No café Santiago já viveu fragmentos da sua infância. Não está ali para piscar o olho a uma mulher sentada à sua esquerda e que o observa descaradamente. O seu objetivo é outro. Fugir das suas tempestades interiores. Criar novas frustrações. As antigas, mal ou bem, estão arquivadas. Mas como um cometa situado na nuvem de Oort, tende a vir à cena sempre que surge uma perturbação...
Não está no café por acaso. Pressente que, de um momento para o outro, vai ter um novo cenário pela frente. Primeiro passo. Clear e de imediato vem o escuro. O vazio ocupa o seu lugar, mas por pouco tempo. Quase logo a seguir, faz-se luz e tudo parece diferente, sem a referência da mulher descarada, nem o prato com o pastel de nata, nem a chávena que já teve café no seu interior. O local é o mesmo. Só o tempo é outro. É impossível viajar ao passado. Muito menos alterá-lo. Mas nada impede que esteja no centro de mais uma história que talvez já tenha acontecido...
O Vítor, seu antigo colega de carteira, e supostamente grande amigo, surge da escuridão e tem o rosto desfocado. No futuro, que é o presente de Mário, ele já estará morto porque foi vitimado por um brutal desastre de aviação. Soube da notícia nessa infausta manhã quando ouvia o noticiário na rádio. Não teve a coragem de ir ao funeral prestar-lhe a última homenagem e nunca perdoou a si próprio tamanha fraqueza que o assaltou no momento. Mas o que fez, ficou feito e não pode ser alterado.
«Olá, Mário. Estás com um ar esquisito. Será que cometeste algum crime?»
Sobressaltou-se. Foi apanhado de surpresa.
«Parece-te que matei alguém?»
Em parte, o Vítor tinha razão. Mas tratava-se certamente de uma metáfora. No futuro ele "mataria" uma mulher com uma mistura de propano-butano (1).
O amigo fez um gesto teatral, pondo as duas mãos sobre a cabeça. Mário viu-o pálido como a cera.
«Não me digas que a gaja te deu com os pés!»
Cresceu para ele. Ato defensivo.
«Primeiro, não sei quem é a gaja de que estás a falar. Segundo, sim, és capaz de ter razão. Há uns tantos minutos matei duas moscas que me chateavam o juízo. Apanhei-as em pleno voo. Um atributo que vem dos tempos da mocidade e que ainda conservo.»
«Estou pasmado.»
«Conheces o género desses insetos desprezíveis que não merecem o mínimo de misericórdia. São autênticas pragas, não achas?»
«Se o dizes...»
«Mas senta-te. Hoje pago eu a despesa.»
Está e não está a falar com um fantasma. O tempo correu para trás e limitou-se a ser arrastado para aquele café que tantas recordações lhe estava a trazer.
«Aqui há coisa! Deves ter ganho mais uma senha na máquina dos jogos americanos. Faço uma ideia da cara de bufo do Carliche. Deve ter ficado com mau perder (2).»
«Não aconteceu nada do que julgas. Por acaso é dinheiro fresco. Sabes tão bem como eu que eles pagam com senhas de consumo no café.»
Puxou de uma nota de vinte escudos que mostrou ao amigo.
«Aqui há caso! Onde a foste desencantar?»
«Achei-a.»
«Sorte demais. Diz lá a verdade ao teu amigo e antigo colega de carteira. Acredito que foi alguma velhinha a quem fizeste um favor. Ou então a cananan abriu as pernas tortas. Com a luz apagada faz-se tudo, Mário, não achas?»
«A propósito, julgas que sou como tu e o teu irmão a enganarem-se um ao outro para ver quem come à noite a vossa sopeira esquentada?»
O Vítor olhou-o frontalmente com ar de poucos amigos, mas optou por rir à gargalhada. Ao mesmo tempo Mário levou o indicador à testa e acenou negativamente com a cabeça. Era certo que o amigo passava por um momento de loucura.
«Olha, não te quero mal. Se pensas que vais longe estás enganado.»
Será inveja?
Um dia confessou a uma colega que gostava de ser como ele. Certinho e direitinho. Claro que ela foi logo contar-lhe tudo. A ele, Mário.
Não deu qualquer resposta. Foi a vez de o fixar, mas com cara de caso. Não atingia onde pretendia chegar. O melhor era pôr-se à defesa.
«As aulas vão bem na Faculdade de Ciências, Mário?»
Mudança de tática? Todo o cuidado era pouco, mesmo vindo de um amigo.
«Mais ou menos. A princípio andei um pouco perdido, mas já foi tudo ao lugar. Pondo de parte as práticas de Matemáticas Gerais, em que estou quase tapado de faltas. E tu como te tens dado?»
«Também como tu. Mais ou menos. Chateia-me a disciplina daquele colégio maldito. Ainda não somos militares e já os gajos são ultra rigorosos como se a guerra fosse para amanhã. E tu já me conheces de ginjeira. Sou o sacana de um rebelde.»
Simples formalidades para se desviar do assunto principal. Talvez já não fosse conveniente.
«Tens razão, Vítor. Não há guerra no horizonte.»
Mas o outro voltou à carga.
«Então?»
«Então, o quê?»
«Estou à espera que me fales da gaja.»
«Não sei de quem estás a falar.»
Onde queria o amigo chegar?
«Afinal não tenho nada a ver com o caso. Já acabámos o namoro há uns tempos. Ou melhor: ela acabou. Sou um canastrão sem emenda e ela é tão delicada como uma rosa. Mas não devias estar a esta hora no Fortunato?»
Era isso. Ciúmes. Provavelmente ainda gostava dela e atirou de ricochete. Mário acusou o tiro. Felizmente que vestia colete à prova de bala. Até porque o seu jogo era limpo e não entendia o azedume sarcástico do amigo. Quanto à Gina, não sabia explicar como estavam os seus sentimentos. Era muito parecida com a Manuela e ele estava a sair de uma grave crise. Tinham acabado o namoro e o maldito do orgulho não deixava qualquer margem para voltar atrás. E a complicar tudo estava uma pequena atração que sentia pela Gina, nascida nas férias do Natal quando começou no Fortunato a estudar Matemáticas Gerais com a burra da sua colega Inês. A Gina, que frequentava a Faculdade de Letras, costumava fazer-lhes companhia. Só apoio moral, como ela dizia.
De facto, àquela hora, devia estar no Fortunato. Que grande bronca! Esqueceu-se por completo. Entretanto o encontro com o Vítor trouxe-lhe uma revelação grave. É que o safado andava a espiá-los.
«Tens razão, devia estar no Fortunato a estudar Matemáticas Gerais com a Inês. Ou melhor. A dar-lhe explicações.»
«Ela é um pouco tosca, não é?»
«Mas é boa rapariga. Sabes que namora com um colega meu de Geológicas? Um alentejano burgesso.»
«Como se chama esse gajo?»
«Rosa. Manuel Rosa.»
«Que raio de nome para um homem. E o namoro é mesmo sério?»
«Até parece um amor de perdição.»
«São os mais perigosos. Costumam acabar mal.»
Mário concordou.
De repente lembrou-se duma cena passada com o Vítor no tempo em que jogavam à bola no pátio do costume. A certa altura a redondinha caiu na fazenda contígua ao pátio e o amigo foi buscá-la. Já não era a primeira vez que lá ia e demorava muito tempo. Da última abusou e veio de lá com uma tremenda dor de barriga. Tinha estado a comer cerejas.
«Ah!, essa foi boa.»
Está e não está a falar com um fantasma. O tempo correu para trás e limitou-se a ser arrastado para aquele café que tantas recordações lhe estava a trazer.
«Aqui há coisa! Deves ter ganho mais uma senha na máquina dos jogos americanos. Faço uma ideia da cara de bufo do Carliche. Deve ter ficado com mau perder (2).»
«Não aconteceu nada do que julgas. Por acaso é dinheiro fresco. Sabes tão bem como eu que eles pagam com senhas de consumo no café.»
Puxou de uma nota de vinte escudos que mostrou ao amigo.
«Aqui há caso! Onde a foste desencantar?»
«Achei-a.»
«Sorte demais. Diz lá a verdade ao teu amigo e antigo colega de carteira. Acredito que foi alguma velhinha a quem fizeste um favor. Ou então a cananan abriu as pernas tortas. Com a luz apagada faz-se tudo, Mário, não achas?»
«A propósito, julgas que sou como tu e o teu irmão a enganarem-se um ao outro para ver quem come à noite a vossa sopeira esquentada?»
O Vítor olhou-o frontalmente com ar de poucos amigos, mas optou por rir à gargalhada. Ao mesmo tempo Mário levou o indicador à testa e acenou negativamente com a cabeça. Era certo que o amigo passava por um momento de loucura.
«Olha, não te quero mal. Se pensas que vais longe estás enganado.»
Será inveja?
Um dia confessou a uma colega que gostava de ser como ele. Certinho e direitinho. Claro que ela foi logo contar-lhe tudo. A ele, Mário.
Não deu qualquer resposta. Foi a vez de o fixar, mas com cara de caso. Não atingia onde pretendia chegar. O melhor era pôr-se à defesa.
«As aulas vão bem na Faculdade de Ciências, Mário?»
Mudança de tática? Todo o cuidado era pouco, mesmo vindo de um amigo.
«Mais ou menos. A princípio andei um pouco perdido, mas já foi tudo ao lugar. Pondo de parte as práticas de Matemáticas Gerais, em que estou quase tapado de faltas. E tu como te tens dado?»
«Também como tu. Mais ou menos. Chateia-me a disciplina daquele colégio maldito. Ainda não somos militares e já os gajos são ultra rigorosos como se a guerra fosse para amanhã. E tu já me conheces de ginjeira. Sou o sacana de um rebelde.»
Simples formalidades para se desviar do assunto principal. Talvez já não fosse conveniente.
«Tens razão, Vítor. Não há guerra no horizonte.»
Mas o outro voltou à carga.
«Então?»
«Então, o quê?»
«Estou à espera que me fales da gaja.»
«Não sei de quem estás a falar.»
Onde queria o amigo chegar?
«Afinal não tenho nada a ver com o caso. Já acabámos o namoro há uns tempos. Ou melhor: ela acabou. Sou um canastrão sem emenda e ela é tão delicada como uma rosa. Mas não devias estar a esta hora no Fortunato?»
Era isso. Ciúmes. Provavelmente ainda gostava dela e atirou de ricochete. Mário acusou o tiro. Felizmente que vestia colete à prova de bala. Até porque o seu jogo era limpo e não entendia o azedume sarcástico do amigo. Quanto à Gina, não sabia explicar como estavam os seus sentimentos. Era muito parecida com a Manuela e ele estava a sair de uma grave crise. Tinham acabado o namoro e o maldito do orgulho não deixava qualquer margem para voltar atrás. E a complicar tudo estava uma pequena atração que sentia pela Gina, nascida nas férias do Natal quando começou no Fortunato a estudar Matemáticas Gerais com a burra da sua colega Inês. A Gina, que frequentava a Faculdade de Letras, costumava fazer-lhes companhia. Só apoio moral, como ela dizia.
