segunda-feira, 15 de maio de 2023

Vangelis, a paixão e o sexo

 


Está uma noite estrelada. Fria. À beira-mar espero a onda na praia dos desencontros. Longas horas, sonhos que não acabam, sonhos que nunca tive. Ausência. Absurdo. A onda está para lá da linha do horizonte que não vejo porque entretanto veio a noite. Noite que nem sequer é aquecida por um riscar efémero de uma estrela cadente. Quem me dera que o desejo se realize.
Mas que desejo?
Já não sei o que é desejar. Não sou eu. Estou ausente. O outro, sim, tem sempre tudo o que deseja. Já nem o invejo. Esqueci-me do significado da palavra. Tanto pode ser mau, como não ser. Bom... que bom que é não ser o outro. O outro, talvez um convencido (como disseste). Para ele, não há noites estreladas nem precisa de esperar pela onda que nunca vem. O outro consegue tudo o que deseja. Sim, desejar é ter o mundo a seus pés. O dinheiro. O amor. O dom de adivinhar. De vencer. Saber perder. Perdoar. Castigar. Destruir. Acertar no cavalo certo e saber perder o cavalo errado.
É um homem de sorte. Ainda ontem estive a observá-lo. O outro tinha uma mulher a seu lado. Que sorte! Diria que estavam apaixonados. Não me lembro das palavras. Eram poucas. Os pensamentos ocupavam o resto do tempo. Talvez comunicassem por telepatia. Ou com os olhos. Ela tinha uns olhos irresistíveis.
Aproximei-me. Sim, os olhos eram castanhos. Irónicos. Por vezes carentes. Estavam muito juntos. À distância de tudo. Ouviam música. Cantavam, encantados como se um sortilégio os envolvesse.
A certa altura, falaram em fado. Entendi que talvez fosse destino. Até porque disseram que eram almas gémeas desencontradas dos destinos que perderam. Não, não compreendia. Estavam ali, naquele sofá, juntos, esquecidos de tempo que era e do tempo que foi. E o que aconteceu depois foi inevitável. Não me lembro das palavras que ele lhe disse e da resposta que ela deu. Só me lembro do silêncio que os envolveu. O disco já não rodava. Tempo de mudança, pensei. 
Retirou a mão do ombro dela e desceu-a ao longo do braço esquerdo, ao encontro da outra mão que estava muito próxima. Então, vi. Acariciou-lhe o rosto. Esperava uma resposta. E ela respondeu. Depois, aconteceu uma poesia de que não gostei porque era o outro que a criava e eu saí da sala, em bicos de pés, não fosse o ruído da minha saída perturbar o encantamento que os envolvia.
Já na rua, tentei lembrar-me do poema. Como era? Não fui eu que o escrevi e como tal não tenho o direito de recordar.
A noite está fria e a onda ainda não chegou.
Será que estou na praia errada, ou que a onda era de ontem?
Estou há muito tempo à espera da onda que chegou ontem. Acredito que tenho a força do leão e o fogo do dragão, mas esperar pela onda de ontem é coisa errada, como também dizer que continuo sentado, à beira-mar, paciente...
Vou voltar. Quero chegar a tempo de ver os seus beijos, o apertar frenético dos corpos, o desejo estampado nos seus olhos, a vontade de esquecer o passado que os traiu e que também traíram.
Mas será que vou chegar a tempo?
O que os meus olhos viram foi ontem e ontem quer dizer há muito tempo. O que aconteceu não mais volta a acontecer. Vai sempre faltar qualquer coisa ou haver coisas a mais. E os olhares não vão ser iguais. Ele já não procura o seu corpo, à espera de um sinal. O seu corpo vai ter um outro odor. Feromonas diferentes. E os beijos trocados vão ser também diferentes. As palavras. As palavras que não disseram vão ser ditas.
Ah!, se ela pudesse estar agora comigo, à beira-mar, ouvindo o ruído das ondas! E se pudéssemos estar muito juntos, como um só, esperando pela onda que nunca virá!
Perco hoje sempre tudo o que ganhei ontem. Alguém anda a brincar comigo e a dar-me hoje com uma mão e roubar amanhã com a outra.
No ar flutuavam novos sonhos impossíveis.
E o homem que acalmava o mar?, para onde fora?
(Estranho homem, estranho dom!)
No carro, à beira-mar, enquanto pensava em ti, ia espreitando o mar, medonho, de ondas altas, cheias de espuma branca. Já não era o tempo do tempo sem tempo. Agora, a ampulheta finita marcava o compasso. De dia para dia, ficava mais curioso. De facto, havia algo no ar. Novas feromonas. As tais bolinhas de cheiro, invisíveis, prenunciadoras de paixões escaldantes.
Mas a fenolftaleína não indicava o sinal da viragem, embora parecesse que estava quase a acontecer. Tu bem dizias que te refugiavas no teu galho, assistindo, sem surpresa, aos factos que ocorriam, depois de terem sido previstos milimetricamente por alguém. E eu olhava para ti, tu sorrias, fechavas-te e perguntava a mim mesmo que brilho era esse que irradiava dos teus olhos atrevidos.
(«Dizem que os meus olhos despem...»)
Despi-te na primeira noite em tua casa, no sonho que contaste. Nós os dois, debaixo da cama e o silêncio das palavras. Os beijos trocados. O branco que me vestia. A cor de carne que te despia. Nós dois. Sós. Os das vidas mal vividas e dos sonhos destruídos.
A minha atenção foi desviada pelas sombras que passavam, ao fundo, por detrás das frestas de um prédio. Três, quatro. Ora num sentido, ora noutro. Apesar das sombras, compreendi a mensagem. Eram almas perdidas no desencanto, tragadas por vidas mal vividas.
«Não, não ia dar nada...» Pensei.
«Mas temos muito para dar um ao outro!» julguei ler nos teus olhos.
Ia valer a pena?

