sábado, 13 de maio de 2023

O falso mágico

 



UMA HISTÓRIA VERÍDICA!


"Há sempre um momento em que se prime um botão e já não é possível poder voltar atrás.
Ela não mudou a cor ao carro e podia ter sido fatal. Foi um caso de tal maneira grave para Mário que este quase desistiu das suas atividades viradas para a quirologia.
Até que ponto Mário previu...?"

Estava uma tarde muito quente. Não sei porquê, mas foi destinada aos mistérios e talvez à desmontagem dos truques de um falso criador de magia branca. 
Cheguei a casa da Matilde um pouco antes da hora combinada. A minha amiga tinha-me falado pelo telefone do Zin, mais um dos muitos videntes que influenciavam o imaginário fantástico, levando muitas vezes a acreditar que havia quem tivesse o dom de adivinhar o futuro. Sabia do interesse que me despertava tudo o que estava ligado aos meandros perigosos dos fenómenos do paranormal e esse vidente, segundo a Matilde, era dos bons. Dos melhores. Mas ver para crer. Por esse motivo, aceitei logo o convite que me fez para visitar o suposto vidente.
Fui encaminhado por uma empregada de cor para a sala de visitas. Enquanto esperava, revia o telefonema da Matilde. Como sabia que gostava de tudo o que era ligado ao insólito, tinha-me convidado para a acompanhar ao vidente.
Mas qualquer coisa não batia certo. Relacionava-se com uma questão marginal. Uma colega de outra escola para quem fizera recentemente um trabalho de leitura de mãos.
«A Marília telefonou-me há pouco a dizer que também vai.» Disse, com ênfase.
«Mas está ainda um pouco atrasada.»
«Como está ela? Já resolveu o problema da casa?»
Um problema que não era propriamente problema. Separou-se sedo marido mas este continuava a morar numa casa que não lhe pertencia.
«O caso está complicado. Sabe, há a miúda que tem uma personalidade forte, apesar dos seus onze anos. E a Marília tem medo que ele faça chantagem.»
«Que chantagem?»
«Depois falamos, Mário.»
«Quem vai no barco é que sabe dos balanços. A propósito, ela seguiu o conselho que lhe dei?»
«Ainda não sabe o que aconteceu! A Marília teve um acidente com o carro.
Felizmente foi apenas chapa batida. Uma coisa aí para uns duzentos contos. Pelo menos, pelo menos.»
Abanei a cabeça em tom de censura.
«Onde foi o acidente?»
«Foi no norte, perto da terra dos pais. Ela anda muito nervosa porque corre-lhe tudo mal. Precisa muito de falar consigo. “O Mário é que tinha razão. Tudo o que me disse estava certo.” Foi mesmo assim que me contou.»
Não consegui evitar um sorriso que ela não viu. Então a Marília precisava de falar comigo.
«E ela mudou a cor ao carro?»
Mudar a cor ao carro?
Parecia algo descabido.
«Não. Aí é que está o problema. Disse-me que a pintura era muito cara.»
«Mais caro poderá vir a ser ainda. Diga-lhe que ela tem que mudar a cor ao carro, e quanto antes!»
A Marília era mais uma das mulheres que me tinha procurado por causa da minha nova paixão: a quirologia. Julgava mesmo que desenvolvera dons especiais, mas era matéria que requeria demonstração. Numa coisa estava certo. Entrei em terrenos perigosos, os quais não previra. Apesar de tudo, corria por gosto. Aceitei de peito aberto os desafios e fiz-me à “estrada”, sem receio. Mais tarde, se caísse num atoleiro, não podia dizer que ninguém me avisara.
Quando, em tempos, iniciei o estudo da mão da Carina, a filha da Matilde, dei logo conta que estava na presença de uma mão rica em linhas complicadas. Tão complicadas que precisei de duas sessões para as desenhar. A última foi feita na casa da mãe.

O dia que queria recordar...
Ficámos numa pequena sala, numa mesa redonda. A Carina sentou-se à minha esquerda e a Matilde, em frente. Tudo correu com normalidade durante um quarto de hora. Foi então que apareceu uma colega da Matilde.
Olhei de relance para a minha colega.
«Má altura.» Pensei.
«Que coincidência!» exclamou esta, descontraída.
Coincidência?
Interrompi de imediato a leitura e levantei-me. Tinha na frente uma mulher interessante. Alta, de feições corretas e um sorriso simpático.
«O dr. Mário... a dra. Marília. É da mesma especialidade que eu.»
«Muito prazer.»
Fiz novo exame rápido à recém-chegada e o resultado foi ainda mais positivo.
«Faz favor de se sentar. Parece que interrompi...»