De facto, àquela hora, devia estar no Fortunato. Que grande bronca! Esqueceu-se por completo. Entretanto o encontro com o Vítor trouxe-lhe uma revelação grave. É que o safado andava a espiá-los.
«Tens razão, devia estar no Fortunato a estudar Matemáticas Gerais com a Inês. Ou melhor. A dar-lhe explicações.»
«Ela é um pouco tosca, não é?»
«Mas é boa rapariga. Sabes que namora com um colega meu de Geológicas? Um alentejano burgesso.»
«Como se chama esse gajo?»
«Rosa. Manuel Rosa.»
«Que raio de nome para um homem. E o namoro é mesmo sério?»
«Até parece um amor de perdição.»
«São os mais perigosos. Costumam acabar mal.»
Mário concordou.
De repente lembrou-se duma cena passada com o Vítor no tempo em que jogavam à bola no pátio do costume. A certa altura a redondinha caiu na fazenda contígua ao pátio e o amigo foi buscá-la. Já não era a primeira vez que lá ia e demorava muito tempo. Da última abusou e veio de lá com uma tremenda dor de barriga. Tinha estado a comer cerejas.
«Ah!, essa foi boa.»
Estava no Fortunato e a Gina olhava para ele, preocupada.
«Sentes-te bem, Mário?»
Demorou a responder. Tinha a impressão de ter vindo de muito longe. Fez um esforço para parecer normal.
«Claro que estou bem, Gina. Apenas pensava...»
«Em quê?»
«Ora, pensava na morte da bezerra. A Inês atrasou-se. Queres estudar comigo?»
«Brincalhão! Havia de ser bonito e tenho a certeza que ia compreender tudo ao contrário. A complexidade das sucessões e os artifícios que vocês usam para determinar o limite. Ou melhor: que tu fazes. Gabo-te a paciência que tens com a Inês.»
«É só por amizade. E até serve de treino.»
«És boa pessoa, Mário.»
Encolheu os ombros e sorriu. Um sorriso triste que fazia lembrar a Manuela. Não entendeu aquele sorriso. Afinal a atração que sentia tinha as suas origens bem definidas.
«Agora ficaste a olhar para mim...»
«És muito bonita. Não te disseram ainda, Gina? Fazes-me lembrar...»
Calou-se.
Abstrais imenso e não deixas penetrar um pouco no teu espírito...
De onde veio aquela interferência?
«Faço-te lembrar, quem?» perguntou, expectante.
«Não ligues. Olha uma coisa, já alguma vez te apaixonaste?»
«Talvez. Foi mais uma nuvem passageira. Ele era muito instável e não fazia o meu género. Sabes a quem me refiro, não sabes?»
«Sei. O Vítor disse-me que lhe deste com os pés. Tem pena do rapaz. Anda por aí a bater com a cabeça pelas paredes.»
«Que continue a bater.»
«Pode ser que encontre o caminho certo contigo.»
«Nem pensar nisso. Foste colega de carteira dele, mas não o conheces tão bem como eu.»
«És capaz de ter razão.»
Agora estava a armar-se em bom samaritano quando a atração por ela se cimentava?
No mínimo, era cinismo.
Entretanto chegou a colega de estudo do Mário. Ou melhor: a sua explicanda. Mas ele também beneficiava ao rever a matéria numa outra perspetiva.
«Olá, gente! Nem vocês sabem qual foi o meu primeiro pensamento quando os vi juntos, principalmente o olhar inflamado do Mário. Cuidado, Gina, que o Mário é um pinga-amor das dúzias.»
«Sim?»
«Não faças caso, Gina.» Defendeu-se Mário.
«Estou só a brincar. Respondo por ele.»
Saltando para o futuro...
Ainda no tempo em que havia algumas possibilidades de consertar a relação com uma mulher com quem viveu alguns anos, uma noite foram ao Galeto comer o tradicional bife.
«É o cartão de visita desta casa» disse ela. «O molho é ótimo. E do esparregado não se fala. Não posso abusar muito porque faz-me mal aos intestinos.»
«Bem sei.»
«Bem sabes, o quê?»
«Descansa que não me estou a referir ao problema que tens com os intestinos. Problema ou má relação, tanto faz. Mas concordo contigo que o esparregado é bom. Só um reparo: faltam umas gotas de vinagre para lhe dar aquele toque acre de que tanto gosto.»
«Pensava que nunca cá tinhas vindo. Surpresa das surpresas, afinal enganei-me.» Comentou, fazendo um gesto teatral.
«Mas quem não conhece o Galeto?»
«Não sabes uma coisa e vou dizer-te...»
Virou-se para ela, muito sério. Oito anos perdidos ingloriamente com alguém que o quis convencer que eram almas gémeas. Mas as almas gémeas não existiam. Apenas nas palavras inflamadas dos amantes sonhadores. Nos poemas.
«Neste momento não quero falar do diferendo que nos separa. Gosto de ti e estamos bem como estamos. Acho que o melhor para nós é continuarmos a relação, embora cada um na sua casa. Mas quero dizer-te outra coisa. Muito provavelmente até já deste conta.»
«De quê?»
«Aquela mulher não tira os olhos de ti! É impressionante a fixação dela.»
«E onde está essa mulher?»
«Não vês? Mesmo na tua frente, no outro balcão. Come-te com os olhos, grande sonso!»
A mulher fazia-se acompanhar de um homem mais velho que devia ser o marido.
Fez um esforço para recordar-se. A cara não lhe era estranha.
«Tenho ou não tenho razão?»
«Tens sempre razão, pequena, mas acontece que não me lembro da mulher. Se a conheci, foi há muito tempo.»
«Espero que não estejas a disfarçar.»
«Achas que sim? E depois?»
Sim, e depois?
«Não será aquela colega que te fazia poemas inflamados e te ofereceu o Fel? Pode muito bem ser ela.»
Coitada da Beatriz Sousa. Tinha uma fixação por ele!
Entre uma garfada, pegar no guardanapo para limpar os lábios e beber um gole de cerveja preta, de repente acendeu-se uma luz. Tinha alguma razão para não se lembrar dela. O tempo vincara-lhe o rosto, modificando muito a sua fisionomia, mas ainda conservava os traços de uma mulher bonita. O olhar, esse mantinha-se igual. Triste.
«Já sei quem é.»
«Uma admiradora?»
«Talvez sim, talvez não.»
«De repente ficaste enigmático» agastou-se. «Vá lá, conta-me. Estou com curiosidade.»
Não tinha motivos para roer-se de ciúmes porque a relação com aquela mulher de olhar triste não chegou a existir, e por um motivo muito simples: faltou a um baile.
«Como assim?»
«Em tempos muito recuados convidei-a para ir a um baile organizado por alunos da Faculdade de Ciências e faltou. Pior ainda, faltou sem sequer me avisar.»
«Bem feito! Como se chama?»
«Gina. Bem feito?»
«Quando uma não quer, logo outra aproveita. De certeza que conheceste outra mulher.»
«Talvez.»
«Talvez não é certo.»
Limitou-se a sorrir, para grande danação dela.
«Engatatão das dúzias!»
Olhou para a Anabela. Quase nove anos numa vivência a dois que foi tragada quando deram conta que já nada tinham para dar um ao outro.
«Vamos a isto, Inês. Estudaste alguma coisa?»
«Muito! Cada vez percebo menos. Não imaginas a angústia que sinto sempre que folheio as folhas de exercícios.»
«Tem calma que o primeiro embate é o mais difícil. Como em tudo. Depois, o caminho fica aberto e torna-se tudo mais fácil.»
Tempo de estudo com um objetivo forte que era ter positiva na primeira frequência de Matemáticas Gerais. De facto a Inês não ajuda muito. Não chega ter boa vontade. Faltam-lhe os conhecimentos básicos, para não falar no poder de raciocínio. Assim, limita-se a tentar transmitir-lhe os conhecimentos que já adquiriu, a título de beneficiar com a prática de resolver os mesmos exercícios mais que uma vez. No fundo, e em suma, aproveita para fazer revisões. Estão a estudar limites de sucessões, o que é um bom petisco. Torna-se fundamental introduzir toda uma panóplia de artifícios (como se costuma dizer) para se ultrapassarem obstáculos que parecem impossíveis de transpor. Depois, é uma alegria quando se chega ao limite da sucessão.
«Não te importas de me explicar outra vez? Tu és um querido! Desculpa-me por ocupar o teu tempo precioso, mas a verdade é que não consigo engendrar esses malditos artifícios. Tu, sim, não tens problemas e o certo é que o caminho fica aberto para ti sem a mínima dificuldade.»
Olhou de propósito para a Gina, à espera de um comentário que não surgiu. Mas foi melhor o sorriso que esta lhe dirigiu.
«É só usares um pouco de imaginação, Inês. E também muita prática. Já lá dizia o outro…»
«Quem é o outro?»
Não conseguiu suster o riso.
«É só uma força de expressão.»
«Ah.»
«Vamos a mais um exercício?»
«Vamos. Quem me dera chegar ao dia da frequência e ter em pensamento a tua presença e tu poderes transmitir-me a marcha sequencial dos exercícios.»
«Gostavas de ter-me dentro do bolso, como se eu fosse uma cábula, não é? Dentro do bolso, não, porque usas vestido. Com hei de dizer...?»
«Não digas mais nada, Mário» comentou, sarcástica, a amiga da Inês. «Sabes uma coisa? Quanto mais falas mais te enterras!»
«Que estão para aí a dizer, que não entendo nada?»
Mesmo assim com tantos conhecimentos matemáticos, o futuro diz-lhe que vai apanhar um sete. Nem mais, nem menos. Depois de um trabalho que parecia profícuo, é caso para sentir-se revoltado. Saber aplicar artifícios e haver ainda mais outros que não ocorrem no momento. Ou desconhecer alguma teoria, já que o programa é vasto.
Um rosto angelical, tristonho, vai escutando, em silêncio, o diálogo que travam, apreciando o êxito do momento e lamentado também o fracasso perante um exercício mais difícil. Enquanto se debatem na metafísica da Matemática, ela vai amenizando, com a sua presença graciosa, o deserto de números e símbolos que os rodeia, perfeitamente à-vontade porque está a leste de todas as angústias que eles sentem. Frequenta a Faculdade de Letras e está tudo dito. Nem sequer traz as suas folhas de estudo. Sente-se leve como uma pena. São sinais das férias. Mário observa-a e admira a sua paciência, o espírito contemplativo, a ausência do olhar. Observa-a melhor e acha que é muito parecida com a Manuela. Tão parecida que parecem irmãs gémeas.
De repente sente-se no olho de um furacão. Não. Não quer perder o amor da Manuela que, segundo imagina, pensa em si, perdida, algures, na extensa planície alentejana (3). A nostalgia toma conta do momento porque está longe e desconhece a trama que está a ser tecida e que vai prolongar-se no futuro. Ao mesmo tempo, Mário pode ter outros sonhos que ela não adivinha que foi traída. Está longe do coração e é dramático não prever que vai esquecer amanhã os compromissos assumidos. Mas não vão acabar aquela bela relação por causa da Gina, a tal mulher que é muito parecida com ela.
