ao mesmo tempo à hora do almoço. Disse-me que ia com um amigo muito especial. De facto, o amigo era mesmo muito especial. O aspeto descuidado do seu visual não se enquadrava com o da Marta, uma mulher que vestia bem e sabia quanto valiam as coxas e tudo o mais.
Vi-os afastarem-se. Segui-os à distância. Perto da rua de Entrecampos entraram num restaurante mexicano, distante de cerca de quinhentos metros do edifício onde funcionava o Projeto. Não sei porquê, mas não me agradou. O homem tinha mesmo um aspeto esquisito. Bem queria entrar no restaurante e assistir ao almoço feito em intimidade. Não era mosca e tive que ficar pelo exterior, hesitando entre esperar ou ir à procura do meu almoço.
Encolhi os ombros. Estava a comportar-me de uma forma estúpida. Ainda por cima ela era casada e tinha um filho.
Ganha juízo, Mário!
Já estava no meu posto de trabalho quando ela regressou do almoço. Vinha eufórica, elétrica. Quase que senti o choque da sua presença.
«O almoço foi bom, Marta?»
«Gosto muito da comida mexicana, doutor. Mas bebi mais do que a conta.»
«De facto está alegre.»
Reagiu negativamente. De repente ficou triste.
«Disse alguma coisa desagradável?»
Limpou uma lágrima furtiva.
«O doutor é sempre uma pessoa correta.»
«Procuro ser, Marta. Mas às vezes saio dos carretos.»
«Porque nos seguiu?»
«Eu?!...»
«Vi-o do interior do restaurante.»Vi-os afastarem-se. Segui-os à distância. Perto da rua de Entrecampos entraram num restaurante mexicano, distante de cerca de quinhentos metros do edifício onde funcionava o Projeto. Não sei porquê, mas não me agradou. O homem tinha mesmo um aspeto esquisito. Bem queria entrar no restaurante e assistir ao almoço feito em intimidade. Não era mosca e tive que ficar pelo exterior, hesitando entre esperar ou ir à procura do meu almoço.
Encolhi os ombros. Estava a comportar-me de uma forma estúpida. Ainda por cima ela era casada e tinha um filho.
Ganha juízo, Mário!
Já estava no meu posto de trabalho quando ela regressou do almoço. Vinha eufórica, elétrica. Quase que senti o choque da sua presença.
«O almoço foi bom, Marta?»
«Gosto muito da comida mexicana, doutor. Mas bebi mais do que a conta.»
«De facto está alegre.»
Reagiu negativamente. De repente ficou triste.
«Disse alguma coisa desagradável?»
Limpou uma lágrima furtiva.
«O doutor é sempre uma pessoa correta.»
«Procuro ser, Marta. Mas às vezes saio dos carretos.»
«Porque nos seguiu?»
«Eu?!...»
Como tinha sido tão imprevidente?
«Não sei. Foi um impulso.»
«Há sempre um motivo.»
«Achei que não era mulher para um indivíduo daqueles...»
Lançou-me um sorriso enigmático.
«O doutor não conhece o barco onde navego.»
«Talvez, Marta. Talvez. Mas agora tenho que acabar um trabalho para entregar amanhã à doutora Isabel. Quando precisar, fale comigo. Estou sempre ao seu dispor.»
«Obrigada, doutor. Eu sei. O senhor é uma pessoa muito especial.»
Nos dias seguintes achei-a ainda mais provocante.
Não tinha ainda avançado, porquê?
Talvez porque estava muito ocupado com os meandros estranhos do Projeto. Ou então porque tudo tinha o seu tempo.
O cálice transbordou por causa de um conto que escrevi. Achei por bem oferecer uma cópia às minhas colegas licenciadas. Sobrou-me uma folha e passava nesse momento em frente à secretária da Marta. Tinha as pernas cruzadas e talvez por isso parei. Ela sorriu, descruzou as pernas e mostrou-me a cor das cuecas. Vermelhas.
Com os diabos! Ela também merecia. E que as minhas colegas fossem dar uma curva se achassem mal.
«É para si.»
Naquele momento só pensava na cor das cuecas.
«De que se trata, doutor?»
«Não sei se vai gostar. É um conto paranormal.»
«Obrigada. Mas de que trata?»
«Uma história que relata coisas que os nossos cinco sentidos não alcançam.»
«É de terror?»
«Não. Mas é melhor ler de dia...»
Voltou a sorrir. Desta vez o sorriso não tinha nada de provocante. Poucos minutos depois apareceu-me na frente com uma folha datilografada.
«Alguma conta, Marta?»
Eu tratava da componente financeira.
«Não, doutor. É que também escrevo. Queria que me desse a sua opinião...»
E estendeu-me a folha, envergonhada.
Achei a redação muito confusa, com as ideias desordenadas. Basicamente falava da revolta contra todos os indiferentes à violência que se passava no mundo.
«Que acha, doutor?»
Que achava?
«Muito chocante, o tema. Continue a praticar.»
«Já vi pela sua cara que não gostou.»
«Claro que gostei. É... é muito original!»
«Obrigada.»
«Marta...?»
«Sim, doutor...?»
«Tem amanhã algum compromisso à hora do almoço?»
Hesitou.
«Então...?»
«E as suas colegas não se vão zangar? Não quero ser o pomo da discórdia.»
«Nada tenho a ver com as minhas colegas. Elas têm a sua vida e eu a minha.»
«Sendo assim, está bem. Onde almoçamos?»
«No Clemente. Depois da uma hora eu saio. Passo por si e pisco-lhe o olho.»
«Doutor!» exclamou a Marta, atrapalhada.
«É só um sinal, descanse. Depois vai ter comigo. Atravesse o snack porque estou na parte do restaurante.»
«E elas no snack... Vai ser bonito, doutor!»
Sorri.
«E o meu ar de preocupado, Marta.»
No dia seguinte, depois da uma, pisquei o olho à Marta, atravessei o corredor sorrateiramente e encaminhei-me para os elevadores. Pouco depois estava na rua. Sempre seguindo o passeio, cortei à esquerda e cem metros adiante, parei. Tinha o restaurante do Clemente na minha frente. Enchi os pulmões de ar e expirei com força.
Que se lixe. Vamos a isto...
A Milu estava sentada numa das mesas logo à entrada do snack e fez-me um sinal para lhe fazer companhia. Bem se esforçava com o seu sorriso número um da simpatia.
Fingi não compreender e continuei em frente. Já no restaurante, procurei uma mesa num local recatado. Aproximou-se logo um empregado.
«Estou à espera de uma pessoa.» Despachei-o.
A Marta apareceu com o seu vestido azul provocante, deixando adivinhar o segredo que guardava. Levantei-me.
«Já não nos víamos há muito tempo, Marta.»
«É verdade. Passaram-se...»
«... dez longos minutos.»
A mesa era pequena e tinha o tampo quadrado.
«Sabe o que me apetecia?»
«Diga, doutor. Prometo que guardo segredo.»
«Uma coisa que não faço há algum tempo.»
«Que suspense!»«Há sempre um motivo.»
«Achei que não era mulher para um indivíduo daqueles...»
Lançou-me um sorriso enigmático.
«O doutor não conhece o barco onde navego.»
«Talvez, Marta. Talvez. Mas agora tenho que acabar um trabalho para entregar amanhã à doutora Isabel. Quando precisar, fale comigo. Estou sempre ao seu dispor.»
«Obrigada, doutor. Eu sei. O senhor é uma pessoa muito especial.»
Nos dias seguintes achei-a ainda mais provocante.
Não tinha ainda avançado, porquê?
Talvez porque estava muito ocupado com os meandros estranhos do Projeto. Ou então porque tudo tinha o seu tempo.
O cálice transbordou por causa de um conto que escrevi. Achei por bem oferecer uma cópia às minhas colegas licenciadas. Sobrou-me uma folha e passava nesse momento em frente à secretária da Marta. Tinha as pernas cruzadas e talvez por isso parei. Ela sorriu, descruzou as pernas e mostrou-me a cor das cuecas. Vermelhas.
Com os diabos! Ela também merecia. E que as minhas colegas fossem dar uma curva se achassem mal.
«É para si.»
Naquele momento só pensava na cor das cuecas.
«De que se trata, doutor?»
«Não sei se vai gostar. É um conto paranormal.»
«Obrigada. Mas de que trata?»
«Uma história que relata coisas que os nossos cinco sentidos não alcançam.»
«É de terror?»
«Não. Mas é melhor ler de dia...»
Voltou a sorrir. Desta vez o sorriso não tinha nada de provocante. Poucos minutos depois apareceu-me na frente com uma folha datilografada.
«Alguma conta, Marta?»
Eu tratava da componente financeira.
«Não, doutor. É que também escrevo. Queria que me desse a sua opinião...»
E estendeu-me a folha, envergonhada.
Achei a redação muito confusa, com as ideias desordenadas. Basicamente falava da revolta contra todos os indiferentes à violência que se passava no mundo.
«Que acha, doutor?»
Que achava?
«Muito chocante, o tema. Continue a praticar.»
«Já vi pela sua cara que não gostou.»
«Claro que gostei. É... é muito original!»
«Obrigada.»
«Marta...?»
«Sim, doutor...?»
«Tem amanhã algum compromisso à hora do almoço?»
Hesitou.
«Então...?»
«E as suas colegas não se vão zangar? Não quero ser o pomo da discórdia.»
«Nada tenho a ver com as minhas colegas. Elas têm a sua vida e eu a minha.»
«Sendo assim, está bem. Onde almoçamos?»
«No Clemente. Depois da uma hora eu saio. Passo por si e pisco-lhe o olho.»
«Doutor!» exclamou a Marta, atrapalhada.
«É só um sinal, descanse. Depois vai ter comigo. Atravesse o snack porque estou na parte do restaurante.»
«E elas no snack... Vai ser bonito, doutor!»
Sorri.
«E o meu ar de preocupado, Marta.»
No dia seguinte, depois da uma, pisquei o olho à Marta, atravessei o corredor sorrateiramente e encaminhei-me para os elevadores. Pouco depois estava na rua. Sempre seguindo o passeio, cortei à esquerda e cem metros adiante, parei. Tinha o restaurante do Clemente na minha frente. Enchi os pulmões de ar e expirei com força.
Que se lixe. Vamos a isto...
A Milu estava sentada numa das mesas logo à entrada do snack e fez-me um sinal para lhe fazer companhia. Bem se esforçava com o seu sorriso número um da simpatia.
Fingi não compreender e continuei em frente. Já no restaurante, procurei uma mesa num local recatado. Aproximou-se logo um empregado.
«Estou à espera de uma pessoa.» Despachei-o.
A Marta apareceu com o seu vestido azul provocante, deixando adivinhar o segredo que guardava. Levantei-me.
«Já não nos víamos há muito tempo, Marta.»
«É verdade. Passaram-se...»
«... dez longos minutos.»
A mesa era pequena e tinha o tampo quadrado.
«Sabe o que me apetecia?»
«Diga, doutor. Prometo que guardo segredo.»
«Uma coisa que não faço há algum tempo.»
«Eu digo já.»
«Vá... não seja mau!»
«É muito simples. Fazer gazeta ao Projeto depois do almoço.»
Senti um ligeiro contacto dos seus joelhos nos meus.
«Nunca se sabe...»
Dois dias depois foi de férias e deixou um rasto de azul...
A noite da supernova
Vieste vestida de azul despertar a madrugada da supernova em letargia e o teu corpo sensual sussurrou promessas eróticas de paixões incontroladas.
Sonhei que era jovem e não tinha amarras. Os teus lábios rubros prometiam impossíveis e mergulhar nas colinas dos teus seios era reabrir o momento do orgasmo ontem já perdido.Rompeste entre relâmpagos antes da madrugada. Vieste vestida de azul, temperar a tempestade interior que era o meu determinismo crepuscular.
Então, aconteceu.Tivemos o mesmo sonho naquela noite escura, rasgada por relâmpagos pavorosos.
Corrias para mim, fugindo da tempestade. Corrias com teu vestido azul meio rasgado, desesperada; e eu corria para ti, acolhendo-te com a força possível do meu abraço crepuscular.
Era o teu refúgio, pensavas. A última hipótese de salvação. O manto escuro que te estendia para esconder-te dos muitos predadores que te perseguiam, perto. Era o teu refúgio, acreditavas.
Mas a cor do teu vestido traiu-te e brilhaste só para mim, tal supernova, com a luz de mil sóis, feliz de agonizar.
Nada restou de ti senão um buraco negro que me tragou e aos outros predadores.
VOLTANDO UM ANO ATRÁS...
«Boa tarde, senhor doutor.»
Esboçara um leve cumprimento. Conhecia-a de algum lado. Talvez do próprio edifício onde funcionava o Projeto. Não era de admirar. Todos os dias estava a ver novas caras.
Mas quem era ela?
Esqueci aquele momento.
Descobri-a perto do fim do ano. Era funcionária indiretamente ligada ao nosso grupo de trabalho. Trabalhava como secretária quatro andares acima de nós e chamava-se Madalena. Ouvira as minhas colegas falarem dela com frequência, sem ligar o nome à pessoa.
No fim da primavera, ainda sem a conhecer pessoalmente, tive oportunidade de prever uma coisa a seu respeito. Fui almoçar ao Clemente com três colegas. Duas delas eram a Marta e a Milu. Não me lembro da terceira. Segundo a Marta, a sua amiga Madalena também vinha almoçar nesse dia connosco.
«Ela não vem.» Disse eu.
«Vem! Foi só ao cabeleireiro...»
Contrariei a afirmação da Marta.
«Não vem porque tem vergonha de mim.»
«Vergonha? Não brinque, doutor!»
«Porquê?»
Achou estranho o meu comentário.
«A Madalena ter vergonha? Não a conhece, doutor...»
«Pois não. Nem vou conhecê-la hoje.»
O certo é que não apareceu. Já no fim do almoço, comentei:
«Afinal quem tinha razão?»
O tempo passou. Comecei a vê-la com certa frequência no andar onde trabalhava, sempre conversando com a Marta e lançando olhares furtivos na minha direção. Era uma mulher discreta, mas interessante. Muito correta.
Um dia eu e a Marta combinámos em segredo almoçar juntos. Quase à hora do almoço, apareceu a sua amiga e os três estivemos a falar um pouco. Com uma certa cumplicidade telepática, não lhe dissemos nada.
Saiu ao fim de alguns minutos.
Dei comigo a pensar. Bem no fundo, ela começava a fascinar-me. Não tinha a beleza e o erotismo explosivo da Marta, mas havia nela algo de misterioso que queria desvendar.
Não me admirei quando propus à Marta:
«E se convidássemos a Madalena para almoçar connosco?»
«Telefone o doutor...»
Que fui eu dizer?
A minha companheira estava verdadeiramente contrariada.
«Então telefono.»
Logo a seguir ouvi a sua voz:
«Sim?»
«Queria dizer-lhe uma coisa...»
«Ah... É para irmos almoçar?»
Fiquei vidrado. Adivinhou...
Foi assim que surgiu o tempo sem tempo. De repente. Sem avisar. Mal a conhecia e entrava com uma força inusitada na minha vida!
O restaurante enchia-se de clientes normalmente por volta da uma hora. Estávamos de pé, à espera de mesa. Nesse momento eu falava de qualquer coisa parecida com “amor à primeira vista”, “não há amor como o primeiro”, ou coisa parecida, e elas ouviam, sem comentar. O tema era banal e até duvidava que me ouvissem em virtude de haver muito barulho na sala. Optei por me calar.
