quarta-feira, 10 de maio de 2023

Finalmente regressei a Lisboa



Seguiu-se Lisboa. Finalmente, após mais de um ano de espera, ia começar a sonhar com o recomeço dos estudos. Paleontologia. Uma cadeira interessante mas que requeria muita memória. O desafio era grande e, para mal dos meus pecados, estava deficientemente apetrechado de material de estudo. As folhas eram antiquadas e o professor percebeu logo onde estava o meu ponto fraco. Velhaco como era, deixou-me ir à oral com um dez, o que me deu pouco espaço de manobra. Aí espremeu-me o máximo dos máximos, até me aniquilar. Já deitado por terra, ouvi-o proferir a sentença máxima para os vencidos:
«Convido-o a desistir» sentenciou. «Sei que o senhor está a cumprir o serviço militar em Lisboa, mas tal não lhe assiste o direito de gozar aqui com a nossa guerra. Volte quando estiver melhor preparado.»
Um sorriso que classifiquei como cínico e o senhor que se segue.
No momento senti crescer a revolta, mas talvez tivesse razão. As folhas que me tinham emprestado eram de qualidade duvidosa. Além do mais, depois de muitos meses metido no congelador da tropa, sentia grandes dificuldades de concentração. Ao fim de meia hora de estudo tinha que interromper porque já estava a pensar em tudo e não no essencial. Mas era uma questão de insistência, de teimosia. Ia conseguir ter de volta o prazer de estudar. Era só uma questão de tempo e de força de ânimo.
Fui colocado num quartel de Infantaria. Mais uma vez o pai do Valdo deve ter mexido os cordelinhos ao colocar o filho numa unidade de serviços auto, juntamente com o inseparável Valeriano. Azar dos dois porque foram obrigados a dar instrução básica a recrutas enquanto que eu fiz de tudo um pouco, menos instrução porque essa estava destinada aos aspirantes que faziam a última preparação dos seus soldados para a guerra. Aquele quartel era um entreposto de passagem para o inferno donde muitos não voltariam. Devido aos antecedentes, isto é, à recruta feita no Porto, ou à tal cunha que não sei se tive, eu via-os partir, revoltados, alguns já com a marca da morte.
O meu estatuto permitia até que não fizesse serviços de oficial de dia, ao contrário do que aconteceu no quartel da Figueira. Até que as coisas se complicaram quando os oficiais credenciados para desempenharem a missão de "senhor absoluto do quartel na ausência do comandante" se reduziram a três ou quatro. Claro que não refilei. Acatei a ordem do comandante, mais nada. Na tropa recebia-se uma ordem e só depois se fazia a reclamação. Naquele caso, o que me podia acontecer, se me queixasse, era levar uma porrada. E tal era a última coisa que queria. Portanto, ponto final.
Tinha mais cuidado em Lisboa com o visual, já que também devia ser exigente com os meus subordinados. A substituição do oficial de dia era uma cerimónia que nada tinha a ver com o quase faz de conta da Figueira, dando até direito a banda de música e fanfarra. Depois tinha que passar revista a todo o pessoal que ia entrar de serviço, incluído o piquete de reforço. De vez em quando parava para abotoar um botão, dizer palavras de apreço pelo aprumo dum soldado, endireitar uma gola, ou dar a um soldado uma ordem de apresentação no meu gabinete quando via botas mal engraxadas, nódoas na farda, ou barba mal escanhoada. O oficial de dia era o responsável máximo perante o comandante pelo bom funcionamento da máquina que geria o quartel e nesse bom funcionamento tínhamos que entrar em linha de conta com os caprichos do comandante. O quartel estava a cair de podre. As fugas de eletricidade eram muitas. Os oficiais de dia tinham a obrigação de zelar pelo abaixamento do consumo. Éramos até ameaçados de pagar uma parte dessa verba se o consumo continuasse alto. Claro que eram só ameaças veladas. De facto não éramos mágicos para fazer sumir as inevitáveis perdas de energia porque o mal não era atacado pela raiz.
Apanhei de tal forma o hábito de apagar luzes desnecessárias em tudo o que era sítio, que me viciei na minha própria casa. Durante muitos anos, já depois de sair da tropa, custou-me a inverter a situação.
Os dias foram-se passando e fui envelhecendo no quartel, enquanto a maior parte dos outros oficiais e restantes militares não se faziam velhos porque o destino era cruel. Angola, Moçambique, Guiné. Era infalível receberem ordem de marcha para uma roleta russa. Também ganhei estatuto na messe de oficiais, passando a ocupar a mesa dos alferes e dos tenentes.