As férias do Natal chegaram ao fim. Se é razoável falar de férias a quem estuda intensamente quase todos os dias para a frequência de Matemáticas Gerais com a consciência das dificuldades que atravessa e de não ver compensado, a médio prazo, o esforço que está fazendo.
Nada se modificou com o recomeço das aulas, a não ser o interesse crescente pela Gina e dela por ele, mas sempre acompanhada da amiga. Continuou a ver as duas, desta vez na Associação de Estudantes. A insistência da Gina dava para pensar que devia avançar.
Resolveu não perder mais tempo. Um dia foi à Faculdade de Letras e teve logo muita sorte. Mal entrou no átrio e olhou em frente, viu-a no meio de outras universitárias. Vinha dos lados do anfiteatro.
Aproximou-se até que ficaram frente a frente.
«Não sou inconveniente?»
«De maneira alguma, Mário. Há muito que não te via...»
«Podemos falar um pouco?»
«Pode ser. Já não tenho mais aulas hoje.»
«Tive muita sorte em ver-te. Acabo de chegar. Vim de propósito, sabes?»
Sentiu o rubor tingir-lhe o rosto.
«E então?»
Então, o que podia dizer?
Por momentos, embatucou. Como ela também estava bastante embaraçada, arriscou:
«Há algum sítio onde possamos tomar um café?»
Notou na expressão do rosto um sinal de contrariedade. Era a primeira vez que estavam sós. Compreendia.
«Deixa. O que tenho para te dizer é rápido. Conforme já te disse há dias, no sábado há um baile de receção aos caloiros. O salão de baile fica para os lados do largo de Camões, na calçada do Combro. Sempre vais?»
«A Inês também vai?»
Sempre a Inês! Como se ele fosse um papão.
«Não sei, Gina. Fala com ela. Mas diz-me qualquer coisa com antecedência. Tens o meu contacto, não tens?»
Tinha. Mas não lhe telefonou. Mais tarde o baile realizou-se sem ela, claro. E não avisou que não ia. Esqueceu-se ou nem por isso.
Foi então que Mário conheceu outra jovem.
Voltou a abrir-se o portal na memória e está a aproveitar até ao máximo toda uma sequência de imagens que passam, rápidas, na sua frente. São cinco da tarde. Entra no café Fortunato. Ele e os amigos frequentam o café com assiduidade, mas desta vez está só. Já lá vai o tempo do mistério da bola de cortiça e dos espirros molhados do Fernandinho que conspurcavam por completo a mesa que ocupava, mesmo à entrada do café, à guisa de cartão de visita. Um espetáculo pouco edificante, só comparável àquele que fazia o Armando, seu colega de carteira dos tempos das primeiras letras, em que, num instante, o tampo ficava pejado de destroços quase sólidos de ranho quando ele espirrava. O caso do Fernandinho era parecido. Um espirro bem sonante e a mesa logo invadida pelos tais destroços. Nem de propósito. Acontecia no momento em que ele e o seu amigo Sousa Cabral entravam no café. O espetáculo inebriante continuava, quando eles já estavam sentados mais para trás, numa das mesas ao lado da montra, donde se viam as pessoas que passavam na rua.
«Vai um Porto?»
E o Fernandinho apontava para o cálice que tinha na frente.
«Muito obrigado, senhor Fernando.» Agradeceu o Mário, nauseado, à espera do pior.
«Não será aquela colega que te fazia poemas inflamados e te ofereceu o Fel? Pode muito bem ser ela.»
Coitada da Beatriz Sousa. Tinha uma fixação por ele!
Entre uma garfada, pegar no guardanapo para limpar os lábios e beber um gole de cerveja preta, de repente acendeu-se uma luz. Tinha alguma razão para não se lembrar dela. O tempo vincara-lhe o rosto, modificando muito a sua fisionomia, mas ainda conservava os traços de uma mulher bonita. O olhar, esse mantinha-se igual. Triste.
«Já sei quem é.»
«Uma admiradora?»
«Talvez sim, talvez não.»
«De repente ficaste enigmático» agastou-se. «Vá lá, conta-me. Estou com curiosidade.»
Não tinha motivos para roer-se de ciúmes porque a relação com aquela mulher de olhar triste não chegou a existir, e por um motivo muito simples: faltou a um baile.
«Como assim?»
«Em tempos muito recuados convidei-a para ir a um baile organizado por alunos da Faculdade de Ciências e faltou. Pior ainda, faltou sem sequer me avisar.»
«Bem feito! Como se chama?»
«Gina. Bem feito?»
«Quando uma não quer, logo outra aproveita. De certeza que conheceste outra mulher.»
«Talvez.»
«Talvez não é certo.»
Limitou-se a sorrir, para grande danação dela.
«Engatatão das dúzias!»
Olhou para a Anabela. Quase nove anos numa vivência a dois que foi tragada quando deram conta que já nada tinham para dar um ao outro.
«Vamos a isto, Inês. Estudaste alguma coisa?»
«Muito! Cada vez percebo menos. Não imaginas a angústia que sinto sempre que folheio as folhas de exercícios.»
«Tem calma que o primeiro embate é o mais difícil. Como em tudo. Depois, o caminho fica aberto e torna-se tudo mais fácil.»
Tempo de estudo com um objetivo forte que era ter positiva na primeira frequência de Matemáticas Gerais. De facto a Inês não ajuda muito. Não chega ter boa vontade. Faltam-lhe os conhecimentos básicos, para não falar no poder de raciocínio. Assim, limita-se a tentar transmitir-lhe os conhecimentos que já adquiriu, a título de beneficiar com a prática de resolver os mesmos exercícios mais que uma vez. No fundo, e em suma, aproveita para fazer revisões. Estão a estudar limites de sucessões, o que é um bom petisco. Torna-se fundamental introduzir toda uma panóplia de artifícios (como se costuma dizer) para se ultrapassarem obstáculos que parecem impossíveis de transpor. Depois, é uma alegria quando se chega ao limite da sucessão.
«Não te importas de me explicar outra vez? Tu és um querido! Desculpa-me por ocupar o teu tempo precioso, mas a verdade é que não consigo engendrar esses malditos artifícios. Tu, sim, não tens problemas e o certo é que o caminho fica aberto para ti sem a mínima dificuldade.»
Olhou de propósito para a Gina, à espera de um comentário que não surgiu. Mas foi melhor o sorriso que esta lhe dirigiu.
«É só usares um pouco de imaginação, Inês. E também muita prática. Já lá dizia o outro…»
«Quem é o outro?»
Não conseguiu suster o riso.
«É só uma força de expressão.»
«Ah.»
«Vamos a mais um exercício?»
«Vamos. Quem me dera chegar ao dia da frequência e ter em pensamento a tua presença e tu poderes transmitir-me a marcha sequencial dos exercícios.»
«Gostavas de ter-me dentro do bolso, como se eu fosse uma cábula, não é? Dentro do bolso, não, porque usas vestido. Com hei de dizer...?»
«Não digas mais nada, Mário» comentou, sarcástica, a amiga da Inês. «Sabes uma coisa? Quanto mais falas mais te enterras!»
«Que estão para aí a dizer, que não entendo nada?»
Mesmo assim com tantos conhecimentos matemáticos, o futuro diz-lhe que vai apanhar um sete. Nem mais, nem menos. Depois de um trabalho que parecia profícuo, é caso para sentir-se revoltado. Saber aplicar artifícios e haver ainda mais outros que não ocorrem no momento. Ou desconhecer alguma teoria, já que o programa é vasto.
Um rosto angelical, tristonho, vai escutando, em silêncio, o diálogo que travam, apreciando o êxito do momento e lamentado também o fracasso perante um exercício mais difícil. Enquanto se debatem na metafísica da Matemática, ela vai amenizando, com a sua presença graciosa, o deserto de números e símbolos que os rodeia, perfeitamente à-vontade porque está a leste de todas as angústias que eles sentem. Frequenta a Faculdade de Letras e está tudo dito. Nem sequer traz as suas folhas de estudo. Sente-se leve como uma pena. São sinais das férias. Mário observa-a e admira a sua paciência, o espírito contemplativo, a ausência do olhar. Observa-a melhor e acha que é muito parecida com a Manuela. Tão parecida que parecem irmãs gémeas.
De repente sente-se no olho de um furacão. Não. Não quer perder o amor da Manuela que, segundo imagina, pensa em si, perdida, algures, na extensa planície alentejana (3). A nostalgia toma conta do momento porque está longe e desconhece a trama que está a ser tecida e que vai prolongar-se no futuro. Ao mesmo tempo, Mário pode ter outros sonhos que ela não adivinha que foi traída. Está longe do coração e é dramático não prever que vai esquecer amanhã os compromissos assumidos. Mas não vão acabar aquela bela relação por causa da Gina, a tal mulher que é muito parecida com ela.
As férias do Natal chegaram ao fim. Se é razoável falar de férias a quem estuda intensamente quase todos os dias para a frequência de Matemáticas Gerais com a consciência das dificuldades que atravessa e de não ver compensado, a médio prazo, o esforço que está fazendo.
Nada se modificou com o recomeço das aulas, a não ser o interesse crescente pela Gina e dela por ele, mas sempre acompanhada da amiga. Continuou a ver as duas, desta vez na Associação de Estudantes. A insistência da Gina dava para pensar que devia avançar.
Resolveu não perder mais tempo. Um dia foi à Faculdade de Letras e teve logo muita sorte. Mal entrou no átrio e olhou em frente, viu-a no meio de outras universitárias. Vinha dos lados do anfiteatro.
Aproximou-se até que ficaram frente a frente.
«Não sou inconveniente?»
«De maneira alguma, Mário. Há muito que não te via...»
«Podemos falar um pouco?»
«Pode ser. Já não tenho mais aulas hoje.»
«Tive muita sorte em ver-te. Acabo de chegar. Vim de propósito, sabes?»
Sentiu o rubor tingir-lhe o rosto.
«E então?»
Então, o que podia dizer?
Por momentos, embatucou. Como ela também estava bastante embaraçada, arriscou:
«Há algum sítio onde possamos tomar um café?»
Notou na expressão do rosto um sinal de contrariedade. Era a primeira vez que estavam sós. Compreendia.
«Deixa. O que tenho para te dizer é rápido. Conforme já te disse há dias, no sábado há um baile de receção aos caloiros. O salão de baile fica para os lados do largo de Camões, na calçada do Combro. Sempre vais?»
«A Inês também vai?»
Sempre a Inês! Como se ele fosse um papão.
«Não sei, Gina. Fala com ela. Mas diz-me qualquer coisa com antecedência. Tens o meu contacto, não tens?»
Tinha. Mas não lhe telefonou. Mais tarde o baile realizou-se sem ela, claro. E não avisou que não ia. Esqueceu-se ou nem por isso.
Foi então que Mário conheceu outra jovem.