Enquanto conversávamos, de facto senti o contacto do seu joelho direito no meu joelho esquerdo. Olhei para ela, muito sério e corres
Via uns olhos meigos e tristes que conhecia de há muito. E também há muito que eles andavam perdidos no azul constelado do céu. Deus não quis que as nossas vidas se juntassem.
Olhámo-nos longamente e travámos um diálogo incrível (que não consigo descrever) que deve ter baralhado a pobre da Marta.
«Já sei qual é o meu papel!»
«Qual é o seu papel, Madalena?»
Sorriu, não deixando de me olhar frontalmente.
«Não posso dizer.»
«E porque aconteceu?»
«Aconteceu, o quê?»
Arrisquei:
«A Madalena criticou uma frase minha quando estávamos à espera de mesa. "Não há amor como o primeiro...". Recorda-se?»
Quanto à Marta, não revelou a conversa que tivemos e da qual tinha sido testemunha privilegiada. Nem mais tarde, quando falei a sós com ela sobre esse dia do almoço que tanto me marcara. Insisti muito para que me contasse o que tinha ouvido. Escusou-se sempre, dizendo que não se lembrava.
É importante registar ainda a ocorrência de outro fenómeno. Todo o diálogo aconteceu sob um capacete. Não sei explicar melhor. Sentia a cabeça muito pesada, embora estivesse bem. E não podia culpar o álcool por ter saído fora do controlo. Pouco ou nada bebi. Se não estou em erro, uma cerveja preta.
«Isto não interessa!»
Nos dias que se seguiram não voltou a falou na pessoa entendida dos casos do paranormal e acabámos por ir a uma igreja cristã.
O abraço que demos e os beijos trocados dentro do contexto religioso em que nos inseríamos, não foram só reações de natureza puramente espiritual. As horas passaram a correr. Nem sequer senti dores nas pernas. Sintomático e confuso, ao mesmo tempo. Um sonho a acontecer, já que a realidade foi outra. Tudo não passou de um embuste.
«Não posso passar sem você!»
Hoje voltei à igreja e vi outras coisas que me abriram os olhos para a realidade. Saí chocado. Não vi Cristo. Daquela maneira absurda não podia ser o meu Cristo. Os cânticos, que me encantaram, desta vez nada me disseram. Nem as palavras exaltadas do pastor me convenceram, um homem que disse ser boa a riqueza material, quando tanta gente neste mundo nem sequer conseguia uma côdea de pão para mitigar a fome.
«Eram quatro e meia...»
«Estava de vermelho?»
Lembro-me de ter visto uma mulher vestida de vermelho numa das cadeiras da frente. Na altura pareceu-me ser a Madalena. Os cabelos eram curtos e tinham uma cor castanho avermelhada.
«Desta vez não gostei. Estive de pé mais que uma hora. De vez em quando vinham ter comigo e convidavam-me para sentar. Recusei sempre. Queria observar todos os detalhes, não fosse algo importante escapar.»
«Também eu não. Na próxima vez vai ser diferente.»
Que queria dizer com aquelas palavras?
O almoço ainda não foi hoje. Telefonei-lhe à uma hora da tarde e tive uma desilusão. Disse-me que não podia. Depois ligava.
Acabei um trabalho que estava a fazer no computador e saí para almoçar. Movido por um pressentimento estranho, resolvi ir almoçar ao Clemente. Passava já das duas quando contornei o edifício do Ministério para o lado da Elias Garcia. À minha frente ia uma mulher que coxeava. Tinha um defeito numa perna. Era a Micá, uma amiga dela que também trabalhava no edifício do Ministério. Abrandei o passo. Nem queria acreditar. O pressentimento batera certo, pensei.
Parou junto ao restaurante e espreitou pelos vidros para dentro. Achei curioso. Espreitando pelos vidros. Sintomático.
Quem procurava lá dentro?
Impossível ser eu. Deitava cartas mas não tinha magia suficiente para adivinhar que estava atrás dela, a poucos metros de distância.
Entrei logo atrás dela. No snack estavam duas colegas minhas. Pouco me importei. Ignorei a sua presença e fui para a zona do restaurante. Pior ainda quando vi, sentadas numa mesa a minha chefe, a Eduarda, a Edite e a Sofia. Cumprimentei-as à distância. A Sofia fez-me um sinal. Agradeci e declinei o convite. Vi noutra mesa a Micá. Sozinha.
Dei meia volta e retirei-me. Sentia-me a mais.
Tive a confirmação do tal pressentimento estranho ao cruzar-me no corredor com a Madalena. Sabia. Adivinhara. Fez-me um sorriso envolvente, como se fosse a coisa mais natural deste mundo encontrar-se ali depois de ter adiado o almoço. E mais ainda: teve o descaramento de convidar-me para almoçar com ela. Tinha combinado com a Micá, disse, a título de desculpa.
Então e o nosso almoço...?
Dei uma desculpa deveras deselegante. Fiquei danado por ter aquela reação de mau perder, embora tivesse carradas de razão. É que assim perdia toda a razão e não queria cometer esse erro.
«Depois falamos...» Disse ela.
Afastei-me sem uma palavra. Sabia que não iríamos falar. promessas suas levava-as o vento, Fiquei triste. Fui almoçar a outro restaurante.
Afinal, que quer de mim a Madalena?
Afastou-me da Marta para se aproximar, mas para quê?
Esboçara um leve cumprimento. Conhecia-a de algum lado. Talvez do próprio edifício onde funcionava o Projeto. Não era de admirar. Todos os dias estava a ver novas caras.
Mas quem era ela?
Esqueci aquele momento.
Descobri-a perto do fim do ano. Era funcionária indiretamente ligada ao nosso grupo de trabalho. Trabalhava como secretária quatro andares acima de nós e chamava-se Madalena. Ouvira as minhas colegas falarem dela com frequência, sem ligar o nome à pessoa.
No fim da primavera, ainda sem a conhecer pessoalmente, tive oportunidade de prever uma coisa a seu respeito. Fui almoçar ao Clemente com três colegas. Duas delas eram a Marta e a Milu. Não me lembro da terceira. Segundo a Marta, a sua amiga Madalena também vinha almoçar nesse dia connosco.
«Ela não vem.» Disse eu.
«Vem! Foi só ao cabeleireiro...»
Contrariei a afirmação da Marta.
«Não vem porque tem vergonha de mim.»
«Vergonha? Não brinque, doutor!»
«Porquê?»
Achou estranho o meu comentário.
«A Madalena ter vergonha? Não a conhece, doutor...»
«Pois não. Nem vou conhecê-la hoje.»
O certo é que não apareceu. Já no fim do almoço, comentei:
«Afinal quem tinha razão?»
O tempo passou. Comecei a vê-la com certa frequência no andar onde trabalhava, sempre conversando com a Marta e lançando olhares furtivos na minha direção. Era uma mulher discreta, mas interessante. Muito correta.
Um dia eu e a Marta combinámos em segredo almoçar juntos. Quase à hora do almoço, apareceu a sua amiga e os três estivemos a falar um pouco. Com uma certa cumplicidade telepática, não lhe dissemos nada.
Saiu ao fim de alguns minutos.
Dei comigo a pensar. Bem no fundo, ela começava a fascinar-me. Não tinha a beleza e o erotismo explosivo da Marta, mas havia nela algo de misterioso que queria desvendar.
Não me admirei quando propus à Marta:
«E se convidássemos a Madalena para almoçar connosco?»
«Telefone o doutor...»
Que fui eu dizer?
A minha companheira estava verdadeiramente contrariada.
«Então telefono.»
Logo a seguir ouvi a sua voz:
«Sim?»
«Queria dizer-lhe uma coisa...»
«Ah... É para irmos almoçar?»
Fiquei vidrado. Adivinhou...
Foi assim que surgiu o tempo sem tempo. De repente. Sem avisar. Mal a conhecia e entrava com uma força inusitada na minha vida!
NOUTRO ESPAÇO E NOUTRO TEMPO?
Contrariada, a Marta teve que suportar a presença da amiga. Não se podia queixar porque foi ela quem me apresentou a Madalena.O restaurante enchia-se de clientes normalmente por volta da uma hora. Estávamos de pé, à espera de mesa. Nesse momento eu falava de qualquer coisa parecida com “amor à primeira vista”, “não há amor como o primeiro”, ou coisa parecida, e elas ouviam, sem comentar. O tema era banal e até duvidava que me ouvissem em virtude de haver muito barulho na sala. Optei por me calar.
Vagou uma mesa. Era pequena e tive uma hesitação ligeira. Mas elas avançaram e eu segui-as.
Sentámo-nos. A Marta à minha esquerda e a amiga em frente, virada para a porta de saída. Digamos que estava a norte, ela a sul e a Marta a nascente. As dimensões reduzidas da mesa deixavam antever um jogo de pernas passado às ocultas da Madalena.Enquanto conversávamos, de facto senti o contacto do seu joelho direito no meu joelho esquerdo. Olhei para ela, muito sério e corres
«Doutor, tenha maneiras!» pareceu dizer, ao mesmo tempo que me lançou um sorriso provocante que me perturbou.
«Já escolheu, Marta?»
Começámos a ver a lista juntos e meti o joelho entre as coxas dela.
Ela segurava na lista e eu descia o braço esquerdo até a mão desaparecer debaixo da toalha, continuando sempre a avançar, a tentar descobrir o tesouro escondido. O caminho estava aberto. Não havia perigo iminente.
Galo! Foi então que a Madalena começou a rir-se duma forma descontrolada. Olhei para a Marta, sem retirar a mão e a perna. Encolheu os ombros. Parecia desconhecer também o motivo.
O seu riso soava, estranhamente, a raiva. Talvez fosse de despeito. Riso sarcástico, de quem não acreditava em algo. Riso incontrolado, mas discreto.
«Não há amor como o primeiro!»
Então era isso. Referia-se ao meu comentário. Contudo, era outra a interpretação. Parecia vir de longe. E, se vinha de longe, parecia um absurdo. Repito: um absurdo!
Retirei a mão do local do crime.
Uma coisa era certa: perdeu o controlo e extravasou toda uma raiva que ela própria não sentia. De vez em quando parava de rir e pedia desculpa. Depois continuava a rir.
A rir, mas de quê?
Ficou muito séria e disse, acenando com a cabeça, que compreendia, finalmente, qual era o seu papel.
E qual era?
Adeus coxas saborosas da Marta. Debaixo da mesa tudo voltava à normalidade. Por cima da mesa o mistério adensava-se. Depois do momento do riso aconteceu um fenómeno nos seus olhos. Senti modificar-se a expressão do olhar. Foi uma mudança brusca. Radical. Já não eram os seus olhos. Tinha a certeza absoluta. Eram outros olhos. E eu conhecia-os.
«Estranho...» Pensei, admirado.«Já escolheu, Marta?»
Começámos a ver a lista juntos e meti o joelho entre as coxas dela.
Ela segurava na lista e eu descia o braço esquerdo até a mão desaparecer debaixo da toalha, continuando sempre a avançar, a tentar descobrir o tesouro escondido. O caminho estava aberto. Não havia perigo iminente.
Galo! Foi então que a Madalena começou a rir-se duma forma descontrolada. Olhei para a Marta, sem retirar a mão e a perna. Encolheu os ombros. Parecia desconhecer também o motivo.
O seu riso soava, estranhamente, a raiva. Talvez fosse de despeito. Riso sarcástico, de quem não acreditava em algo. Riso incontrolado, mas discreto.
«Não há amor como o primeiro!»
Então era isso. Referia-se ao meu comentário. Contudo, era outra a interpretação. Parecia vir de longe. E, se vinha de longe, parecia um absurdo. Repito: um absurdo!
Retirei a mão do local do crime.
Uma coisa era certa: perdeu o controlo e extravasou toda uma raiva que ela própria não sentia. De vez em quando parava de rir e pedia desculpa. Depois continuava a rir.
A rir, mas de quê?
Ficou muito séria e disse, acenando com a cabeça, que compreendia, finalmente, qual era o seu papel.
E qual era?
Adeus coxas saborosas da Marta. Debaixo da mesa tudo voltava à normalidade. Por cima da mesa o mistério adensava-se. Depois do momento do riso aconteceu um fenómeno nos seus olhos. Senti modificar-se a expressão do olhar. Foi uma mudança brusca. Radical. Já não eram os seus olhos. Tinha a certeza absoluta. Eram outros olhos. E eu conhecia-os.
Via uns olhos meigos e tristes que conhecia de há muito. E também há muito que eles andavam perdidos no azul constelado do céu. Deus não quis que as nossas vidas se juntassem.
Olhámo-nos longamente e travámos um diálogo incrível (que não consigo descrever) que deve ter baralhado a pobre da Marta.
Foram só uns segundos. Ou uma eternidade. Até que os seus olhos voltaram ao normal, mas a conversa prolongou-se, sempre dinâmica, aparentemente apaixonada, e com a Marta à margem, bem à margem de nós. Como já disse, não me lembro do que dissemos. Mas sabia de quem eram os olhos meigos e tristes que olharam, enlevados, para os meus. Não tinha dúvidas.
Mas como era possível...?
Assim ficámos, longamente, numa conversa apaixonada e a dois, esquecidos da nossa companheira. Perfeitamente em sintonia. Sei que estava ali materialmente, mas acho que “fomos transportados para um outro espaço e um outro tempo”.
«Qual é o meu papel?» perguntou a Marta.
«Serves de corrente!» respondemos ao mesmo tempo, continuando a sorrir. Aliás, a nossa conversa foi feita entre sorrisos e de olhos nos olhos. Sempre de olhos nos olhos. Como se o diálogo viesse, em grande parte, deles.
Parece que a Marta não gostou da resposta que demos. Em boa verdade não gostou de muita coisa e a partir desse dia tudo passou a ser diferente entre nós.
Quando lhe perguntei o que se tinha passado, afirmou:Mas como era possível...?
Assim ficámos, longamente, numa conversa apaixonada e a dois, esquecidos da nossa companheira. Perfeitamente em sintonia. Sei que estava ali materialmente, mas acho que “fomos transportados para um outro espaço e um outro tempo”.
«Qual é o meu papel?» perguntou a Marta.
«Serves de corrente!» respondemos ao mesmo tempo, continuando a sorrir. Aliás, a nossa conversa foi feita entre sorrisos e de olhos nos olhos. Sempre de olhos nos olhos. Como se o diálogo viesse, em grande parte, deles.
Parece que a Marta não gostou da resposta que demos. Em boa verdade não gostou de muita coisa e a partir desse dia tudo passou a ser diferente entre nós.
«Já sei qual é o meu papel!»
«Qual é o seu papel, Madalena?»
Sorriu, não deixando de me olhar frontalmente.
«Não posso dizer.»
«E porque aconteceu?»
«Aconteceu, o quê?»
Arrisquei:
«A Madalena criticou uma frase minha quando estávamos à espera de mesa. "Não há amor como o primeiro...". Recorda-se?»
«Não.»
Sabia qual era o seu papel, mas não se recordava! Mais uma vez, o absurdo…Quanto à Marta, não revelou a conversa que tivemos e da qual tinha sido testemunha privilegiada. Nem mais tarde, quando falei a sós com ela sobre esse dia do almoço que tanto me marcara. Insisti muito para que me contasse o que tinha ouvido. Escusou-se sempre, dizendo que não se lembrava.
É importante registar ainda a ocorrência de outro fenómeno. Todo o diálogo aconteceu sob um capacete. Não sei explicar melhor. Sentia a cabeça muito pesada, embora estivesse bem. E não podia culpar o álcool por ter saído fora do controlo. Pouco ou nada bebi. Se não estou em erro, uma cerveja preta.