Indeciso, olhei para a Carina.
«Ela pode assistir?» perguntou a Matilde. «É que somos amigas e não temos segredos a esconder.»
«Sendo assim, por mim não vejo problema.» Concordei, sorrindo.
Tinha quase a certeza que fora convidada para assistir.
Naquele momento da interrupção, desenhava a linha do coração e dera conta de três ilhas no seguimento umas das outras, separadas por pontos vermelhos. Só deixaria as tais ilhas perto dos trinta anos. Uma ilha na linha do coração significava um desgosto ou problema cardíaco. Inclinava-me mais para qualquer mal de amor.
A primeira ilha tinha início aos quinze anos.
«Que aconteceu aos quinze anos?»
Qual não foi o meu espanto quando a jovem desatou num choro convulsivo. Só por instinto consultei também a linha da cabeça. Existia uma ponte entre essa linha e a vital, exatamente aos quinze anos.
«Coisa mais incrível!» pensei.
Havia uma pessoa estranha na sala e não podia confirmar de imediato a causa do choro. Não voltei a questionar a questão que lhe provocara o choro convulsivo e ela acalmou-se.
Com receio de nova crise, abandonei, de imediato, a linha do coração. Não tinha outra hipótese senão escolher uma nova linha. Talvez a saturniana, uma linha enigmática relacionada com o destino materialista.
Nesse momento a amiga da Matilde estendeu-me a palma da mão direita. Sem saber porquê, abandonei de imediato o estudo da mão da jovem Carina.
Ocorreu então um fenómeno muito estranho. Parece que o tempo parou e, de quatro, só ficaram dois na sala. Eu e a colega da Matilde. Conversámos. Divagámos. Como se já fôssemos conhecidos de longa data. A jovem bem estendia a mão, mas estava mais interessado em ver a mão da colega da Matilde, ao mesmo tempo que tinha um diálogo todo ele enfeitado de sorrisos cúmplices. Tive também uma sensação estranha de capacete enquanto conversávamos. Parecia estar a repetir-se a cena ocorrida anos antes com a Madalena, embora num formato mais ligeiro.
Já era tarde quando fui para casa. Havia um tráfego intenso, com constantes paragens. Sentia-me cansado. A sensação de capacete ainda não tinha passado e as pressões no peito eram fortes.
Foi este o primeiro contacto que tive com a amiga da Matilde.

A anfitriã apareceu na sala e aqueles pensamentos recuaram para a base de dados tão secreta e profunda que eu próprio desconhecia a sua localização. Algures, nos escaninhos do cérebro, nos domínios privativos do subconsciente, eram geridos, em segredo, os dados a que o próprio consciente não tinha acesso. Provavelmente os chamados domínios da mente reativa.
«Desculpe fazê-lo esperar tanto tempo, Mário.»
«Eu é que peço desculpa por chegar mais cedo» levantei-me, sorrindo. «É um velho hábito, este que tenho de chegar uns minutos antes da hora.»
«Afinal a Marília não pode ir. Tem que ir buscar a filha ao colégio. O meu marido leva o carro e a Carina também vai connosco.»
Planos alterados.
Era mesmo um motivo imprevisto?
«Quem fez o contacto com o Zin, Matilde?»
«Foi a minha empregada. O Mário vê algum inconveniente que ela vá? É que nós não sabemos muito bem o caminho.»
«Não vejo problema.»
Tanto fazia. Afinal eu não era a pessoa interessada.
«Nós não temos marcação. Vamos ver como é. Se houver muita gente, paciência, ficamos a conhecer o sítio e voltamos outro dia.»
Saímos pouco depois.
O trânsito estava complicado àquela hora. Para ajudar a passar o tempo, falei da D. Ima, a única vidente que até hoje me convenceu verdadeiramente.
«O Mário depois dá-me o contacto dessa senhora.»
Não sei se fiz bem, mas confessei que descobria com facilidade as trapaças daqueles que se intitulavam de adivinhos e viviam à custa da ingenuidade dos crentes. Abri o jogo, embora soubesse que ia no carro uma pessoa que sabia onde morava o tal Zin e que faria o contacto com ele.
«A Luísa já o consultou alguma vez?» perguntou-lhe, a certa altura, a Matilde.
«Não. O meu marido não pode saber. Tenho que o apanhar a jeito. Há umas tantas coisas que preciso de descobrir com urgência, compreende, senhora?»
«Estou a ver...»
Infidelidade, talvez. Disse que nunca o tinha consultado. Como se acreditasse! E claro que a mulher já dera dados importantes ao vidente sobre a Matilde e a filha.

