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s chávenas repousam, lado a lado, vazias. Patrícia, voltada para a rua, contempla as nuvens negras que parecem formar uma linha de continuidade com o mar cinzento. Apenas o levantar de uma ou outra onda quebra a imagem formada. Uma gaivota desce, em voo picado, até à ondulação e, por momentos, contacta a superfície espumosa, procurando o peixe aventureiro que subiu demasiado. Depois, saciado o apetite, volta a ascender no ar carregado de ozono. Patrícia segue a evolução da ave e boceja. À volta estão as outras mesas, brilhantes como antracite; de frente, o balcão circular que tem bancos esguios por todo o percurso; do lado direito e mais ao fundo, a máquina de discos, silenciosa. De resto o snack está mergulhado num torpor de uma tarde abafada de maio, tão característica de F... como, também, amorfa. Os dias quentes ainda não chegaram e domina um estado intermédio, que não tem pretensão de inclinar para um qualquer dos extremos.
O companheiro de Patrícia agita paulatinamente o copo meio de água, sem que esta ultrapasse a linha delimitante do bordo superior. É mais a atitude de ausência do que a monotonia de um puzzle. Ela deixou de seguir a gaivota e voltou-se para o companheiro. Do voo premeditado de uma ave e do movimento de rotação de partículas de água, dentro de um espaço que as confinou, ficou a reminiscência de tempo inútil que se consome como areia fina que passa no crivo de malhas constantes.
Homem e mulher deixaram as ocupações para se olharem com algum interesse. Era um absurdo pensar que estavam sentados ocasionalmente na mesma mesa. Mas nas suas expressões havia algo de estranho. Os olhos dela, claros, contrastavam com o rosto moreno, por natureza. No inverno e no verão todo o seu corpo era moreno. O mesmo não se podia dizer dos olhos, que passavam por diversas tonalidades claras, sendo cinzentos, azuis, verdes. Ele igualava-se a si próprio: o mesmo rosto, a aparência pendular de homem pensativo, a pouca verbosidade de todos os dias. Patrícia fora comunicativa, entusiástica. Mas o tempo e a presença dele encarregaram-se de esfumar, lentamente, a vitalidade que a tornava sempre jovem. De repente, deu consigo triste, reservada. Os primeiros sintomas tinham surgido no começo do ano. A erva ruim germinara da semente do contágio e proliferara com rapidez. Nada havia a fazer. Sentia-se vazia. Ausente. Talvez por isso, olhavam-se como se fosse a primeira vez que se encontravam, tentando descobrir no ar as feromonas que já não existiam.
O tempo vai correndo devagar, sem alterações sensíveis no campo que depende dele. Também, devagar, as nuvens vão tomando a configuração de monstros idealizados por génios maquiavélicos. Ora são figuras horrendas de hidras de múltiplas cabeças, ora tentáculos viscosos que tudo parecem agarrar.
«As tardes são cada vez mais longas...»
Baixou a cabeça. Talvez não tivesse ouvido Patrícia. O seu copo rodou com maior velocidade e algumas gotas foram projetadas sobre a mesa. Mário parecia interessado em vê-lo dançar, num rito grotesco, como se em cada volta, em cada disposição diferente das moléculas invisíveis de água, encontrasse uma nova visão. Restos de imagens utópicas que o consciente já rejeitou.
Seria?..., naquele agitar insistente estava vendo alguém?
Pura tolice. Tinha a seu lado Patrícia. A bela Patrícia que o seguira na cegueira de não saber porquê. Tal como muitas coisas acontecem sem motivo para acontecerem. Uma queda, por exemplo. Cai-se porque se escorregou, ou porque a ambição foi demasiado longe. Há muitas razões lógicas que explicam ou pretendem explicar os fenómenos ocorridos. Tudo é inevitável. O cigarro que se apaga na falta do comburente; as vozes que não se ouvem no vazio.
Nunca a soube definir. Nem chegou a conhecer a verdadeira cor dos seus olhos. Agora estavam cinzentos, nublados. Mas escondido deles, sempre o mistério dum pensamento distante, a ideia convicta de que esse pensamento o atraiçoava.
Seria ela a mulher amedrontada pelo correr dos anos, aquela mesma mulher que viu fugir o amor e, desesperada, agarrou-se à primeira tábua que passou próximo?
Um dia, dormiram juntos. Patrícia era meiga. Amadurecida pela experiência, satisfazia-o de maneira a não procurar outras mulheres; no abandono e na submissão, atraía-o para um mundo carnal e, ao mesmo tempo, apocalíptico. Eram dois corpos frementes, trémulos, que se apertavam na ânsia de um orgasmo infinito que só durava um segundo, frações de segundo, tempo sem tempo. Depois, o receio da realidade, de se encontrarem, lado a lado, numa mesa de tampo negro, com duas chávenas vazias na sua frente, dois copos ainda com água e o vazio deles próprios como companhia.
«Vai anoitecer finalmente.»
Mas a vida continua a correr num rio que desenha meandros cada vez mais sinuosos. Sem pressa de chegar porque não tem onde chegar. O dia a dia mata-os. O tédio começa a corromper o que resta da esperança. Um dia vão cansar-se de ver a gaivota que desce em voo picado até às ondas. Da mesa de tampo negro. Das chávenas vazias. Do copo meio de água. Da máquina de discos, silenciosa.
Patrícia tem olhos claros. Cinzentos, azuis, verdes. Da cor do mar. Uns olhos diferentes para Mário. Como diferentes são um do outro.
Agora não tem uma ideia límpida, mas o seu subconsciente está trabalhando na sombra, conferindo, separando as águas. Mais tarde ou mais cedo, quando as gaivotas se afastarem para o largo e ela não mais o olhar com aqueles olhos claros, vai saber porque estava ali, naquele snack, junto a uma mulher que nunca chegou a conhecer. Há algo de errado. Desesperado, procura uma ponta de realidade, da sua própria vida. Na ausência da ligação. No agitar da água que um copo encerra. Mas ainda é cedo para descobrir onde errou, ou talvez que nunca descubra. Demasiado cedo para quem possui um emaranhado de ideias que não conduzem, de maneira alguma, ao caminho desejado.
E o corpo de Manuela, rígido, frio?
Mário não queria recordar o passado que enterrou. Não queria o passado. Patrícia era a resposta. A continuação inconsistente que levaria à rotura, se é que já não estavam em situação de rotura. A continuação que bastava. A existência. Simplesmente.
A voz de Patrícia pareceu vir de longe:
«Porquê?»
Mário não respondeu.
Recordava com nitidez como aconteceu naquela tarde. Os olhares trocados, o diálogo curto:
«Ainda aí?»Homem e mulher deixaram as ocupações para se olharem com algum interesse. Era um absurdo pensar que estavam sentados ocasionalmente na mesma mesa. Mas nas suas expressões havia algo de estranho. Os olhos dela, claros, contrastavam com o rosto moreno, por natureza. No inverno e no verão todo o seu corpo era moreno. O mesmo não se podia dizer dos olhos, que passavam por diversas tonalidades claras, sendo cinzentos, azuis, verdes. Ele igualava-se a si próprio: o mesmo rosto, a aparência pendular de homem pensativo, a pouca verbosidade de todos os dias. Patrícia fora comunicativa, entusiástica. Mas o tempo e a presença dele encarregaram-se de esfumar, lentamente, a vitalidade que a tornava sempre jovem. De repente, deu consigo triste, reservada. Os primeiros sintomas tinham surgido no começo do ano. A erva ruim germinara da semente do contágio e proliferara com rapidez. Nada havia a fazer. Sentia-se vazia. Ausente. Talvez por isso, olhavam-se como se fosse a primeira vez que se encontravam, tentando descobrir no ar as feromonas que já não existiam.
O tempo vai correndo devagar, sem alterações sensíveis no campo que depende dele. Também, devagar, as nuvens vão tomando a configuração de monstros idealizados por génios maquiavélicos. Ora são figuras horrendas de hidras de múltiplas cabeças, ora tentáculos viscosos que tudo parecem agarrar.