Voltou a abrir-se o portal na memória e está a aproveitar até ao máximo toda uma sequência de imagens que passam, rápidas, na sua frente. São cinco da tarde. Entra no café Fortunato. Ele e os amigos frequentam o café com assiduidade, mas desta vez está só. Já lá vai o tempo do mistério da bola de cortiça e dos espirros molhados do Fernandinho que conspurcavam por completo a mesa que ocupava, mesmo à entrada do café, à guisa de cartão de visita. Um espetáculo pouco edificante, só comparável àquele que fazia o Armando, seu colega de carteira dos tempos das primeiras letras, em que, num instante, o tampo ficava pejado de destroços quase sólidos de ranho quando ele espirrava. O caso do Fernandinho era parecido. Um espirro bem sonante e a mesa logo invadida pelos tais destroços. Nem de propósito. Acontecia no momento em que ele e o seu amigo Sousa Cabral entravam no café. O espetáculo inebriante continuava, quando eles já estavam sentados mais para trás, numa das mesas ao lado da montra, donde se viam as pessoas que passavam na rua.
«Vai um Porto?»
E o Fernandinho apontava para o cálice que tinha na frente.
«Muito obrigado, senhor Fernando.» Agradeceu o Mário, nauseado, à espera do pior.
E pior era impossível. Só evocando o Slimpas, seu colega de carteira na Escola Primária.
Mais um espirro e mais daquilo. Substancialmente mais daquilo.
«Que nojo!» queixava-se o Sousa Cabral.
«Cala-te, que ele ainda te ouve!»
«E que oiça. O homem é mesmo um porco nojento!»
«Tens razão. Vamos embora daqui.»
«Olha uma coisa, Mário? Como vai o romance com a Gina?»
«Já não vai.»
«Então porquê?»
«Faltou ao baile.»
«Ah, o baile. E ao menos avisou?»
«Nem isso. Mas conheci uma jovem com quem dancei toda a noite!»
«Boa, Mário!»
Mais um espirro e mais daquilo. Substancialmente mais daquilo.
«Que nojo!» queixava-se o Sousa Cabral.
«Cala-te, que ele ainda te ouve!»
«E que oiça. O homem é mesmo um porco nojento!»
«Tens razão. Vamos embora daqui.»
«Olha uma coisa, Mário? Como vai o romance com a Gina?»
«Já não vai.»
«Então porquê?»
«Faltou ao baile.»
«Ah, o baile. E ao menos avisou?»
«Nem isso. Mas conheci uma jovem com quem dancei toda a noite!»
«Boa, Mário!»
ODETE...
A noite do baile encheu-o de glória. Na realidade a Gina não apareceu, nem mesmo depois de lhe dizer que podia levar um “pau-de-cabeleira”, para o caso o seu irmão, com quem aliás se dava muito bem.
A noite do baile encheu-o de glória. Na realidade a Gina não apareceu, nem mesmo depois de lhe dizer que podia levar um “pau-de-cabeleira”, para o caso o seu irmão, com quem aliás se dava muito bem.
Adiante, porque aconteceu outra coisa e muito boa. Um deslumbramento. Um encanto de mulher que valorizou a luta, pacífica, que travou com o colega de quarto.
Começo do baile. Ele e o Alberto, seu colega de quarto na pensão da Aninhas-Morte-Lenta, estavam a conversar num canto do salão. O tema não podia ser outro senão um tomar de pulso às colegas e não só. Uma jovem de vestido comprido, bem cintado, de um tom rosa, sapatos a condizer, saltos altos, rosto engraçado, lábios finos, olhos marotos, pareceu ser a eleita dos dois.
«Estás a ver o mesmo que eu?» perguntou o Alberto. «Se não estás, não entras na corrida.»
«Queres saber uma coisa? A miúda deve ser familiar da Glória, a tua colega de Biológicas» admitiu o Mário. «E se fôssemos para junto delas? Falamos com a esgrouviada da Glória e ela apresenta-nos a miúda. É gira, pá. Muito gira!»
«Também acho, mas não é para os teus dentes.»
«Veremos...»
Luta que se aproximava.
Assim fizeram e aconteceu como previram.
«Esta é a minha prima, a Odete. Não conhece ninguém e está acanhada. Tratem bem dela, mas não abusem.»
«Nós também não conhecemos ninguém. Só a ti e, que eu saiba, és casada.» Disse o Alberto
«Mentiroso! Não conheces ninguém! Como se não te conhecesse. Morde aqui.»
«Onde?»
Enquanto os outros trocavam piropos, aproveitou o momento para se dirigir à jovem Odete.
«E se nós déssemos uns passos de dança enquanto eles estão distraídos a desconversar?»
A Odete concordou e ele ganhou a batalha logo a partir daquele momento. O Alberto bem tentou recuperar o terreno perdido, mas não foi o escolhido. Mário entusiasmou-se tanto ou tão pouco que esqueceu logo a tampa demolidora que a Gina lhe tinha dado. A Odete estava “vestida para deslumbrar” e eles encaixavam bem um no outro. Só gostavam de música lenta: tangos, slows e boleros. Mário falava verdade. Era o que se podia considerar um cepo para dançar e com aquele estilo de música arrastada, mais pisadela, menos pisadela, não fazia mal.
Não se separaram nessa noite. Muito tentou o Alberto. Sempre que se aproximava deles, Mário fazia-lhe um gesto com a cabeça para se afastar.
Já a noite ia alta quando combinaram encontrar-nos dois dias depois, por volta das cinco.
«Onde, Odete?»
«À saída do liceu Maria Amália.»
Ante o olhar de espanto de Mário, sorriu, tentando tranquilizá-lo:
«Mas tenho já dezasseis anos. Sou cabulona...»
«Ah!, sim...»
Cuidado, Mário! Ela é menor...
Mas, “vestida para deslumbrar”, parecia mais velha. E até disse que tinha dezasseis anos. Afinal ela só era dois anos e uns meses mais nova do que ele.
«Talvez seja repetente do quinto ano.» Pensou.
A esperança era sempre a última coisa a morrer. E quanto à idade da jovem tinha que acreditar. Logo se via.
Devem ter acontecido duas coisas que o narrador, pessoa neutra e conhecedora da personalidade de Mário, arriscou dizer. Este pouco dormiu na véspera do encontro. E na tarde do mesmo, já estava perfilado no seu posto de espera uma hora antes (aliás, era costume). Andou para trás e para a frente, deu várias voltas ao quarteirão, tropeçou num buraco do passeio e torceu o tornozelo. Enfim, a expectativa era grande. Estava mesmo apanhado. Aquele perfume suave, o peito cheio que parecia ainda sentir encostado ao seu, a voz doce e...
«Então vou desmamar crianças? E se eu fugisse daqui? Tenho quase dezanove anos e ela é menor!»
Mas era tarde para desistir. Ela já o tinha visto e acenava com braço na sua direção. Vinha entre uma meia dúzia de jovens imberbes e loiras.
Aproximou-se, algo apreensivo. Qualquer coisa ia correr mal.
Não sejas pessimista, Mário...
«Achas?»
A Odete destacou-se do grupo e pôde observá-la melhor. Vestia uma bata preta, calçava soquetes brancos e sapatos rasos.
Soquetes brancos, Mário!
«Estás a dar uma no cravo e outra na ferradura. Cala-te, minha ave agoirenta. A miúda é gira.»
E se ela tivesse só quinze anos?
Os seus quase dezanove anos envergonhavam-no. Apetecia-lhe dar meia volta e desaparecer. Mas não o fez. Com o melhor dos sorrisos dirigiu-se para a jovem.
«Não parece a mesma, Odete!»
«Tem razão. Neste liceu não nos deixam andar de outra maneira.»
Tentou reparar a grosseria.
«Mesmo sem pintura não deixa de ser gira...»
«Obrigada.»
E não estava a mentir. Não contou a primeira impressão. Vendo bem, era um bom pedaço que não podia desprezar. Depois, segundo ela, já tinha dezasseis anos. Quase três anos de diferença não constituíam problema.
Atravessava uma época difícil. Ele e a Manuela tinham acabado o namoro. Agora conheceu a Odete e andava com ela. Depois, seriam talvez outras. Enfim. Muitas ilusões que pareciam morrer quando deixava de sonhar acordado.
Perdeu o ponto de equilíbrio e foi resvalando ao sabor do acaso, deslumbrado com Lisboa e os seus encantos e feitiços, com a sensação de liberdade quase absoluta a toldar-lhe a capacidade de raciocinar normalmente. Mas tudo tinha o seu reverso da medalha. Quem era livre nunca se sentia feliz porque o destino tornava-se saltitante, acabando sempre o libertino por chegar a um beco sem saída.
Foi bom enquanto não encontrou uma outra ilusão. Só lamentava não ter amado a Odete talvez como ela merecia.
Nessa altura ainda existia o café Tic-Tac. No seu lugar está agora uma instituição bancária a ocupar um espaço que lhe deixou recordações agradáveis.
Davam as mãos, conversavam de coisas banais, roçavam as pernas escondidas debaixo da mesa, acariciava-lhe as coxas e avançava até onde podia e ela sorria, esboçando sinais de cócegas. Explicava-lhe também os problemas de Física e de Matemática e ela olhava para ele com os seus olhos grandes, perturbadores e suplicantes, que pareciam pediam:
«Leva-me para outro sítio, Mário!»
E ele resistiu?
O seu anjo-da-guarda tentou travar o desejo, segredando-lhe ao ouvido que a Odete era menor e ainda o metia em sarilhos dos grandes. Mas parece que a audácia da juventude fez orelhas moucas aos avisos.
«Estás a ver o mesmo que eu?» perguntou o Alberto. «Se não estás, não entras na corrida.»
«Queres saber uma coisa? A miúda deve ser familiar da Glória, a tua colega de Biológicas» admitiu o Mário. «E se fôssemos para junto delas? Falamos com a esgrouviada da Glória e ela apresenta-nos a miúda. É gira, pá. Muito gira!»
«Também acho, mas não é para os teus dentes.»
«Veremos...»
Luta que se aproximava.
Assim fizeram e aconteceu como previram.
«Esta é a minha prima, a Odete. Não conhece ninguém e está acanhada. Tratem bem dela, mas não abusem.»
«Nós também não conhecemos ninguém. Só a ti e, que eu saiba, és casada.» Disse o Alberto
«Mentiroso! Não conheces ninguém! Como se não te conhecesse. Morde aqui.»
«Onde?»
Enquanto os outros trocavam piropos, aproveitou o momento para se dirigir à jovem Odete.
«E se nós déssemos uns passos de dança enquanto eles estão distraídos a desconversar?»
A Odete concordou e ele ganhou a batalha logo a partir daquele momento. O Alberto bem tentou recuperar o terreno perdido, mas não foi o escolhido. Mário entusiasmou-se tanto ou tão pouco que esqueceu logo a tampa demolidora que a Gina lhe tinha dado. A Odete estava “vestida para deslumbrar” e eles encaixavam bem um no outro. Só gostavam de música lenta: tangos, slows e boleros. Mário falava verdade. Era o que se podia considerar um cepo para dançar e com aquele estilo de música arrastada, mais pisadela, menos pisadela, não fazia mal.
Não se separaram nessa noite. Muito tentou o Alberto. Sempre que se aproximava deles, Mário fazia-lhe um gesto com a cabeça para se afastar.
Já a noite ia alta quando combinaram encontrar-nos dois dias depois, por volta das cinco.
«Onde, Odete?»
«À saída do liceu Maria Amália.»