Chegámos finalmente à Pontinha Fantástica, tão odiada pela Madalena. Era naquele subúrbio de Lisboa que trabalhava o vidente. Uma região cheia de marginais e, ao mesmo tempo,  habitada por muita gente de bem.
Minutos depois estávamos a passar ao Veleiro, um café que já conhecia. O local da chegada era um verdadeiro labirinto num bairro da lata, um carreiro muito estreito, com casas de um lado e doutro. O estado de degradação era muito avançado e só uma ou outra construção fazia lembrar uma casa habitável. Olhei com mais atenção para o aspeto das paredes do que para o chão. A Carina afirmou ter visto ratos mortos.
Finalmente entrámos numa casa que se alongava em declive. Havia uma simulação de cozinha onde se salientava um frigorífico grande, do lado direito. Não vi mais porque do outro lado estava sentada uma mulher de cor com um adesivo grande no queixo e a quem a nossa acompanhante cabo-verdiana cumprimentou, ao mesmo tempo que lhe perguntava o que tinha na cara. Não ouvi a resposta. Saudaram-se e a interlocutora perguntou se podíamos descer. Ela acenou com a cabeça e descemos três degraus, continuando em frente até pararmos junto a uma porta, situada à nossa esquerda.
«É aqui. Ele deve estar a atender alguém.»
Ficámos voltados para a porta, a olhar uns para os outros, incrédulos com o que víamos, apesar da empregada da Matilde nos ter avisado previamente das condições degradantes em que vivia aquela estranha comunidade de negros e mestiços do bairro.
A mulher despediu-se e saiu por umas escadas situadas em frente.
Estávamos num hall inacabado, com chão térreo, cuja entrada ainda não tinha porta. No verão era agradável. Mas quando o frio apertasse já não se poderia dizer o mesmo.
E o Zin?, vivia nessa casa?
Ah!, um dado. Ele era muçulmano.
Cinco minutos volvidos, saíram uma senhora e uma jovem. Tinham bom aspeto. Certamente que ele valorizava a cem por cento os seus dotes de vidente.
Estava a contar com clientes de raça negra, preferencialmente guineenses. Afinal acabava de sair gente com ar de bem instalada na vida.
Que espécie de problemas?
Não tive tempo para tentar adivinhar. Eles já estavam a entrar e o Zin indicou-me, cerimoniosamente, uma cadeira de braços, com armação em alumínio.
Portanto, eu ficava cá fora.
«Enquanto espera...»
Ainda não tinha decidido se ia à consulta e o vidente estava já numa de antecipação.
«Muito obrigado. Prefiro ficar de pé.»
Os olhares cruzaram-se mais em ar de curiosidade do que de desconfiança. De seguida, ele fez uma vénia discreta. Tive oportunidade de ver que era negro como um tição. Em contraste, um hábito branco cobria-o do pescoço aos pés, estes calçados por umas sandálias castanhas. Fez ainda uma segunda vénia e entrou na sala, fechando de seguida a porta. Para lá da porta nada via. Era o momento de começar a fase de observação metódica de tudo o que podia abranger o meu campo de visão. Nada melhor para descomprimir. Resolvi em definitivo não me sentar. Em certas alturas também sabia ser teimoso.
A minha atenção centrou-se no campo aberto que tinha na frente, com um amontoado de casas que se estendiam para norte. Todo o resto era um extenso matagal que se perdia quase até à linha do horizonte. Alguns homens, também de cor negra, regressavam dos trabalhos que deduzi serem de construção civil face ao tipo de roupa que traziam vestida. Mostravam nos rostos um ar cansado e vinham silenciosos.
Que mais podia ver?
Como se fosse uma câmara de filmar, fiz uma rotação lenta de cento e oitenta graus, tentando analisar tudo o que ia observando, sem que nada faltasse. Dei algumas passadas e assomei à saída por onde tinha visto desaparecer a empregada da amiga. Agora via mais de perto o amontoado de casas que quase tapavam a linha do horizonte à minha esquerda. Ruelas apertadas. Casas de um só piso geminando umas com as outras. Em frente havia uma zona aberta onde se instalara, sem cerimónia, o matagal. Cerca de trinta metros quadrados estavam ocupados por uma horta de couves esguias, de tronco quase despido de folhas, cercadas por urtigas, e um amontoado de detritos variados. À esquerda, numa parede que já fora branca, lia-se, pintado a spray vermelho: Zin. A sua influência até se estendia para além da casa térrea, pouco iluminada pela luz solar.
Algumas crianças de cor brincavam à apanhada. Uma delas subiu as escadas e ficou à entrada a observar-me com certa curiosidade. Tentei adivinhar o que se passava naquela cabecinha semeada de tranças finas, feitas pacientemente. Toquei-lhe com a mão na cabeça e perguntei:
«Como te chamas?»