«As tardes são cada vez mais longas...»
Baixou a cabeça. Talvez não tivesse ouvido Patrícia. O seu copo rodou com maior velocidade e algumas gotas foram projetadas sobre a mesa. Mário parecia interessado em vê-lo dançar, num rito grotesco, como se em cada volta, em cada disposição diferente das moléculas invisíveis de água, encontrasse uma nova visão. Restos de imagens utópicas que o consciente já rejeitou.
Seria?..., naquele agitar insistente estava vendo alguém?
Pura tolice. Tinha a seu lado Patrícia. A bela Patrícia que o seguira na cegueira de não saber porquê. Tal como muitas coisas acontecem sem motivo para acontecerem. Uma queda, por exemplo. Cai-se porque se escorregou, ou porque a ambição foi demasiado longe. Há muitas razões lógicas que explicam ou pretendem explicar os fenómenos ocorridos. Tudo é inevitável. O cigarro que se apaga na falta do comburente; as vozes que não se ouvem no vazio.
Nunca a soube definir. Nem chegou a conhecer a verdadeira cor dos seus olhos. Agora estavam cinzentos, nublados. Mas escondido deles, sempre o mistério dum pensamento distante, a ideia convicta de que esse pensamento o atraiçoava.
Seria ela a mulher amedrontada pelo correr dos anos, aquela mesma mulher que viu fugir o amor e, desesperada, agarrou-se à primeira tábua que passou próximo?
Um dia, dormiram juntos. Patrícia era meiga. Amadurecida pela experiência, satisfazia-o de maneira a não procurar outras mulheres; no abandono e na submissão, atraía-o para um mundo carnal e, ao mesmo tempo, apocalíptico. Eram dois corpos frementes, trémulos, que se apertavam na ânsia de um orgasmo infinito que só durava um segundo, frações de segundo, tempo sem tempo. Depois, o receio da realidade, de se encontrarem, lado a lado, numa mesa de tampo negro, com duas chávenas vazias na sua frente, dois copos ainda com água e o vazio deles próprios como companhia.
«Vai anoitecer finalmente.»
Mas a vida continua a correr num rio que desenha meandros cada vez mais sinuosos. Sem pressa de chegar porque não tem onde chegar. O dia a dia mata-os. O tédio começa a corromper o que resta da esperança. Um dia vão cansar-se de ver a gaivota que desce em voo picado até às ondas. Da mesa de tampo negro. Das chávenas vazias. Do copo meio de água. Da máquina de discos, silenciosa.
Patrícia tem olhos claros. Cinzentos, azuis, verdes. Da cor do mar. Uns olhos diferentes para Mário. Como diferentes são um do outro.
Agora não tem uma ideia límpida, mas o seu subconsciente está trabalhando na sombra, conferindo, separando as águas. Mais tarde ou mais cedo, quando as gaivotas se afastarem para o largo e ela não mais o olhar com aqueles olhos claros, vai saber porque estava ali, naquele snack, junto a uma mulher que nunca chegou a conhecer. Há algo de errado. Desesperado, procura uma ponta de realidade, da sua própria vida. Na ausência da ligação. No agitar da água que um copo encerra. Mas ainda é cedo para descobrir onde errou, ou talvez que nunca descubra. Demasiado cedo para quem possui um emaranhado de ideias que não conduzem, de maneira alguma, ao caminho desejado.
E o corpo de Manuela, rígido, frio?
Mário não queria recordar o passado que enterrou. Não queria o passado. Patrícia era a resposta. A continuação inconsistente que levaria à rotura, se é que já não estavam em situação de rotura. A continuação que bastava. A existência. Simplesmente.
A voz de Patrícia pareceu vir de longe:
«Porquê?»
Mário não respondeu.
Recordava com nitidez como aconteceu naquela tarde. Os olhares trocados, o diálogo curto:
«Quando pretendemos algo...»
Tinha-a fixado intensamente.
Donde vinha aquela mulher?
«Mas quem é você?»
«Alguém.»
«Chega-me. Também sou alguém. É quanto basta, a existência. O resto já não me interessa.»
«Então, vamos. Também só me interessa a existência...»
Caminharam, lado a lado, e desapareceram nas sombras da noite. Vindos de mundos diferentes, uniram-se na primeira encruzilhada. Não se conheciam. Aliás, nunca se conheceram verdadeiramente. O seu encontro, fortuito, fora um compasso de espera. Eram o que eram e não aquilo que deixaram de ser.
«Mário.»
«Sim?»
«Estás cansado de mim? Sei que estás. Não digas nada.»
Acendeu um cigarro e debruçou-se depois no muro caiado. Os olhos percorreram, devagar, a terra de sílica, o verde-azul espumoso que se espraiava, de tempos a tempos, num abraço de fidelidade à areia amante. Ao largo, duas traineiras ensaiavam na ondulação uma dança suave. Os carros do quartel demoravam a deixar a estrada que confinava com a praia. Ficavam parados junto das mulheres que trabalhavam à beira-mar, enchendo tabuleiros de areia e levando-os à cabeça, para logo os atirarem sobre montes que cresciam, lentamente. As mulheres demoravam, sorridentes, o tempo suficiente para ouvirem os galanteios dos soldados e voltavam à beira-mar, com os tabuleiros vazios. Depois, os carros seguiam; e vinham outros, e as mulheres traziam de novo os tabuleiros vazios que enchiam, de novo, com areia. E sorriam. E ofereciam talvez miragens.
A brisa suave vinda do mar tocava e corpo tisnado de Mário e levantava-lhe os cabelos, emprestando-lhe o ar de uma figura vinda da mitologia helénica. Mas nem o vento fustigava ali o mar Egeu, nem ele era grego. Uma coisa, no entanto, era certa. Recebia os fenómenos complexos da Natureza, digeria-os, e regurgitava-os ainda mais complexos. De nada valia cruzar as mãos no peito, olhar a imensidão atlântica, lá para longe, pois nunca atingiria a pureza do pensamento grego ao perguntar se o vácuo era admitido como real, ou se, como acreditava Demócrito, o nada era qualquer coisa como o ser. Os átomos agrupavam-se e formavam as coisas; quando se afastavam uns dos outros, as coisas desapareciam, mas nada voltava a ser como dantes. O que lhe tinha parecido madeira de pinho, por exemplo, não passava de madeira fóssil. E nem ele era o mesmo Mário de ontem. Sentia-se, cada vez mais, renovado de pessimismo e, também, paradoxalmente, de orgulho. Nada a fazer, concluía. Nada a fazer senão continuar olhando em frente e esquecer o que pensava e o que lhe era proibido pensar.
«Talvez pressintas mal e eu estou convencida que pressentes mesmo mal. Para ti é metafísica, dizes. De acordo. E para mim?, pergunto. Demasiada subtilidade, talvez também metafísica; é por isso que eu digo: abstrais imenso e não deixas penetrar um pouco no teu espírito. Queres distinguir o real do fictício. E qual é o teu real? E qual é o teu fictício?»
Por vezes, Mário tornava-se de tal maneira enigmático que nem ele próprio conseguia penetrar no seu íntimo. Sombras envolviam-no numa escuridão total e chicotes insípidos vergastavam-no, abrindo clareiras enigmáticas que seguia até cegar de novo...
Donde vinha aquela mulher?
«Mas quem é você?»
«Alguém.»
«Chega-me. Também sou alguém. É quanto basta, a existência. O resto já não me interessa.»
«Então, vamos. Também só me interessa a existência...»
Caminharam, lado a lado, e desapareceram nas sombras da noite. Vindos de mundos diferentes, uniram-se na primeira encruzilhada. Não se conheciam. Aliás, nunca se conheceram verdadeiramente. O seu encontro, fortuito, fora um compasso de espera. Eram o que eram e não aquilo que deixaram de ser.
«Mário.»
«Sim?»
«Estás cansado de mim? Sei que estás. Não digas nada.»