Uns dias mais tarde voltámos a almoçar no Clemente. Os três formávamos um triângulo, como naquele incrível dia do capacete. Desta vez não houve contacto de pernas com a Marta, nem a minha mão sob a toalha.
Dei-lhe a ler uns poemas. Leu atentamente o princípio e o fim de uma paixão efémera, passada entre 28 de julho e 5 de agosto. Percebeu a quem se dirigia?
De certeza não era a ela, mas à Marta, a terceira pessoa que esteve connosco naquele célebre almoço do riso descontrolado. Depois, aconteceu uma coisa muito estranha. Sintomaticamente, repeliu a prosa poética “Foi em setembro”, logo a seguir às primeiras linhas de leitura. Como se soubesse o resto. Um palpite para os céticos e mais uma dúvida a juntar às muitas dúvidas que me assaltavam. Não podia adivinhar o conteúdo de um texto de duas páginas. Então, se não podia adivinhar, qual foi o motivo que a levou a dizer, com ar agastado três palavras muito simples?Dei-lhe a ler uns poemas. Leu atentamente o princípio e o fim de uma paixão efémera, passada entre 28 de julho e 5 de agosto. Percebeu a quem se dirigia?
«Isto não interessa!»
Foi incorreta na entoação que deu ao comentário que fez. Guardei os poemas e mudámos de assunto. Não se descontrolou a rir. Começava a acontecer uma coisa natural. Éramos três e parecia que a Marta estava a mais. Falou de obsessão. Não me recordo do motivo. Talvez porque tinha captado nos poemas. Principalmente naquela prosa poética que não chegou a ler e que, estranhamente, parecia conhecer.
Mas tinha lido a prosa poética dedicada à Marta.
Mas tinha lido a prosa poética dedicada à Marta.
OS POSSUÍDOS DE SATÃ
No dia dos poemas a conversa acabou por ser canalizada para o campo do paranormal. Entre outros casos, contei à Madalena o estranho caso de a mulher de vermelho. Ouviu com muita atenção e ficou algo apreensiva. Prometeu ajudar-me. Conhecia uma pessoa muito entendida nesses assuntos.Nos dias que se seguiram não voltou a falou na pessoa entendida dos casos do paranormal e acabámos por ir a uma igreja cristã.
Aconteceu num domingo, pelas quatro horas da tarde. Estava tudo preparado na igreja para me receber condignamente. Tratamento de primeira, segundo disse. Lugares guardados numa sala à cunha. Curas fantásticas de alguns possuídos de Satã. Confesso que fiquei baralhado com aquele sistema altamente organizado. Uma verdadeira máquina que prometia a felicidade e a abundância.
«É tudo dedicado a si...»
A mim?!...
Fiquei atento. Depois, com o decorrer do tempo, veio a confusão. Gritos, aparentes desmaios. Tudo função do que ouvia porque para os meus olhos nada havia de anormal. De vez em quando olhava para ela e recebia como resposta o seu sorriso doce.
Julguei que a batalha estava ganha quando começaram os cânticos e as nossas mãos se uniram. Fiquei empolgado com o ritmo e a beleza do espetáculo e cheguei mesmo a cantar os cânticos deles.
«Tem boa voz...» Apreciou.
Virei-me para ela. Sorri. Sorriu. Depois, senti o aperto da sua mão esquerda na minha. Deixei-me ficar na expectativa. Talvez fosse um enganado. Um momento de desconcentração podia ter dado origem a um lapso. Esperei pela confirmação, que veio logo a seguir. Então apertei forte, também. Ela correspondeu. Sentia o contacto do seu corpo.
Se não a tinha conquistado, o que se passava?«É tudo dedicado a si...»
A mim?!...
Fiquei atento. Depois, com o decorrer do tempo, veio a confusão. Gritos, aparentes desmaios. Tudo função do que ouvia porque para os meus olhos nada havia de anormal. De vez em quando olhava para ela e recebia como resposta o seu sorriso doce.
Julguei que a batalha estava ganha quando começaram os cânticos e as nossas mãos se uniram. Fiquei empolgado com o ritmo e a beleza do espetáculo e cheguei mesmo a cantar os cânticos deles.
«Tem boa voz...» Apreciou.
Virei-me para ela. Sorri. Sorriu. Depois, senti o aperto da sua mão esquerda na minha. Deixei-me ficar na expectativa. Talvez fosse um enganado. Um momento de desconcentração podia ter dado origem a um lapso. Esperei pela confirmação, que veio logo a seguir. Então apertei forte, também. Ela correspondeu. Sentia o contacto do seu corpo.
O abraço que demos e os beijos trocados dentro do contexto religioso em que nos inseríamos, não foram só reações de natureza puramente espiritual. As horas passaram a correr. Nem sequer senti dores nas pernas. Sintomático e confuso, ao mesmo tempo. Um sonho a acontecer, já que a realidade foi outra. Tudo não passou de um embuste.
«Não posso passar sem você!»
Um dos pontos fortes das orações.
Aconteceu talvez poesia naquela tarde. Cantámos. Apertou a minha mão. Com força. O seu olhar cúmplice iluminou-me a alma, fez-me sair das trevas.
Mas... seria mesmo ela?
(Olho para chama de uma vela. Nos tempos de hoje tem um encanto especial. É poético. Traz-me o passado em toda a força. O destino que foi cumprido e o que ficou adiado. Sim. Penso no passado remoto mas a realidade é outra. Estou noutro tempo. O tempo sem tempo é pura utopia. Aquela situação veio do passado. Olhares ardentes a cruzarem-se. Olhares ardentes que não fogem mas que transmitem promessas que nunca serão cumpridas. A chama é bela. E frágil. Vacila a cada momento. Ameaça mesmo apagar-se. Se fecharmos os olhos? Pronto, os olhos estão fechados. Tentamos imaginar como ela foi. Bela. Agora, abro os olhos e verifico, contra toda a lógica, que continua vacilante e bela. Mas já não é a mesma.
Como a elite de todos os seres vivos e feitos à imagem de Deus, estamos sempre em mudança. Nunca somos duas vezes a mesma coisa. Nada pode ser igual ao que foi).Aconteceu talvez poesia naquela tarde. Cantámos. Apertou a minha mão. Com força. O seu olhar cúmplice iluminou-me a alma, fez-me sair das trevas.
Mas... seria mesmo ela?
(Olho para chama de uma vela. Nos tempos de hoje tem um encanto especial. É poético. Traz-me o passado em toda a força. O destino que foi cumprido e o que ficou adiado. Sim. Penso no passado remoto mas a realidade é outra. Estou noutro tempo. O tempo sem tempo é pura utopia. Aquela situação veio do passado. Olhares ardentes a cruzarem-se. Olhares ardentes que não fogem mas que transmitem promessas que nunca serão cumpridas. A chama é bela. E frágil. Vacila a cada momento. Ameaça mesmo apagar-se. Se fecharmos os olhos? Pronto, os olhos estão fechados. Tentamos imaginar como ela foi. Bela. Agora, abro os olhos e verifico, contra toda a lógica, que continua vacilante e bela. Mas já não é a mesma.
A saída foi algo desconcertante. Deixou-me com uma amiga e fugiu, precipitadamente. Achei muito estranha a sua atitude. Estava nitidamente a fugir. Claro que fui cauteloso com a amiga dela.
«Fiquei confuso...»
«É a primeira vez que vem?»
Todo o conjunto de cânticos, milagres e exorcismos tinham-me baralhado, mas estava a pensar noutra coisa. Não entendia o porquê da fuga.
E que significava o apertar forte da sua mão na minha?
«Da primeira vez também fiquei muito confusa...»
«É tudo muito estranho. Penso que vou voltar.»
«Ver para crer...»
«Sim. Ouvi muitos gritos e não vi ninguém a gritar!»
E o apertar de mãos?
Aconteceu. Não foi alucinação. Mas ela fugiu.«Fiquei confuso...»
«É a primeira vez que vem?»
Todo o conjunto de cânticos, milagres e exorcismos tinham-me baralhado, mas estava a pensar noutra coisa. Não entendia o porquê da fuga.
E que significava o apertar forte da sua mão na minha?
«Da primeira vez também fiquei muito confusa...»
«É tudo muito estranho. Penso que vou voltar.»
«Ver para crer...»
«Sim. Ouvi muitos gritos e não vi ninguém a gritar!»
E o apertar de mãos?
Hoje voltei à igreja e vi outras coisas que me abriram os olhos para a realidade. Saí chocado. Não vi Cristo. Daquela maneira absurda não podia ser o meu Cristo. Os cânticos, que me encantaram, desta vez nada me disseram. Nem as palavras exaltadas do pastor me convenceram, um homem que disse ser boa a riqueza material, quando tanta gente neste mundo nem sequer conseguia uma côdea de pão para mitigar a fome.
Não ouvi também os gritos dos endemoniados. Tudo fora diferente da outra vez. Dedicado a mim, como ela disse. Não. O meu Deus não era aquele. Havia um outro Deus dentro de mim. Que estava comigo e que me fizera à Sua imagem.
E ela?, alguma vez esteve comigo? Talvez nessa estranha tarde em que apertou com força as minhas mãos. Mas foi um momento.
Dias mais tarde almoçámos juntos e logo tudo se repetiu. Começou a rir. Não sei se fiz mal, mas disse-lhe:
«Desta vez não vai rir!»
Resposta pronta:
«Já não tenho vontade de rir...»
Como nota importante deste encontro há a destacar que tentei esclarecer que o meu caso com a Marta não foi mais que uma nuvem passageira.
Desta vez houve confissões mútuas. Eu fiz a abertura. Falei, em termos vagos, da minha solidão. Na sequência, abordou o passado. Teve uma infância calma até aos catorze anos. Foi uma criança dócil. Depois modificou-se, começando a dar problemas em casa (quais as causas?). Uma vidente previu a transformação. Um dia confidenciaram-lhe um desabafo da mãe:
«Morreu um anjo para nascer um diabinho...»
Quando ela nasceu, morreu pouco depois uma irmã com oito anos. Depois a mãe enviuvou e casou segunda vez.
Vi uns arranhões no rosto e adivinhei que gostava de gatos. Mas agora tinha apenas um cão!
Donde vinham os arranhões?
Era uma mulher teimosa. Quando queria uma coisa nada a demovia. E, segundo ela, tudo o que desejava vinha parar às suas mãos.
É Caranguejo e tem Leão por ascendente. Fez quarenta anos em julho. É solteira. Pensa que este encontro não foi por acaso.
Há uma grande submissão da Marta à forte personalidade da amiga. Mas qual é o verdadeiro rosto da Madalena que, paradoxalmente, exibe também uma faceta de humildade?E ela?, alguma vez esteve comigo? Talvez nessa estranha tarde em que apertou com força as minhas mãos. Mas foi um momento.
Dias mais tarde almoçámos juntos e logo tudo se repetiu. Começou a rir. Não sei se fiz mal, mas disse-lhe:
«Desta vez não vai rir!»
Resposta pronta:
«Já não tenho vontade de rir...»
Como nota importante deste encontro há a destacar que tentei esclarecer que o meu caso com a Marta não foi mais que uma nuvem passageira.
Desta vez houve confissões mútuas. Eu fiz a abertura. Falei, em termos vagos, da minha solidão. Na sequência, abordou o passado. Teve uma infância calma até aos catorze anos. Foi uma criança dócil. Depois modificou-se, começando a dar problemas em casa (quais as causas?). Uma vidente previu a transformação. Um dia confidenciaram-lhe um desabafo da mãe:
«Morreu um anjo para nascer um diabinho...»
Quando ela nasceu, morreu pouco depois uma irmã com oito anos. Depois a mãe enviuvou e casou segunda vez.
Vi uns arranhões no rosto e adivinhei que gostava de gatos. Mas agora tinha apenas um cão!
Donde vinham os arranhões?
Era uma mulher teimosa. Quando queria uma coisa nada a demovia. E, segundo ela, tudo o que desejava vinha parar às suas mãos.
É Caranguejo e tem Leão por ascendente. Fez quarenta anos em julho. É solteira. Pensa que este encontro não foi por acaso.
Ontem telefonei à Madalena. Combinámos almoçar hoje.
Insinuei que se tinha esquecido dos amigos. Negou, pouco convicta. Afinal sempre fora no domingo à igreja.«Eram quatro e meia...»
«Estava de vermelho?»
Lembro-me de ter visto uma mulher vestida de vermelho numa das cadeiras da frente. Na altura pareceu-me ser a Madalena. Os cabelos eram curtos e tinham uma cor castanho avermelhada.
«Desta vez não gostei. Estive de pé mais que uma hora. De vez em quando vinham ter comigo e convidavam-me para sentar. Recusei sempre. Queria observar todos os detalhes, não fosse algo importante escapar.»
«Também eu não. Na próxima vez vai ser diferente.»
Que queria dizer com aquelas palavras?
O almoço ainda não foi hoje. Telefonei-lhe à uma hora da tarde e tive uma desilusão. Disse-me que não podia. Depois ligava.
Acabei um trabalho que estava a fazer no computador e saí para almoçar. Movido por um pressentimento estranho, resolvi ir almoçar ao Clemente. Passava já das duas quando contornei o edifício do Ministério para o lado da Elias Garcia. À minha frente ia uma mulher que coxeava. Tinha um defeito numa perna. Era a Micá, uma amiga dela que também trabalhava no edifício do Ministério. Abrandei o passo. Nem queria acreditar. O pressentimento batera certo, pensei.
Parou junto ao restaurante e espreitou pelos vidros para dentro. Achei curioso. Espreitando pelos vidros. Sintomático.
Quem procurava lá dentro?
Impossível ser eu. Deitava cartas mas não tinha magia suficiente para adivinhar que estava atrás dela, a poucos metros de distância.
Entrei logo atrás dela. No snack estavam duas colegas minhas. Pouco me importei. Ignorei a sua presença e fui para a zona do restaurante. Pior ainda quando vi, sentadas numa mesa a minha chefe, a Eduarda, a Edite e a Sofia. Cumprimentei-as à distância. A Sofia fez-me um sinal. Agradeci e declinei o convite. Vi noutra mesa a Micá. Sozinha.
Dei meia volta e retirei-me. Sentia-me a mais.
Tive a confirmação do tal pressentimento estranho ao cruzar-me no corredor com a Madalena. Sabia. Adivinhara. Fez-me um sorriso envolvente, como se fosse a coisa mais natural deste mundo encontrar-se ali depois de ter adiado o almoço. E mais ainda: teve o descaramento de convidar-me para almoçar com ela. Tinha combinado com a Micá, disse, a título de desculpa.
Então e o nosso almoço...?
Dei uma desculpa deveras deselegante. Fiquei danado por ter aquela reação de mau perder, embora tivesse carradas de razão. É que assim perdia toda a razão e não queria cometer esse erro.
«Depois falamos...» Disse ela.
Afastei-me sem uma palavra. Sabia que não iríamos falar. promessas suas levava-as o vento, Fiquei triste. Fui almoçar a outro restaurante.
Afinal, que quer de mim a Madalena?
Afastou-me da Marta para se aproximar, mas para quê?
A Marta era uma mulher casada e sabia muito bem o que fazia. Não. Não batia certo.