Ante o olhar de espanto de Mário, sorriu, tentando tranquilizá-lo:
«Mas tenho já dezasseis anos. Sou cabulona...»
«Ah!, sim...»
Cuidado, Mário! Ela é menor...
Mas, “vestida para deslumbrar”, parecia mais velha. E até disse que tinha dezasseis anos. Afinal ela só era dois anos e uns meses mais nova do que ele.
«Talvez seja repetente do quinto ano.» Pensou.
A esperança era sempre a última coisa a morrer. E quanto à idade da jovem tinha que acreditar. Logo se via.
Devem ter acontecido duas coisas que o narrador, pessoa neutra e conhecedora da personalidade de Mário, arriscou dizer. Este pouco dormiu na véspera do encontro. E na tarde do mesmo, já estava perfilado no seu posto de espera uma hora antes (aliás, era costume). Andou para trás e para a frente, deu várias voltas ao quarteirão, tropeçou num buraco do passeio e torceu o tornozelo. Enfim, a expectativa era grande. Estava mesmo apanhado. Aquele perfume suave, o peito cheio que parecia ainda sentir encostado ao seu, a voz doce e...
«Então vou desmamar crianças? E se eu fugisse daqui? Tenho quase dezanove anos e ela é menor!»
Mas era tarde para desistir. Ela já o tinha visto e acenava com braço na sua direção. Vinha entre uma meia dúzia de jovens imberbes e loiras.
Aproximou-se, algo apreensivo. Qualquer coisa ia correr mal.
Não sejas pessimista, Mário...
«Achas?»
A Odete destacou-se do grupo e pôde observá-la melhor. Vestia uma bata preta, calçava soquetes brancos e sapatos rasos.
Soquetes brancos, Mário!
«Estás a dar uma no cravo e outra na ferradura. Cala-te, minha ave agoirenta. A miúda é gira.»
E se ela tivesse só quinze anos?
Os seus quase dezanove anos envergonhavam-no. Apetecia-lhe dar meia volta e desaparecer. Mas não o fez. Com o melhor dos sorrisos dirigiu-se para a jovem.
«Não parece a mesma, Odete!»
«Tem razão. Neste liceu não nos deixam andar de outra maneira.»
Tentou reparar a grosseria.
«Mesmo sem pintura não deixa de ser gira...»
«Obrigada.»
E não estava a mentir. Não contou a primeira impressão. Vendo bem, era um bom pedaço que não podia desprezar. Depois, segundo ela, já tinha dezasseis anos. Quase três anos de diferença não constituíam problema.
Atravessava uma época difícil. Ele e a Manuela tinham acabado o namoro. Agora conheceu a Odete e andava com ela. Depois, seriam talvez outras. Enfim. Muitas ilusões que pareciam morrer quando deixava de sonhar acordado.
Perdeu o ponto de equilíbrio e foi resvalando ao sabor do acaso, deslumbrado com Lisboa e os seus encantos e feitiços, com a sensação de liberdade quase absoluta a toldar-lhe a capacidade de raciocinar normalmente. Mas tudo tinha o seu reverso da medalha. Quem era livre nunca se sentia feliz porque o destino tornava-se saltitante, acabando sempre o libertino por chegar a um beco sem saída.
Foi bom enquanto não encontrou uma outra ilusão. Só lamentava não ter amado a Odete talvez como ela merecia.
Nessa altura ainda existia o café Tic-Tac. No seu lugar está agora uma instituição bancária a ocupar um espaço que lhe deixou recordações agradáveis.
Davam as mãos, conversavam de coisas banais, roçavam as pernas escondidas debaixo da mesa, acariciava-lhe as coxas e avançava até onde podia e ela sorria, esboçando sinais de cócegas. Explicava-lhe também os problemas de Física e de Matemática e ela olhava para ele com os seus olhos grandes, perturbadores e suplicantes, que pareciam pediam:
«Leva-me para outro sítio, Mário!»
E ele resistiu?
O seu anjo-da-guarda tentou travar o desejo, segredando-lhe ao ouvido que a Odete era menor e ainda o metia em sarilhos dos grandes. Mas parece que a audácia da juventude fez orelhas moucas aos avisos.
Quem é Mário?, um jogador sôfrego que aposta o próprio dia a dia, ou alguém vencido por um passado que lhe retalhou em absoluto as entranhas e que tenta expurgar-se da má sina das encruzilhadas em que se enganou ao decidir o caminho a tomar e que se refletirá fatalmente no futuro, ou o crente no paranormal, na existência de seres mais evoluídos, algures na galáxia, ou para lá dela, que espalham no ar uma mensagem saturniana que vai tornar os seus dias ainda mais cinzentos?
Mário transfigura-se, solicitado por desdobramentos constantes de personalidade. Um matiz variável de profundos contrastes pinta-lhe a vida psicológica que nada tem a ver com a existencial. Num instante, já a primavera tem o inverno à porta. Não há verão. Mário vive atormentado. Está condenado a saltar de sonho em sonho. As estações sucedem-se. Sem tempo. Só com ausências. Por vezes, um sonho de esperança ilumina a sua noite escura. A estação fixa-se e ele respira fundo. Concentra-se, bebendo, avidamente no passado que não escolheu e viaja até às profundezas da mente reativa. Chama a si os múltiplos engramas que lhe dilaceravam os neurónios. Entretanto, cada engrama que encontra é destruído, sistematicamente, mas nunca para sempre. Continua a mergulhar cada vez mais fundo, à procura do engrama final. É um desafio forte. O momento é crucial e ele vacila. Mas não desiste. Tem que encontrar a causa final.
AUSENDA
Eis um exemplo de esperanças perdidas do passado...
Ela era loira. Bonita. Muito alegre. Morava na zona da Graça. Nessa altura Mário vivia na pensão “Aninhas-morte-lenta” e já tinha acabado o namoro com a Manuela. Ou melhor, os dois decidiram suspender a relação por algum tempo.
Conheceu a Ausenda só porque, num fim-de-semana, a sua prima Lenita falou nela ocasionalmente.
«Vais ficar encantado quando a conheceres, Mário. É uma rapariga muito desempoeirada e também muito simpática.»
«Achas?»
«Depois vês. E ouve uma coisa: ela não tem namorado. Gosta de um fulano mas parece que ele não lhe passa cartão. É boa rapariga, talvez um pouco esgrouviada. Se vocês se entendessem era muito bom para os dois. Ambos precisam de assentar.»
Mário bem precisava de assentar. A prima tinha razão.
«Pois. Se tu o dizes...»
«Vê se tiras a Manuela da cabeça. Depois do que lhe fizeste... francamente, nunca mais te perdoa.»
Sim. Era caso arrumado. Mas menos linear do que pudesse imaginar no momento.
«É bom de dizer. Mas que fiz eu?»
A prima não respondeu. Limitou-se a acenar com a cabeça em tom de censura.
Pediu-lhe o contacto da jovem e copiou-o para um cartão de visita. De seguida, a Lenita mostrou-lhe uma fotografia.
«Que achas?»
«Tens razão. É uma rapariga vistosa. Só noto uma pequena coisa...»
«O quê?»
«Acho que tem sobrancelhas demasiado espessas para uma mulher.»
«Esquisitão!» abanou a cabeça. «Tens melhor no teu caixote do lixo?»
«Mas passou no exame. Posso ficar com a fotografia?»
A prima hesitou.
«Vá lá, Lenita, ela não precisa de saber.»
Isto passou-se no fim de semana. Regressou a Lisboa com dinheiro fresco no bolso.
Na segunda-feira à noite, ele e o Alberto, o seu companheiro de quarto que era da Pide e ele não sabia. Encheram-se de cerveja na Solmar e ficou quase sem um tostão. Sem dinheiro não tinha outra hipótese senão estudar durante o resto da semana. Era o sistema a funcionar. Pensando bem, a ideia pouco ortodoxa até podia resultar. Gastar quase de uma só vez a semanada que o pai lhe dava e ficar com o mínimo indispensável para subsistir.
Enquanto conseguiu ler os rótulos das garrafas em frente ao balcão e se levantou, sem cambalear, para ir aos lavabos verter líquidos, tudo bem. Mas a partir da oitava imperial é que as coisas se complicaram e tentou jogar à defesa. Mas já era tarde. O álcool tomou conta de si e desempenhou o seu papel habitual.
O Alberto estava um pouco mais sóbrio. Uma questão de treino. Só ria muito do Mário porque este levou o caminho de regresso à pensão a implicar com todas as prostitutas que encontraram pelo caminho. A cena era a mesma. A todo o custo queria que se regenerassem. Que tomassem uma vida digna. Ele até podia ajudar. Só não sabia como.
«Anda lá, Mário. Deixa as pequenas em paz. Elas querem trabalhar, não vês?»
«Mas...»
Digamos que era um moralista que desejava conduzir as transviadas para o bom caminho do Senhor. Um Pastor. Só não se lembrava, tal a bebedeira, que tinha estado na cama, uns minutos antes, com uma dessas transviadas.
Teve um desempenho de antologia, lá isso teve. Impecável.
«Vá, despacha-te!»
«Vê se te mexes, mulher! Pareces um cepo...»
«E tu, valentão, assim não vais lá, não. Estás mais bêbado que um cacho.» Desculpou-se a prostituta.
«Assim nunca mais vais lá. Esforça-te, rapaz.»
«Esforça-te tu. Não te paguei para isso?»
«Parece que é agora. Aleluia! Estava custoso.»
«Querias desmoralizar-me... Vê-se bem que não me conheces. Chamo-me Mário e sou do azul. Concretizo tudo o que quero.»
«Tens a certeza?»
«A que propósito?»
«Nada. O que tu tens é farelo. Agora vou pôr-te à prova. Queres dar outra? Desta vez é à borla. Não costumo oferecer muitas oportunidades como esta.»
E riu-se, continuando a desafiá-lo.
Mário não reagiu à provocação. Sabia das limitações do momento e, como leão que era, voltou-lhe as costas, desta simulando desinteresse. O leão só virava as costas quando não tinha a mínima possibilidade de êxito. E era o caso.
O colega de quarto já estava à espera.
«Despachaste-te depressa...»
«Isto não é um encontro amoroso, meu amigo!»
Quando chegaram à pensão, resolveu deitar-se de imediato. Erro crasso. Então é que foram elas. A cama pôs-se a ondular sem sua ordem, mais parecendo um barco à deriva no mar alto em tempo de tempestade. Bem se agarrava à barra da cama mas a ondulação não cedia. Na tempestade virtual era, ao mesmo tempo, o timoneiro desorientado, o marinheiro que subia ao mastro principal e não avistava terra, e também o náufrago a debater-se em águas revoltas. Tudo para uma só pessoa era pedir demasiado.
«Homem ao mar!»
Homem ao mar, não. A carga é que foi para o mar. Só teve tempo de levantar-se, correr para a varanda e vomitar de esguicho para a rua. Finalmente o mar ficou um pouco mais calmo.
Tentou dormir as poucas horas que faltavam para o sol raiar. Uma ou duas horas. Lá conseguiu adormecer.
Levantou-se com uma enorme dor de cabeça e decidiu, por unanimidade entre todos os seus eus, não ir a uma aula prática que tinha às dez. Aliás, havia o encontro marcado com a Ausenda.