Acordei muito cedo. Eram cinco da manhã.Senti o pijama todo húmido. De certeza que transpirei durante grande parte da noite, pois sentia um calor enorme. Talvez que tivesse acordado por causa disso.
Fui à casa de banho e voltei para a cama. Era tão grande a bebedeira de sono que dormi até às oito.
Depois de um duche retemperador, vesti-me, tomei o pequeno almoço e saí, apressado, com destino ao Centro Comercial. Aí comprei dois discos: um para mim e o outro para ela. Um, do Roberto Carlos com as Emoções e o Café da Manhã. O outro, do Vangelis, com uma capa sugestiva de um leão e uma leoa na postura de um ato nobre de sexo.
Há nobreza no sexo?
Fui ainda pôr uns totolotos na casa do costume e passava já das dez e meia quando a abracei e beijei.
«Ontem passei um fim de dia péssimo. Preciso muito de ti!» confessou, ternurenta.
Tinha vestido um robe vermelho. Quanto ao resto, no seu interior, não sabia. Mas tinha a certeza que ia descobrir o mistério que o robe vermelho escondia.
«Não sei se gostas do Vangelis...»
«Adoro. Obrigada, querido.»
«Ainda bem que gostas, pequenina.»
«Bebes alguma coisa?»
«A esta hora é melhor não.»
Sorriu, dengosa, e levantou-se, deixando a descoberto as coxas muito brancas. Segui-a com o olhar.
Pôs o disco a tocar e sentámo-nos no sofá. A música era muito sugestiva. Quente. Erótica. Depois havia o rugido inconfundível dos leões.
Ficámos a olhar um para o outro, muito sérios.
Talvez tivesse sido premeditação a compra daquele CD. Ou talvez não, porque estive a escolher os CDs. Contudo, adivinhava que aquela sinfonia de leões a rugirem ia produzir algum efeito. Definitivamente premeditação.
A resposta não se fez sentir quando ela desatou o único botão do robe, abrindo-o em ar de desafio e deixando que caísse no chão, exibindo a nudez total do corpo. Para outra mulher, tal ato punha-a numa situação frágil. Mas com ela não se passava assim.
Estava a dois passos de mim. Tentadora. Vestida com a sua nudez que eu já conhecia. mas desta vez acenou-me ainda mais com o seu encanto misterioso.
Interroguei-a com o olhar, mas já sabia do que se tratava.
«Anda...» Disse, simplesmente.
Pegou-me na mão, sorridente, e encaminhámo-nos para o quarto. O último destino possível numa viagem curta.
Desta vez não a despi porque ela já estava despida. Deitou-se na cama e ficou à espera. Ansiosa ou simulando o fantástico do momento. Dessa mulher tudo era possível esperar.
Comecei a despir-me devagar.
«Então... não deixes a leoa à espera!»
Continuei a provocação e ela respondeu ao rebolar na cama, ficando deitada de costas.
«Gostas assim?»
«Assim, como?»
Voltou-se de novo e disse, irónica:
«Estava a brincar...»
«A brincar, a brincar...» Pensei.
Toda ela se entregava. De facto sentia-me rei. Rei leão. E a leoa era a minha rainha.
«Vem cá...»
Beijos. Mil beijos. Desejo. Um mar de desejo. Vontade dos minutos efémeros durarem uma eternidade até ao primeiro orgasmo.
Parámos por momentos. Fiquei a olhar para ela.
«Que se passa, Mário?»
«Nada. Apenas estava a pensar.»
Acreditei que ela era uma mulher vivida.
«Quero-te muito. Vem...»
Sorriu maliciosamente e virou-se de costas, ficando imóvel.
«Verboten!» pensei.
«Vem...» Repetiu.
E fui. Tinha muito caminho a desbravar. Qual verboten! 
«Foste impulsivo.» 
Pudera... 
«E então?» 
«Gostei.» 
Gelo ou sensação de prazer disfarçada?
Tinha que haver um interlúdio retemperador nem que fosse de curta duração.
Minutos depois começou a beijar-me os braços, o peito, as pernas, a descer, a subir, a beijar-me, a beijar-me... e eu suspenso. Continuou a descer até que ficou no fundo da cama, voltada para mim.
«Que vais fazer?» perguntei num sussurro.
Afaguei-lhe os seios grandes. Muito. Ela cerrou os lábios.
«Aperta mais, meu amor!»
Depois continuou a beijar-me. As pernas. As virilhas. O sexo.
Por momentos pareceu desistir e ficou à espera, expectante, talvez tentando adivinhar o segredo escondido no meu silêncio. Logo a seguir, olhou para mim, meio alucinada, e não mais parou até à chegada do fim do êxtase.
A seguir veio o silêncio de ambos. A frustração. O desalento. A perceção de que voltava ao deserto e que não conseguia retroceder para repetir.
O disco chegara à parte final. Já não havia rugidos de leões nem sons altos. Ou sentia-me triste, ou a parte final era mesmo triste. Aquela música suave, muito suave parecia ser um prenúncio de despedida.
«Que aconteceu?» perguntou, intrigada.
Aconteceu o quê?
Estávamos virados para cima, muito agarrados.
«Que aconteceu?!...» repetiu. «Diz-me, amor!»
Soergui-me na cama.
«Pensei que querias... Gosto muito de ti, Mário...»
«E se não estiver a acreditar?» pensei.
Ela continuava a beijar-me, suavemente.
«Não sei se foi bom para ti.»
Arrependi-me logo de ter dito aquelas palavras.
Então começou a chorar, inexplicavelmente. Virei-me para ela. Achei estranho o que vi. Aqueles olhos não vertiam lágrimas!
Tentei levantar-me, mas ela não quis. Agarrou-me muito. Insisti. Já na casa de banho, ouvi-a chorar com mais força. Lavei-me maquinalmente e depois voltei ao quarto. Olhei-a. Estava tapada pelo edredão e virada de barriga para baixo. Só lhe via o alto da cabeça. Senti um desejo enorme de a acariciar. Mas não conseguia. Era melhor assim. Deixá-la ficar naquele pranto sem lágrimas, quase fingido.
Disse que ia andando. 
«Desistes sempre...»
Desistia sempre. Quem lhe revelou...?
Mas desistia porquê?
Com a Maria tive receio de montar o cavalo da coragem.
Comecei a vestir-me em silêncio. Depois, beijei-a nos cabelos e saí do quarto.
Lá fora estava um belo dia. Demasiado quente para março.

