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lha, deixa que te diga uma coisa. Mas antes é melhor arrefeceres o teu ego para receberes, sem haver perigo de haver uma reação imprevista, o que vais ouvir, quiçá sentir.
A propósito, será que sentes…?
Em primeiro lugar, aqui vai o que julgo ser uma verdade. A minha verdade. Nunca fui, nem sou, nem serei, a tua alma gémea. Não lamentes porque bem sabes que as almas gémeas não existem. Em carne e osso, claro. São fruto de uma espécie de hipnose que transtorna a mente de qualquer um a ponto de a deformar, como se fosse tomada por uma droga de efeito alucinogénio.
Mas vamos ao que interessa, porque não tenho tempo, embora saiba que agora tenho todo o tempo do mundo. E se me permites, vou compor um pouco as palavras para dizer o que penso de ti. Serei rápido. Em primeiro lugar, desistes sempre ao primeiro sinal perturbador. O curioso é que, desde que abraçaste a eternidade, julgas que este mundo donde te falo é o teu mundo e tens passado o tempo (o meu tempo?) a fazer incidir a tua sombra sobre mim, chegando ao incrível absurdo de tomares posse de tudo o que é meu, inclusive fazeres-me acreditar que, quando um sonho novo nasce, chega tarde para ganhar raízes. Tem acontecido sempre. Coincidência? Não. A vida é um jogo. Nem sempre o azar está atrás da porta. Ou a má sina. Chama-lhe o que quiseres. É improvável. Não pode acontecer sempre assim. Com o tempo a passar e o mesmo desfecho em cena. Entretanto, já estamos os dois sentados à lareira arrefecida do crepúsculo, eu e tu, bem para lá do nosso horizonte possível. Mas claro, eu na minha lareira e tu na tua, se não te importas que diga. A propósito de lareiras, não quero que as minhas brasas, ainda rubras, se apaguem ao sopro vindo desse lado. Sei que as brasas da tua lareira estão frias há muito, se é que tens o tempo contigo. E assim, estamos como estamos. Podia ter acontecido de outra forma. A culpa? Já não vale a pena deitarmos culpas à culpa. De nada serve. Nada resolve. Deixa que haja um pouco de sol para aquecer as memórias da última oportunidade que tive e que já passou. Deixa que venha até mim uma recordação breve. Não te preocupes. Agora não causa mossa. Podes ficar comigo, mas sê discreta. Por favor. Sei que é difícil convencer-te, sonho de ontem que flutuas no azul constelado do céu, sem hipótese de regresso senão com uma mão cheia de nada porque hoje és nada.
Neste momento de breve recordação não estou a referir-me a ti. Foi há muitos anos. Estava na força da vida, mas ela era muito jovem para mim e só por isso recuei, deixando que soltasse os cabelos longos ao vento, passasse por mim e se afastasse sem um adeus. Só por ser muito jovem é que a deixei partir. Hoje admito que cometi um erro grosseiro. Paciência, é tarde. Os nossos destinos cruzaram-se uma vez e uma só, tal como acontece com as águas de um rio que também só passam uma vez por nós.
Pronto, recordei. Foi breve a recordação porque não estou aqui para falar dos meus fantasmas terrenos. É contigo que quero falar. Tu, o único e verdadeiro fantasma não terreno que não me larga. Desafio-te a seguires o teu caminho. Já não és daqui. Percorre caminhos novos, mas no teu mundo. Escolhe os atalhos, porque és eterna. Só um aviso: não pares nas encruzilhadas porque podes encontrar um fantasma do teu desagrado. Evita os becos sem saída pelos mesmos motivos. Não mais me procures porque já nada temos em comum. Talvez um dia vá ao teu encontro. Como assim?, perguntas. Através daquele túnel que bem conhecemos e que tem a luz mais intensa. Não me vou enganar. Repito. O túnel que tem a luz mais intensa é fácil de encontrar quando chegar a hora decisiva. É aí que podes esperar por mim. Se quiseres. Mas não te prometo nada. Desculpa-me. Nem sequer sei se está mais alguém à minha espera, trazendo consigo como sinal uma das muitas rosas vermelhas que ofereci. Não sou cínico. Apenas realista.
Porque quiseste partir tão cedo?
Ah!, essa expressão fria de desagrado. Não foi bem assim. Fica a dúvida.
Escuta, coração (agora falo para mim). A tristeza que sentes por tê-la perdido para sempre, deve-se ao engano de acreditares ainda hoje que ela era a mulher única. E outra grande ilusão é imaginares que falas com ela quando usas aquele pêndulo mágico dourado que o teu subconsciente controla e manipula. Repele a ilusão. Acredita numa coisa. Agora que estás a caminhar sem destino é altura de dizer-te que um passarinho disse-me ao ouvido que Deus quer falar contigo, embora digas que nunca O ouviste. Transfigura-te. Vira-te para Ele. Pede-lhe ajuda. Os Seus braços protetores alongam-se infinitamente e protegem-te sempre que o perigo vem ao teu encontro.