A pretinha iniciou uma algaraviada que me deixou perplexo. Não tinha mais que cinco anos.
O que queria?
Não podia ser outra coisa. Tirei várias moedas do bolso das calças e dei-lhe uma, de cem escudos. Só tive tempo de ver uns dentes alvos por entre toda aquela escuridão de um rosto bonito. Logo agarrou na moeda e desapareceu, escadas abaixo.
Má ideia, pensei. Dentro em breve viriam mais crianças. Era só a oportunidade da pretinha transmitir a boa nova aos outros miúdos.
Fiquei à espera. Os minutos passavam e nada acontecia. As crianças tinham desaparecido como que por encanto.
«Boa tarde.»
Voltei-me. Era um negro de cabelos grisalhos.
Correspondi ao cumprimento.
«Não quer sentar-se?»
Outra vez?
Todos querem que me sente. Que coisa!
«Obrigado. É que estive todo o dia sentado.»
Acenou com a cabeça e resolveu sentar-se. Então voltei para o meu posto de observação. Mas a atenção tinha-se desviado. O homem estava com um problema nas narinas. Não deixava de se assoar sem lenço e de levar os dedos escuros ao nariz como se tivesse uma comichão interminável. Depois, passou a uma fase de inspirações contínuas.
«O homem é porco!» pensei, incomodado.
Começámos uma conversa de ocasião até que chegou outro homem que ele apresentou como sendo irmão do Zin.
Foi nessa altura que recomeçou a magia. Primeiro, tinha sido a aparição da pretinha. Agora era um gato. Vi-o, ao fundo, num muro, ainda a uma distância considerável. Pareceu-me que olhava na minha direção. Então, fiz alguns estalos com os dedos. O gato fixou o olhar e miou. Insisti, repetindo os estalos. Voltou a miar. Nova insistência e já o tinha perto de mim. Era cego do olho direito e tinha cor parda. O mesmo tom e matiz tigrino da Princesa Bolinhas que Deus tinha. Parecia muito carente, pois começou a roçar-se no braço e a receber com satisfação, de cauda levantada, as festas que lhe fazia, dando frequentes marradinhas.
Deixei-me invadir por um estranho bem-estar. De súbito, vinham, em catadupa, recordações do passado recente. Doces recordações.

Uma manhã, no troço que ligava a autoestrada com a Malveira, fui mandado parar por um agente da brigada de trânsito. Distraíra-me a pensar em qualquer coisa e o carro seguia, há já algum tempo, na berma da estrada, fora do traço contínuo.
«Bonito! Sim, senhor! Mostre-me os documentos...»
O tom de voz do agente era agreste. Estava tramado!
A gata dormia, enroscada, no banco ao lado.
«Vou ser multado e é bem feito! Ao fim destes anos todos vou ser multado desta maneira inglória.»
Procurei na carteira a carta de condução e os documentos do carro. De seguida, entreguei-os ao agente que se baixou ao nível da janela do carro para os receber. Foi nesse momento que viu a gata.
Estava “feito”. Tinha o fim-de-semana estragado. A multa devia ser pesada e o dinheiro fazia-me falta. Os professores eram mal pagos.
«Senhor Mário, aqui tem os seus documentos. Boa viagem!»
O tom de voz modificara-se radicalmente, ao mesmo tempo que olhava para a gata. Escapei da multa por milagre.
Meti a primeira e segui viagem. A Princesa continuava a dormir toda enroscada, como se fosse uma bola. Ou ela não se chamasse Princesa Bolinhas, mãozinhas de veludo. Princesa Bolinhas, a salvadora.

Afastei o gato zarolho com um safanão. O sortilégio durara até ter os olhos rasos de lágrimas. Que saudades tinha da minha Princesa!
O que pensavam os dois guineenses do meu ascendente em relação àquele gato zarolho?
Curiosamente, não comentaram o caso. Notei, contudo, uma certa admiração nos seus rostos. Quanto ao primeiro, já não levava os dedos ao nariz.
Não teria estado a snifar droga?
«Claro que sim!» admiti.
O tempo ia correndo. Os homens que tinham chegado do trabalho, com os seus fatos de trabalho da construção civil, começavam agora a sair, engravatados, para as farras habituais da noite, enquanto as mulheres ficavam à porta com as crianças ao colo, a vê-los partir. Cena machista registada.
Entretanto apareceu, vinda do lado das escadas, uma mulher branca, a cambalear, queixando-se de não sei o quê e trazendo consigo uma garrafa de litro vazia. A mulher estava muito embriagada.