Acendeu um cigarro e debruçou-se depois no muro caiado. Os olhos percorreram, devagar, a terra de sílica, o verde-azul espumoso que se espraiava, de tempos a tempos, num abraço de fidelidade à areia amante. Ao largo, duas traineiras ensaiavam na ondulação uma dança suave. Os carros do quartel demoravam a deixar a estrada que confinava com a praia. Ficavam parados junto das mulheres que trabalhavam à beira-mar, enchendo tabuleiros de areia e levando-os à cabeça, para logo os atirarem sobre montes que cresciam, lentamente. As mulheres demoravam, sorridentes, o tempo suficiente para ouvirem os galanteios dos soldados e voltavam à beira-mar, com os tabuleiros vazios. Depois, os carros seguiam; e vinham outros, e as mulheres traziam de novo os tabuleiros vazios que enchiam, de novo, com areia. E sorriam. E ofereciam talvez miragens.
A brisa suave vinda do mar tocava e corpo tisnado de Mário e levantava-lhe os cabelos, emprestando-lhe o ar de uma figura vinda da mitologia helénica. Mas nem o vento fustigava ali o mar Egeu, nem ele era grego. Uma coisa, no entanto, era certa. Recebia os fenómenos complexos da Natureza, digeria-os, e regurgitava-os ainda mais complexos. De nada valia cruzar as mãos no peito, olhar a imensidão atlântica, lá para longe, pois nunca atingiria a pureza do pensamento grego ao perguntar se o vácuo era admitido como real, ou se, como acreditava Demócrito, o nada era qualquer coisa como o ser. Os átomos agrupavam-se e formavam as coisas; quando se afastavam uns dos outros, as coisas desapareciam, mas nada voltava a ser como dantes. O que lhe tinha parecido madeira de pinho, por exemplo, não passava de madeira fóssil. E nem ele era o mesmo Mário de ontem. Sentia-se, cada vez mais, renovado de pessimismo e, também, paradoxalmente, de orgulho. Nada a fazer, concluía. Nada a fazer senão continuar olhando em frente e esquecer o que pensava e o que lhe era proibido pensar.
«Talvez pressintas mal e eu estou convencida que pressentes mesmo mal. Para ti é metafísica, dizes. De acordo. E para mim?, pergunto. Demasiada subtilidade, talvez também metafísica; é por isso que eu digo: abstrais imenso e não deixas penetrar um pouco no teu espírito. Queres distinguir o real do fictício. E qual é o teu real? E qual é o teu fictício?»
Por vezes, Mário tornava-se de tal maneira enigmático que nem ele próprio conseguia penetrar no seu íntimo. Sombras envolviam-no numa escuridão total e chicotes insípidos vergastavam-no, abrindo clareiras enigmáticas que seguia até cegar de novo...
«Meus senhores: hoje vamos falar da Borsic e do morteiro. Começando pela primeira, trata-se duma arma automática, de curto recuo de cano e ação indireta de gases. Tem um bipé que lhe dá maior estabilidade, funcionando nestas condições como uma arma pesada. De quatro estrias e cano curto, o alcance máximo vai aos três mil metros. Com bipé tem um alcance eficaz de dois mil e quinhentos metros. Vejamos agora a cadência de tiro. Esta é bastante elevada. Oitocentos a novecentos tiros por minuto. E porquê? O carregamento faz-se por meio de fita que fica dentro do carregador, enrolada com as munições. Para carregar a arma procede-se...»
Ia pela rua, quase feliz, ao encontro de alguém. Sim. Eram quase horas de ver a Manuela. Mais uns quarteirões atravessados e parava no último prédio da rua do jardim. Manuela estava sempre em casa. Estava sempre em casa para o abraçar e dizer-lhe:
O alferes começava a lição sobre armamento, animado de boas intenções. Pouco passava das nove e os rapazes pareciam atentos, mesmo entusiasmados. Era natural, pensava Mário. A Borsic tinha uma grande capacidade de tiro e o morteiro resultou da necessidade de existir para grandes distâncias, em vez da granada de mão.
Mário tinha sono. Como de costume fora o primeiro a acordar. As janelas do quarto não tinham portas de madeira e ele acordava aos primeiros sintomas de claridade. Deixava-se ficar entre a consciência e a inconsciência, atento ao menor ruído suspeito.
Todos os dias morriam, sabia. Ao anoitecer já nada havia. Só o ressonar dos outros que, cansados, tinham caído pesadamente sobre as camas. Mas de manhã, os primeiros momentos de claridade traziam do passado um fio de continuação que tomava como ponto de partida. De recordação em recordação, chegava sempre ao mesmo sítio, ao mesmo beco sem saída. O sentimento de culpa. Inevitavelmente, o sentimento de culpa. Entre o tempo que levava a acordar e o lançava no vazio o céu deixava-se profanar por tintas cinzentas, nostálgicas. Mas, de súbito, o espírito passava de turvo a límpido, como se as pinceladas cinzentas fossem laxativas. Saltava da cama, contemplava-se ao espelho, sorria, tornava-se mais leve.Ia pela rua, quase feliz, ao encontro de alguém. Sim. Eram quase horas de ver a Manuela. Mais uns quarteirões atravessados e parava no último prédio da rua do jardim. Manuela estava sempre em casa. Estava sempre em casa para o abraçar e dizer-lhe:
«Estás pálido. Eles vão dar cabo de ti...»
«Só faltam dois meses para acabar a maldita recruta. Depois, será diferente.»
Se não malhar com os ossos em G..., será bem melhor!
As horas que passavam juntos eram segundos comparados com a eternidade que lhe consumia o espírito. A parte física era o menos. Ganhara resistências.
Mas a mentalização, a lavagem ao cérebro...?
Não nascera para aquilo: golpes de mão e ordem unida onde não via ideais. Patriotismo. Quando a guerra, que já ia longa, levasse os militares a um beco sem saída, eles engendrariam uma maneira hábil para fugirem, entregando, de mão beijada, aquelas parcelas da Pátria que tanto amavam. Havia perversidade na mentalização que faziam, enquanto preparavam carne para canhão.
Talvez que não tivesse nascido para nada. Nem para o futebol, nem para a música. O próprio pano verde era apenas uma fuga. Nunca um caminho para a perdição.
«A mesa chora.»
«Vou a jogo.»
«Dobro.»
Não passava dum jogador que se deixava arrastar pela própria vida, fazendo cartadas que nunca conseguia levar até ao fim.
Irrealizado?
Infeliz?
Manuela era a única chama que o fazia tornar menos pálido. Sentia-se outro ao pé dela. Quando a tomava nos braços e se beijavam longamente. Quando rebolavam no chão da alcatifa e a paixão transbordava do cálice, como se fosse um vulcão adormecido que estremeceu, agitado pela pressão que crescia, crescia. Quando lhe contava um segredo ao ouvido e os seus olhos, sempre tristes, se iluminavam. Sim era outro. Virava para o azul. Como se um indicador químico caísse no tubo de ensaio onde a fenolftaleína já não tinha hipótese de originar a viragem fatal. Azul. Nem vermelho, nem branco. Nem outra cor. Azul, num segundo... por longos dias azuis!
«Mário, fale-me da granada defensiva...»
O tempo corria, veloz. Despedia-se Manuela. Na sala do aulas aguardava-o a voz do alferes, chamando-o à realidade com mais uma lição teórica. Ficava apático na maior parte das vezes, bem distante.
«Não compreendo» dizia o alferes. «O senhor contenta-se em passar despercebido e luta apenas por uma classificação modesta, de subsistência. Tem capacidades que não quer aproveitar. É isso. Não quer. Regresse à Terra, Mário!»
Era sempre assim. Depois, voltava-se para o urso da turma e perguntava:
«Hélder, sabe a resposta?»
O urso sabia a resposta. Mas não saltava um muro de primeira categoria e tinha tonturas no pórtico.
«Bem, meus senhores, podem levantar-se. A aula acabou. Por hoje é tudo. Lembrem-se sempre que a Borsic é uma arma pesada quando se lhe adapta o bipé. Para grandes distâncias, em vez da granada, pensou-se no morteiro. Podem sair. Você, Mário, fica. Preciso de falar consigo.»