A Madalena veio vestida de vermelho, com uma flor preta ao peito, do lado direito. Achei que tinha charme. Era uma mulher de bom gosto. Discreta, mas elegante. Admito que decidiu à última hora
A Madalena veio vestida de vermelho, com uma flor preta ao peito, do lado direito. Achei que tinha charme. Era uma mulher de bom gosto. Discreta, mas elegante. Admito que decidiu à última hora
não ir almoçar comigo. E porquê? Quase certo que a Micá deitou as cartas e aconselhou-a a não ir...
O NÚMERO
É cruel bloquear o sofrimento, já o disse uma vez. Tão cruel como pisar a rosa vermelha rejeitada. O sofrimento e o amor são livres e têm a extensão da verdade que ninguém pode dizer que não existe. Fatalmente juntos, o sofrimento e o amor, escolherão os desencontrados para inocularem neles o vírus que os vai unir na desgraça.
Na caminhada pela eternidade os corpos são roídos pelos vermes e as memórias apagadas. Como se em cada nova vida houvesse um novo nome de Deus que correspondesse a um quantitativo de amor e de sofrimento que não têm dono mas são de todos. Ligam ou destroem. E essa fatalidade de ligar ou destruir é um número que sai numa roleta que ninguém pode viciar. Acontece amor quando o mesmo número se repete num homem e numa mulher. Acontece sofrimento quando o amor não é acolhido pelo objeto amado. Principalmente nas pessoas que conseguem tudo o que querem, como tu, Madalena, sem afinal conseguirem alcançar o objetivo que as motiva; também nas pessoas que afirmam terem uma missão a cumprir e fogem dela com medo do caminho incerto e obscuro que podem vir a percorrer. Não são capazes de assumir a VERDADE. Preferem destruir-se e destruir.
Não podemos controlar o amor. Tão pouco o sofrimento. Não podemos fugir eternamente, prometendo, no fim de uma fuga, fugir de novo.
A tua voz espelhou a tristeza da tua alma. Sofres também porque não és feliz. Os teus olhos não mentiram. Não conseguiste escondê-los. Vi-os. Olhos tão tristes!
Onde andas?
Talvez deva procurar no teu coração. E é por isso que foges. Tens medo. Vejo-te a vaguear na rua. Sem destino. Longas horas sem destino, até que regressas a casa, pelo cair da tarde, e ficas junto ao telefone que teima em não tocar. E se toca, logo me repeles.
Nunca tivemos o mesmo número?
Quando se cruzam os olhares, como naquele dia, e oiço a voz doce da jovem que deixaste de ser, sinto um desejo incontrolável de perguntar se alguma vez o nosso Deus escolheu o mesmo número, para mim e para ti. Sei do desejo agrilhoado. Dos momentos em que és verdadeira.
Foge do "diabinho" eu que devora dentro de ti. Deixa que o sofrimento e o amor se fundam num cântico de esperança. Deixa que o azul apareça no céu velho de amanhã. É fatal acontecer quando tem que acontecer. A coexistência incontrolada do espinho e da rosa.
Vem ao meu encontro de vestido vermelho e regressa ao dia em que fugiste. Vem e deixa arder a paixão no combustível eterno. Já nada tenho para te dar porque quis dar-te tudo e não quiseste. O Caranguejo que há em ti tem medo de se envolver. O risco é grande. Pode vir a sofrer no futuro...
Lembras-te quando me disseste para seguir o que a intuição ditasse?
Para que serviu?, se és a minha intuição fatal desde que aconteceu o tempo sem tempo?
Vem. Tenho o número. O mesmo número de Deus que nos há de levar rumo a novos destinos, mesmo que as coisas aconteçam atrás do espelho, onde te vejo e onde me vês.
Um dia (lembras-te?) tiveste uma visão. Não acreditei no que disseste. Vias em mim um pastor. E os teus olhos brilharam. E um sorriso feliz abriu-se nesse rosto que estou sempre a recordar. Impossível. Nunca fui a pessoa escolhida para conduzir multidões.
Sabes que também consigo tudo o que quero?
O problema é quando deixo de querer. Sou Leão. Os Leões não desistem. Mas voltam as costas quando já não vale a pena. Mas tudo será diferente se quiseres unir a tua força à minha e assim talvez que um dia o mundo seja mais azul para nós.
Faz sempre o que o coração te ditar, mas não queiras inventar o destino. Vem, que estou à tua espera. Aqui. Sonhando que temos o mesmo número e que o nosso dia azul está cada vez mais perto.
Naquele dia mágico em que sorrimos, olhos nos olhos, a Marta perguntou:
«Qual é o meu papel?»
Respondemos no mesmo instante que ela fazia de corrente. E fazia mesmo. Era o elo de ligação. Como foi sempre. Porque, sem ela, nunca teria acontecido o nosso tempo sem tempo.
O tempo parou porque fugimos para longe... e talvez porque não eras tu.
Este é o único senão que me faz acreditar que afinal já não temos o mesmo número.
O JANTAR DE NATAL
Parecia que jogávamos às escondidas no meio de quase uma centena de pessoas que tinham sido convidadas para o tradicional jantar de Natal no décimo segundo andar. Queria falar-lhe, mas ela não se aproximava, não dando espaço de manobra. Fingiu mesmo não me ver. Eu aparentava boa disposição, conversando com as minhas colegas e petiscando à mesa. Ela estava com o seu grupo, principalmente homens que pareciam cortejá-la e confesso que não tinham mau gosto. Estava muito bem vestida, alegre talvez por ser o alvo das atenções dos homens que a cortejavam. Na realidade era uma mulher sedutora, de classe, não uma Marta provocante que mexia todo o corpo e resumia-se a atracão carnal. «Paciência, Mário. O teu momento há de chegar.» Pensei.
Tinha que esperar mais uns minutos. Ela não ia fugir durante toda a noite. Ao mesmo tempo, devia dar atenção às minhas colegas porque era a única forma de não me sentir numa ilha nesta noite. Entendido? Pronto, estava mais descansado.
«Vamos comer, Mário.» Disse a Sofia. «As pessoas estão a dirigir-se para as mesas.»
Pensando bem, a mulher Caranguejo é difícil de entender. É muito volúvel e instável. Sai fora do meu esquema)
Aquele aperto de mão dissimulado era um chamamento. Ou talvez não. Vindo da Madalena podia significar, por exemplo, um sinal de pedido de desculpa para mais uma fuga. Talvez. Tinha quase a certeza que ela ia fugir mais uma vez. Mesmo assim, tentei aproveitar a oportunidade no fim da festa. Enquanto lhe oferecia um poema que lhe dediquei e um elefante prateado que tive como prenda, pensando que os elefantes davam sorte, perguntei-lhe de chofre se queria que a levasse a casa. Mais uma vez, azar o meu. Não aceitou. Nem com a oferta de elefantes de tromba levantada que, diziam, eram um sinal de sorte.
Tão certo estava das minhas convicções que o momento chegou. Os olhares cruzaram-se e creio que ela fez uma leitura. Nesse momento senti qualquer coisa estranha. Não sei se foi por isso. Teve um gesto espontâneo de quem pede desculpa e aproximou-se para nos cumprimentar. Era a mim que pedia desculpa, tive a certeza. Foi evitando os obstáculos que nos separavam, até que conseguiu chegar junto de nós.
«Só agora é que os vi. Tenho estado atarefada. Desculpem-me.»
Quem resistia àquele sorriso doce do diabinho da sua mãe?
«Por amor de Deus, Madalena!» disse uma das minhas colegas.
E foi nessa altura que reagiu, mais uma vez, de uma forma algo inesperada, que não consegui interpretar. Não era a primeira vez. Já tinha feito noutra altura, na igreja dos cânticos alegres e dos possuídos de Satã. Enquanto falava com as minhas colegas, apertou, dissimuladamente, a minha mão direita e sorriu com meiguice. Estávamos encostados à mesa e ninguém deu conta do seu gesto secreto. Tentei compreender.
O olhar meigo que me lançou e o aperto na mão, bem convincente, seriam um convite para avançar, ou um simples ato de pedido de desculpa?«Só agora é que os vi. Tenho estado atarefada. Desculpem-me.»
Quem resistia àquele sorriso doce do diabinho da sua mãe?
«Por amor de Deus, Madalena!» disse uma das minhas colegas.
E foi nessa altura que reagiu, mais uma vez, de uma forma algo inesperada, que não consegui interpretar. Não era a primeira vez. Já tinha feito noutra altura, na igreja dos cânticos alegres e dos possuídos de Satã. Enquanto falava com as minhas colegas, apertou, dissimuladamente, a minha mão direita e sorriu com meiguice. Estávamos encostados à mesa e ninguém deu conta do seu gesto secreto. Tentei compreender.
Pensando bem, a mulher Caranguejo é difícil de entender. É muito volúvel e instável. Sai fora do meu esquema)
Aquele aperto de mão dissimulado era um chamamento. Ou talvez não. Vindo da Madalena podia significar, por exemplo, um sinal de pedido de desculpa para mais uma fuga. Talvez. Tinha quase a certeza que ela ia fugir mais uma vez. Mesmo assim, tentei aproveitar a oportunidade no fim da festa. Enquanto lhe oferecia um poema que lhe dediquei e um elefante prateado que tive como prenda, pensando que os elefantes davam sorte, perguntei-lhe de chofre se queria que a levasse a casa. Mais uma vez, azar o meu. Não aceitou. Nem com a oferta de elefantes de tromba levantada que, diziam, eram um sinal de sorte.
VOU PERDER-TE, MADALENA!
Ontem vi-te. O meu fato era castanho (a tua cor preferida) e tu estavas vestida de negro. Tinhas perdido a última onda que arrebatou a esperança. Vestias de negro e choravas.
Mas quem és tu?Naquele dia, o tempo parou e os teus olhos falaram verdade. De quem eram os olhos tristes da outra mulher?
Trazias a esperança. Ganhavas força na última onda. Crescias e galgavas barreiras. Passavas por outras ondas que tinham ficado bloqueadas no passado. E eu sentia a tua presença no calor da mão que apertou a minha e no olhar cúmplice que trocámos na igreja que tinha música alegre. A onda crescia, crescia.
Ou seriam duas ondas?
Uma delas dizia que gostava do poeta. A outra, fugia do homem. E o poeta, esse, sonhava com os teus lábios carnudos.
Isto é futuro, mas falo ainda no passado. Se os teus olhos falavam, eu construía castelos. Do mais puro cristal. Perfeitos. Tão perfeitos que não te via! Tão transparentes que a tua alma deixava adivinhar a nudez envergonhada do amor. No limite da pureza, o cristal vibrou e o castelo tornou-se invisível. Esqueci o sabor dos teus lábios e não mais vi a tristeza do teu olhar.
Naquela tarde vieste de vermelho. Adivinhei a cor do teu vestido. Mas trazias uma rosa negra. Ontem vieste de negro. E não trouxeste uma rosa vermelha!
Esperei-te na praia da última onda. Sem forças para te prender ao meu destino, fiquei a ver-te fugir, sentindo a força da distância. Quando a última onda beijou as areias da praia errada e deixei de te ver, o céu vestiu-se todo de azul, significando o tempo de sonhar o amor perdido.
É assim quando sonho contigo. Corro atrás de ti na onda que cresce, cresce e nunca alcanço...
Trazias a esperança. Ganhavas força na última onda. Crescias e galgavas barreiras. Passavas por outras ondas que tinham ficado bloqueadas no passado. E eu sentia a tua presença no calor da mão que apertou a minha e no olhar cúmplice que trocámos na igreja que tinha música alegre. A onda crescia, crescia.
Ou seriam duas ondas?
Uma delas dizia que gostava do poeta. A outra, fugia do homem. E o poeta, esse, sonhava com os teus lábios carnudos.
Isto é futuro, mas falo ainda no passado. Se os teus olhos falavam, eu construía castelos. Do mais puro cristal. Perfeitos. Tão perfeitos que não te via! Tão transparentes que a tua alma deixava adivinhar a nudez envergonhada do amor. No limite da pureza, o cristal vibrou e o castelo tornou-se invisível. Esqueci o sabor dos teus lábios e não mais vi a tristeza do teu olhar.
Naquela tarde vieste de vermelho. Adivinhei a cor do teu vestido. Mas trazias uma rosa negra. Ontem vieste de negro. E não trouxeste uma rosa vermelha!
Esperei-te na praia da última onda. Sem forças para te prender ao meu destino, fiquei a ver-te fugir, sentindo a força da distância. Quando a última onda beijou as areias da praia errada e deixei de te ver, o céu vestiu-se todo de azul, significando o tempo de sonhar o amor perdido.
É assim quando sonho contigo. Corro atrás de ti na onda que cresce, cresce e nunca alcanço...
A TARÓLOGA
O dia de ontem foi muito estranho. Estou atordoado com tudo o que aconteceu. Embora ainda um pouco agnóstico, sinto o peso da responsabilidade do que me foi revelado. Verdadeiro ou falso, sou forçado a admitir que nada voltará a ser como ontem. Nem como no tempo (muito menos) em que a minha vida era simples. Tinha a minha rotina. Os selos. Os recortes dos jornais. O mundo fechado que me tornava uma vulgar pessoa entre outras cujo significado da vida era a sequência natural dos dias e não o improviso do amanhã. E parecia que era tarde para voltar aos meus dias calmos.Mas vamos aos factos. Anteontem o Estêvão, um colega da escola deu-me o contacto de uma senhora que deitava cartas. Segundo ele, lia bem o Tarot.
A entrevista ficou marcada para ontem, às seis da tarde, em Algés. Depois de chegar à conclusão que me tinha dado o número errado fui desaguar ao café combinado, no caso de não encontrar o prédio. Achei aquele café muito estranho. Aliás, mal entrei, a registadora bloqueou. Mas não devo desviar-me. Esperei no café mais de uma hora até ser atendido pela Mimi, a taróloga indicada pelo Estêvão.
Entrámos para uma sala ampla e mandou-me sentar em frente a uma mesa que tinha uma toalha de renda e uma imagem em cerâmica de um ser humano barbudo. Ela ficou de pé, virada para a imagem. Pareceu concentrar-se por momentos. Depois fez o sinal da cruz e, continuando de pé, pegou nas cartas. Lentamente, começou a baralhá-las. O silêncio imperava. Apenas ouvia o ruído do baralhar das cartas. Olhei em volta. Havia uma longa série de pratos nas paredes e bem no alto. Voltei a olhá-la. Deixou cair algumas cartas que logo juntou às outras. Concentrei-me na imagem que via de perfil. Representava um ser masculino, barbudo, como já disse.
Estendeu as cartas em várias filas e pediu-me para escolher duas, perguntando por onde queria começar. Penso que comecei pela atividade profissional. Escolhi as cartas e ela virou-as, colocando-as do lado direito. Como não me recordo de toda a sequência passo a colocar um a um os assuntos que foram tratados. Estivemos duas horas e meia num diálogo interessante em que, apesar do tempo, ainda muita coisa ficou por dizer.
Acerca da componente afetiva as duas cartas que tirou explicavam que as influências em oposição de Júpiter e Saturno impediam que eu fosse mais além. Havia como que um travão relativamente a Saturno. Não queria dizer que fosse negativo. Por um lado Júpiter dava. Por outro Saturno tirava. Havia, portanto, um jogo de forças antagónicas que não me deixavam ir mais além na componente sentimental. Falei na existência de duas mulheres, a Marta e a Madalena que deviam estar em conflito por minha causa e da força oculta que criava as situações afetivas e logo me cortava as hipóteses de prosseguir.
Relativamente à Madalena chegou à conclusão que eu estava num beco sem saída. Não conseguia ir mais além. Ela tinha medo. Perguntei o motivo.