Atravessei a rua estreita que se estendia na direção nascente-poente, resguardando-me numa sombra acolhedora do passeio ocasionada pelos prédios da igreja cristã e não só. Quase que ia sendo levado pela certa no tempo da Madalena. Mas isso era outra história que estava a desviar-me desta que agora queria contar. Estava perto. Muito perto. Então sempre era verdade que ia voltar para os ver. Só os dois. A treta das almas gémeas inventadas por ela.
Ouviam música. Cantavam. Sentiam-se encantados como se um sortilégio de amor os envolvesse. O momento era só deles. Poderoso. Irreversível.
Falaram também de fado. Entendeu que talvez fosse destino. Até porque ela disse-lhe que eram almas gémeas desencontradas dos destinos que perderam. Não, não compreendia. Estavam ali, naquele sofá, muito juntos, esquecidos do tempo que era e do tempo que foi.
Foi inevitável o que aconteceu depois. Não se lembrava das palavras que lhe disse e da resposta que ela deu. Só se lembrava do silêncio que os envolveu. E dos olhares lânguidos que o desnorteavam. Faltava só darem um passo. Apenas um passo para acontecer outra poesia para além da poesia.
Vi mais. Movido por um impulso, o seu braço esquerdo enlaçou o ombro dela e desceu até encontrar os seus dedos delicados. Fez uma carícia ligeira e a resposta não se fez esperar. Foram os beijos trocados. A entrega total de duas almas feridas pelo destino. Uma entrega sem pressas, a princípio. Um poema erótico longe da pureza dos verdes anos das barreiras morais.
E quem eram senão dois apaixonados que trocavam beijos sôfregos e que estavam quase a saltar as tais barreiras proibidas?
«Não tenhas pressa. Deixa acontecer...»
Aconteceu e foi ela o elemento decisivo. Levantou-se, lânguida, e olhou-o. Era impossível resistir a tal sedução de mulher fatal. Não havia autocontrole que ficasse indiferente. Muito menos, partindo de um homem sensível como ele era e que nunca resistira a um "rabo de saias" com um bonito palmo de cara.
Pegou na sua mão e convidou-o a levantar-se e a deixar-se conduzir. O último destino era a cama larga de bilros, ainda há pouco vazia de amor.
«Anabela...»
«Diz, meu amor. Não queres...?»
«Não é nada. Vamos.»
Afinal parecia que ela também estava a apressar-se.
Correu mal aquela manhã. Pareceu-me que a minha amante estava à procura de um fim. Doutra forma não teria ido naquela maldita excursão. Talvez estivesse a jogar um jogo perigoso, tentei enganar-me. Nunca saberia. Só consigo ler os meus pensamentos.