Gostou do diálogo que travaram ao telefone. De facto a moça era muito simpática. Talvez que acontecesse poesia no encontro combinado. Mas a dor de cabeça que não o largava e os sinais da ressaca não eram bons sinais. Depois da viagem no mar alto, agora parecia que estava a voar numa zona de grande turbulência. Ou ia para a estratosfera, ou continuava entre as nuvens.
Não!, mais poços de ar, não! Por favor...
Ia desistir?
Olhou com detalhe para a fotografia. Merecia bem o sacrifício. Só achava as sobrancelhas demasiado espessas para uma mulher.
Por entre poços de ar e amargos de boca, decidiu de vez que não ia desistir. Um banho regenerador, uma barba feita com esmero, e pronto. Só um reparo: não entrou na casa de jantar para tomar o pequeno almoço, tantas eram as náuseas.
Por volta das onze e meia estava à saída do Instituto Britânico, que aliás ficava muito perto da pensão da Aninhas. Tinham combinado o encontro pelo telefone. O diálogo que travaram fora bastante convincente e considerou desde logo a Ausenda uma presa fácil, à mercê de um leão como ele era.
Quando chegou ao Instituto estava muita gente a sair. Foi fácil identificá-la e ficou satisfeito com o exame preliminar. A Ausenda era ainda mais atraente do que na fotografia. Ainda bem.
Foi a segunda loira da sua vida. Uma loira frenética. Um furacão de alegria que o contagiou de imediato.
Mas existia sempre um contra. Os furacões passavam, ferozes, deixando para trás vestígios indeléveis da sua passagem. Este, não. Digamos que foi um ar que se lhe deu. Nem sequer teve tempo saborear o seu bouquet.
A alegria dela era de facto contagiosa e ficou cem por cento informal. Nem parecia o austero, o clássico Mário. Admirou-se por ficar solto, desinibido, a falar alto, a gracejar para lá dos seus limites. Esse Mário não era o Mário que conhecia.
Foram em direção à Graça num elétrico que não se chamava desejo. Aquela rapariga alegre, de olhos castanhos, maliciosos, era um vulcão que o incendiava por dentro e por fora.
De regresso a casa foi sonhando…
No dia seguinte telefonou-lhe, tentando marcar novo encontro. Fracasso total. A Ausenda pediu-lhe muita desculpa. Era muito simpático, mas ela namorava outro.
«Mas...?»
«A culpa é toda minha. Simpatizo contigo, mas estou comprometida. Desculpa, Mário.»
Balde água fria. Tudo muito simples. Rompia com o namorado que, segundo a prima, fingia que gostava dela.
«Mas eu gosto muito dele, Mário!»
Balde de água gelada.
«É que a minha prima disse-me...»
«Lamento muito.»
Qual era o seu papel?
De parvo, claro. Papel principal, não era de certeza.
Não ficou muito ralado. Naqueles tempos as solicitações eram muitas. Mas a rapariga merecia que desse a volta e tentasse outra aterragem. Podia estar a fazer-se cara ou isso.
«Eu só estou a falar de amizade, Ausenda!»
«Desculpa, Mário. Quando vires a tua prima, dá-lhe um beijo por mim. E não leves a mal os momentos de ontem, não?»
Antes pelo contrário. Sentiu-se outra pessoa. Mais vivo, mais alegre. Só devia estar agradecido a ela.
Não perdeu tempo e partiu para nova aventura.
A Ausenda era uma rapariga bonita, bem feita de corpo alegre, loira e tinha as sobrancelhas um pouco espessas. De resto, no íntimo nunca chegou a conhecê-la. Paciência. O mundo não acabava ali.
Foi mais uma supernova na sua vida. Uma supernova estranha que deixou poucos vestígios da grande explosão normal, como é habitual acontecer com todas as supernovas.
A Graça que traz desgraça...
Premonição errada. Morava na zona da Graça e não lhe trouxe desgraça alguma. A desgraça acontecera quando, um ou dois meses antes, ele e a Manuela romperam.
Ao inverno seguiu-se uma primavera efémera. Inevitavelmente foi de estação em estação sem deixar de ficar no inverno gelado do seu desencantamento.
Conheceu depois muitas Patrícias que não passaram de Ausendas, por exemplo.
Manuela e setembro. O começo e o fim. Lamentava tê-la perdido. Tinha muita pena que a relação entre os dois tivesse acontecido durante o tempo em que as árvores começaram a perder as folhas. Folhas caídas que desistiram de viver.
NATÁLIA
No dia em que recebeu a nota de Química Inorgânica, nota essa que o deixou muito satisfeito e fez subir uma autoestima que andava muito por baixo, conheceu uma açoriana de sonho. Quanto à nota que a professora lhe deu, não foi por sorte. Encheu-se de brios, aplicou-se a fundo e colheu os frutos desejados. Na pauta apareceu um catorze. A partir de doze, desde que não fosse Geologia, a cadeira mais importante do curso, ia-se receber a nota ao júri das provas orais. Tudo muito simples. O professor chamava o aluno e perguntava:
«Está satisfeito com a nota?»
E quem não estava?
Poucos.
Assim foi. Pela primeira vez na sua vida ia trocar algumas palavras com uma mulher que chegou a trabalhar em jovem com Marie Curie, a cientista que, juntamente com o seu marido, Pierre, descobriu e isolou dois elementos radioativos: o polónio e o rádio.
Claro que se sentiu intimidado na presença da professora. De certeza que se espalhava ao comprido se não aceitasse a nota. Ia dizer que sim, que estava satisfeito.
«Mário Fonseca.»
Eu.
Aproximou-se da secretária onde estava instalado o júri de orais e ficou à espera do veredicto final.
«Faça favor de sentar-se.» Disse a professora, sorrindo com simpatia. Tinha em mãos a prova escrita. De certeza que não fora ela a classificar a prova, pois demorou seguramente um momento de eternidade que deu tempo para o Mário rever as primeiras aulas teóricas de Química Inorgânica a que assistiu no enorme anfiteatro perto da secção de Geologia. Entravam e viam, lá em baixo, um quadro de ardósia, desmontável, cheio de fórmulas, equações químicas, definições, leis. Tudo muito junto, lembrando um conglomerado do tipo brecha ou pudim. Pouco depois chegava a professora e ficavam todos em suspenso. Era um momento. De imediato começava a debitar a matéria e ninguém que fazer: se passar o que estava escrito no quadro, se tentar escrever as frases que a professora ia proferindo. Uma total desorientação cuja culpa se podia imputar aos métodos duvidosos, sob o ponto de vista pedagógico, da professora. O problema foi minorado com a formação de grupos de três, quatro alunos, cada um com a sua missão. Mais tarde apareceram as folhas salvadoras que tinham a matéria dada. Nunca mais foi à tortura que eram as aulas teóricas.
«Senhor... senhor Mário!»
Voltou a si.
«Professora?»
«Está satisfeito com a nota?»
Finalmente!
«Está satisfeito com a nota?»
E quem não estava?
Poucos.
Assim foi. Pela primeira vez na sua vida ia trocar algumas palavras com uma mulher que chegou a trabalhar em jovem com Marie Curie, a cientista que, juntamente com o seu marido, Pierre, descobriu e isolou dois elementos radioativos: o polónio e o rádio.
Claro que se sentiu intimidado na presença da professora. De certeza que se espalhava ao comprido se não aceitasse a nota. Ia dizer que sim, que estava satisfeito.
«Mário Fonseca.»
Eu.
Aproximou-se da secretária onde estava instalado o júri de orais e ficou à espera do veredicto final.
«Faça favor de sentar-se.» Disse a professora, sorrindo com simpatia. Tinha em mãos a prova escrita. De certeza que não fora ela a classificar a prova, pois demorou seguramente um momento de eternidade que deu tempo para o Mário rever as primeiras aulas teóricas de Química Inorgânica a que assistiu no enorme anfiteatro perto da secção de Geologia. Entravam e viam, lá em baixo, um quadro de ardósia, desmontável, cheio de fórmulas, equações químicas, definições, leis. Tudo muito junto, lembrando um conglomerado do tipo brecha ou pudim. Pouco depois chegava a professora e ficavam todos em suspenso. Era um momento. De imediato começava a debitar a matéria e ninguém que fazer: se passar o que estava escrito no quadro, se tentar escrever as frases que a professora ia proferindo. Uma total desorientação cuja culpa se podia imputar aos métodos duvidosos, sob o ponto de vista pedagógico, da professora. O problema foi minorado com a formação de grupos de três, quatro alunos, cada um com a sua missão. Mais tarde apareceram as folhas salvadoras que tinham a matéria dada. Nunca mais foi à tortura que eram as aulas teóricas.
«Senhor... senhor Mário!»
Voltou a si.
«Professora?»
«Está satisfeito com a nota?»
Finalmente!
Nessa noite decidiu comemorar a aprovação em Química Inorgânica com uma ida à Feira Popular, começando com um jantar: uma sardinhada com tudo a que tinha direito, inclusive um vinho tinto carrascão servido em jarro. Depois de dar várias voltas pelo recinto e de chegar à conclusão que não se sentia bem a andar nos estúpidos carrinhos de choque, a delícia das delícias dos tempos de menino e moço, ou no carrossel de mais uma voltareta para a menina Julieta, decidiu-se então por uma ida ao pavilhão das panelas, onde deixou algumas moedas.
Que fazer mais?
Passear o tédio, só o tédio. Era bem feito. A palermice de andar sozinho dava no que dava. Caía sempre na ratoeira de não ir acompanhado à Feira Popular. Já sabia o que vinha a seguir. A ida ao pavilhão dos jogos americanos. A saturação. A dúvida metafísica de comer ou não comer uma fartura por causa do óleo requentado.
«Vá lá, Mário, dias não são dias. E amanhã logo se vê a resposta do fígado e dos intestinos.» Pensou.
Teve uma surpresa numa esplanada anexa ao pavilhão das farturas quando viu alguém acenar-lhe, à distância.
Aproximou-se.
«Tu?!...» perguntou, admirado. «Que fazes por aqui?»
Era o seu amigo Sérgio.
«O mesmo que tu, penso. Mas senta-te. Bebes alguma coisa?»
«Fui comer uma fartura ao outro lado do pavilhão. Mas pode ser um café. Não imaginava que eras um frequentador destes ambientes populares. Aí anda coisa!»
«Tens uma ponta de razão. Adivinha...?»
«Sei lá. Talvez um rabo de saias. Ah!, estás a rir. Parece que acertei.»
«E tu?»
Achou que estava a desviar a conversa e decidiu entrar no jogo.
«Resolvi comemorar a passagem a Química Inorgânica. Já estava a ficar aborrecido. Sem companhia isto não tem graça. Ainda bem que te vi.»
«Parabéns, rapaz. Que nota tiveste?»
«Obrigado. Catorze.»
«Ótimo.»
«Andava desmoralizado e veio mesmo a calhar.»
«Vou mostrar-te uma coisa...»
«Sim?»
Estendeu o dedo anelar direito. Mário não queria acreditar no que estava a ver.