Experiências negativas anteriores?, ou um amor que a destroçou?
Tirou duas cartas. Só influências astrais. O destino. Embora se pudesse modificar o destino, a influência nefasta da Lua bloqueava-a. Ela era uma pessoa muito especial, muito complicada. Tinha medo de se envolver. Apenas medo. Daí a razão dos recuos sucessivos.
Quanto à Marta, essa mulher queria mesmo ter uma ligação amorosa comigo. O motivo era óbvio. Saturação do casamento. Desejo de novas experiências. Mas devia ter cuidado.
Pediu-me novas cartas. Confirmou o perigo, embora a situação estivesse controlada. Expliquei-lhe que queria servir-me dela apenas como veículo para atingir a Madalena. Pensava que elas estavam amuadas por minha causa. Afinal, foi a Madalena quem interrompeu uma relação carnal.
Opinião da Mimi: não, a Marta não...
No campo profissional contei a minha situação. E as cartas disseram que não sairia do Projeto.
Aqui comecei a ficar preocupado. Falou em poder crescente que eu estava a criar (a receber). Donde vinha? Não sabia. Estava no destino. Domínio cada vez mais poderoso e capacidades paranormais desenvolvidas e irreversíveis. As minhas pequenas felicidades, os tempos livres seriam recordados com alguma saudade. E era mau para os que me rodeavam cada vez que eu pensava em sair.
«Começarão a cair como tordos e o senhor professor não quer que isso aconteça. Mas é inevitável acontecer se quiser sair...»
Iam cair como tordos?
Perguntei se devia voltar ao Projeto. Disse que a minha situação ia ser revista e a remuneração mais justa. Mas continuaria na escola. No Projeto, veria os meus poderes e influência em crescimento constante, se fossem criadas condições.
Falei dos fenómenos paranormais que se desenrolavam à minha volta sem que os pudesse controlar ou entender a sua origem. Quanto a isso apenas tinha desconfianças.
Sobre os fenómenos paranormais, confirmou que as minhas capacidades seriam aumentadas.
«Alguém poderá fazer-me mal?»
«Ninguém!»
Falou então simbolicamente em energia nuclear controlada ou não. No grande poder que eu tinha. Na influência psíquica e sexual que exercia sobre as mulheres. Pressentia uma enorme responsabilidade que tinha aos ombros.
Falava verdade?
«Tenho que aprender...»
Aí elogiou-me. Como Leão que era, a minha humildade era de elogiar. Conhecia muitos leões e sabia das suas reações.
Mas convém acrescentar uma coisa que considero importante. Antes perguntara se era Escorpião. Ficou admirada. Tinha características acentuadas de Escorpião.
«Os leões consideram-se marcadamente superiores. Sabem sempre tudo e não admitem o contrário. São muitos difíceis de lidar e, no seu caso, isso não se passa.»
Comecei a ficar preocupado. Mais preocupado ainda porque, segundo ela, continuaria com as minhas experiências e não deixaria de haver problemas à minha volta.
Mencionei o desejo de voltar a ser a pessoa simples que fora. Metida comigo, temerosa.
«Não pode voltar atrás! E vai ver os seus poderes aumentarem...»
Focou o problema da minha companheira. A sua decadência. O amor que já não era amor e transformou-se em amizade.
«Os dois formavam um foguetão em que um dos andares se desligou e ela ficou em baixo a pensar:»A entrevista ficou marcada para ontem, às seis da tarde, em Algés. Depois de chegar à conclusão que me tinha dado o número errado fui desaguar ao café combinado, no caso de não encontrar o prédio. Achei aquele café muito estranho. Aliás, mal entrei, a registadora bloqueou. Mas não devo desviar-me. Esperei no café mais de uma hora até ser atendido pela Mimi, a taróloga indicada pelo Estêvão.
Entrámos para uma sala ampla e mandou-me sentar em frente a uma mesa que tinha uma toalha de renda e uma imagem em cerâmica de um ser humano barbudo. Ela ficou de pé, virada para a imagem. Pareceu concentrar-se por momentos. Depois fez o sinal da cruz e, continuando de pé, pegou nas cartas. Lentamente, começou a baralhá-las. O silêncio imperava. Apenas ouvia o ruído do baralhar das cartas. Olhei em volta. Havia uma longa série de pratos nas paredes e bem no alto. Voltei a olhá-la. Deixou cair algumas cartas que logo juntou às outras. Concentrei-me na imagem que via de perfil. Representava um ser masculino, barbudo, como já disse.
Estendeu as cartas em várias filas e pediu-me para escolher duas, perguntando por onde queria começar. Penso que comecei pela atividade profissional. Escolhi as cartas e ela virou-as, colocando-as do lado direito. Como não me recordo de toda a sequência passo a colocar um a um os assuntos que foram tratados. Estivemos duas horas e meia num diálogo interessante em que, apesar do tempo, ainda muita coisa ficou por dizer.
Acerca da componente afetiva as duas cartas que tirou explicavam que as influências em oposição de Júpiter e Saturno impediam que eu fosse mais além. Havia como que um travão relativamente a Saturno. Não queria dizer que fosse negativo. Por um lado Júpiter dava. Por outro Saturno tirava. Havia, portanto, um jogo de forças antagónicas que não me deixavam ir mais além na componente sentimental. Falei na existência de duas mulheres, a Marta e a Madalena que deviam estar em conflito por minha causa e da força oculta que criava as situações afetivas e logo me cortava as hipóteses de prosseguir.
Relativamente à Madalena chegou à conclusão que eu estava num beco sem saída. Não conseguia ir mais além. Ela tinha medo. Perguntei o motivo.
Experiências negativas anteriores?, ou um amor que a destroçou?
Tirou duas cartas. Só influências astrais. O destino. Embora se pudesse modificar o destino, a influência nefasta da Lua bloqueava-a. Ela era uma pessoa muito especial, muito complicada. Tinha medo de se envolver. Apenas medo. Daí a razão dos recuos sucessivos.
Quanto à Marta, essa mulher queria mesmo ter uma ligação amorosa comigo. O motivo era óbvio. Saturação do casamento. Desejo de novas experiências. Mas devia ter cuidado.
Pediu-me novas cartas. Confirmou o perigo, embora a situação estivesse controlada. Expliquei-lhe que queria servir-me dela apenas como veículo para atingir a Madalena. Pensava que elas estavam amuadas por minha causa. Afinal, foi a Madalena quem interrompeu uma relação carnal.
Opinião da Mimi: não, a Marta não...
No campo profissional contei a minha situação. E as cartas disseram que não sairia do Projeto.
Aqui comecei a ficar preocupado. Falou em poder crescente que eu estava a criar (a receber). Donde vinha? Não sabia. Estava no destino. Domínio cada vez mais poderoso e capacidades paranormais desenvolvidas e irreversíveis. As minhas pequenas felicidades, os tempos livres seriam recordados com alguma saudade. E era mau para os que me rodeavam cada vez que eu pensava em sair.
«Começarão a cair como tordos e o senhor professor não quer que isso aconteça. Mas é inevitável acontecer se quiser sair...»
Iam cair como tordos?
Perguntei se devia voltar ao Projeto. Disse que a minha situação ia ser revista e a remuneração mais justa. Mas continuaria na escola. No Projeto, veria os meus poderes e influência em crescimento constante, se fossem criadas condições.
Falei dos fenómenos paranormais que se desenrolavam à minha volta sem que os pudesse controlar ou entender a sua origem. Quanto a isso apenas tinha desconfianças.
Sobre os fenómenos paranormais, confirmou que as minhas capacidades seriam aumentadas.
«Alguém poderá fazer-me mal?»
«Ninguém!»
Falou então simbolicamente em energia nuclear controlada ou não. No grande poder que eu tinha. Na influência psíquica e sexual que exercia sobre as mulheres. Pressentia uma enorme responsabilidade que tinha aos ombros.
Falava verdade?
«Tenho que aprender...»
Aí elogiou-me. Como Leão que era, a minha humildade era de elogiar. Conhecia muitos leões e sabia das suas reações.
Mas convém acrescentar uma coisa que considero importante. Antes perguntara se era Escorpião. Ficou admirada. Tinha características acentuadas de Escorpião.
«Os leões consideram-se marcadamente superiores. Sabem sempre tudo e não admitem o contrário. São muitos difíceis de lidar e, no seu caso, isso não se passa.»
Comecei a ficar preocupado. Mais preocupado ainda porque, segundo ela, continuaria com as minhas experiências e não deixaria de haver problemas à minha volta.
Mencionei o desejo de voltar a ser a pessoa simples que fora. Metida comigo, temerosa.
«Não pode voltar atrás! E vai ver os seus poderes aumentarem...»
Focou o problema da minha companheira. A sua decadência. O amor que já não era amor e transformou-se em amizade.
«E eu?»
«Evite que ela saiba essas coisas. Poupe-a…»
Contei-lhe o que aconteceu no primeiro almoço a três no Clemente e em que o tempo parou. A corrente («Qual é o meu papel?», perguntou repetidas vezes a Marta) que circulou perfeitamente e o capacete sobre as cabeças. A visão que tive quando eu e a Madalena nos olhámos longamente. Os seus olhos tristes. A expressão a modificar-se.
(«Não há amor como o primeiro. O amor à primeira vista...» )
Perguntou-me se o amor que tive pela Manuela foi um "amor curto e marcante". Admirei-me por ter acertado. Mas agora penso que os amores curtos e marcantes são os que deixam marcas mais profundas. São caminhos que não chegaram praticamente a serem experimentados. Daí a saudade. A ideia do amor ideal porque nunca chegou a ser concretizado. Esses são os mais lembrados.
Aí falou a experiência da Mimi. Segundo ela, o facto de querer destruir esse primeiro amor não contribuiu para favorecer a possibilidade de ligação com a Madalena. Deve ter funcionado ao contrário.
Dei-lhe razão. Se a coisa se afastou ao sentir destruído o mito, também a sua ligação comigo enfraqueceu. É lógico concluir assim. E devo pensar maduramente nesta solução. Tanto mais que fiz magia negra em sentido figurativo. Simbolicamente queria destruí-la. A um ser vivo nunca o faria em consciência. Agarrei numa fotografia dela e não tive piedade do seu olhar triste e suplicante. Proferi palavras muito duras. Tentei "expulsá-la". Feri-a pela segunda vez de morte.
E a Madalena, que foi a sua ligação, como ficou?
Liberta?
Mais destruída?
Tanto num caso como no outro, julgo que as minhas hipóteses diminuíram. Liberta ou destruída, vai-se afastar mais.
O mistério do aleatório fascina-me. Se voltasse ao passado, tenho quase a certeza que não me adaptaria. Talvez que tudo se altere. Julgo mesmo que já se alterou. Os dados são novos.
A Madalena apareceu ao telefone com voz triste. Desculpou-se que dormia quando o telefone tocou. Lamentei. Pensei que estava triste. As habituais perguntas. Desta vez as minhas respostas indefinidas. Deixei-a falar. Falou duma infeção no pé que a atormentou a semana passada.
«Vamos a ver se na segunda-feira estou boa...»
Adivinhei um esboço de desculpa para amanhã. Tínhamos combinado almoçar.
Não dei a entender. Perguntei o que tinha acontecido.
«Foi no calista...»
Continuámos a conversar sobre o almoço. Pediu para telefonar cerca da uma. Não sabia nada da Micá.
«Naquele domingo tinha algum problema na vista?»
«Onde?»
«Na igreja.»
«Ah... Porquê?»
«Vi-a de óculos escuros...»
«Não. Por vezes a intensidade da luz fere-me a vista.»
Quis dizer-lhe que a achara muito triste. O instinto disse-me que não era o momento oportuno. Perguntei se tinha a tarde de segunda livre. Disse que não, mas talvez pudéssemos almoçar mais cedo. E ficámos por ali. Em princípio não era no Clemente.
«Então vá continuar o seu sono.»
Sorriu. Não vi o seu sorriso, mas senti que continuava triste. Fiquei à espera que desligasse. Como de costume tive de ser eu a desligar.
Confirmar-se-á a profecia da Mimi?
Hoje é hoje. Amanhã é amanhã...
Voltando ao Tarot...
No final pediu-me doze cartas. Foi mais uma repetição. Uma confirmação. Que tivesse muito cuidado com buracos nas contas. Que soubesse utilizar a força que tinha (como?, se não a sei controlar?) e tivesse também cuidado com os gastos exagerados com uma mulher. Aí sorri. Só podia ser com a Madalena.
Ou não era a Madalena?
À despedida, recomendou que lesse muito, tudo o que fosse possível... sobre "Minerva"!
Que queria ela dizer?
Não cheguei a contar o que aconteceu naquele domingo em que a vi na igreja e já depois da cerimónia. Foi tudo muito rápido. Não esperava encontrá-la ali. Achei-a triste. Vinha com a mãe. Apresentou-a. Mas eu estava mais interessado nos olhos que se escondiam atrás de uns óculos escuros. Era já noite e a iluminação não era forte. De certeza que chorara.
Porquê?
E a Madalena, que foi a sua ligação, como ficou?
Liberta?
Mais destruída?
Tanto num caso como no outro, julgo que as minhas hipóteses diminuíram. Liberta ou destruída, vai-se afastar mais.
O mistério do aleatório fascina-me. Se voltasse ao passado, tenho quase a certeza que não me adaptaria. Talvez que tudo se altere. Julgo mesmo que já se alterou. Os dados são novos.
A Madalena apareceu ao telefone com voz triste. Desculpou-se que dormia quando o telefone tocou. Lamentei. Pensei que estava triste. As habituais perguntas. Desta vez as minhas respostas indefinidas. Deixei-a falar. Falou duma infeção no pé que a atormentou a semana passada.
«Vamos a ver se na segunda-feira estou boa...»
Adivinhei um esboço de desculpa para amanhã. Tínhamos combinado almoçar.
Não dei a entender. Perguntei o que tinha acontecido.
«Foi no calista...»
Continuámos a conversar sobre o almoço. Pediu para telefonar cerca da uma. Não sabia nada da Micá.
«Naquele domingo tinha algum problema na vista?»
«Onde?»
«Na igreja.»
«Ah... Porquê?»
«Vi-a de óculos escuros...»
«Não. Por vezes a intensidade da luz fere-me a vista.»
Quis dizer-lhe que a achara muito triste. O instinto disse-me que não era o momento oportuno. Perguntei se tinha a tarde de segunda livre. Disse que não, mas talvez pudéssemos almoçar mais cedo. E ficámos por ali. Em princípio não era no Clemente.
«Então vá continuar o seu sono.»
Sorriu. Não vi o seu sorriso, mas senti que continuava triste. Fiquei à espera que desligasse. Como de costume tive de ser eu a desligar.
Confirmar-se-á a profecia da Mimi?
Hoje é hoje. Amanhã é amanhã...
Voltando ao Tarot...
No final pediu-me doze cartas. Foi mais uma repetição. Uma confirmação. Que tivesse muito cuidado com buracos nas contas. Que soubesse utilizar a força que tinha (como?, se não a sei controlar?) e tivesse também cuidado com os gastos exagerados com uma mulher. Aí sorri. Só podia ser com a Madalena.
Ou não era a Madalena?
À despedida, recomendou que lesse muito, tudo o que fosse possível... sobre "Minerva"!
Que queria ela dizer?
Não cheguei a contar o que aconteceu naquele domingo em que a vi na igreja e já depois da cerimónia. Foi tudo muito rápido. Não esperava encontrá-la ali. Achei-a triste. Vinha com a mãe. Apresentou-a. Mas eu estava mais interessado nos olhos que se escondiam atrás de uns óculos escuros. Era já noite e a iluminação não era forte. De certeza que chorara.