A comida era horrível. Em nada se comparava com a saudosa ementa da messe da Figueira, principalmente quando chegava o Verão pelas razões que já expus. Bem se esforçavam os aspirantes-maçaricos que se substituíam mês a mês, completamente falidos, depois de irem nas conversas pouco amistosas do comandante que criticava, até aos limites da ética, a qualidade das refeições servidas. A culpa também era deles porque não iam às compras, como lhes competia, nem faziam as contas. Na messe comia-se mal de verdade e eles gastavam muito dinheiro, acumulando sucessivos prejuízos. Alguma coisa estava mal.
Então, para onde ia parte do dinheiro?
Claro que para os bolsos do sargento da messe e dos soldados seus acólitos que iam às compras.
Uma das muitas missões do oficial de dia era provar a comida do refeitório, antes da mesma ir ao gabinete do comandante, mais saborosa que a da messe. Quando de serviço comia quase sempre no refeitório. Dava mais confiança aos soldados e também beneficiava com a escolha. Mas voltando à messe, nunca me esqueci daquele dia em que um capitão, revoltado e completamente desmotivado, recusou-se a almoçar na mesa dos capitães e oficiais superiores, almoçando na nossa mesa. Normas eram normas, mas o dito capitão não quis saber delas.
«A grande merda é que fui mobilizado para a Guiné e estes cabrões deram cabo da minha vida profissional para sempre. Prefiro estar nesta mesa com uns gajos porreiros como vocês do que com aqueles sacanas parasitas que se alimentam da guerra.»
«Não é bem assim. São profissionais e obedecem a ordens do Governo.»
Ele tinha as suas razões.
«A minha vida está destroçada. Se for para a Guiné, mato-me. Não vou conseguir aguentar!»
«Não digas isso, que vais ultrapassar esse choque que tiveste» tentou ajudar o Antunes, o oficial de justiça que distribuía por nós os autos de averiguações e de corpo de delito, em vez de dar seguimento aos mesmos. «Ao menos foste mobilizado como médico...»
Deixou escapar um sorriso estranho.
«Fiz o C.O.M. em Mafra e andei por aqui e ali até passar à peluda. Escapei da guerra por um triz. Passei à disponibilidade e consegui acabar o curso de Medicina. Estava em S. José quando me chamaram de novo. Pasmem! Fui mobilizado como oficial de Infantaria. Eu mato-me na Guiné! Não vou conseguir suportar a porra desta pressão...»
«Então não vais como médico?»
«Não, porra!»
«Os grandes cabrões!»
As vozes animadas dos aspirantes mantinham o tom alto, mas não preencheram o vazio que encheu a nossa mesa.
Quanto ao médico que partiu como combatente para a Guiné, nunca mais o vi. Nem verei. Cumpriu a ameaça velada que fez. Suicidou-se com dois tiros na cabeça, sem honra nem glória. Mas fez o que quis e não o que os senhores da guerra queriam que fizesse.
Não tinha outras recordações do quartel em Lisboa, além dos jogos de King sintético que fazíamos todos os dias a seguir ao almoço na sala de oficiais, senão de situações decorrentes do serviço de oficial de dia. Como a antiguidade era um posto, comecei a acumular serviço e a trabalhar cada vez menos. Além do serviço de oficial de dia, de cinco em cinco dias, ou até de quatro em quatro, trabalhava no Parque Auto, no Material de Guerra, fazia serviço de Justiça e andava quase sempre desenfiado, logo a seguir ao jogo do King.
«Onde está o Mário?» perguntava alguém.
«Há pouco vi-o na Material de Guerra.»
No Material de Guerra…
«Quando saiu, disse que ia para o Parque Auto.»
«Vi-o há pouco no Gabinete de Justiça.»
Claro que já estava em casa. Quantas mais ocupações tinha, maiores eram as possibilidades de me desenfiar com êxito garantido.
Um dia, o comandante quis que fosse Oficial de Tiro. Consegui safar-me, dizendo que era dos serviços auxiliares e não podia exercer esse cargo. Com razão ou sem ela, o comandante pensou melhor e nomeou outro alferes para oficial de tiro.
Havia sempre dois rituais que fazia antes da rendição da parada. Procurar o graxa para me pôr as botas a reluzir e levantar a Walther de nove milímetros no quarteleiro. Ia até ao quarto, retirava as balas do carregador, metia o carregador na pistola e guardava as balas na gaveta da mesa de cabeceira. Outras vezes recebia as munições à parte e nem sequer tinha o trabalho de as pôr no carregador. Depois descia para a parada com o meu olhar número um, destinado a causar impressão de duro que não era. Má impressão, como se impunha quando se passava revista aos militares que iam entrar de serviço. Tudo o mais, tiros e tiros, era fantasia.