Alferes e cadete ficaram frente a frente.
«Quer um cigarro?» perguntou o primeiro.
«Obrigado, meu alferes, não fumo de manhã.»
«Bom» tossiu. «Diga-me cá uma coisa, Mário. Com franqueza, com franqueza, gosta disto?»
O alferes desconhecia o que significava para um rebelde ouvir “é uma ordem” ou “a aplicação militar é boa”, quando chafurdava na lama, como um porco (o próprios porco chafurdava porque o instinto lhe dizia que era bom). Talvez nunca tivesse apreciado a liberdade pura, sem condições, toda livre arbítrio e de asas no espírito. Se soubesse apreciar, horas a fio, o verde dos campos, as flores que soltavam aos ventos os seus aromas mágicos, como se fossem feromonas de amor à primeira vista que falavam duma atração repentina e inexplicável de um homem por uma mulher, a hipnose do ruído das águas selvagens escorrendo, livres, pelas encostas, e escolhendo o próprio caminho, talvez pensasse de outra maneira. Fazia longos “trabalhos de estrada”, mas não corria, quilómetros e quilómetros, esquecido de si próprio, ao sabor do acaso.
E depois... aprender a matar sem ter uma causa?
«Gosta mesmo disto?»
Para o alferes só havia pontos de referência e objetivos a atingir. Nunca ouviu falar de árvores esguias e inclinadas, cada vez mais, pela força do vento, mas continuando a resistir, de pé. Nunca assistiu ao morrer dos dias, na passagem amarelo-laranja a vermelho-fogo, e deste logo a vermelho-amarelo; depois, escuro, cada vez mais escuro. E nunca ouviu dizer que esses dias já não voltavam iguais. Preferiu cenários onde homens iam cair sobre outros homens, onde o silvo das balas inspirava melodias sangrentas e as granadas perturbavam a face das coisas e também dos homens. Apaixonou-se, de olhos brilhantes, pela emboscada que era terrivelmente eficaz quando toda a coluna atacada se encontrava na zona de fogo.
«De facto não sinto a mínima atração por isto.»
«Sim? Mas o que diz não ter dentro de si...»
«Vocação para matar. Desculpe a expressão, meu alferes.»
Ou objetivos para matar...
O curso tinha poucos alunos. Mário, entre os últimos, não reagia, nem dava sinais de inquietude.
Uma semana depois começaram as provas finais. Os bons consolidavam as suas posições e os fracos, a bem dizer, faziam das tripas coração. Mas Mário continuava apático. Todos fugiam ao último lugar e ele deixava-se arrastar, tranquilamente, na corrente que o levaria por caminhos perigosos.
Apesar de um certo mal entendido gerado entre aluno e mestre (havia um contacto comparável ao que faziam entre si duas superfícies rugosas que não se deixavam alisar), o alferes resolveu adiar por mais uns dias a possível derrota de Mário. Queria dar-lhe mais uma oportunidade. Continuava a simpatizar com ele, apesar daquela saída infeliz. Os homens não eram treinados para matar, mas sim para defender, custasse o que custasse, um ideal nobre e ancião que se chamava Pátria. Mas os dias passavam e nada mudava. Ele não melhorava, nem piorava. Agia com a precisão fria dum pêndulo, sem uma quebra. O alferes ainda esperava. Mário era humano. Tinha que reagir.
«Não tem receio de ir para o inferno de G...?»
G... era a região menos aconselhável, naquela altura, para um militar. Dizia-se muito sobre G..., que era um inferno, uma peste de clima, uma região em que os homens só conheciam o som do obus e pressentiam a proximidade constante da morte.
«O inferno pode ser em qualquer lado. Imagine o meu alferes uma coisa: da última vez que estive nesta Terra de passagem fui um déspota ou um flibusteiro que passou muitos inocentes pelo fio da espada e que agora regresso para pagar. Não acha que também posso estar a contas com o meu inferno?»
«Francamente, Mário! Acredita nessas coisas?»
Foi quando o alferes menos esperava que ele reagiu. Uma reação única. Valeu-lhe um bom salto na classificação.
O lançamento de granadas obedecia a um plano preestabelecido. Tinham que ser atingidos três ou quatro objetivos. Depois, “falavam” as metralhadoras, largando balas sem destino. Em relação às granadas havia uma norma a seguir, que permitia avaliar o grau de valentia de cada um: a granada que não rebentava era “visitada”, durante dois minutos por um voluntário “escolhido” pelo alferes e só depois destruída, à distância certa, pelo mesmo soldado. Tarefa fácil, depois do calvário de dois longos minutos de angústia.
Nesse dia, o alferes fez as suas contas e faltavam rebentar duas granadas. Estavam à distância de quinze metros uma da outra.
Sentiu-se um princípio de mal-estar.
«Óscar, Mário... vão buscar as granadas.»
«Buscar?»
Mário julgou ter ouvido mal.
«Sim. Buscar.»
Todos conheciam os efeitos do T.N.T. e dos múltiplos estilhaços que partiam, velozes, implacáveis, em todas as direções.
Penetrantes. Por vezes, letais.
Mário disfarçou o gelo que o tomou. Viu o outro partir, sem que um músculo do rosto se movesse.
«Eu não vou, meu alferes.»
«Ai isso é que vai!»
«Prefiro desobedecer. Isto não passa duma brincadeira estúpida. Uma autêntica roleta russa.»
O alferes impacientou-se. Aquilo era uma oportunidade única. Ele não podia deixá-la fugir.
«Você não tem tomates! Vai e...»
Não chegou a terminar a frase. Ouviu-se um estrondo medonho. Ficou parvo, de boca aberta, incrédulo. Adiante, uma nuvem de fumo e pó levantava-se no ar e ia aumentando de dimensões. Os homens atiraram-se para o chão e esperaram. Silêncio. Só silêncio. Foi a resposra
Lentamente a nuvem dissipou-se e mostrou, de novo, o campo esbulhado pelo rebentamento.
«Ainda se mexe!» exclamou alguém.
Um grito do alferes voltou a atenção de todos para a área entre as granadas e eles.
«Mário! Volte para trás! Meu Deus...»
Ia buscá-lo. O Óscar. Não a outra granada. Rastejava em direção ao corpo inerte do companheiro. E a escassos metros, a segunda granada, silenciosa, aguardava. Afligia-o ir ao encontro dum corpo esfacelado, que deixava escapar a vida aos poucos. Suores frios invadiam-no, tolhendo-lhe os movimentos. Não era a iminência de explosão da granada, mas o espetáculo grotesco da morte.
Decorreu uma eternidade. Voltou com um cadáver nos braços e disse, friamente, para o alferes:
«Morreu nos meus braços... Ainda quer que vá buscar a outra granada?»
E não disse mais nada.
«Só faltam dois meses para acabar a maldita recruta. Depois, será diferente.»
Se não malhar com os ossos em G..., será bem melhor!
As horas que passavam juntos eram segundos comparados com a eternidade que lhe consumia o espírito. A parte física era o menos. Ganhara resistências.
Mas a mentalização, a lavagem ao cérebro...?
Não nascera para aquilo: golpes de mão e ordem unida onde não via ideais. Patriotismo. Quando a guerra, que já ia longa, levasse os militares a um beco sem saída, eles engendrariam uma maneira hábil para fugirem, entregando, de mão beijada, aquelas parcelas da Pátria que tanto amavam. Havia perversidade na mentalização que faziam, enquanto preparavam carne para canhão.
Talvez que não tivesse nascido para nada. Nem para o futebol, nem para a música. O próprio pano verde era apenas uma fuga. Nunca um caminho para a perdição.
«A mesa chora.»
«Vou a jogo.»
«Dobro.»
Não passava dum jogador que se deixava arrastar pela própria vida, fazendo cartadas que nunca conseguia levar até ao fim.
Irrealizado?
Infeliz?