Hoje resolvi escrever-te esta carta que vou pôr na tua caixa do correio. Porquê? Não sei bem. Talvez faça mal. Devia mostrar indiferença.
Estamos longe um do outro. Aliás, não sei onde estás neste momento. Nem o que fazes. talvez não devesse ficar aqui, à tua espera. Vou ficar cá hoje e amanhã. A vida é uma caixa de surpresas, não achas? 

Cheguei depois do almoço e fui logo para a rua. O calor apertava, mas sentia-me bem. O meu destino era Alvalade. Ia receber prémios do totoloto a algumas agências.
Tudo correu bem. Dentro da normalidade. Como sempre. Apenas houve um pequeno problema numa agência da avenida da Igreja.
«Este recibo não tem prémio...» Disse-me a funcionária.
«Veja melhor.»
Admirei-me da minha resposta ser tão seca. Aliás, ultimamente tenho andado um pouco agreste. Talvez seja do calor que não é próprio da época. Ou não?
Depois de resolver os problemas daquela zona, não resisti à tentação de passar pela tua rua. Lá estava o carro. À sombra. Muito bem arrumado. Como conseguiste partir na viagem? Bom, não interessa. 
Olhei para a marquise. Tudo normal. Como se estivesse gente em casa. Mas sabia que não estava ninguém.
Não consegui parar. Senti um nó na garganta. Foi uma sensação estranha que não sei explicar. De ausência. De sabor amargo. Como se algo de bom tivesse acabado.
Pensei em ti, na cama vazia. Vazia de ti. De nós. Quem sabe, até quando? Na verdade a vida é uma caixa de surpresas. Tu em viagem porque não podias suportar a solidão e eu à tua porta, sem ti, com a solidão. Era irónico!
Afastei-me depressa, não fosse a saudade apertar mais. Tinha que seguir o teu conselho. Tinha que gostar ainda mais de mim. De pensar ainda mais em mim. A vida era uma passagem. Uma sequência de slides que, com frequência, perdiam o sentido da continuidade. Não valia a pena sonhar. Os meus sonhos nunca eram reais.
Que fazer à noite? Andar ao acaso? Logo veria...
O calor continuava a apertar, mas decidi fazer ainda a segunda parte do circuito. Azimute? Estados Unidos. Tinha mais prémios a receber em duas agência, uma delas na Suprema. Mas seria que procurava apenas receber os prémios?
Precisava de andar mais. De martirizar o corpo. De transpirar, para libertar as energias que se acumulavam em excesso.
Fui a pé da tua rua até à Suprema. Depois de receber os prémios, entrei no Roma e desci até ao primeiro piso. Procurei na discoteca um disco do Vinicius. Encontrei o que queria. De facto confirmava-se que o ar, naquele piso, era impróprio para respirar. Senti uma pressão enorme no peito. Não me alarmei. Já sabia a causa. A outra causa é que não. O que te levou na viagem. Que impulso? Que motivo? Tiveste muito tempo para desistir mas foste sempre em frente. Dirás que nunca forcei. E achas que devia forçar?
Afinal não era a coisa mais querida que tinhas na tua vida, ou a segunda coisa mais querida. Não passava de um parvo apanhado numa ratoeira fatal. Ingénuo. Não passava de um ingénuo. Tinha ainda muito que aprender. Sabias prender-me, amar-me na cama. Para mim não era novidade. Nem para ti. Já tive melhor. E tu também. Não o disseste, mas digo agora por nós dois.

Estava zangado. Sabes o que significa para um leão? Não sabes. Há uma diferença abissal entre um leão e uma leoa...
Tinha que repensar o futuro. De terça a domingo, e para lá de domingo, muitas águas correriam. 
E tu?, tens dormido bem? Prepara-te porque temos muito que falar sobre o nosso futuro quando voltares da viagem. Se é que há futuro para nós.
Sabes uma coisa? Neste momento penso que não somos nós, afinal, a construir o futuro. Há certas coisas que não acontecem porque nós queremos, ou porque as videntes que consultas "leram". E não só. O caso dos "chamados" dignifica-te?
Vamos ver o que acontece quando voltarmos a estar frente a frente.

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