Bem me podia ter saído caro naquela manhã em que fui chamado à barbearia pelo meu companheiro responsável pelo Parque Auto para resolver um pequeno problema com um preso que não queria levar uma carecada. Tinha acabado de entrar de serviço e estava no bar a tomar o pequeno almoço. Um galão muito claro, acompanhado de torradas.
 «Vossa senhoria, meu alferes, dá licença?»
«Quantos passos?» apeteceu-me perguntar. «Entra, José. Que se passa, homem?»
O soldado vinha afogueado.
«Vá, descansa um pouco, homem. Viste o diabo?»
«É na barbearia» disse, ainda arquejante. «Está lá um preso que tem uma tesoura apontada para o senhor alferes Barbosa.»
«Por que raio estou de serviço hoje? Não acabei de tomar o pequeno almoço e já surgiu um problema. Parece coisa séria.»
Como de costume o carregador não tinha balas e atirar com a pistola à cabeça do meliante estava fora de causa. Não havia opção à vista.
Fiquei especado à porta da barbearia a apreciar a cena. O preso estava entre as duas cadeiras de barbeiro e de facto apontava a pistola, ou melhor, as pontas da tesoura ao Barbosa. Os barbeiros, esses tinham recuado para os lugares dos clientes e estavam muito sérios a assistir à cena insólita. Um soldado permanecia sentado numa das cadeiras rotativas com meia carecada feita e olhando, receoso, para os bicos da tesoura que o outro apontava.
«Bonito serviço!» disse em voz alta.
«Vê se desarmas esse gajo antes que me transforme num passador!» rogou o desgraçado do Barbosa.
Levei a mão à coronha. O preso acompanhou com apreensão o meu gesto. Ele é que ia ficar que nem um passador, deve ter pensado.
Dei dois passos na sua direção e comecei a falar-lhe mansinho, tentando controlar a situação. Fiz-lhe ver que não ganhava com as consequências da sua atitude impensada, que isto e também aquilo. Isto era uma chatice e aquilo não era melhor. Tudo se resolvia a bem sem isto e aquilo. De facto havia uma terceira opção e logo tudo era esquecido. Ele dava-me a tesoura e acabava-se a cena em três atos. Ao mesmo tempo não largava a mão da coronha, sabendo de antemão que a arma estava descarregada. Um belo bluff para um jogador de póquer exímio como eu. Mas ele tinha melhor jogo e não sabia!
«Então?»
«Então o quê?»
«Como te chamas?»
«Rosado.»
«Olha, Rosado, pensa bem no molho de brócolos em que te vais meter.»
«Ainda por cima ele é refratário.» Carregou o Barbosa.
Um refratário. Não sabia ainda das etiquetas da tropa. Nem sequer o tinham mandado ir buscar a caixa das estrias, partida que se fazia aos novatos.
Continuei a tentativa de anestesiar o desgraçado.
«Meteste-te em mais alhadas e acabas com os cornos no Ultramar. Sou eu quem te aviso. Já tenho muita experiência destas andanças. Como sabes, ir para o Ultramar não é nada bom. Na melhor das hipóteses vens de lá sem uma perna, ou com vários estilhaços de granada defensiva, pelo menos um no cu. Já imaginaste o que é? Mas diz-me uma coisa: és mesmo refratário, não és?»
«Sou.»
«Sou, meu alferes.» Emendou o Barbosa.
«Sou, meu alferes.»
Já obedecia. O processo estava a chegar ao fim.
«Ainda pior, meu rapaz. Vá... dá-me a tesoura. Estás a agravar a tua situação. Não te enterres mais na merda. Já chegou o cheiro aqui, sabes?»
«Mata-me esse cabrão!» interveio o Barbosa, cada vez mais nervoso.
Pintura borrada. O preso deu um passo na direção do Barbosa e eu dei outro passo para ele.
«Deixa-me resolver isto à minha maneira, Barbosa. Não foste tu que me chamaste? Então, cala o bico que a responsabilidade é minha.»
Isto e aquilo, de novo. Tentei convencê-lo, repetindo pacientemente a conversa anterior. Observei que começava a ceder. Depois dei outro passo e estendi a mão esquerda. Para meu espanto, deu-me a danada da tesoura.
Foi o que todos quiseram ver. Num instante, os valentes barbeiros e o Barbosa saltaram que nem uns cães em cima do desgraçado do preso e desataram a malhar nele. Começava já a ter dó do desgraçado quando este me chamou um nome, daqueles que não gostamos ouvir. Então descontrolei-me de uma vez por todas e, ajudando também a festa, dei-lhe um cachação, ao mesmo tempo que dizia:
«Cortas o cabelo e é já! Rente!»
Eram poucos para o segurar. O tipo embraveceu com a minha reação pouco ortodoxa e foi nesse momento que decidi virar costas e sair da barbearia.
Ainda o ouvi dizer:
«Quando te encontrar lá fora dou cabo de ti. Não julgues que vou esquecer-me.»
Encolhi os ombros.
Mais tarde, quando passei à disponibilidade, nos primeiros tempos olhava na rua com cuidado em todas as direções, não fosse encontrar o louco do preso que não queria levar uma carecada.