Trocou algumas palavras ininteligíveis com o homem dos cabelos grisalhos e encaminhou-se para o outro lado, sempre cambaleando.
Talvez motivado pelo meu olhar inquiridor, o homem viu-se na obrigação de me explicar que a mulher tinha que ser ajudada.
Franzi o sobrolho e deixei escapar um sorriso irónico.
Mas que tipo de ajuda?
A resposta não se fez esperar quando observei com atenção o que se passava no fundo, junto à entrada. A mulher do adesivo grande levantou-se e dirigiu-se ao frigorífico. Ato contínuo, tirou do seu interior uma garrafa de vinho branco.
Troca por troca e a mulher branca regressou na minha direção e do homem dos cabelos grisalhos. Mais dois dedos de conversa que voltei a não entender e a mulher, olhando para o céu, afirmou que estava a vê-Lo. O homem acenou com a cabeça e lançou-me um sorriso cúmplice.
Ela insistiu. Queria ter a certeza.
«Está também a vê-Lo?, não está?»
«Estou, senhora.»
«Vê?» repetiu.
«Vejo.»
Diálogo surrealista!
Eu devia estar invisível aos seus olhos vítreos. Parece que a mulher nunca me viu. Mas via-O e ele não O via, claro.
De novo o sortilégio a acontecer naquela casa miserável onde se respirava magia e miséria, desta vez personificado por uma mulher alcoolizada que afirmava com convicção que O via.
E lá se foi embora, escadas abaixo, sob o olhar cauteloso do negro. Este, ao mesmo tempo erguia os braços para o céu como quem pretendia guiar a mulherzinha embriagada.
«Tenha cuidado, senhora! Não caia.»
Os próprios degraus ajudaram-na a descer, agora muito direita, amparada pela mão invisível do acaso, ou de outra coisa para além do mesmo acaso.
«Ele sabe que está à espera?» perguntou o guineense.
«Quem?»
Ainda estava atordoado com as visões da mulher.
«O Zin
«Creio bem que sim. As pessoas que estão lá dentro são minhas amigas.»
«Mas ele está à sua espera?» insistiu.
Onde queria chegar?
«Penso que sim.»
«Ele só trabalha com marcações.»
«Logo vemos.»
A ser verdade, a Matilde tinha mentido quando disse que iam ao acaso. Mas pouco interessava.
Como que por coincidência, nesse momento abriu-se a porta e eles saíram.
Acabara a consulta. Tentei ler nas expressões dos seus olhares uma reação ao resultado da consulta. Negativo.
Então o vidente mandou-me entrar. Fiz um gesto largo para a Matilde que ainda se aproximou e teve tempo para dizer:
«Ele é muçulmano. Peça para lhe mostrar o Corão.»
Entrei. Continuava calmo. Ainda bem. De certeza que nada me ia escapar.
Estava a contar com uma mesa que não vi. A seguir, tive uma certa dificuldade em saber onde ia sentar-me. De facto já não existia espaço disponível naquele compartimento atafulhado até quase ao teto que mais parecia ser um armazém.
Do lado esquerdo havia uma cama de ferro. Na frente, em cima de um móvel encostado à parede, via uma televisão acesa. O som estava demasiado alto.
Dei uma olhadela rápida ao resto. Achei bizarro. Agora o quarto parecia uma loja de velharias onde se encontravam os objetos mais incríveis.
O homem sorriu e sentou-se na cama. Depois fez-me um sinal para me sentar à sua direita. Em frente havia um pequeno móvel com uma coberta. Concentrou-se nele e começou a fazer uma reza que foi rápida. Baixou-se e pegou num pedaço de madeira que fazia lembrar a parte superior de um cabide.
Que ia fazer?
A sua magia, claro. A meio do cabide havia um alfinete. Já sabia como era o truque. O muçulmano equilibrava no gargalo de uma garrafa o conjunto alfinete/pedaço de madeira que via ao lado dele. Mas não só. Aí começou o único mistério que ocorreu naquele quarto térreo. O muçulmano não deu qualquer impulso, mas o conjunto alfinete/pedaço de madeira começou a girar com alguma velocidade.
Como explicar o que estava a ver?
Só se houvesse um fluído a sair do interior da garrafa. Ou uma ventoinha oculta. Que havia truque, havia. Mas não quis comentar. Preferi fingir que não dera conta de nada. Limitei-me a sorrir para ele, que retribuiu o sorriso e também não disse uma palavra. Depois pegou num pequeno caderno muito sebento que fazia lembrar a cartilha maternal. Tinha inscritos vários caracteres, provavelmente árabes, dentro de quadrados.
Ou não havia quadrados?