Manuela era a única chama que o fazia tornar menos pálido. Sentia-se outro ao pé dela. Quando a tomava nos braços e se beijavam longamente. Quando rebolavam no chão da alcatifa e a paixão transbordava do cálice, como se fosse um vulcão adormecido que estremeceu, agitado pela pressão que crescia, crescia. Quando lhe contava um segredo ao ouvido e os seus olhos, sempre tristes, se iluminavam. Sim era outro. Virava para o azul. Como se um indicador químico caísse no tubo de ensaio onde a fenolftaleína já não tinha hipótese de originar a viragem fatal. Azul. Nem vermelho, nem branco. Nem outra cor. Azul, num segundo... por longos dias azuis!
«Mário, fale-me da granada defensiva...»
O tempo corria, veloz. Despedia-se Manuela. Na sala do aulas aguardava-o a voz do alferes, chamando-o à realidade com mais uma lição teórica. Ficava apático na maior parte das vezes, bem distante.
«Não compreendo» dizia o alferes. «O senhor contenta-se em passar despercebido e luta apenas por uma classificação modesta, de subsistência. Tem capacidades que não quer aproveitar. É isso. Não quer. Regresse à Terra, Mário!»
Era sempre assim. Depois, voltava-se para o urso da turma e perguntava:
«Hélder, sabe a resposta?»
O urso sabia a resposta. Mas não saltava um muro de primeira categoria e tinha tonturas no pórtico.
«Bem, meus senhores, podem levantar-se. A aula acabou. Por hoje é tudo. Lembrem-se sempre que a Borsic é uma arma pesada quando se lhe adapta o bipé. Para grandes distâncias, em vez da granada, pensou-se no morteiro. Podem sair. Você, Mário, fica. Preciso de falar consigo.»
Alferes e cadete ficaram frente a frente.
«Quer um cigarro?» perguntou o primeiro.
«Obrigado, meu alferes, não fumo de manhã.»
«Bom» tossiu. «Diga-me cá uma coisa, Mário. Com franqueza, com franqueza, gosta disto?»
O alferes desconhecia o que significava para um rebelde ouvir “é uma ordem” ou “a aplicação militar é boa”, quando chafurdava na lama, como um porco (o próprios porco chafurdava porque o instinto lhe dizia que era bom). Talvez nunca tivesse apreciado a liberdade pura, sem condições, toda livre arbítrio e de asas no espírito. Se soubesse apreciar, horas a fio, o verde dos campos, as flores que soltavam aos ventos os seus aromas mágicos, como se fossem feromonas de amor à primeira vista que falavam duma atração repentina e inexplicável de um homem por uma mulher, a hipnose do ruído das águas selvagens escorrendo, livres, pelas encostas, e escolhendo o próprio caminho, talvez pensasse de outra maneira. Fazia longos “trabalhos de estrada”, mas não corria, quilómetros e quilómetros, esquecido de si próprio, ao sabor do acaso.
E depois... aprender a matar sem ter uma causa?
«Gosta mesmo disto?»
Para o alferes só havia pontos de referência e objetivos a atingir. Nunca ouviu falar de árvores esguias e inclinadas, cada vez mais, pela força do vento, mas continuando a resistir, de pé. Nunca assistiu ao morrer dos dias, na passagem amarelo-laranja a vermelho-fogo, e deste logo a vermelho-amarelo; depois, escuro, cada vez mais escuro. E nunca ouviu dizer que esses dias já não voltavam iguais. Preferiu cenários onde homens iam cair sobre outros homens, onde o silvo das balas inspirava melodias sangrentas e as granadas perturbavam a face das coisas e também dos homens. Apaixonou-se, de olhos brilhantes, pela emboscada que era terrivelmente eficaz quando toda a coluna atacada se encontrava na zona de fogo.
«De facto não sinto a mínima atração por isto.»
«Sim? Mas o que diz não ter dentro de si...»
«Vocação para matar. Desculpe a expressão, meu alferes.»
Ou objetivos para matar...
O curso tinha poucos alunos. Mário, entre os últimos, não reagia, nem dava sinais de inquietude.
Uma semana depois começaram as provas finais. Os bons consolidavam as suas posições e os fracos, a bem dizer, faziam das tripas coração. Mas Mário continuava apático. Todos fugiam ao último lugar e ele deixava-se arrastar, tranquilamente, na corrente que o levaria por caminhos perigosos.
Apesar de um certo mal entendido gerado entre aluno e mestre (havia um contacto comparável ao que faziam entre si duas superfícies rugosas que não se deixavam alisar), o alferes resolveu adiar por mais uns dias a possível derrota de Mário. Queria dar-lhe mais uma oportunidade. Continuava a simpatizar com ele, apesar daquela saída infeliz. Os homens não eram treinados para matar, mas sim para defender, custasse o que custasse, um ideal nobre e ancião que se chamava Pátria. Mas os dias passavam e nada mudava. Ele não melhorava, nem piorava. Agia com a precisão fria dum pêndulo, sem uma quebra. O alferes ainda esperava. Mário era humano. Tinha que reagir.
«Não tem receio de ir para o inferno de G...?»
G... era a região menos aconselhável, naquela altura, para um militar. Dizia-se muito sobre G..., que era um inferno, uma peste de clima, uma região em que os homens só conheciam o som do obus e pressentiam a proximidade constante da morte.
«O inferno pode ser em qualquer lado. Imagine o meu alferes uma coisa: da última vez que estive nesta Terra de passagem fui um déspota ou um flibusteiro que passou muitos inocentes pelo fio da espada e que agora regresso para pagar. Não acha que também posso estar a contas com o meu inferno?»
«Francamente, Mário! Acredita nessas coisas?»
Foi quando o alferes menos esperava que ele reagiu. Uma reação única. Valeu-lhe um bom salto na classificação.
O lançamento de granadas obedecia a um plano preestabelecido. Tinham que ser atingidos três ou quatro objetivos. Depois, “falavam” as metralhadoras, largando balas sem destino. Em relação às granadas havia uma norma a seguir, que permitia avaliar o grau de valentia de cada um: a granada que não rebentava era “visitada”, durante dois minutos por um voluntário “escolhido” pelo alferes e só depois destruída, à distância certa, pelo mesmo soldado. Tarefa fácil, depois do calvário de dois longos minutos de angústia.
Nesse dia, o alferes fez as suas contas e faltavam rebentar duas granadas. Estavam à distância de quinze metros uma da outra.
Sentiu-se um princípio de mal-estar.
«Óscar, Mário... vão buscar as granadas.»
«Buscar?»
Mário julgou ter ouvido mal.
«Sim. Buscar.»
Todos conheciam os efeitos do T.N.T. e dos múltiplos estilhaços que partiam, velozes, implacáveis, em todas as direções.
Penetrantes. Por vezes, letais.
Mário disfarçou o gelo que o tomou. Viu o outro partir, sem que um músculo do rosto se movesse.
«Eu não vou, meu alferes.»
«Ai isso é que vai!»
«Prefiro desobedecer. Isto não passa duma brincadeira estúpida. Uma autêntica roleta russa.»
O alferes impacientou-se. Aquilo era uma oportunidade única. Ele não podia deixá-la fugir.
«Você não tem tomates! Vai e...»
Não chegou a terminar a frase. Ouviu-se um estrondo medonho. Ficou parvo, de boca aberta, incrédulo. Adiante, uma nuvem de fumo e pó levantava-se no ar e ia aumentando de dimensões. Os homens atiraram-se para o chão e esperaram. Silêncio. Só silêncio. Foi a resposra
Lentamente a nuvem dissipou-se e mostrou, de novo, o campo esbulhado pelo rebentamento.
«Ainda se mexe!» exclamou alguém.
Um grito do alferes voltou a atenção de todos para a área entre as granadas e eles.
«Mário! Volte para trás! Meu Deus...»