Porquê?
ONDE MORAS, MADALENA?
Hoje vi-te naquela casa grande, perdida na multidão que procura desesperadamente Cristo nos cânticos programados de palavras exatas e nos possessos de Satã que o Pastor liberta.
Vi-te naquela casa alegre de cânticos alegres que simulam mover montanhas.Não sei quem me chamou, mas estava lá no momento certo para ver os possuídos já sem as marcas de Satã e a saída dos crentes sem sinais de pecado e com a esperança estampada nos rostos. E foi no meio desse grupo que te falei de portas fechadas e sonhos destruídos.
“Já não vale a pena”, diziam os teus olhos escondidos atrás duns óculos escuros que não deixavam ver a outra verdade do "tempo sem tempo".
Ao ver-te triste quis dizer-te tanta coisa!, perguntar-te “onde moras se por acaso não moras no meu coração”; quis saber também por quem choravam os teus olhos castanhos, se por acaso choravam no meu coração...
Quando saí daquela casa grande e mergulhei no negrume da noite ressoavam nos meus ouvidos as vozes alegres dos convertidos, os gritos enraivecidos de Satã e os cânticos programados que falavam de um outro amanhã.
E apesar de sentir no ar novas promessas, parti amargurado para a noite, companheira fiel que me esperava, continuando sem saber "onde moras"... se por acaso tu não moras dentro de outro coração!
O ÚLTIMO ALMOÇO
Precisei de usar muitos subterfúgios para finalmente a Madalena não faltar ao compromisso.
Desta vez foi ela quem escolheu o restaurante. Não ficava muito longe do nosso local de trabalho. Logo à entrada, havia uma passagem estreita e depois desciam-se umas escadas em caracol. Precisamente enquanto descia as ditas escadas, todo o meu pensamento se centrava numa decisão em que, mal fosse tomada, não podia voltar atrás, embora soubesse que ia deitar tudo a perder.
Escolhi uma mesa recatada no fundo da sala. Deixei que se sentasse, olhei em volta e só depois me sentei.
«Tem todo o ar de Escorpião, Mário. Quis ter a certeza que estava em segurança.»
«Lamento desiludi-la. Sou Leão.»
«Bem sei.»
«Leão-Dragão...»
«Oh!»
«Não se assuste. Sou protetor.»
Depois duma conversa superficial de signos, motivada pelo diálogo que então tínhamos trocado, não perdi a oportunidade para apalpar o terreno movediço subjacente e tentar saber se de facto sentia que a Lua a condicionava. Para grande surpresa minha confirmou que a Lua lhe bloqueava, e muito, os impulsos.
«Mas considero-me uma mulher livre.»
Nesse momento lembrei-me dum comentário jocoso da Marta.
«A Madalena ter vergonha? Não a conhece, doutor...»
Este comentário vinha reforçar a ideia que começava a configurar-se no meu horizonte das suposições. Essa mulher era mais livre do que eu supunha. Mas valia ainda a última tentativa para encontrar uma solução para o nosso caso.
Nos minutos que se seguiram, a conversa decorreu dentro da normalidade. Disse-lhe que os meus projetos literários tinham entrado num beco sem saída e que os outros, os ditos profissionais, parecia que voltavam à primeira forma. Ia regressar à base. Deixava, de todo em todo de dar a colaboração ao Projeto. Mas naquele dia estava ali para a ouvir. Pela primeira vez queria ouvi-la.
Pouco ou nada disse. Tencionava montar um negócio.
«Um negócio?»
Disse-lhe para pensar bem. Não devia trocar o certo pelo incerto. Enfim, tentei demovê-la da aventura perigosa em que ia meter-se. Ao mesmo tempo que lhe fazia ver que era a pior opção que podia tomar, falei-lhe numa que tinha tomado e que nunca apresentou resultados positivos.
«Já não acredito nos sonhos do dinheiro fácil. Tenho várias sociedades de totoloto de que faço a gestão e estou a apostar forte porque tudo somado é que sabemos. Sabe, temos muitos prémios, mas só um grande compensa o investimento.»
Espantou-me ouvir o seu comentário:
«E é a trabalhar que vai conseguir, Mário?»
«Sei muito bem» olhei com atenção para o seu rosto. «Deve ter cuidado com os gatos. Esse arranhão quase que lhe atingiu a vista!»
Foi mesmo arranhada por um gato?
Confessou que gostava muito do gato, mas era um bichano estranho.
«Mas não me disse que agora só tem um cão?»
«É do meu sobrinho.»
Sorriu. Não se deixava apanhar em falso com duas cantigas.
«Está certo. E que mais? A Madalena não tem outros projetos?»
«Outros?»
«Sonhos...»
«Ah sim.»
Foi a minha vez de sorrir. Fiquei na expectativa.
«Já escolheram?»
Era o empregado.
«Madalena?»
«Cabrito assado.»
«O mesmo para mim.»
«E para beber?»
«Reguengos tinto.»
«Reserva?»
«Sim.»
O empregado afastou-se.
«Os sonhos... Madalena.»
«O vinho não é caro?»
«Hoje não dividimos ao meio. Fui eu quem fez o convite.»
«E eu escolhi o restaurante.»
«Importa-se...?»
«Obrigada.»
Encolheu os ombros. Só sonhava quando dormia. Nada mais tinha para contar. A sua vida era simples. Gostava mais de ouvir.
Sabia que era um sinal de defesa.
«Então vou continuar a falar.»
«Por que motivo vai desistir do Projeto?»
«Para mim está morto. Prefiro continuar a dar aulas.»
«Vão sentir a sua falta.»
«Ninguém é insubstituível. Já têm contabilistas, os malabaristas das contas. Bem vão precisar de milagres.»
«Acha?»
«E se falássemos de outra coisa. Por exemplo, do negócio que tem em mente.»
«Trapos. Preciso dum sócio que me financie.»
Era do que estava à espera.
Já comíamos o cabrito, uma vez que era prato do dia. Enchi-lhe o copo.
«É um delicioso néctar, mas tem grau.»
«Obrigada por avisar-me. Não passarei de um copo.»
Então ela precisava de um sócio...
Indiretamente estava a fazer-me um convite, já que não tinha coragem para o fazer com frontalidade. Medi os prós e os contras e decidi logo que não iria por ali. Financiando o negócio, mais tarde ou mais cedo tinha-a nos meus braços. Por outro lado, alimentar um saco sem fundo ia sair-me muito caro. Assim, fingi ignorar o convite e preparei o assalto final. Ou tudo ou nada.
Não me contive e disse o que sentia por ela, o que desejava para nós e o que faria e não faria, caso aceitasse a minha proposta.
No fundo, bem no fundo, o que queria?
Uma vida a dois.
Abriu muito os olhos, aparentemente surpreendida. E eu continuei falando. Falando para lá dos limites razoáveis. Sempre fui assim. Nunca gostei do meio termo. No meio termo residia a dúvida.
Praticamente não reagiu. Tinha sido apanhada desprevenida. E eu continuei falando, mais agressivo e zangado do que nunca, à medida que dava conta que ela acenava negativamente com a cabeça. A surpresa foi talvez uma tática dela. Nunca dera conta. Jurava.
«E os poemas... ?»
«Você é um poeta, Mário! Achei graça. Até gosto dos seus poemas.»
«Só?»
«Sim» fixou o olhar em mim. «Nunca o vi como um homem na minha vida. Até porque estou noutra.»
«Está? Não parece...»
«Olhe, Mário, já vivi uma vez com um homem e acredite que sofri muito. Agora sou uma pessoa livre e quero continuar assim.»
«Mas não disse que está noutra?»
«E não desminto. É uma relação temporária. Sem importância. Não, não quero voltar a envolver-me.»
Provavelmente um sócio. Um amante-sócio.
«O raio que a parta!» pensei.
«A Madalena é que conhece os caminhos por onde anda...»
Comemos a sobremesa em silêncio. Ela, um gelado e eu uma mousse de chocolate.
«Bebe café?» perguntei.
O seu sorriso envolvente! Se ele falasse verdade...
«Sim, por favor.»
Logo a seguir pedi a conta. Tinha pressa de sair.
Que pena o seu olhar terno saber a falsidade!
Perdi-a. Tive a certeza.
E voltei a perdê-la quando ela, à saída do restaurante, me deu uma oportunidade que não quis aproveitar. Estava ferido no meu orgulho. Ou tudo ou nada.
Pôs uma mão sobre o meu ombro e disse:
«Temos que nos amparar um ao outro.»
Não respondi.
Foi a única vez que não fugiu. Neste dia. Logo neste dia. Olhei-a. Parecia triste.
A mão desceu ao longo do meu braço esquerdo. Por momentos, revi as sensações que tivera na igreja e tive quase a certeza que tudo foi real nesse dia.
Dei-lhe um beijo no rosto. Depois, afastei-me. Afastei-me, sem olhar uma única vez para trás. Talvez a culpa não fosse minha, mas do poeta que tanto invejava. Só ele podia acariciá-la com palavras, encher de beijos aqueles olhos doces que nunca fugiam. Só o poeta tinha conseguido alcançar o inatingível. Possuir o corpo, sem defesas, que ela negara ao homem. Sim. Era toda uma obra do poeta e não do homem que sofria porque o outro entrou, sorrateiro, pela porta proibida e ouviu-a dizer que nunca tinha imaginado que os sentimentos do homem eram aqueles. Entrou com a magia do sonho mas não abriu o caminho ao homem.
Só num ponto, homem e poeta foram um só ao consentirem que ela falasse um pouco do seu passado. O céu da esperança abriu-se, por momentos, quando a mulher vivida resvalou, deixando vir à superfície recalcamentos antigos por ter sido usada por um homem que a deitou fora quando se cansou. Não queria repetir o erro.
«E com o poeta?»
«Tem todo o ar de Escorpião, Mário. Quis ter a certeza que estava em segurança.»
«Lamento desiludi-la. Sou Leão.»
«Bem sei.»
«Leão-Dragão...»
«Oh!»
«Não se assuste. Sou protetor.»
Depois duma conversa superficial de signos, motivada pelo diálogo que então tínhamos trocado, não perdi a oportunidade para apalpar o terreno movediço subjacente e tentar saber se de facto sentia que a Lua a condicionava. Para grande surpresa minha confirmou que a Lua lhe bloqueava, e muito, os impulsos.
«Mas considero-me uma mulher livre.»
Nesse momento lembrei-me dum comentário jocoso da Marta.
«A Madalena ter vergonha? Não a conhece, doutor...»
Este comentário vinha reforçar a ideia que começava a configurar-se no meu horizonte das suposições. Essa mulher era mais livre do que eu supunha. Mas valia ainda a última tentativa para encontrar uma solução para o nosso caso.
Nos minutos que se seguiram, a conversa decorreu dentro da normalidade. Disse-lhe que os meus projetos literários tinham entrado num beco sem saída e que os outros, os ditos profissionais, parecia que voltavam à primeira forma. Ia regressar à base. Deixava, de todo em todo de dar a colaboração ao Projeto. Mas naquele dia estava ali para a ouvir. Pela primeira vez queria ouvi-la.
Pouco ou nada disse. Tencionava montar um negócio.
«Um negócio?»
Disse-lhe para pensar bem. Não devia trocar o certo pelo incerto. Enfim, tentei demovê-la da aventura perigosa em que ia meter-se. Ao mesmo tempo que lhe fazia ver que era a pior opção que podia tomar, falei-lhe numa que tinha tomado e que nunca apresentou resultados positivos.
«Já não acredito nos sonhos do dinheiro fácil. Tenho várias sociedades de totoloto de que faço a gestão e estou a apostar forte porque tudo somado é que sabemos. Sabe, temos muitos prémios, mas só um grande compensa o investimento.»
Espantou-me ouvir o seu comentário:
«E é a trabalhar que vai conseguir, Mário?»
«Sei muito bem» olhei com atenção para o seu rosto. «Deve ter cuidado com os gatos. Esse arranhão quase que lhe atingiu a vista!»
Foi mesmo arranhada por um gato?
Confessou que gostava muito do gato, mas era um bichano estranho.
«Mas não me disse que agora só tem um cão?»
«É do meu sobrinho.»
Sorriu. Não se deixava apanhar em falso com duas cantigas.
«Está certo. E que mais? A Madalena não tem outros projetos?»
«Outros?»
«Sonhos...»
«Ah sim.»
Foi a minha vez de sorrir. Fiquei na expectativa.
«Já escolheram?»
Era o empregado.
«Madalena?»
«Cabrito assado.»
«O mesmo para mim.»
«E para beber?»
«Reguengos tinto.»
«Reserva?»
«Sim.»
O empregado afastou-se.
«Os sonhos... Madalena.»
«O vinho não é caro?»
«Hoje não dividimos ao meio. Fui eu quem fez o convite.»
«E eu escolhi o restaurante.»
«Importa-se...?»
«Obrigada.»
Encolheu os ombros. Só sonhava quando dormia. Nada mais tinha para contar. A sua vida era simples. Gostava mais de ouvir.
Sabia que era um sinal de defesa.
«Então vou continuar a falar.»
«Por que motivo vai desistir do Projeto?»
«Para mim está morto. Prefiro continuar a dar aulas.»
«Vão sentir a sua falta.»
«Ninguém é insubstituível. Já têm contabilistas, os malabaristas das contas. Bem vão precisar de milagres.»
«Acha?»
«E se falássemos de outra coisa. Por exemplo, do negócio que tem em mente.»
«Trapos. Preciso dum sócio que me financie.»
Era do que estava à espera.
Já comíamos o cabrito, uma vez que era prato do dia. Enchi-lhe o copo.
«É um delicioso néctar, mas tem grau.»
«Obrigada por avisar-me. Não passarei de um copo.»
Então ela precisava de um sócio...
Indiretamente estava a fazer-me um convite, já que não tinha coragem para o fazer com frontalidade. Medi os prós e os contras e decidi logo que não iria por ali. Financiando o negócio, mais tarde ou mais cedo tinha-a nos meus braços. Por outro lado, alimentar um saco sem fundo ia sair-me muito caro. Assim, fingi ignorar o convite e preparei o assalto final. Ou tudo ou nada.
Não me contive e disse o que sentia por ela, o que desejava para nós e o que faria e não faria, caso aceitasse a minha proposta.
No fundo, bem no fundo, o que queria?
Uma vida a dois.
Abriu muito os olhos, aparentemente surpreendida. E eu continuei falando. Falando para lá dos limites razoáveis. Sempre fui assim. Nunca gostei do meio termo. No meio termo residia a dúvida.
Praticamente não reagiu. Tinha sido apanhada desprevenida. E eu continuei falando, mais agressivo e zangado do que nunca, à medida que dava conta que ela acenava negativamente com a cabeça. A surpresa foi talvez uma tática dela. Nunca dera conta. Jurava.
«E os poemas... ?»
«Você é um poeta, Mário! Achei graça. Até gosto dos seus poemas.»
«Só?»
«Sim» fixou o olhar em mim. «Nunca o vi como um homem na minha vida. Até porque estou noutra.»
«Está? Não parece...»
«Olhe, Mário, já vivi uma vez com um homem e acredite que sofri muito. Agora sou uma pessoa livre e quero continuar assim.»
«Mas não disse que está noutra?»
«E não desminto. É uma relação temporária. Sem importância. Não, não quero voltar a envolver-me.»
Provavelmente um sócio. Um amante-sócio.