Hoje partiram mais duas Companhias para Angola. Os homens iam sorridentes, sem complexos. Gostei de os ver no dia a dia. Eram bem comportados e zelosos dos seus deveres. Tinham uma maneira peculiar de fazer sentido, seguido  de direita volver: batiam energicamente com o pé esquerdo no chão.
Vi-os partir com pena.
Quantos voltariam sãos, física e psicologicamente?
Deixam saudades. Os homens dos Comandos hão de ser lembrados durante muito tempo pelos seus atos de bravura.

As noites do oficial de dia, passadas em parte a uma secretária, são intermináveis. Os minutos correm para trás e o pensamento escoa-se para dentro. Tudo se torna nebuloso, confuso. Mas é sempre assim. Só me vou habituar a esta solidão quando estiver quase a ir-me embora.
Os soldados dos comandos almoçaram mais cedo porque embarcavam à uma da tarde. Assisti ao seu almoço e não notei o mínimo de nervosismo. Que Deus os acompanhe. O bom Deus. Não o deus menor que adormece sempre nos momentos cruciais.
Um dia li um poema de um soldado que dizia assim:
“Membros cansados, olhos encovados, desgrenhado... regresso, triste de voltar.”

Chegou outra fornada de soldados. Não é fim-de-semana. Aos fins-de-semana voltam tristes.
É uma da manhã. O aspirante de prevenção diz que não tem sono. Eu também não. Então contamos as nossas histórias, tristes ou alegres, para matar o tempo, até chegar o momento dele começar a ronda. Uma noite longa cheia de vazio. Nem sequer tenho forças para me lamentar. Já esperava o regresso deste estado de espírito e sinto-me triste de voltar. O soldado-poeta tinha razão: nunca voltamos alegres…