Ia buscá-lo. O Óscar. Não a outra granada. Rastejava em direção ao corpo inerte do companheiro. E a escassos metros, a segunda granada, silenciosa, aguardava. Afligia-o ir ao encontro dum corpo esfacelado, que deixava escapar a vida aos poucos. Suores frios invadiam-no, tolhendo-lhe os movimentos. Não era a iminência de explosão da granada, mas o espetáculo grotesco da morte.
Decorreu uma eternidade. Voltou com um cadáver nos braços e disse, friamente, para o alferes:
«Morreu nos meus braços... Ainda quer que vá buscar a outra granada?»
E não disse mais nada.
Encontraram-se, ao fim de dois anos, em manobras. Segundo as normas tradicionais da tropa, Mário reproduzira naqueles dois anos tudo o que aprendera. Sob o seu comando, os soldados chafurdaram na lama e gritaram, em uníssono, que a aplicação militar era boa. Foram mentalizados para matar e, quem sabe, seguiram a senda das granadas que não chegaram a rebentar. Tudo o que mais desprezava foi ensinado talvez com excesso de zelo. Não fazia sentido. Ou então a tropa era um congelador gigante onde os cérebros iam ficando em pedra, lentamente. Mário aprendeu a cumprir e a ensinar a cumprir sem pestanejar. A sangue frio. Mas, agora que chegavam as últimas manobras, era tempo de tirar a cabeça do congelador e olhar para fora. Olhar para o outro lado da vida. Por pior que fosse, certamente não era tão mau como aquele onde tinha vivido nos últimos anos. Quanto ao alferes (já tenente), tinha muitas manobras à sua frente e, talvez, uma ou outra guerrilha. Para ele era diferente. Talvez um sacerdócio. Sonhara sempre seguir a carreira de armas e tinha vivido, com emoção, os momentos bem sucedidos de qualquer exercício. Sim. Tratava-se da sua vida. Não de um estilhaço, como acontecia com o ex-aluno.
Tinham na sua frente dois copos de cerveja. O antigo alferes não se esquecera de Mário. Um valor que se perdia, pensava. Por detrás da máscara de desinteresse, escondia-se uma grande coragem.
Tinham na sua frente dois copos de cerveja. O antigo alferes não se esquecera de Mário. Um valor que se perdia, pensava. Por detrás da máscara de desinteresse, escondia-se uma grande coragem.
Seria má sina?
«Recorda-se» disse o ex-alferes «daquela frase sua, “vocação para matar”?»
«É uma frase que lamentarei sempre. Fui incorreto.»
«Mas disse o que sentiu. Pois bem, foi uma ameixa certeira.»
Mário levou o copo à boca e bebeu um gole longo. Procurava uma resposta. Foi o tenente quem continuou:
«Você falou com sinceridade, meu caro. No entanto, a meu ver, julgou a coisa pela superfície e não pela raiz. Aposto que já não pensa da mesma maneira. Modificou-se algo, não?»
«Dois anos é muito tempo, de facto» concordou, alisando os cabelos. «Mas acontece que penso da mesma maneira. Só que não devia ter dito. Já está e não há remédio. É, de facto, como disse. Vocação para matar. Doutra maneira já estaríamos mortos. Sim, dois anos é muito tempo e modifica-se muita coisa em nós. Acontece que também adquiri vocação para matar. Foi o instinto da conservação que me levou a dizer tais palavras. De um momento para o outro terei alguém a apontar-me uma arma. Nessa altura, devo matar para não ser morto. Apenas me modificaram superficialmente.»
«Curioso...»
Mário olhou o relógio. Faltava uma hora para começar a operação Felgueiras e ainda tinha instruções a dar.
«Meu tenente, o que acha curioso?»
«Você vai sair desta vida...»
«São as últimas manobras. Lá fora tenho outra guerra à espera.»
«Quando lhe abrirem finalmente as portas para a sua vida futura e atravessar para o outro lado da ponte interrompida, acha que vai deixar de ter vocação para matar? Se acha, está errado. Já tinha, doutra forma, adquirido essa vocação antes de ser chamado para cumprir o serviço militar. Lá fora está outro tipo de selva e luta-se, de certa maneira, pela sobrevivência. Ou não é verdade? Claro que é. Há de lutar para sobreviver. Para deitar abaixo aqueles que querem ultrapassá-lo pela direita. Lutará por si. E até poderá matar alguém, nem que seja em legítima defesa. Eu, não. O meu ideal está acima da própria morte...»
«E dos próprios homens. A morte está intimamente ligada aos homens.»
«Não pode compreender...»
«Nem o meu tenente. É por isso que somos diferentes. Mas respeito-o.»
«E eu admiro-o. Nunca esquecerei aquele dia. Marcou-me...»
«Também não esqueci. Mas sabe que segui o seu exemplo?»
«Recorda-se» disse o ex-alferes «daquela frase sua, “vocação para matar”?»
«É uma frase que lamentarei sempre. Fui incorreto.»
«Mas disse o que sentiu. Pois bem, foi uma ameixa certeira.»
Mário levou o copo à boca e bebeu um gole longo. Procurava uma resposta. Foi o tenente quem continuou:
«Você falou com sinceridade, meu caro. No entanto, a meu ver, julgou a coisa pela superfície e não pela raiz. Aposto que já não pensa da mesma maneira. Modificou-se algo, não?»
«Dois anos é muito tempo, de facto» concordou, alisando os cabelos. «Mas acontece que penso da mesma maneira. Só que não devia ter dito. Já está e não há remédio. É, de facto, como disse. Vocação para matar. Doutra maneira já estaríamos mortos. Sim, dois anos é muito tempo e modifica-se muita coisa em nós. Acontece que também adquiri vocação para matar. Foi o instinto da conservação que me levou a dizer tais palavras. De um momento para o outro terei alguém a apontar-me uma arma. Nessa altura, devo matar para não ser morto. Apenas me modificaram superficialmente.»
«Curioso...»
Mário olhou o relógio. Faltava uma hora para começar a operação Felgueiras e ainda tinha instruções a dar.
«Meu tenente, o que acha curioso?»
«Você vai sair desta vida...»
«São as últimas manobras. Lá fora tenho outra guerra à espera.»
«Quando lhe abrirem finalmente as portas para a sua vida futura e atravessar para o outro lado da ponte interrompida, acha que vai deixar de ter vocação para matar? Se acha, está errado. Já tinha, doutra forma, adquirido essa vocação antes de ser chamado para cumprir o serviço militar. Lá fora está outro tipo de selva e luta-se, de certa maneira, pela sobrevivência. Ou não é verdade? Claro que é. Há de lutar para sobreviver. Para deitar abaixo aqueles que querem ultrapassá-lo pela direita. Lutará por si. E até poderá matar alguém, nem que seja em legítima defesa. Eu, não. O meu ideal está acima da própria morte...»
«E dos próprios homens. A morte está intimamente ligada aos homens.»
«Não pode compreender...»
«Nem o meu tenente. É por isso que somos diferentes. Mas respeito-o.»
«E eu admiro-o. Nunca esquecerei aquele dia. Marcou-me...»
«Também não esqueci. Mas sabe que segui o seu exemplo?»
Quando Mário saiu da tropa tinha vinte e cinco anos e um cem número de ideias boas. Aprendera nos livros com os Gregos a usar com benefício o raciocínio, trabalhando devagar no seu laboratório privado, inacessível mesmo a Manuela. Dava-lhe apenas as últimas conclusões e contava sempre com o seu apoio. Sabia que, mais tarde ou mais cedo, conseguiria separar a essência de qualquer aspeto híbrido. Era só aguardar. Os dados estavam presentes. A máquina selecionava, construía.
Mário talvez se sentisse feliz com Manuela, que não o era, de maneira alguma. Aprovava tudo quanto vinha dele, partilhou de alegrias e tristezas, entregou-se-lhe de alma e coração. Tinha assistido ao nascer e à morte de muitos sonhos. Encorajava-o com palavras meigas e entregas totais do seu corpo. Em troca, nada exigia. Nem o casamento. Bastava tê-lo seu. De mais ninguém, aliás. Era sagrado para ela. Absolutamente sagrado. O ciúme que sentia era obsessivo.