Só lhe dei dois dados: o nome e a profissão.
Então o muçulmano fez uma espécie de um-dó-li-tá, no estilo daquele que se fazia nos meus tempos de menino e moço e o dedo parou, por três vezes, sobre quadrados diferentes. Depois de uma curta pausa para refletir, olhou para mim e disse:
«É uma pessoa muito boa.»
Quando era criança deitava os gatos pela varanda abaixo e queimava moscas com álcool…
Pensei de imediato na Matilde e na filha. Não podia ser outra coisa. Quase de certeza que falaram de mim e teceram elogios.
«Tem alguma pessoa doente na família?»
Disse que não. Tive a sensação que ele andava à procura de uma porta para entrar e cerrei logo fileiras. Fez-se um silêncio prolongado. Aliás houve, por vezes, vários momentos mortos em que coexistiram falta de diálogo, episódios de violência que se passavam na televisão e que comentava, e até três telefonemas que atendeu. Depois atirou-se a adivinhar, dizendo que, por vezes, punha-me a pensar “nisto, nisso, naquilo”, querendo com isso dizer que era um sonhador obsessivo. Acertou.
Disse que, por vezes, não conseguia fixar-me. De certa maneira comportava-me como um nómada nas fugas constantes comandadas pelo subconsciente.
«É nervoso.»
Nunca estivera tão calmo. Mas acertou.
Perguntou, de seguida, se alguém me queria mal. Não foi bem nesses termos.
Talvez tivesse falado de invejas.
Respondi que sim.
«Homem ou mulher?» perguntei.
«Mulher.»
Outra vez! Sempre uma mulher a invejar-me. Mas não admirava. Na minha profissão estava rodeado por todo o lado por mulheres.
Insisti. Queria descobrir. Para meu espanto, disse que ia saber. Todas as videntes que falaram de inveja de mulher nunca disseram que revelavam quem era a mulher em questão. Primeiro tinha que tratar-me das maleitas causadas pelos chamados “maus olhados” ou outras coisas quejandas. Com missas. Ofertas. Estas em dinheiro, claro.
«Quando vou saber?»
«Quinze dias.»
Quinze dias era um prazo muito curto. Achava que ele não ia conseguir em quinze dias oferecer-me, de mão beijada, a mulher que me invejava. Ainda por cima, sem um único “tratamento”.
«Como vou saber?»
Falou de uma discussão.
«Ela vai discutir comigo?»
«Não vai ser consigo.»
Então assistia à discussão ou tomava conhecimento mais tarde. Só podia ser de duas formas. Por outro lado, a discussão não ia ser comigo. Se bem entendia, era só um sinal para descobrir a mulher que me invejava. Mais lógico era ser um homem. Não podia esquecer-se, no entanto, que o meu mundo profissional estava tomado de assalto pelas mulheres.
Esse momento foi um marco que separou duas situações contrastantes. A partir daí, o vidente afundou-se numa negritude de clarividência e caiu num mutismo quase absoluto. A culpa foi minha porque consegui barrar-lhe todos os caminhos de entrada na mente. De cabeça baixa, parecia refletir. De vez em quando olhava para mim e encolhia os ombros. Ainda formulou duas ou três hipóteses que bateram em fundo vazio. Andou sempre longe da verdade. Disse, por exemplo, que tinha dores nas costas. E não tinha. Falou de êxito na carreira e a carreira estava definida, como em qualquer outro professor já a atingir o topo da carreira.
Em relação aos sonhos, o muçulmano falou em águas claras e águas escuras.
«É bom sonhar com águas claras, mas não com águas escuras.»
«Águas claras, é logo bom, meu senhor. Águas escuras demora mais tempo. Muito mais tempo.»
«É sempre bom?»
«Sim.»
Opinião inédita. Sempre ouvira dizer que era mau sonhar com águas escuras.
Contei-lhe que tinha sonhado recentemente, e por duas vezes, com o fogo.
Respondeu que era mau, associando os sonhos com tragédias alargadas.
Chegou mesmo a falar em morte de um primeiro ministro, mas não especificou quem era o primeiro ministro.
E foi tudo. Apagou-se o fogo sagrado da inspiração, até porque o tal binário alfinete/pedaço de madeira já não rodava.
«Quer saber mais alguma coisa?»
Disse que não.
Então puxou de um cartão e ofereceu-me.
«Gostava de falar outra vez consigo.»
Dei uma olhadela rápida no cartão. Afinal não se chamava Zin. Tinha outro nome. Repartia as vinte e quatro horas do dia entre aquela casa miserável e um sexto andar nos arredores de Lisboa. Abria-se um pouco o véu. A sua vida real estava longe dali. Naquele bairro miserável da Pontinha só ganhava o pão que o diabo nem sequer quis amassar.