Já deste conta? Não rias. É verdade. Abre-te para Ele, coração. Tretas? Pronto, vou desviar a agulha. Outra coisa ainda. Quando julgas que estás noutro mundo, aquele mundo paralelo que te encanta e nunca te mostra a saída, simulas odiar a vida nesta Terra que dizem ser uma ponte de passagem. Mas cai em ti e vira-te, sim, para o teu único mundo. Já tens pouco tempo para te prepares para uma coisa bela que vai acontecer, acredita. Deixa. Não ligues. Agora sou eu que estou a desorientar-te. Mas não deixo de dizer-te, coração... não a percas, porque ela, que talvez seja a nova destinada, é de carne e osso, e vais ser outra vez amado e desejado. Mas por pouco tempo, porque
o teu tempo restante é pouco vai passar a correr.
Mais uma treta? Já sei. És eterno.
Agora tu... És um fantasma? O meu fantasma. Quem me dera! Não há notícia que um fantasma se possa ter materializado. Mas, pelo sim pelo não, por favor, mantém-te longe.
Não respondo por mim! O odor a jasmim embriaga-me.
Queres ouvir mais uma treta?
Um dia estarei no azul constelado do céu, só, perdido entre as estrelas distantes e já frias, depois de ter voado para lá dos limites do Infinito, senhor eterno da liberdade e da solidão.Foi ontem que vivemos a nossa paixão. Uma paixão que ardeu, rápida, como todas as paixões ardem. Hoje dorme o sono eterno das cinzas. Acontece com todas as paixões. São generosas. Quentes. Violentas. Imprevisíveis. Prometem tudo. A lua dos
apaixonados. A memória dos esquecidos. Prometem tudo e o que dão amanhã é nada.
Quem não teve uma paixão, dessas como eu tive, que atire uma pedra. Não interessa que seja a primeira porque já está a acontecer uma chuva de pedras. Pois é. A paixão é assim. Tira-nos o apetite. Faz bater o coração a mais de cem. Origina rios de lágrimas. Traz felicidade. Tragédias. Mas isso é só hoje, antes do vento começar a sua canção. É bem certo e corriqueiro. Paixões, leva-as o vento. Mas continuando, há paixões e paixões. Curiosamente, hoje só me lembro de uma. Não sei se foi paixão. Quero apostar que não. Porquê? Porque tive muitas paixões. Umas, correspondidas. Outras, talvez. E ainda mais outras, nem por isso. Mas esta, que foi e é a paixão das paixões, que até não sei se é paixão... esta ainda hoje me faz bater o coração a mais que cem, quando me lembro dela. Quando me lembro dela, é mentira. Estou sempre a lembrar-me dela... paixão. Ontem, hoje, sempre.
Mas será que vale a pena?
Agora nasce a dúvida. A angústia por causa da estranha sensação de estar só.
Sabes o que é estar só? Desculpa, É uma pergunta escusada feita a um fantasma. Bem sei. Morreste só. E continuas morta. Só.
Agora viro-me para vocês. Não queiram saber. E se sabem, não queiram dizer. E tentem concordar comigo. Se não concordarem, tanto faz. Quando estamos com a nossa paixão, que nos devia alegrar e até ver azul o negro do mundo, porque será que esse negro ainda nos parece mais negro?
Mas que raio de paixão foi esta para continuar a ser?
Eis a chave que não sei se serve em qualquer dúvida. Porque não consegui calar a revolta de ter-te perdido, paixão, tão cedo, sem tempo, arrastei-me no fio de todos os dias, levado pela esperança, quiçá engano, de poderes voltar um dia, talvez amanhã ou então encontrar-te num desses falados mundos paralelos, utopias dos cientistas sonhadores e dos sonhadores não cientistas como eu sou.
Entretanto vieram mais destinos mas tu continuaste comigo, paixão. Via-te sempre escondida nesses destinos. E até estou a ver-te nos destinos de amanhã. Daí sentir-me só no meio de uma multidão de destinos. Um após outro engolidos pelo buraco negro insaciável que foi sempre o meu determinismo. E assim será até ao fim do fim, paixão. Até que o crepúsculo me envolva com o seu manto negro e fatal e procure finalmente a eternidade onde talvez me esperes. Talvez. Assim espero. E se for mais que talvez, poder estar contigo e ouvir finalmente a tua voz doce que mal tive tempo de ouvir porque foi breve a tua passagem. Se é que é possível. Não sei. O fim do fim é capaz de ser diferente do que era antes do fim do fim. Mas tanto faz, paixão. Pois triste e eternamente so não ficar. Assim, quero dizer-te que não fico contigo. Porquê? Tens todo o direito de saber, embora não vás gostar. Porquê?, repito. Porque um dia fiquei só quando quiseste partir para a tua eternidade e nem sequer me avisaste. Ah sim! Prefiro ficar perdido entre as estrelas longínquas, a afastarem-se umas das outras, frias, cada vez mais distantes até que me esqueça de existir e que também exististe.
Ainda estás aí?

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