«Casaste! Não me digas!» sorriu, ironicamente.
«Bem.»
Mistério insondável.
«Bem?»
«Mais ou menos.»
«Posso deduzir que é só fachada?»
Não confirmou, nem desmentiu.
«Não digas a ninguém lá na vila. Estou a fazer uma experiência.»
Sérgio, o experimentador. Inédito!
«Uma experiência. Registo. Está bem. Podes chamar o que quiseres, que não me convences. Mostraste-me a aliança, mas ainda não me disseste o que estás aqui a fazer a estas horas. Não é o teu género. Deixa-te de rodeios e traz a verdade cá para fora.»
«Estou mesmo casado.»
«Não posso crer. E é um casamento secreto, tão secreto que nem os teus pais sabem.»
«Bom, juntámos os trapinhos. Mas tenciono casar com ela mais tarde!»
«Já me parece mais lógico. Tu lá sabes. Quem uma boa cama faz, numa boa cama se deita. E tenho a certeza que o caso é sério. Conheço-te perfeitamente para acreditar que não estás a brincar. Sempre falaste verdade.»
«Queres conhecer a Hermínia?»
Abriu os braços. Claro que não ia esquivar-se.
«Se não vês problema...»
Fez um gesto vigoroso a chamar o empregado mais próximo.
«Quanto devo?»
O homem olhou para a mesa.
«Duas bicas... São quatro escudos.»
Pagou. Levantaram-se e fez um gesto para Mário o seguir.
«Ela trabalha num pavilhão próximo daqui. Vamos até lá?»
Era um pavilhão de exposições. Mal entraram, ficou na expectativa. Ir em frente ou aguardar por uma reação do Sérgio. Deu conta da sua hesitação e olhou para a direita. Mário seguiu o seu olhar e logo concluiu que só podia ser alguém que estava por detrás de um balcão.
«De certeza que não é aquela jovem muito morena que está a olhar para nós.»
«Pois não.»
«É muito gira!»
«Pois é. Se quiseres até posso apresentar-te a moça.»
Olhou para o amigo, incrédulo.
Feromonas no ar. A miúda era um espanto. O Sérgio estava a referir-se à mulher mais bonita das cinco que estavam atrás do balcão.
«Não brinques comigo que as pulsações subiram em flecha.»
«Anda daí. Não fiques pregado ao chão.»
Sorriu com ironia e aproximou-se do balcão. Mário ficou um metro atrás, na expectativa.
«Primeiro vou apresentar-te a Hermínia.»
Uma mulher estendeu-lhe, sorrindo abertamente, uma pequena tosta barrada por uma gordura. Aceitou e depois agradeceu. A gordura não tinha o gosto da manteiga. Era qualquer coisa parecida.
«Gostou?»
«Não é mau. Acho diferente.»
«É margarina.»
«Margarina?»
«Vaqueiro.»
«Pois...»
Não quis dar parte de fraco. O Sérgio pôs-lhe uma mão sobre o ombro.
«Apresento-te a Hermínia.»
«Muito prazer. Chamo-me Mário. Eu e o Sérgio somos amigos e vizinhos desde sempre.»
«O Serginho já me falou de si e deu-me as melhores referências.»
«Olha, Hermínia, o meu amigo gostava de conhecer a Natália. Não te importas de a chamar?»
Mário ficou embaraçado ante o sorriso irónico da companheira do amigo. E mais ainda quando a jovem se aproximou. De perto ainda era ainda mais bonita. Pareceu-lhe um pouco envergonhada.
«Esta é a Natália.»
«Muito prazer, Natália. Sou o Mário.»
«Vão dar mais uma volta que depois já falamos. Nós saímos dentro de dez minutos, mais coisa menos coisa.»
Assim fizeram. Pouco depois estavam postados junto à porta do pavilhão. Mário sentia-se nervoso.
«A pequena parece-me muito nova...»
«E tu julgas que és muito velho? Ganha juízo e atira-te a ela.»
«Olha, vêm aí. Descontrai-te, rapaz.»
Afinal foi tudo muito fácil. O Sérgio e a Hermínia sugeriram que os dois fossem ao Castelo Fantasma enquanto eles iam comer qualquer coisa.
«Oh, não!» exclamou a Natália.
«Porquê?» perguntou a Hermínia
«Tenho medo!»
«Não sejas tonta. Aquilo é tudo a brincar.»
«Mesmo sim, tenho medo.»
«Se lhe mete medo, não vamos.» Opinou Mário.
Mas foram. Claro que deu alguns gritos de susto e até se agarrou a ele, mas pediu logo desculpa.
«Não faz mal.»
Quando saíram da carruagem aberta, já depois de terem percorrido o mundo fantástico do castelo já ele tinha chegado à conclusão que eram amigos de há muito. E havia uma coisa. Sentia a presença das celebérrimas feromonas no ar.
«Afinal até não meteu muito medo. Sozinha é que não ia.»
«Pois não.»
Por momentos ficaram em silêncio.
«O seu sotaque... deixe-me adivinhar: é madeirense?»
«Engana-se.»
Passear o tédio, só o tédio. Era bem feito. A palermice de andar sozinho dava no que dava. Caía sempre na ratoeira de não ir acompanhado à Feira Popular. Já sabia o que vinha a seguir. A ida ao pavilhão dos jogos americanos. A saturação. A dúvida metafísica de comer ou não comer uma fartura por causa do óleo requentado.
«Vá lá, Mário, dias não são dias. E amanhã logo se vê a resposta do fígado e dos intestinos.» Pensou.
Teve uma surpresa numa esplanada anexa ao pavilhão das farturas quando viu alguém acenar-lhe, à distância.
Aproximou-se.
«Tu?!...» perguntou, admirado. «Que fazes por aqui?»
Era o seu amigo Sérgio.
«O mesmo que tu, penso. Mas senta-te. Bebes alguma coisa?»
«Fui comer uma fartura ao outro lado do pavilhão. Mas pode ser um café. Não imaginava que eras um frequentador destes ambientes populares. Aí anda coisa!»
«Tens uma ponta de razão. Adivinha...?»
«Sei lá. Talvez um rabo de saias. Ah!, estás a rir. Parece que acertei.»
«E tu?»
Achou que estava a desviar a conversa e decidiu entrar no jogo.
«Resolvi comemorar a passagem a Química Inorgânica. Já estava a ficar aborrecido. Sem companhia isto não tem graça. Ainda bem que te vi.»
«Parabéns, rapaz. Que nota tiveste?»
«Obrigado. Catorze.»
«Ótimo.»
«Andava desmoralizado e veio mesmo a calhar.»
«Vou mostrar-te uma coisa...»
«Sim?»
Estendeu o dedo anelar direito. Mário não queria acreditar no que estava a ver.
«Casaste! Não me digas!» sorriu, ironicamente.
«Bem.»
Mistério insondável.
«Bem?»
«Mais ou menos.»
«Posso deduzir que é só fachada?»
Não confirmou, nem desmentiu.
«Não digas a ninguém lá na vila. Estou a fazer uma experiência.»
Sérgio, o experimentador. Inédito!
«Uma experiência. Registo. Está bem. Podes chamar o que quiseres, que não me convences. Mostraste-me a aliança, mas ainda não me disseste o que estás aqui a fazer a estas horas. Não é o teu género. Deixa-te de rodeios e traz a verdade cá para fora.»
«Estou mesmo casado.»
«Não posso crer. E é um casamento secreto, tão secreto que nem os teus pais sabem.»
«Bom, juntámos os trapinhos. Mas tenciono casar com ela mais tarde!»
«Já me parece mais lógico. Tu lá sabes. Quem uma boa cama faz, numa boa cama se deita. E tenho a certeza que o caso é sério. Conheço-te perfeitamente para acreditar que não estás a brincar. Sempre falaste verdade.»
«Queres conhecer a Hermínia?»
Abriu os braços. Claro que não ia esquivar-se.
«Se não vês problema...»
Fez um gesto vigoroso a chamar o empregado mais próximo.
«Quanto devo?»
O homem olhou para a mesa.
«Duas bicas... São quatro escudos.»
Pagou. Levantaram-se e fez um gesto para Mário o seguir.
«Ela trabalha num pavilhão próximo daqui. Vamos até lá?»
Era um pavilhão de exposições. Mal entraram, ficou na expectativa. Ir em frente ou aguardar por uma reação do Sérgio. Deu conta da sua hesitação e olhou para a direita. Mário seguiu o seu olhar e logo concluiu que só podia ser alguém que estava por detrás de um balcão.
«De certeza que não é aquela jovem muito morena que está a olhar para nós.»
«Pois não.»
«É muito gira!»
«Pois é. Se quiseres até posso apresentar-te a moça.»
Olhou para o amigo, incrédulo.
Feromonas no ar. A miúda era um espanto. O Sérgio estava a referir-se à mulher mais bonita das cinco que estavam atrás do balcão.
«Não brinques comigo que as pulsações subiram em flecha.»
«Anda daí. Não fiques pregado ao chão.»
Sorriu com ironia e aproximou-se do balcão. Mário ficou um metro atrás, na expectativa.
«Primeiro vou apresentar-te a Hermínia.»
Uma mulher estendeu-lhe, sorrindo abertamente, uma pequena tosta barrada por uma gordura. Aceitou e depois agradeceu. A gordura não tinha o gosto da manteiga. Era qualquer coisa parecida.
«Gostou?»
«Não é mau. Acho diferente.»
«É margarina.»
«Margarina?»
«Vaqueiro.»
«Pois...»
Não quis dar parte de fraco. O Sérgio pôs-lhe uma mão sobre o ombro.
«Apresento-te a Hermínia.»
«Muito prazer. Chamo-me Mário. Eu e o Sérgio somos amigos e vizinhos desde sempre.»
«O Serginho já me falou de si e deu-me as melhores referências.»
«Olha, Hermínia, o meu amigo gostava de conhecer a Natália. Não te importas de a chamar?»
Mário ficou embaraçado ante o sorriso irónico da companheira do amigo. E mais ainda quando a jovem se aproximou. De perto ainda era ainda mais bonita. Pareceu-lhe um pouco envergonhada.
«Esta é a Natália.»
«Muito prazer, Natália. Sou o Mário.»
«Vão dar mais uma volta que depois já falamos. Nós saímos dentro de dez minutos, mais coisa menos coisa.»
Assim fizeram. Pouco depois estavam postados junto à porta do pavilhão. Mário sentia-se nervoso.
«A pequena parece-me muito nova...»
«E tu julgas que és muito velho? Ganha juízo e atira-te a ela.»
«Olha, vêm aí. Descontrai-te, rapaz.»
Afinal foi tudo muito fácil. O Sérgio e a Hermínia sugeriram que os dois fossem ao Castelo Fantasma enquanto eles iam comer qualquer coisa.
«Oh, não!» exclamou a Natália.
«Porquê?» perguntou a Hermínia
«Tenho medo!»
«Não sejas tonta. Aquilo é tudo a brincar.»
«Mesmo sim, tenho medo.»
«Se lhe mete medo, não vamos.» Opinou Mário.
Mas foram. Claro que deu alguns gritos de susto e até se agarrou a ele, mas pediu logo desculpa.