Um dia descobriu que ele partilhava o amor com uma tal Patrícia. O desespero instalou-se. O ciúme incendiou a lucidez.
Era pouco agradável a afirmação da mulher. Tinha entrado no cinema e a mulher a quem entregou o bilhete, dissera:
«O senhor está só.»
Estava mesmo só. Passava-se naquele cinema uma espécie de alergia motivada pelo êxodo dos frequentadores, filtrado pelas diferentes motivações dos mesmos, como filmes de aventuras, comédias, amor pelo amor, ficção científica, ou simplesmente o desejo de pisar as areias douradas da praia, mergulhar nas revigorantes águas do Atlântico, estender a toalha e estorricar ao sol.
Tinha entrado para queimar algumas das muitas horas disponíveis em cada dia que passava. Naquele dia, nem Manuela, nem Patrícia, nem o desejo de ocupar o tempo em coisas úteis para si e para os outros. Ao contrário dos Gregos, insistia no valor da experiência, tentando contrariar as desígnios do mau destino que o tornavam num “não sei quê” que aparentava ser muito e nada era. Todos os dias nasciam ideias boas, ou tornadas boas. Mas, como eram descontínuas, em breve transformavam-se num emaranhado complexo. Mário debruçava-se uma derradeira vez sobre o caos, perdia-se em milhentas conjeturas, acabando por desistir. Havia qualquer coisa errada, pensava. Sempre qualquer coisa errada.
Aquela ideia de negociar frangos não estava má. Era o começo para o empreendimento em larga escala de cabritos, vitelos, porcos, enlatados de todas as espécies, supermercados. Um sistema mafioso legal, mas que dava pano para mangas.
Falara nisso a Manuela. Ela concordou logo, embora antevisse um sonho utópico onde Mário acreditava a cem por cento no êxito. E aconteceu. Um vírus desconhecido entrou no aviário e matou o sonho à nascença.
Mas existia uma verdade fatal para a felicidade de Mário e Manuela. Situava-se a felicidade entre dois limites numa escala de valores, infinitamente crescentes ou decrescentes. E oscilava todos os dias. Muito mais em Manuela que nele. Sonhava obsessivamente com o fim, sabia que tudo tinha um fim. Agora que existia uma rival, sim. Estava num ponto bem próximo do limite inferior. Bem perto da linha vermelha.
Mário trazia consigo algo de fatalismo. Fatalismo podia ser boa ou má sorte. Mas para ele era má sorte. Era esperto, talvez inteligente. Considerava-se mesmo superior aos Gregos, um povo da antiguidade que tanto admirava. Antevira no pensamento solitário a maior beleza do mundo e, além disso, dava ao pensamento a faceta experimental, impulsionando-o para grandes caminhadas. Não nascera para coisa nenhuma, mas era o mesmo que dizer que tinha nascido para tudo. Nada possuía e tudo era dele: ar, água, liberdade, toda a Natureza nas suas paisagens e cheiros, Manuela...
Trazia consigo algo de fatalismo, má sorte. Não se sentia culpado, tinha a certeza. Acusado por homens pela lavagem ao cérebro e estagnação consequente dos mesmos, acusado moralmente pela sociedade da morte duma mulher, acusado de negligência nos negócios... no entanto considerava-se superior aos próprios Gregos!
Um dia descobriu que ele partilhava o amor com uma tal Patrícia. O desespero instalou-se. O ciúme incendiou a lucidez.
Era pouco agradável a afirmação da mulher. Tinha entrado no cinema e a mulher a quem entregou o bilhete, dissera:
«O senhor está só.»
Estava mesmo só. Passava-se naquele cinema uma espécie de alergia motivada pelo êxodo dos frequentadores, filtrado pelas diferentes motivações dos mesmos, como filmes de aventuras, comédias, amor pelo amor, ficção científica, ou simplesmente o desejo de pisar as areias douradas da praia, mergulhar nas revigorantes águas do Atlântico, estender a toalha e estorricar ao sol.
Tinha entrado para queimar algumas das muitas horas disponíveis em cada dia que passava. Naquele dia, nem Manuela, nem Patrícia, nem o desejo de ocupar o tempo em coisas úteis para si e para os outros. Ao contrário dos Gregos, insistia no valor da experiência, tentando contrariar as desígnios do mau destino que o tornavam num “não sei quê” que aparentava ser muito e nada era. Todos os dias nasciam ideias boas, ou tornadas boas. Mas, como eram descontínuas, em breve transformavam-se num emaranhado complexo. Mário debruçava-se uma derradeira vez sobre o caos, perdia-se em milhentas conjeturas, acabando por desistir. Havia qualquer coisa errada, pensava. Sempre qualquer coisa errada.
Aquela ideia de negociar frangos não estava má. Era o começo para o empreendimento em larga escala de cabritos, vitelos, porcos, enlatados de todas as espécies, supermercados. Um sistema mafioso legal, mas que dava pano para mangas.
Falara nisso a Manuela. Ela concordou logo, embora antevisse um sonho utópico onde Mário acreditava a cem por cento no êxito. E aconteceu. Um vírus desconhecido entrou no aviário e matou o sonho à nascença.
Mas existia uma verdade fatal para a felicidade de Mário e Manuela. Situava-se a felicidade entre dois limites numa escala de valores, infinitamente crescentes ou decrescentes. E oscilava todos os dias. Muito mais em Manuela que nele. Sonhava obsessivamente com o fim, sabia que tudo tinha um fim. Agora que existia uma rival, sim. Estava num ponto bem próximo do limite inferior. Bem perto da linha vermelha.
Mário trazia consigo algo de fatalismo. Fatalismo podia ser boa ou má sorte. Mas para ele era má sorte. Era esperto, talvez inteligente. Considerava-se mesmo superior aos Gregos, um povo da antiguidade que tanto admirava. Antevira no pensamento solitário a maior beleza do mundo e, além disso, dava ao pensamento a faceta experimental, impulsionando-o para grandes caminhadas. Não nascera para coisa nenhuma, mas era o mesmo que dizer que tinha nascido para tudo. Nada possuía e tudo era dele: ar, água, liberdade, toda a Natureza nas suas paisagens e cheiros, Manuela...
Trazia consigo algo de fatalismo, má sorte. Não se sentia culpado, tinha a certeza. Acusado por homens pela lavagem ao cérebro e estagnação consequente dos mesmos, acusado moralmente pela sociedade da morte duma mulher, acusado de negligência nos negócios... no entanto considerava-se superior aos próprios Gregos!
Os carros da tropa já não passavam e as mulheres tinham-se afastado da praia, com os tabuleiros vazias, à cabeça. Deu conta de que o muro não era branco.
Olhou em frente. O mar mostrava-se calmo. Cinzento escuro. Sem ondulação. A água devia estar fria. Como frio estava o corpo de Manuela...
Afastou-se, sem pressas, ao longo do muro que separava a estrada da praia. De momentos a momentos os faróis de um automóvel iluminavam a estrada, emprestando a Mário breves sinais de orientação. Escurecera de repente. À sua volta e também lá dentro. Principalmente, lá dentro, no seu laboratório secreto.
Caminhava indeciso, sem saber onde chegar (todo o caminhante está convencido que chega ao destino, quando, no fundo, bem no fundo não tem onde chegar). Para trás iam ficando monstros da noite, que não eram mais do que objetos conhecidos.
Nasceu para nada concretizar. Nem para si. Nem para ninguém.
«O senhor está só.»
Aquela tarde do cinema jamais a esqueceria. Ao regressar a casa, encontrou-se com um corpo frio e rígido nos braços. A única meta que podia ter atingido também lhe foi negada. Manuela chegou ao limite inferior da felicidade. Viu a solução ideal junto ao fogão de gás, abrindo todos os bicos e respirando uma mistura de metano com monóxido de carbono. E mais nada. Nem um simples adeus.