«Quanto lhe devo?»
«Três mil e quinhentos.»
Grande ladrão!
E pronto. Foi assim que conheci o vidente que afinal não se chamava Zin. O muçulmano que não conseguiu convencer-me porque, dessa vez, e ao contrário das outras, fechei-me como uma ostra e não dei a mínima hipótese do outro adivinhar fosse o que fosse. 
Quanto à magia, ainda quase uma semana decorrida, tinha uma dúvida. Se esta aconteceu lá fora, quando a pretinha levou os cem escudos e não contou às outras pretinhas que brincavam com ela que estava ali o senhor do dinheiro, quando chamei o gato e ele veio de longe logo ter comigo, quando a mulher branca, embriagada, que dizia “vê-Lo”, foi ajudada pela garrafa de vinho branco ou isso a descer as escadas que davam acesso ao exterior, ou então só aconteceu lá dentro quando não consegui descobrir a força que pôs a rodar o misterioso binário.

Um mês depois a Matilde convidou-me para um almoço num restaurante chinês. Além dela, estiveram também presentes a Marília e a Filipa, uma outra colega da nossa escola.
O almoço decorreu de uma forma amistosa, ao mesmo tempo formal. O pico da conversa foi atingido quando falaram do que aconteceu naquela tarde em fomos ao muçulmano. Tive a oportunidade de esclarecer um certo ponto importante relacionado com a impressão sobre o homem e afirmei mesmo que, enquanto estive lá dentro, nada de especial aconteceu. No exterior, sim. Foi fantástico. Houve poesia.
«Poesia?»
«Sim.»
Contei tudo o que tinha acontecido lá fora.
Logo de seguida, aconteceu a surpresa das surpresas. As duas tinham uma coisa para me contar.
«Uma coisa?»
A coisa era muito simples. A Matilde confessou que o muçulmano afirmara que, enquanto eles estavam na consulta, havia um corte lá fora. Sorri. Interferira no que se passava naquele quarto atulhado dos mais incríveis objetos.
Entendi a razão de todo aquele silêncio durante mais de um mês. O homem tinha dito para se calarem porque eu, Mário, interferira de forma a neutralizar o seu “trabalho”. Se falassem seria mau para as duas. Mas as confissões não ficaram por ali. Posteriormente a Marília também tinha ido com a Matilde ao muçulmano e por duas vezes.
Porque não me contaram mais cedo?
Mas havia mais surpresas. À Matilde mandou, entre outras coisas que não disse, oferecer iogurtes a alunos.
«Sabe o significado?» perguntou esta.
«Isso quer dizer limpeza.» Alvitrei.
Pela expressão que ela fez não estava a compreender.
«Como?»
«Purificação.»
«Não percebo na mesma.»
Expliquei, o melhor que pude, que era uma forma de “limpar o corpo grosseiro” de impurezas. Assim como o sacerdote, ao ouvir uma pessoa em confissão a limpava de todos os pecados, ficando pronta para cometer mais uns tantos pecados.
«Ah!»
O caso da Marília era bem mais complicado, pois o muçulmano mandou-a comprar um quilo de carne de vaca e sete velas.
«Que me diz?»
«Assim à primeira não atinjo. Uma dúvida minha: deu-lhe só a carne e ficou com as velas, ou deu-lhe tudo?»
«Tudo.» Esclareceu.
Fiquei de saber.
Também me queriam oferecer alguma coisa. Um almoço. Mas a Filipa estava renitente. Queria pagar.
Dias mais tarde, depois de consultar vários livros especializados, descobri o significado daquele quilo de carne de vaca. Amarração! Só isso. E não era pouco.

O segundo acidente que tinha previsto acabou por acontecer e dessa vez ia sendo fatal. Fui confrontado com a notícia quando, uma tarde, a Filipa apareceu, esbaforida, na minha frente. Muito excitada quis logo contar tudo em poucas palavras.
Perguntei-lhe, para ganhar tempo:
«Onde foi?»
«Na segunda circular.»
Resumindo ainda mais a informação dada pela Filipa: o carro ficou destruído e a filha sofreu um traumatismo craniano. Coisa que não foi mais grave só por milagre.
A partir daquele momento todos os projetos para a tarde seriam alterados. Ela queria falar comigo. Estava em pânico.
«Das quatro para as quatro e meia ela está no café da avenida. Aquele em frente ao Havana.»
«Qual Havana?»
«Agora é a Nova Rede.»
«Ah! Já sei. Deixa ver... São dez para as quatro. É só o tempo de pedir à Lina para me substituir na aula de Informática.»