«O raio que a parta!» pensei.
«A Madalena é que conhece os caminhos por onde anda...»
Comemos a sobremesa em silêncio. Ela, um gelado e eu uma mousse de chocolate.
«Bebe café?» perguntei.
O seu sorriso envolvente! Se ele falasse verdade...
«Sim, por favor.»
Logo a seguir pedi a conta. Tinha pressa de sair.
Que pena o seu olhar terno saber a falsidade!
Perdi-a. Tive a certeza.
E voltei a perdê-la quando ela, à saída do restaurante, me deu uma oportunidade que não quis aproveitar. Estava ferido no meu orgulho. Ou tudo ou nada.
Pôs uma mão sobre o meu ombro e disse:
«Temos que nos amparar um ao outro.»
Não respondi.
Foi a única vez que não fugiu. Neste dia. Logo neste dia. Olhei-a. Parecia triste.
A mão desceu ao longo do meu braço esquerdo. Por momentos, revi as sensações que tivera na igreja e tive quase a certeza que tudo foi real nesse dia.
Dei-lhe um beijo no rosto. Depois, afastei-me. Afastei-me, sem olhar uma única vez para trás. Talvez a culpa não fosse minha, mas do poeta que tanto invejava. Só ele podia acariciá-la com palavras, encher de beijos aqueles olhos doces que nunca fugiam. Só o poeta tinha conseguido alcançar o inatingível. Possuir o corpo, sem defesas, que ela negara ao homem. Sim. Era toda uma obra do poeta e não do homem que sofria porque o outro entrou, sorrateiro, pela porta proibida e ouviu-a dizer que nunca tinha imaginado que os sentimentos do homem eram aqueles. Entrou com a magia do sonho mas não abriu o caminho ao homem.
Só num ponto, homem e poeta foram um só ao consentirem que ela falasse um pouco do seu passado. O céu da esperança abriu-se, por momentos, quando a mulher vivida resvalou, deixando vir à superfície recalcamentos antigos por ter sido usada por um homem que a deitou fora quando se cansou. Não queria repetir o erro.
«E com o poeta?»
INVENTEI-TE
Nas noites longas do meu desencantamento abraço o vazio e julgo que és tu. O teu corpo escorrega pelas minhas mãos deixando sensações por descobrir. Os lábios fecham-se, desencantados, e dizem que nunca aconteceu a verdade.
O magnetismo das ligações invisíveis. O luar dos teus olhos refletido noutros olhos. O riso descontrolado que prometeu vingança. Inventei tudo. O contacto de mãos agarradas que falaram de segredos e esconderam os segredos. As profecias que saíram da tua boca. Enfim, inventei-te para esconder a verdade e mostrar a mim próprio que não eras a minha verdade.
Aqui estamos de novo. Eu e um fantasma que se esconde nas profundezas insondáveis do consciente e vai devorando neurónios bloqueados. A sua fome é insaciável. A ânsia de destruir tornou-se irreversível.
E o luar dos teus olhos?
«Dos meus olhos?»
Não quero ouvir mais o teu riso irónico. Quero ser livre. Tens uma eternidade para esperar por mim.
Mas não desistes. Vais voltar outra vez. Amanhã. Em setembro.
Talvez que soltes o cabelo ao vento e corras ao meu encontro, utopia...Aqui estamos de novo. Eu e um fantasma que se esconde nas profundezas insondáveis do consciente e vai devorando neurónios bloqueados. A sua fome é insaciável. A ânsia de destruir tornou-se irreversível.
E o luar dos teus olhos?
«Dos meus olhos?»
Não quero ouvir mais o teu riso irónico. Quero ser livre. Tens uma eternidade para esperar por mim.
Mas não desistes. Vais voltar outra vez. Amanhã. Em setembro.
O VIANDANTE
O viandante errou toda a manhã pelos lugares do passado recente. Procurava sinais. Rostos conhecidos. Talvez vingança. Mas naquela manhã de setembro, ao contrário do que previra, nada iria acontecer. Continuava confuso, o principal motivo por que não conseguia tomar uma decisão era muito simples. Nunca se sentira vocacionado para investidas belicistas.A cartomante fora clara na previsão em relação às duas mulheres que tinha conhecido no Projeto. Relativamente à Madalena, chegou à conclusão que ele estava num beco sem saída. Não conseguia ir mais além porque ela tinha medo. Medo acrescido depois dos fenómenos ocorridos no restaurante. Depois, havia também a pesar experiências anteriores negativas no amor.
Uma relação que a destroçou?
Tirou duas cartas. Só influências astrais. O destino. Embora se pudesse modificar o destino, a influência nefasta da lua bloqueava-a. Ela era uma pessoa muito especial, muito complicada. Tinha medo de se envolver. Apenas medo. Daí a razão dos avanços e recuos sucessivos.
Quanto à Marta, a secretária exclusiva do Projeto, essa mulher queria mesmo ter uma ligação amorosa com ele. Motivo? Saturação do casamento. Desejo de novas experiências. Mas devia ter cuidado.
Mário pareceu dar importância ao aviso da cartomante. De facto a Marta era uma mulher vistosa, muito capaz de pôr à roda a cabeça de um homem. Confessou-lhe um dia que o seu gingar nos corredores desorientava os homens, principalmente um cinquentão, forte, careca, que não sabia onde colocar-se quando se cruzava com ela. Devia estar mais atento para não cair em qualquer ratoeira.
Pediu-lhe para tirar novas cartas. Confirmou o perigo, embora a situação estivesse controlada.
Explicou à cartomante que queria servir-se dela apenas como veículo para atingir a Madalena. Pensava que elas estavam amuadas por sua causa e talvez a Madalena fizesse negaças à amiga. Afinal, fora a Madalena quem interrompera um idílio carnal. Opinião da cartomante: não, a Marta não ia revelar o desejo de ir para a cama com ele.
«É pena...» Pensou.
Voltou a falar num jogo de forças antagónicas que não o deixavam ir mais além nas relações sentimentais.
Não podia ser mais enganado. Nem devia abandonar o posto. Alerta, alerta. Zangou-se e logo tudo pareceu estremecer em volta. A força estava de volta. Nem mais um segundo. Nem mais uma mentira. E a profecia que fosse para o diabo.
Agora voltava ao “local do crime”, procurando destroços que não existiam. Um prédio que foi construído de raiz com seis andares e que, passado um ano após a construção, levou com mais quatro em cima, era uma “vítima ideal” para ele fazer o seu exercício de concentração. À partida, o prédio estava enfraquecido.
Na esquina habitual encontrou a velha pedinte, que lhe estendeu a mão mal o viu. Maquinalmente deu-lhe as duas moedas brancas do costume. Não deixou de reparar que os olhos pareciam mais claros que o costume. Seria cega? Nunca pensara nisso. De facto noutros tempos não havia tempo. Sorriu. Conseguia recordar, o que era um absurdo. Tinha feito esforços enormes para pôr uma pedra sobre a estranha relação que tivera com a Madalena. Mas não era por ela que fazia o seu exercício de concentração. O caso era mais grave.
Manteve-se firme no seu posto, a uma distância razoável. Dali ainda podia dominar as entradas e saídas das pessoas no edifício. Dez minutos volvidos, afastou-se. Estava na hora de repetir o exercício fracassado. O edifício que os anjos tinham deixado de segurar não resistiria por muito mais tempo, acreditou.
«Cai, maldito! Já nada te pode proteger…»
Aguardou, impávido e sereno. Se insistisse, de certeza que seria premiado pelo seu esforço mental.
«Cai...»
Só queria que não estivesse ninguém a passar perto no momento da queda.
O edifício não se submeteu ao seu poder mental.
A cartomante fora clara. Ele tinha poderes crescentes e deixara de ser um iniciado. As experiências eram desafios crescentes. Se tentassem molestá-lo, teriam a resposta na volta.
«Cai, cai!»
Ficou na dúvida. Voltava mais tarde.
Atravessou a avenida e dirigiu-se, apressado, para a paragem do autocarro, sem tomar as habituais precauções. Correu tudo bem. Mesmo a tempo. Estava um a chegar.
Sentou-se de costas para o condutor. Não conseguia controlar os pensamentos que jorravam em torrente na sua mente. Por várias razões, odiava quase todos os que trabalhavam no último piso daquele edifício. Impunha-se tomar uma ação radical, mais forte. A solução era destruir o edifício que já não estava apoiado por anjos.
«Os anjos cansaram-se...» Reforçou.
O autocarro pôs-se em movimento e deixou de ver o prédio.
Sobressaltou-se. O companheiro do lado levantou-se bruscamente. Sentia-se tonto por ir de costas.
«Talvez seja uma questão nervosa.» Comentou. «Posso fazer longas viagens» disse o companheiro do lado. «No entanto, quando vou de costas, fico tonto.»
Tinha a certeza. O homem do lado fora envolvido pela teia dos seus pensamentos negros. Sentia-se mais aliviado, pois o outro saiu na paragem seguinte.«Talvez não voltasse a acontecer em Agadir…»
Que queria dizer com aquela frase, aparentemente sem nexo, que lhe tinha ocorrido dias antes?
Agadir. A-G-A-D-I-R.
«RIAD!»
Descobrira. Mas restavam duas letras. G e A. Talvez...
«G-uerr-A...»
Também estava em guerra no Projeto. Com um pé fora e outro dentro. Fazia o seu trabalho e o de um colega e uma assessora da Isabel Catita tinha prometido que seria compensado. Que ficasse descansado.
«Faz as contas das horas que perdes, Mário.»
E fez, muito por baixo. Cento e cinquenta contos.
A colega cumpriu a promessa?
Pois. Nem um terço da verba pedida, e que achava justa, a diretora queria pagar. Que ficasse com o cheque de quarenta e cinco contos. Sentia-se traído.
Uma relação que a destroçou?
Tirou duas cartas. Só influências astrais. O destino. Embora se pudesse modificar o destino, a influência nefasta da lua bloqueava-a. Ela era uma pessoa muito especial, muito complicada. Tinha medo de se envolver. Apenas medo. Daí a razão dos avanços e recuos sucessivos.
Quanto à Marta, a secretária exclusiva do Projeto, essa mulher queria mesmo ter uma ligação amorosa com ele. Motivo? Saturação do casamento. Desejo de novas experiências. Mas devia ter cuidado.
Mário pareceu dar importância ao aviso da cartomante. De facto a Marta era uma mulher vistosa, muito capaz de pôr à roda a cabeça de um homem. Confessou-lhe um dia que o seu gingar nos corredores desorientava os homens, principalmente um cinquentão, forte, careca, que não sabia onde colocar-se quando se cruzava com ela. Devia estar mais atento para não cair em qualquer ratoeira.
Pediu-lhe para tirar novas cartas. Confirmou o perigo, embora a situação estivesse controlada.
Explicou à cartomante que queria servir-se dela apenas como veículo para atingir a Madalena. Pensava que elas estavam amuadas por sua causa e talvez a Madalena fizesse negaças à amiga. Afinal, fora a Madalena quem interrompera um idílio carnal. Opinião da cartomante: não, a Marta não ia revelar o desejo de ir para a cama com ele.
«É pena...» Pensou.
Voltou a falar num jogo de forças antagónicas que não o deixavam ir mais além nas relações sentimentais.
Não podia ser mais enganado. Nem devia abandonar o posto. Alerta, alerta. Zangou-se e logo tudo pareceu estremecer em volta. A força estava de volta. Nem mais um segundo. Nem mais uma mentira. E a profecia que fosse para o diabo.
Agora voltava ao “local do crime”, procurando destroços que não existiam. Um prédio que foi construído de raiz com seis andares e que, passado um ano após a construção, levou com mais quatro em cima, era uma “vítima ideal” para ele fazer o seu exercício de concentração. À partida, o prédio estava enfraquecido.
Na esquina habitual encontrou a velha pedinte, que lhe estendeu a mão mal o viu. Maquinalmente deu-lhe as duas moedas brancas do costume. Não deixou de reparar que os olhos pareciam mais claros que o costume. Seria cega? Nunca pensara nisso. De facto noutros tempos não havia tempo. Sorriu. Conseguia recordar, o que era um absurdo. Tinha feito esforços enormes para pôr uma pedra sobre a estranha relação que tivera com a Madalena. Mas não era por ela que fazia o seu exercício de concentração. O caso era mais grave.
Manteve-se firme no seu posto, a uma distância razoável. Dali ainda podia dominar as entradas e saídas das pessoas no edifício. Dez minutos volvidos, afastou-se. Estava na hora de repetir o exercício fracassado. O edifício que os anjos tinham deixado de segurar não resistiria por muito mais tempo, acreditou.
«Cai, maldito! Já nada te pode proteger…»
Aguardou, impávido e sereno. Se insistisse, de certeza que seria premiado pelo seu esforço mental.
«Cai...»
Só queria que não estivesse ninguém a passar perto no momento da queda.
O edifício não se submeteu ao seu poder mental.
A cartomante fora clara. Ele tinha poderes crescentes e deixara de ser um iniciado. As experiências eram desafios crescentes. Se tentassem molestá-lo, teriam a resposta na volta.
«Cai, cai!»
Ficou na dúvida. Voltava mais tarde.
Atravessou a avenida e dirigiu-se, apressado, para a paragem do autocarro, sem tomar as habituais precauções. Correu tudo bem. Mesmo a tempo. Estava um a chegar.
Sentou-se de costas para o condutor. Não conseguia controlar os pensamentos que jorravam em torrente na sua mente. Por várias razões, odiava quase todos os que trabalhavam no último piso daquele edifício. Impunha-se tomar uma ação radical, mais forte. A solução era destruir o edifício que já não estava apoiado por anjos.
«Os anjos cansaram-se...» Reforçou.
O autocarro pôs-se em movimento e deixou de ver o prédio.
Sobressaltou-se. O companheiro do lado levantou-se bruscamente. Sentia-se tonto por ir de costas.
«Talvez seja uma questão nervosa.» Comentou. «Posso fazer longas viagens» disse o companheiro do lado. «No entanto, quando vou de costas, fico tonto.»
Tinha a certeza. O homem do lado fora envolvido pela teia dos seus pensamentos negros. Sentia-se mais aliviado, pois o outro saiu na paragem seguinte.«Talvez não voltasse a acontecer em Agadir…»
Que queria dizer com aquela frase, aparentemente sem nexo, que lhe tinha ocorrido dias antes?
Agadir. A-G-A-D-I-R.
«RIAD!»
Descobrira. Mas restavam duas letras. G e A. Talvez...
«G-uerr-A...»
Também estava em guerra no Projeto. Com um pé fora e outro dentro. Fazia o seu trabalho e o de um colega e uma assessora da Isabel Catita tinha prometido que seria compensado. Que ficasse descansado.
«Faz as contas das horas que perdes, Mário.»
E fez, muito por baixo. Cento e cinquenta contos.
A colega cumpriu a promessa?
Pois. Nem um terço da verba pedida, e que achava justa, a diretora queria pagar. Que ficasse com o cheque de quarenta e cinco contos. Sentia-se traído.
A cartomante fez o sinal da cruz, voltada para a imagem em cerâmica do ser barbudo e começou a baralhar as cartas. Ele olhou em volta. Havia uma longa série de pratos nas paredes e bem no alto. Tentou concentrar-se.
As cartas disseram que não sairia do Projeto. Porquê? Aqui começou a ficar preocupado. Falou em poder crescente que ele estava a criar (a receber). Donde vinha? Não sabia. Estava no destino. Domínio cada vez mais poderoso e capacidades paranormais cada vez mais desenvolvidas e irreversíveis. As suas pequenas felicidades, os tempos livres, apenas seriam recordados com alguma saudade. E era mau, mesmo muito mau, para os que o rodeavam cada vez que pensava em sair.