Supunha que Manuela tinha tudo. Mas a mulher ingénua que encontrou um dia, por acaso (como acontece em todos os primeiros encontros), e fez sua amante, não era uma mulher vulgar. Queria-o todo. Em carne e espírito. Mas Mário era um sonhador, um utopista.
(«Obsessivamente... o desejo obsessivo de te ter só para mim!»)
Foi uma solução prática. Ela resolveu da melhor maneira o seu problema. Agora ele era livre. Totalmente do Universo.
Afastou-se, sem pressas, ao longo do muro que separava a estrada da praia. De momentos a momentos os faróis de um automóvel iluminavam a estrada, emprestando a Mário breves sinais de orientação. Escurecera de repente. À sua volta e também lá dentro. Principalmente, lá dentro, no seu laboratório secreto.
Caminhava indeciso, sem saber onde chegar (todo o caminhante está convencido que chega ao destino, quando, no fundo, bem no fundo não tem onde chegar). Para trás iam ficando monstros da noite, que não eram mais do que objetos conhecidos.
Nasceu para nada concretizar. Nem para si. Nem para ninguém.
«O senhor está só.»
Aquela tarde do cinema jamais a esqueceria. Ao regressar a casa, encontrou-se com um corpo frio e rígido nos braços. A única meta que podia ter atingido também lhe foi negada. Manuela chegou ao limite inferior da felicidade. Viu a solução ideal junto ao fogão de gás, abrindo todos os bicos e respirando uma mistura de metano com monóxido de carbono. E mais nada. Nem um simples adeus.
Supunha que Manuela tinha tudo. Mas a mulher ingénua que encontrou um dia, por acaso (como acontece em todos os primeiros encontros), e fez sua amante, não era uma mulher vulgar. Queria-o todo. Em carne e espírito. Mas Mário era um sonhador, um utopista.
(«Obsessivamente... o desejo obsessivo de te ter só para mim!»)
Foi uma solução prática. Ela resolveu da melhor maneira o seu problema. Agora ele era livre. Totalmente do Universo.
Anoiteceu outra vez. Está sentado na mesa do costume. Num instante, a bica e o copo chegam à mesa. Agradece ao empregado. Está tudo igual. O snack sem outros clientes. O silêncio. O balcão. Os bancos altos, giratórios. O mar lá fora, talvez calmo, como um lago. A máquina de discos, esquecida, ao fundo. Inevitavelmente, a cadeira na sua frente. Vazia. Como a noite. Vazia e longa. Mário sabe isso. Há muito que sabe. Do desencantamento com Patrícia.
De que cor eram os seus olhos?
De que cor eram os seus olhos?
Azuis, verdes, cinzentos. Da cor do mar. De uma das cores do mar!
Tal como Manuela, Patrícia partiu sem uma palavra e ele vai todos os dias ao snack, onde fica, à espera, em frente à cadeira que teima em ficar vazia. Como vazia é a sua vida desde que Manuela desistiu de viver. Mas Patrícia também desistiu dele, embora exista na cadeira vazia que tem na sua frente.
É a noite longa de Mário. Sabe que virão outras Patrícias, de olhos da cor do mar, ou talvez castanhos, para se entregarem na cama até ao último desfalecimento. Tempo infinitamente pequeno para os dois que passavam no snack, frente a frente, vigiando, até ao pôr do sol, cada um o silêncio do outro, e seguindo, por vezes, o voo picado da gaivota até à rebentação das ondas.
Um dia, Patrícia cansou-se e partiu para uma outra madrugada. Era previsível. Mais tarde ou mais cedo tinha que acontecer.
E Mário?, de quem estava à espera?
Aquele snack existia?
Os bancos, a chávena de café, o copo meio de água...?
Patrícia...?
Riscou um fósforo na noite. Aspirou uma fumaça do cigarro e expulsou, com força, o fumo. Atravessou a rua até à muralha. O ruído das ondas era mais forte e a noite enchia-se de clarões, vacilantes. Os pescadores entregavam-se à sua faina pesada. Havia uma noite inteira à sua frente. Sem Manuela. Sem Patrícia. Sem refúgio. Marcado para sempre pela sensação de culpa e também pela saudade do primeiro amor que ajudou a destruir.
Voltou para trás. Só as luzes do balcão estavam acesas. Mas...
Esfregou os olhos. Decerto estava a viver um sonho.
Na mesa do costume, um vulto de mulher, talvez duas chávenas de café, talvez um copo meio de água, talvez nada. Sim, nada. Até porque o copo já não roda. As mesas continuam vazias. Ao fundo, a máquina de discos, silenciosa. O balcão circular com bancos esguios em todo o percurso. Os longos dias azuis...
O ar está carregado de ozono. É sinal de trovoada. As gaivotas já não descem junto ao mar, em voo picado. Não há snack mergulhado no torpor duma tarde abafada de maio, tão característica de F... como, também, convidando à indolência. Há só noite. A noite que caiu sobre a cidade e sobre ele.
Quem é Mário?
(«Talvez pressintas mal e eu estou convencida que pressentes mesmo mal. Para ti‚ é metafísica, dizes. De acordo. E para mim?, pergunto. Demasiada subtilidade, talvez também metafísica; é por isso que eu digo: abstrais imenso e não deixas penetrar um pouco no teu espírito. Queres distinguir o real do fictício. E qual é o teu real? E qual é o teu fictício?»)
Oh!, mas Manuela existiu e existirá sempre…
Tal como Manuela, Patrícia partiu sem uma palavra e ele vai todos os dias ao snack, onde fica, à espera, em frente à cadeira que teima em ficar vazia. Como vazia é a sua vida desde que Manuela desistiu de viver. Mas Patrícia também desistiu dele, embora exista na cadeira vazia que tem na sua frente.
É a noite longa de Mário. Sabe que virão outras Patrícias, de olhos da cor do mar, ou talvez castanhos, para se entregarem na cama até ao último desfalecimento. Tempo infinitamente pequeno para os dois que passavam no snack, frente a frente, vigiando, até ao pôr do sol, cada um o silêncio do outro, e seguindo, por vezes, o voo picado da gaivota até à rebentação das ondas.
Um dia, Patrícia cansou-se e partiu para uma outra madrugada. Era previsível. Mais tarde ou mais cedo tinha que acontecer.
E Mário?, de quem estava à espera?
Aquele snack existia?
Os bancos, a chávena de café, o copo meio de água...?
Patrícia...?
Riscou um fósforo na noite. Aspirou uma fumaça do cigarro e expulsou, com força, o fumo. Atravessou a rua até à muralha. O ruído das ondas era mais forte e a noite enchia-se de clarões, vacilantes. Os pescadores entregavam-se à sua faina pesada. Havia uma noite inteira à sua frente. Sem Manuela. Sem Patrícia. Sem refúgio. Marcado para sempre pela sensação de culpa e também pela saudade do primeiro amor que ajudou a destruir.
Voltou para trás. Só as luzes do balcão estavam acesas. Mas...
Esfregou os olhos. Decerto estava a viver um sonho.
Na mesa do costume, um vulto de mulher, talvez duas chávenas de café, talvez um copo meio de água, talvez nada. Sim, nada. Até porque o copo já não roda. As mesas continuam vazias. Ao fundo, a máquina de discos, silenciosa. O balcão circular com bancos esguios em todo o percurso. Os longos dias azuis...
O ar está carregado de ozono. É sinal de trovoada. As gaivotas já não descem junto ao mar, em voo picado. Não há snack mergulhado no torpor duma tarde abafada de maio, tão característica de F... como, também, convidando à indolência. Há só noite. A noite que caiu sobre a cidade e sobre ele.
Quem é Mário?
(«Talvez pressintas mal e eu estou convencida que pressentes mesmo mal. Para ti‚ é metafísica, dizes. De acordo. E para mim?, pergunto. Demasiada subtilidade, talvez também metafísica; é por isso que eu digo: abstrais imenso e não deixas penetrar um pouco no teu espírito. Queres distinguir o real do fictício. E qual é o teu real? E qual é o teu fictício?»)
Oh!, mas Manuela existiu e existirá sempre…

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