«Vou avisá-la que estás a ir para lá.»
«Está bem. Mas eclipsa-te, para me despachar.»
Pouco depois estava a caminho do café. Vi-a logo, sentada numa mesa. O nervosismo. Os olhos ansiosos. Vi tudo num instante. Antes de entrar e à distância de menos de dez metros.
A Marília estava sozinha.
Seria que delirava?
Pois. Delirava. Havia uma outra chávena de café em cima da mesa. Naturalmente, da Matilde.
Trocámos um beijo e sentei-me na sua frente. De facto, pouco depois apareceu a Matilde.
Foi um milagre. Felizmente que a miúda, quando entrou no carro, sentou-se logo à frente, contra todas as regras. Ainda ralhou, mas ia atrasada. Pouco depois aconteceu o imprevisível. Um Ford de grande cilindrada embateu, com violência, de lado e na traseira do carro. O condutor estava embriagado e perdeu o controlo do carro por falta de reflexos.
Não mudaste a cor ao carro!
Os dois carros continuaram em movimento, impelidos pela força da inércia, completamente descontrolados, batendo nas barras de proteção, ora à direita, ora à esquerda. Parecia que aquele pesadelo nunca mais acabava. Viu tudo negro. Sentiu-se perdida. Pensou que era o seu fim e o da filha. Até que o carro capotou e de, súbito, surgiu a acalmia. Abriu os olhos e teve logo consciência que estava tudo bem com ela. A primeira preocupação foi com a filha, quando a viu desmaiada.
A ambulância levou-as logo para o hospital. Ela só tinha escoriações, mas o diagnóstico foi pouco animador em relação ao estado de saúde da filha: um traumatismo craniano. Felizmente não passou de um susto. A miúda melhorou e deixaram que a levasse logo para casa.
«Não devia ter feito isso!»
«Deram-lhe alta ao fim de vinte e quatro horas.»
«Devia ter ficado pelo menos quarenta e oito horas. Segundo me disse, a miúda perdeu a consciência...»
«Sabe o que é ter uma filha?»
«E perdê-la?»
Já no fim da conversa (a Matilde continuava presente, muito ansiosa, talvez fazendo força para que tudo corresse bem entre nós) abordámos a parte que mais interessava do relatório quirológico, e onde estava tudo escrito, tão límpido como a água pura.
«Mas eu li o relatório com atenção!»
«Estava lá tudo!
Por tudo isto, pergunto: gostas de conduzir em velocidade, principalmente quando vais sozinha e os pensamentos parecem fugir, ainda mais velozes?
Se a resposta for sim, levanta o pé do acelerador e pensa que, apesar de tudo, é muito bom viver; se a resposta for não e conduzes normalmente, o perigo virá dos outros e deves mudar a cor do carro porque o vermelho atrai.

«O carro era novo. Não tinha mais que dois anos. Ia gastar muito dinheiro na pintura.»
«E a vida não é mais importante?»
«O condutor estava embriagado e agiu como um criminoso. Vou proceder criminalmente contra ele.»
«O homem foi um mero executante do destino! Gostava de conhecer o sítio do desastre.»
Não me deu saída. Limitou-se a mostrar várias fotografias do carro já recolhido na garagem. Arrepiei-me. Era um monte de sucata que não tinha ponta onde se pegar.
Depois daquele caso, resolvi não voltar a fazer relatórios quirológicos.
Quanto à previsão do muçulmano, apareceram três potenciais suspeitas. E todas tinham uma coisa em comum: a discussão com familiares.
Uma delas morreu pouco depois, estranhamente, com um enfarte fulminante do miocárdio, quando discutia com a filha. Chamava-se Verónica e foi a única vidente que previu o meu rompimento com a companheira de então.
Restavam duas: a Lina e a Otília.
A primeira esteve a braços com graves problemas familiares que meteram fortes discussões. Quanto à segunda, começaria a entrar em breve no cone de sombra de uma órbita desconhecida. Ia zangar-me com ela por causa de umas míseras horas extraordinárias e ela revelaria então qual era o seu verdadeiro caráter.
Qual das três me invejava?
Estava perante um romance da Agatha Christie!
Não cheguei a procurar o muçulmano pois perdi o cartão que me entregou naquele inesquecível dia dos milagres.
Quanto à Matilde e à Marília, voltei a encontrar-me com as duas num jantar que a primeira ofereceu a algumas amigas e também a mim.
Comemos jaquinzinhos fritos com açorda, esta última uma palavra mágica que me abriu o coração para entrar uma lufada doce de saudades do tempo em que a Princesa Bolinhas reinou no meu coração!


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