Problemas e mais problemas. Tive que ir a uma das casernas tentar descobrir o autor do furto de uma carteira. Quando entrei na caserna os soldados estavam alinhados junto às camas e, à voz firme do sargento, puseram-se em sentido. Fiz um sinal para ficarem à vontade.
«Alguém viu alguma coisa, sargento Tapadas?»
«Meu alferes, é o costume» disse este, ao mesmo que fazia um encolher de ombros. «Ninguém viu nada.»
«Já passou revista aos homens? Abriu os armários?»
«Não, meu alferes. Estava à espera que vossa senhoria viesse.»
«Pare com a merda dos salamaleques, sargento. Deixe lá o "vossa senhoria" para os outros. Só quero saber uma coisa: ausentou-se alguém?»
«Ninguém, desde que recebi a queixa do catorze e vim para a caserna.»
«Catorze?»
«Soldado catorze, do Parque Auto. O Tomé.»
«Ah! Com os nomes é que me entendo.»
A mania que tinham de rotular os soldados pelos números. Achava que era impessoal e desprezível. Nunca gostei. Era a vantagem de ser miliciano.
Quanto ao autor do furto, descobri-lo, admiti desde logo que era como procurar uma agulha num palheiro. Tinha quase a certeza que o ladrão já não estava presente na caserna.
«Vamos lá então a passar a caserna a pente fino. Sargento Tapadas, mande os soldados alinharem em frente às suas camas.»
«Já estão, meu alferes.»
«É verdade.»
Iniciou-se de imediato a busca por toda a caserna.
«Não esqueça as camas...»
Dito e feito. Também as camas. Mas nenhum sinal da carteira.
«Procure nas casas de banho e depois diga-me qualquer coisa. Agora vou tratar de um assunto muito importante. Olhe, ninguém pode sair da caserna durante a próxima hora. Ninguém, entende?»
«Sim, meu alferes!»
Maldito servilismo!
O objetivo era falar em segredo com o sargento da guarda. Todos os soldados que passassem pela porta de armas seriam revistados.
Consequências da revista à saída do quartel:  um soldado do refeitório foi apanhado com dois quilos de carne num saco. A carne estava escondida entre a roupa. Antes não tivesse dado tal ordem.
Mandei-o vir à minha presença e dei-lhe uma reprimenda das grandes.
O homem estava arrependido. Foi a primeira vez que roubou alguma coisa. Uma tentação do diabo, confessou-me. Tive pena. Era muito magro. E aquele ar de tuberculoso…
Pensei ainda em perdoar. Esquecer e mandá-lo em paz. Dava-lhe dois tabefes e pronto, assunto resolvido. Se calhar a família do desgraçado tinha fome. Era casado e...
Mas o sargento da guarda e um soldado tinham testemunhado a caricata cena do pedaço de carne. Não me restava mais outra coisa senão incluir o maldito caso no relatório de ocorrências para o comandante.
Militarista como era, pessoa que cortava a direito, sem compaixão. Não augurava nada de bom para o soldado.
De facto o resultado foi dramático. O soldado apanhou quinze dias de prisão. Ainda falei com o comandante que foi irredutível.
«Tem que servir de exemplo!»
Caso arrumado. Nada feito. Fui almoçar e tentei esquecer aquele momento infeliz.
Quanto à carteira, esta acabou por aparecer num dos autoclismos das casas de banho anexas à caserna. Claro que o dinheiro já não estava lá.
Maldito engano que me deve ter custado mais uma dúzia de faturas a pagar no futuro!