«Começarão a cair como tordos e o senhor professor não quer que isso aconteça. É uma pessoa de bem. Mas é inevitável acontecer se quiser sair...»
Caíam como tordos?
Perguntou se devia voltar ao Projeto.
A cartomante lançou outra vez as cartas do Tarot e disse que a situação ia ser revista e a remuneração mais justa. Mas continuaria também na escola. No Projeto, veria os seus poderes e influência em crescimento constante.
Referiu-se ao colega que tinha substituído, por causa da operação melindrosa que este fez, dos motivos morais que não o deixavam sair. Falou também dos fenómenos paranormais que se desenrolavam à sua volta sem que os pudesse controlar ou entender a sua origem. Apenas tinha desconfianças.
«Esse está liquidado.» Foi o comentário imediato da cartomante.
Sobre os fenómenos paranormais, confirmou que as suas capacidades seriam aumentadas.
Um mês depois, como continuava o braço de ferro entre ele e a responsável pelo Projeto, deixou sobre a sua secretária uma carta de despedida, contrariando as previsões da cartomante.
O colega que adoeceu, recuperou e voltou ao trabalho, mas de facto alguém caiu como um tordo. Precisamente o marido de uma colega muito ligada à Isabel Catita morreu cinco anos mais tarde vítima de uma doença que poucas vezes perdoou.
Quanto ao prédio com quatro andares a mais, continuou de pé. Afinal os anjos não desistiram de o segurar...
Estava de passagem. Queria saber onde era o nº 66. Algo não batia certo. Havia um incêndio num prédio de sete andares, começado nas caves. Tudo errado. Quem andava a interferir? Pediu aos anjos terminassem a ajuda e o que aconteceu?
Sentia-se gozado com o incêndio num prédio da avenida, na zona oposta. Ah!, viandante, viandante!, foste gozado em grande!”
Chegou à zona do costume e pensou também o costume. O edifício continuava de pé. Os anjos tinham-se arrependido?
Encolheu os ombros e encaminhou-se para um Banco da avenida onde funcionava o Projeto. Tinha um cheque para levantar. Tudo correu bem. Seguiu-se a CGD situada avenida da República. Agora era um cheque que tinha para depositar. Além disso, precisava de saber o saldo. A fila de pessoas era enorme. Hesitou. Talvez fosse melhor tratar do assunto noutra ocasião. Por outro lado, não tinha nada de especial para fazer. Pôs-se na fila.
A progressão era lenta. Olhou em volta, tentando consumir o tempo. Um idoso dormia sentado numa cadeira.
Imaginou que o idoso adormecido acabava de ter um colapso cardíaco. E ele, viandante, como médico que não era, estava a seu lado chamando-o para o lado certo da vida. A emoção das pessoas era grande. A recuperação parecia difícil. Tinha de conseguir. Nem que o outro fosse o desconhecido homem curvado. Uma senhora que lhe pareceu ter bom aspeto acabava de ser atendida. Teve um palpite. Pela idade e pelo ar distinto que aparentava, devia ser a acompanhante do idoso profundamente adormecido.
Acertou. A senhora pôs suavemente a mão na testa do companheiro. Ele continuou a dormir. A senhora repetiu a carícia. O idoso não deu sinal. Respirava de modo acelerado. Outra carícia. As pessoas começaram a olhar, preocupadas. O próprio viandante sentiu pressões no peito e as mãos tornaram-se húmidas. Que raio de pensamentos tivera! Parecia que chamava a morte... Foi a vez de se sentir indisposto. Voltou-se de costas para o velho e para a senhora que continuava a acariciar-lhe a testa sem êxito. Assim estava melhor. Mas não deixou de ir espreitando.
Finalmente o idoso acordou. Respirou fundo. Devia deixar de ter aquelas brincadeiras parvas. O tal jogo, como dissera a cartomante.
Estavam quatro pessoas antes dele. Em breve seria atendido. Depois, regressava a casa. Mas... seria verdade? Havia um problema nos computadores.
Sorriu, irónico. Mais uma coincidência.
E quantas vezes acontecia aquela coincidência? As cartas disseram que não sairia do Projeto. Porquê? Aqui começou a ficar preocupado. Falou em poder crescente que ele estava a criar (a receber). Donde vinha? Não sabia. Estava no destino. Domínio cada vez mais poderoso e capacidades paranormais cada vez mais desenvolvidas e irreversíveis. As suas pequenas felicidades, os tempos livres, apenas seriam recordados com alguma saudade. E era mau, mesmo muito mau, para os que o rodeavam cada vez que pensava em sair.
«Começarão a cair como tordos e o senhor professor não quer que isso aconteça. É uma pessoa de bem. Mas é inevitável acontecer se quiser sair...»
Caíam como tordos?
Perguntou se devia voltar ao Projeto.
A cartomante lançou outra vez as cartas do Tarot e disse que a situação ia ser revista e a remuneração mais justa. Mas continuaria também na escola. No Projeto, veria os seus poderes e influência em crescimento constante.
Referiu-se ao colega que tinha substituído, por causa da operação melindrosa que este fez, dos motivos morais que não o deixavam sair. Falou também dos fenómenos paranormais que se desenrolavam à sua volta sem que os pudesse controlar ou entender a sua origem. Apenas tinha desconfianças.
«Esse está liquidado.» Foi o comentário imediato da cartomante.
Sobre os fenómenos paranormais, confirmou que as suas capacidades seriam aumentadas.
Um mês depois, como continuava o braço de ferro entre ele e a responsável pelo Projeto, deixou sobre a sua secretária uma carta de despedida, contrariando as previsões da cartomante.
O colega que adoeceu, recuperou e voltou ao trabalho, mas de facto alguém caiu como um tordo. Precisamente o marido de uma colega muito ligada à Isabel Catita morreu cinco anos mais tarde vítima de uma doença que poucas vezes perdoou.
Quanto ao prédio com quatro andares a mais, continuou de pé. Afinal os anjos não desistiram de o segurar...
Estava de passagem. Queria saber onde era o nº 66. Algo não batia certo. Havia um incêndio num prédio de sete andares, começado nas caves. Tudo errado. Quem andava a interferir? Pediu aos anjos terminassem a ajuda e o que aconteceu?
Sentia-se gozado com o incêndio num prédio da avenida, na zona oposta. Ah!, viandante, viandante!, foste gozado em grande!”
Chegou à zona do costume e pensou também o costume. O edifício continuava de pé. Os anjos tinham-se arrependido?
Encolheu os ombros e encaminhou-se para um Banco da avenida onde funcionava o Projeto. Tinha um cheque para levantar. Tudo correu bem. Seguiu-se a CGD situada avenida da República. Agora era um cheque que tinha para depositar. Além disso, precisava de saber o saldo. A fila de pessoas era enorme. Hesitou. Talvez fosse melhor tratar do assunto noutra ocasião. Por outro lado, não tinha nada de especial para fazer. Pôs-se na fila.
A progressão era lenta. Olhou em volta, tentando consumir o tempo. Um idoso dormia sentado numa cadeira.
Imaginou que o idoso adormecido acabava de ter um colapso cardíaco. E ele, viandante, como médico que não era, estava a seu lado chamando-o para o lado certo da vida. A emoção das pessoas era grande. A recuperação parecia difícil. Tinha de conseguir. Nem que o outro fosse o desconhecido homem curvado. Uma senhora que lhe pareceu ter bom aspeto acabava de ser atendida. Teve um palpite. Pela idade e pelo ar distinto que aparentava, devia ser a acompanhante do idoso profundamente adormecido.
Acertou. A senhora pôs suavemente a mão na testa do companheiro. Ele continuou a dormir. A senhora repetiu a carícia. O idoso não deu sinal. Respirava de modo acelerado. Outra carícia. As pessoas começaram a olhar, preocupadas. O próprio viandante sentiu pressões no peito e as mãos tornaram-se húmidas. Que raio de pensamentos tivera! Parecia que chamava a morte... Foi a vez de se sentir indisposto. Voltou-se de costas para o velho e para a senhora que continuava a acariciar-lhe a testa sem êxito. Assim estava melhor. Mas não deixou de ir espreitando.
Finalmente o idoso acordou. Respirou fundo. Devia deixar de ter aquelas brincadeiras parvas. O tal jogo, como dissera a cartomante.
Estavam quatro pessoas antes dele. Em breve seria atendido. Depois, regressava a casa. Mas... seria verdade? Havia um problema nos computadores.
Sorriu, irónico. Mais uma coincidência.
Claro que não conseguiu saber o saldo. Os terminais ficaram off. Não havia comunicação com a central.
Apesar do contratempo continuou bem disposto. Ou ele não tivesse sido desportista nos tempos da sua juventude...
Há muito tempo que o Mário não passava na rua de Entrecampos. Haveria alguma agência naquela rua? Foi andando em frente. A rua era comprida.
Ouviu finalmente o ruído de uma máquina de registar totolotos. Mas, coisa estranha!, vinha de uma taberna. Não hesitou. Pela a primeira vez ia entregar boletins numa taberna.
Depois de ter entregue todos os boletins de uma das sociedades, dirigiu-se para o outro lado da linha de caminho de ferro. A nova estação estava bem concebida, pensou, e logo esboçou um sorriso sarcástico. A rua ainda continuava para o outro lado, o que não tinha a mínima lógica.
Andou mais alguns metros. Depois, inexplicavelmente, infletiu para a esquerda e começou a descer uma rua em direção a Entrecampos.
Restaurante El Sombrero.
Onde ouvira esse nome?
Já sabia. Era um restaurante que a Marta frequentara ainda antes de ter o acidente e do estranho encontro a três no restaurante Clemente. No outro tempo e em que ele e a Madalena foram transportados para outra galáxia. Outro tempo que não queria recordar.
«O almoço foi bom, Marta?»
Vinha eufórica, elétrica.
«Gosto muito de comida mexicana, doutor. Mas bebi mais do que a conta.»
«De facto está alegre.»
De repente ficou triste.
«Disse alguma coisa desagradável?»
Descruzou as pernas e mostrou a cor das cuecas. Vermelhas.
Limpou uma lágrima rebelde. Da alegria passou à tristeza.
«O doutor é uma pessoa correta.»
Já estava nas Estados Unidos.
Quanto ao resto, foi a semana dos oitos no totoloto. Teve um terceiro prémio no concurso 38. O boletim era o 28 da sociedade. Saíram os números 18 e 48. Foi o oitavo terceiro prémio que ganhou. Na agência 428. O registo era o 42581 e o boletim tinha o número
Sentia-se preocupado. Esfumara-se o tempo da rosa e o tempo em que não havia tempo também parecia ter chegado ao fim. A mulher de Aries prometera sempre facilidades e o resultado estava à vista. Ele parecia controlar as iniciativas, mas não devia esquecer a força escondida de Aries. Os avanços concedidos eram aparentes.
Devia pensar duas vezes antes de decidir tomar uma decisão. Tudo parecia muito fácil a princípio. Demasiado fácil. Depois, certamente viria uma escarpa inacessível. O costume.
O espírito de aventura, a curiosidade e a fome carnal eram três vetores a tomar em linha de conta. Mas havia mais uma coisa. O desejo egocêntrico do viandante que se confundia com a força centrípeta que o empurrava para Aries. Era atraído por um motivo que talvez só o passado podia explicar. O olhar meigo e triste e, ao mesmo tempo, desafiador, levava-o, fatalmente, ao passado remoto. A curiosidade de o conhecer melhor também tinha um preço (vantagem para ele) e grande. Mas, vendo bem, o risco era aparente. Tudo se passava em segurança, sob a proteção eficaz do triângulo. O viandante conhecia sobejamente a força desse triângulo. Só que fora imaterial, controlado do outro lado. Quando a magia deixou ver a verdade, não havia verdade nenhuma. Nem caminhos a seguir ou utopias de amanhã acontecer. A verdadeira utopia foi o salto para uma nova madrugada, depois do Leão voltar costas, em ar de desprezo para não admitir a derrota traumatizante.
Lera em qualquer livro sobre os poderes de Aries. Só ela podia devorar o Leão, sempre apaixonado por algo que não podia ter, repetindo a paixão ao seguir pelo caminho mais difícil, onde eram acenados impossíveis. «O que é meu, às minhas mãos vem parar!»
«E o que é teu?»
Foi esse o engano. O engano de olhos de outros olhos que também eram meigos e tristes. Tristes de tão tristes serem e de jamais fazerem feliz o viandante ou outro qualquer como ele que se cruzasse, tal asteroide, com a órbita do amanhã acontecer, para depois sair da sua própria órbita.
E quem somos nós senão viandantes que descem, ciclicamente, nesta Terra agreste, à procura da sua ilha?
O asteroide risca o céu e toma a cor vermelha, muito vermelha... até que desaparece.
Mas a utopia, essa não fugia. Já riscava o céu.
«Não fugirei!»
«Amanhã volta acontecer. O que é fácil tem um preço. Qual é o teu preço e por que tens um preço?»
«E qual é o teu fictício?»
«Sempre gostei de abstrair. Receio que o meu fictício sejas tu e o real a sede insaciável de vingança.»
«Estás a abstrair.»
«Imenso. Pensei que tinhas partido. Tinhas partido para lá da luz e já não precisavas de vingar o ultraje de te ter abandonado à sina de seres possuída pelo homem que mais odiavas.»
«Sou Aries.»
«Bem sei. Curiosamente a outra Aries em quem estou a pensar e não em ti, tem quase a mesma idade que terias se não tivesses partido. Preciso de a conhecer melhor...»
«Não vai ser fácil.»
«Há muito que não falava contigo! Não fujas para outras paragens.»
«Fujo, sim. Descobriste-me noutros olhos e não gostaste.»
«Para a próxima...»
«Não há outra oportunidade.»
«Profecia?»
«Verdade. Verdade trágica. E vai sempre acontecer assim. Com ela ou com outra. Até que nos voltemos a encontrar.»
«Aí?, desse lado?»
«Quem sabe?»
O viandante sentiu a ausência. O fio desligou-se e perguntava a si próprio que pensamentos eram aqueles que tinham ocupado a sua mente.
Que mais podia fazer? Talvez nada. Encolheu os ombros, resignado, e caminhou ao acaso. Afinal um acaso determinista que o haveria de levar ao encontro da última utopia. Aí, a outra Aries desempenharia um papel importante de bloqueio.
«Essa agora!»
Ele a pensar nela e quem estava a ver a subir a avenida Casal Ribeiro?
«Olá, Odete!»
«Que surpresa!»
O tal meteoro que riscou o céu e veio na órbita do acontecer. De facto foi uma coincidência que dava para pensar.
«Que fazes por aqui?»
«Isso pergunto eu. Moro a cem metros, numa transversal.»
«Ah sim. Já me tinhas dito. Que cabeça a minha!»
«Pois disse. Vou voltar este ano para a escola. Acabou o destacamento.»
«E eu também.»
Infelizmente aquela órbita do acontecer ia ser muito prejudicial para ele.
«És tu que fazes os horários da noite?»
«Sou. Queres uma cunha?» perguntou.
«Podemos ficar com as mesmas turmas.»
«Pois podemos.»
Não faças isso! Amanhã ela vai cravar-te um punhal...
Claro que o viandante não entendeu a metáfora e, ao não entender, ficou vulnerável à concretização da profecia.


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