«Não faz mal.»
Quando saíram da carruagem aberta, já depois de terem percorrido o mundo fantástico do castelo já ele tinha chegado à conclusão que eram amigos de há muito. E havia uma coisa. Sentia a presença das celebérrimas feromonas no ar.
«Afinal até não meteu muito medo. Sozinha é que não ia.»
«Pois não.»
Por momentos ficaram em silêncio.
«O seu sotaque... deixe-me adivinhar: é madeirense?»
«Engana-se.»
«Alentejana não é. Nem algarvia.»
«Sou dos Açores. Não goze com o meu sotaque.»
«Claro que não. Até estou a gostar muito.»
Entretanto chegaram o Sérgio e a Hermínia. Mário apreciou. Formavam um par harmonioso.
«Já se fizeram amigos?» perguntou a Hermínia.
«Claro. A Natália é muito simpática.»
E bonita! Aqueles olhos escuros...
«Bom. Nós vamos andando.» Disse o Sérgio. «E tu porta-te bem, Mário. E depois, fazes o favor de acompanhar a Natália a casa, está bem?»
«Claro, claro.»
Os dias passaram. Desde essa noite ficaram entregues um ao outro porque o Sérgio e a Hermínia nunca interferiram. Só havia um senão: ela só tinha dezasseis anos. Repetia-se o caso da Odete. Outra vez o problema da idade. A Natália era açoriana e ele gostava de ouvir o seu sotaque, pedindo muitas vezes para repetir. Danava-se e então ele acariciava-lhe os cabelos curtos, ao mesmo tempo que lhe dizia:
«Acredita que gosto cada vez mais de ti. E quando te vejo assim, de nariz arrebitado, muito zangada, nem sabes o que me apetece fazer...»
«O quê?»
Mas ela é menor!
«Encher os teus olhos de beijos.» Pensou.
«Deixa... Olha queres um gelado?»
«Se não dizes...»
À medida que a atração crescia, o medo também ocupava o seu espaço. Ela era muito nova e o Mário não queria deixar-se envolver. Ao mesmo tempo sentia-se um predador pronto a atacar a presa e isso causava-lhe remorsos tremendos.
Que fazer?
Gozar tudo o que tinha a gozar, aproveitando-se da sua ingenuidade e depois bater heroicamente em debandada, ou manter, pelo sim pelo não, uma distância prudente?
Os impulsos subterrâneos eram os mais perigosos!
O tempo corria e continuaram entregues à sua sorte. O polvo e a vítima indefesa, completamente ao sabor do desejo.
E depois?
Resolveu consultar o Sérgio e a Hermínia. Confirmaram que a Natália estava apaixonada por ele e bastava que desse um sinal. Contudo, não devia apressar-se.
«Mário, deves ser paciente» aconselhou-o a Hermínia. «Ela é uma rapariga humilde e muito séria. Conhece pouco o mundo. Se gostas dela para diversão, não a leves ao engano. Nunca te perdoaria!»
«Eu gosto dela. Muito. Mas há uma coisa que devo ter em conta: acho que ainda não chegou o momento de comprometer-me seriamente.»
«Então, brinca. Brinca, mas não abuses.» Disse o Sérgio. «Compreendes o que quero dizer?»
«Serginho! Nem parece teu! O Mário e a Natália foram feitos um para o outro. Que raio de conselhos são esses que estás a dar ao teu amigo? Queres que ele brinque e depois fuja? A Natália não é um objeto de brincadeira!»
«Não vou fazer mal à Natália, bem sabem. Nunca faria em consciência. Mas é muito sensível e bonita!»
«E séria, Mário» frisou a Hermínia. «Não te esqueças disso.»
Fez-se um silêncio incómodo. Mário acusou o toque.
«Sei muito bem até onde devo ir. E outra coisa: tenho a noção do perigo. É por isso que estou a falar convosco. Mais tarde ou mais cedo pode acontecer qualquer coisa. E depois?»
«Vamos a ver se nos entendemos. A sério que gostas dela?»
«Não é isso que está em causa.»
A inocência da Natália e não só. A diferença cultural podia cavar um fosso entre os dois. Não a curto prazo, mas a médio.
«Entendo onde queres chegar. Tu estás a frequentar um curso superior e a Natália tem só a quarta classe.»
«Não quero fazer-lhe mal. Já lhes falei da Odete um pouco por alto. Tivemos um caso e chegámos a um impasse. Ou por outra: cheguei. Tal como a Natália, era muito nova. Mas ela tinha um outro sentido de liberdade e fiquei mais à vontade. Tudo muito bem. Durou enquanto durou. Depois, cada um foi para a sua vida e nem sequer ficámos ralados com isso.»
«Sentiste o mesmo por ela que pela Natália?»
«Foi diferente. Nunca andei angustiado.»
«Pensa bem. Olha, o Sérgio faz anos no domingo e vamos reunir familiares e amigos. A Natália vai. Contamos também contigo.
«Mas…»
«Vocês têm que se entender de uma vez por todas. Não acredito nessa das diferenças de cultura. Quando se ama, não há obstáculos para o amor. E vocês amam-se. Vai à festa do Sérgio. Vais-te arrepender mais tarde se não fores.»
«Conto contigo?» perguntou o Sérgio.
«Vamos a ver se não faço disparate.»
Disse que sim, mas não foi aos anos do Sérgio. Ao mesmo tempo decidiu não voltar a ver a Natália. Não via outra saída. Só assim podia cortar o mal pela raiz.
Quando ela soube o motivo porque Mário nunca mais apareceu, ficou muito ofendida e odiou-o tanto ou mais quanto o amou.
Ao longo do tempo foi sabendo dela pelo Sérgio e pela Hermínia. Nunca a esqueceu, mas continuou a pensar que tomou a atitude mais correta.
Perdeu o seu rasto quando ela foi para o Canadá. Parece que seguiu a carreira de cantora.
«Sou dos Açores. Não goze com o meu sotaque.»
«Claro que não. Até estou a gostar muito.»
Entretanto chegaram o Sérgio e a Hermínia. Mário apreciou. Formavam um par harmonioso.
«Já se fizeram amigos?» perguntou a Hermínia.
«Claro. A Natália é muito simpática.»
E bonita! Aqueles olhos escuros...
«Bom. Nós vamos andando.» Disse o Sérgio. «E tu porta-te bem, Mário. E depois, fazes o favor de acompanhar a Natália a casa, está bem?»
«Claro, claro.»
Os dias passaram. Desde essa noite ficaram entregues um ao outro porque o Sérgio e a Hermínia nunca interferiram. Só havia um senão: ela só tinha dezasseis anos. Repetia-se o caso da Odete. Outra vez o problema da idade. A Natália era açoriana e ele gostava de ouvir o seu sotaque, pedindo muitas vezes para repetir. Danava-se e então ele acariciava-lhe os cabelos curtos, ao mesmo tempo que lhe dizia:
«Acredita que gosto cada vez mais de ti. E quando te vejo assim, de nariz arrebitado, muito zangada, nem sabes o que me apetece fazer...»
«O quê?»
Mas ela é menor!
«Encher os teus olhos de beijos.» Pensou.
«Deixa... Olha queres um gelado?»
«Se não dizes...»
À medida que a atração crescia, o medo também ocupava o seu espaço. Ela era muito nova e o Mário não queria deixar-se envolver. Ao mesmo tempo sentia-se um predador pronto a atacar a presa e isso causava-lhe remorsos tremendos.
Que fazer?
Gozar tudo o que tinha a gozar, aproveitando-se da sua ingenuidade e depois bater heroicamente em debandada, ou manter, pelo sim pelo não, uma distância prudente?
Os impulsos subterrâneos eram os mais perigosos!
O tempo corria e continuaram entregues à sua sorte. O polvo e a vítima indefesa, completamente ao sabor do desejo.
E depois?
Resolveu consultar o Sérgio e a Hermínia. Confirmaram que a Natália estava apaixonada por ele e bastava que desse um sinal. Contudo, não devia apressar-se.
«Mário, deves ser paciente» aconselhou-o a Hermínia. «Ela é uma rapariga humilde e muito séria. Conhece pouco o mundo. Se gostas dela para diversão, não a leves ao engano. Nunca te perdoaria!»
«Eu gosto dela. Muito. Mas há uma coisa que devo ter em conta: acho que ainda não chegou o momento de comprometer-me seriamente.»
«Então, brinca. Brinca, mas não abuses.» Disse o Sérgio. «Compreendes o que quero dizer?»
«Serginho! Nem parece teu! O Mário e a Natália foram feitos um para o outro. Que raio de conselhos são esses que estás a dar ao teu amigo? Queres que ele brinque e depois fuja? A Natália não é um objeto de brincadeira!»
«Não vou fazer mal à Natália, bem sabem. Nunca faria em consciência. Mas é muito sensível e bonita!»
«E séria, Mário» frisou a Hermínia. «Não te esqueças disso.»
Fez-se um silêncio incómodo. Mário acusou o toque.
«Sei muito bem até onde devo ir. E outra coisa: tenho a noção do perigo. É por isso que estou a falar convosco. Mais tarde ou mais cedo pode acontecer qualquer coisa. E depois?»
«Vamos a ver se nos entendemos. A sério que gostas dela?»
«Não é isso que está em causa.»
A inocência da Natália e não só. A diferença cultural podia cavar um fosso entre os dois. Não a curto prazo, mas a médio.
«Entendo onde queres chegar. Tu estás a frequentar um curso superior e a Natália tem só a quarta classe.»
«Não quero fazer-lhe mal. Já lhes falei da Odete um pouco por alto. Tivemos um caso e chegámos a um impasse. Ou por outra: cheguei. Tal como a Natália, era muito nova. Mas ela tinha um outro sentido de liberdade e fiquei mais à vontade. Tudo muito bem. Durou enquanto durou. Depois, cada um foi para a sua vida e nem sequer ficámos ralados com isso.»
«Sentiste o mesmo por ela que pela Natália?»
«Foi diferente. Nunca andei angustiado.»
«Pensa bem. Olha, o Sérgio faz anos no domingo e vamos reunir familiares e amigos. A Natália vai. Contamos também contigo.
«Mas…»
«Vocês têm que se entender de uma vez por todas. Não acredito nessa das diferenças de cultura. Quando se ama, não há obstáculos para o amor. E vocês amam-se. Vai à festa do Sérgio. Vais-te arrepender mais tarde se não fores.»
«Conto contigo?» perguntou o Sérgio.
«Vamos a ver se não faço disparate.»
Disse que sim, mas não foi aos anos do Sérgio. Ao mesmo tempo decidiu não voltar a ver a Natália. Não via outra saída. Só assim podia cortar o mal pela raiz.
Quando ela soube o motivo porque Mário nunca mais apareceu, ficou muito ofendida e odiou-o tanto ou mais quanto o amou.
Ao longo do tempo foi sabendo dela pelo Sérgio e pela Hermínia. Nunca a esqueceu, mas continuou a pensar que tomou a atitude mais correta.
Perdeu o seu rasto quando ela foi para o Canadá. Parece que seguiu a carreira de cantora.
Quanto à Manuela...?
(3) Manuela


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