Chamavam-lhe o “chapéu, casaco e botas”. Um major baixote, rosado, patusco e que tinha um lema: se as pessoas não o chateassem, também não chateava. Mas um dia chateou-me, no bom sentido da palavra. Pediu-me se lhe levava o carro a uma oficina para os lados da Almirante Reis. O Barbosa é que costumava levar o carro, mas infelizmente estava de férias. Assim, coube-me a missão espinhosa de levar o carro para a garagem. O carro tinha mudanças ao volante, o que me desagradou. Não pude dizer que não. Podia também precisar dos préstimos do major. Nunca se sabia.
Lá fui, com um furriel e um soldado que me indicaram o caminho. Além do mais, o furriel conhecia o chefe da oficina.
«É já aí... à direita.»
Indicação na queima. Curvei de imediato e entrei numa passagem estreita. Julguei ter feito uma tangente a um carro estacionado, mas saiu secante e o carro do major ficou com um senhor risco. Dei conta. Os outros mantiveram-se calados.
Entraram no jogo?
Mais tarde vim a saber que uma das testemunhas tinha dado à dica. O major queixou-se ao Barbosa.
«O sacana do Mário fez-me um risco no carro.»
«Ele disse isso, Barbosa? De facto fiz esse risco. Avisaram-me em cima do acontecimento e calculei mal a manobra ao virar. Então, que faço agora?» perguntei.
«Ora, deixa andar. Afinal o carro do "chapéu, casaco e botas" foi para o bate-chapas e pintura geral. Mais risco, menos risco não faz subir a conta da oficina.»
«Achas que não há problema? Digo alguma coisa ao major Renascido?»
 Nome curioso, o seu.
«Não levantes mais areia. O carro vai ficar impecável...»

Voltando alguns meses atrás, convém dizer que na Figueira as noites do oficial de dia eram tão monótonas como em qualquer outro quartel, mas passavam-se melhor que em Lisboa, por razões óbvias. As razões óbvias estavam relacionadas com a palavra "calma". Não me lembro de existir um gabinete para o oficial de dia. A base era a sala de oficiais. Já no quartel de Lisboa, havia melhores condições. Um gabinete próprio e um quarto a que tínhamos acesso depois de descermos quatro ou cinco degraus de escada.
Normalmente dividia-se a noite com o oficial de prevenção e piquete. Como oficial de dia, tinha prioridade na escolha da parte da noite e escolhia quase sempre o segundo turno. Isto tanto na Figueira como em Lisboa.
Na Figueira a base de apoio ao oficial de dia era a sala de oficiais. Para amenizar a noite havia um aparelho de rádio e gira-discos e meia dúzia de discos de vinil. Tudo obra de um quotização feita entre os oficiais presentes no quartel logo nos primeiros tempos em que passei a pertencer ao quadro provisório dos oficiais a prestarem serviço. Não foi barato, mas deu jeito. Ouvi inúmeras vezes a Nathalie, do Bécaud, especialmente quando era atacado pela nostalgia do isolamento.
Costumávamos, também, jogar bluff a partir da meia-noite, quando todos sossegavam no quartel. O silêncio era de ouro e as paradas também pesadas. Fazíamos caves de cem escudos e as apostas não tinham limite, dependendo unicamente do valor da cave e do poder de decisão dos jogadores. Normalmente não me dava mal, pois era um jogador atento às reações dos outros jogadores. Era o renascer de “a mesa chora”, “vou no escuro”, “repico”. O olhar dividia-se entre as cartas e o estado de alma dos adversários. Era tudo uma questão de leitura do modo de reagir de cada um. De um momento para o outro preparava-se um golpe de mão a testar se o adversário possuía nervos de aço. O resultado era sempre imprevisível, bem como o momento da decisão (ficava melhor emboscada, em vez de golpe de mão), com ou sem armamento pesado. Daí o jogo chamar-se bluff, uma variante do póquer clássico, aberto. Este que jogávamos não tinha cartas à vista.
Aproveitava assim para estar em serviço na primeira parte da noite que se prolongava até às três da manhã. Jogava e, de vez em quando, fazia as minhas rondas, onde, por vezes encontrava um soldado a dormir, apoiando-se na arma. Seguia-se uma reprimenda que era mais uma ameaça de um caldaço caso ele fosse apanhado uma segunda vez em falta. Depois voltava à sala de oficiais e continuava o jogo até perto das três da manhã. Então ia dormir.
Em pouco tempo improvisava uma cama na sala de oficiais.

Os cadeirões tinham outro aproveitamento que não o habitual. Tiravam-se os encostos e estendiam-se sobre o sofá, de forma contígua. Assim, ficava, tal qual, uma cama improvisada. Mário sentia-se exausto. A espera, a tensão, tinham-no arrasado. E pensava que, se quisesse, podia ter abandonado o local. Antes o fizesse. Mas não, já não havia hipótese de voltar atrás. Tinha que ser. A esperança já invadira muitos corações e nada valiam os dedos acusadores. Depois, o sincronismo. Tudo correra como fora planeado. Uma engrenagem perfeita.
Tirou todos os encostos e estendeu-os sobre o sofá. Enrolou-se no cobertor e fechou os olhos. Queria esquecer. Esquecer tudo. Ah!, a tortura, a vontade de fechar as olhos, insistir e não conseguir!
«Não devo pensar. Vou descontrair os músculos...»
Passei muitas das noites de serviço de oficial de dia de março a abril a ler romances de Steinbeck e de Hemingway, entre outros. Horas a fio a ler até ser vencido pelo sono. Depois, juntava os cadeirões e os encostos, enrolava-me no cobertor grosso e de odor desagradável e adormecia quase de imediato, após um ou outro pensamento que já não tinha nexo.
Estava no denominado vale dos lençóis, sem lençóis, mas com um sono terrível que sobrevinha ao cansaço.
Acordava invariavelmente confuso ao dar com dois rostos sorridentes que gozavam, deliciados, a transição do estado inconsciente para o consciente. Aos poucos deixava penetrar o real, identificava depois o meu camarada oficial de prevenção e o furriel que o acompanhava nas rondas.
«Está na hora, Mário... hoje a soneca foi curta, não?»
Pois. Jogatina dura até altas horas e pouco produtiva.
Esfregava os olhos, levantava os braços, espreguiçava-me e dizia:
«Não te enganaste na hora?»
Ele abanava a cabeça.
«Se quiseres vamos dar mais uma volta. Não nos custa nada. Pois não, Arildo?»
Boa prenda, aquele gajo. Não havia outro furriel tão incrível como o Arildo. Completamente desmiolado, mas bom coração. Deus o guardasse quando fosse mobilizado. Era de Artilharia, portanto não tinha hipótese. Em breve estaria na Guiné ou em Angola. Gostava de andar aos tiros nos exercícios de treino em que se usavam balas de madeira. Certamente noutra encarnação fora cowboy.
«Obrigado. Já acordei de vez. Vou ouvir discos e depois faço uma ronda. Olha, podes ir dormir para o teu quarto da messe, mas não te esqueças de estar no refeitório a dar assistência ao pequeno-almoço dos praças.»
«Certíssimo.»
Fiz um gesto largo e eles saíram em silêncio. Levantei o indicador e fiquei especado na sala. Inevitável. Para começar, Nathalie.

Mas onde estava o disco?
Lógico. No próprio gira-discos. Era o favorito entre meia dúzia dos discos que faziam parte da nossa fraca coleção.
La place rouge était vide et la neige faisait un tapis
Ouvi o som de pancadas fortes na porta e fui abrir. Era o Arildo. O tal incrível.
«Então não foste dormir?»
«Estou a substituir o Gomes, meu aspirante.»
«Tu gostas mesmo disto, Arildo! Está certo. Olha, senta-te aqui ao meu lado e ouve-me esta música. Vais gostar. De certeza que vais gostar.»
«Encontrei um soldado a dormir no seu posto e estive para dar-lhe um tiro. Mas depois lembrei-me que era noite. Claro que uso sempre balas de borracha, meu aspirante!»
«Tu e os tiros, os tiros e tu. Deixa lá o desgraçado do soldado. Ralhaste com ele, não ralhaste?»
«Dei-lhe cá uma reprimenda, meu aspirante! O homem estava mesmo enfiado.»
«Pronto. Cumpriste a tua obrigação. E quanto ao resto, estava tudo calmo, não estava? Então ouve-me o Bécaud e depois vai dormir.»
Liguei o aparelho e coloquei, com cuidado o braço do gira-discos antes da primeira espira. A agulha deslizou com suavidade e comecei a ouvir os acordes da orquestra. Definitivamente não me cansava.
«Agora vai-te deitar que eu faço a ronda sozinho.»
«Mas...»
«É uma ordem, meu rapaz!»

Saiu e fiquei só. Esfreguei as mãos. Finalmente!
Executei as operações habituais para ouvir o mesmo disco. Depois, recostei-me no cadeirão, fechei os olhos e adormeci. 

Sem comentários:

Enviar um comentário