Finalmente chegou o tempo para os professores se reunirem e fazerem a apreciação sobre o desempenho dos seus alunos do Curso Noturno. Devem ser mais benevolentes com estes porque eles são adultos, têm o seu emprego, chegam a adormecer nas aulas, exaustos, mas precisam do certificado para progredirem na suas carreiras ou concorrerem a outros empregos que lhes dão melhores condições. Não lhes fica mal a ambição. Mas têm que se empenhar no mínimo nas aulas, na participação e nas fichas de avaliação.
«Calculem que a Isabel disse-me, em plena aula, que me mandava fazer uma "macumba" se não a passasse a Matemática.» Informou o Mário, a certa altura.
«Que descaramento o dela!» exclamou a Odete.
«E que lhe disseste?» perguntou a Inês.
Já a meio do último mês de aulas, Mário, depois de verificar o insucesso completo da Isabel na segunda ficha de avaliação (a primeira fora também um desastre), disse que ia dar-lhe uma última oportunidade, bem como a outra colega. A primeira teve nota negativa e outra positiva.
No dia seguinte os alunos fizeram autoavaliação e sobressaiu de todos o comentário insólito da Isabel:
«Se o setor não me passar mando-lhe fazer uma macumba!»
Mário ficou a olhar para a aluna, incrédulo. Logo se recompôs e perguntou-lhe:
«Sabe o que é um boomerang, Isabel?»
«E ela?»
«Disse que não sabia e ficou a olhar para mim. Então expliquei-lhe e ela ficou com cara de caso.»
«Eu não a passo.» Afirmou, convicto, o Cordeiro.
Ficou registou. Mas o colega não reprovou a Isabel. Quanto ao Mário não a passou.
Talvez tenha sido nesse dia que Mário suspeitou da existência de um problema de saúde na Manuela. Aconteceu ao almoço, num dos piqueniques organizados ao domingo pelo tio Carolino.
O local era aprazível, muito arborizado, e com um espaço aberto onde os mais jovens jogavam a bola ou à apanhada. Mário não participou durante muito tempo no jogo da bola porque toda a sua atenção era para a namorada. No entanto, mesmo em pouco tempo, não perdeu a oportunidade de mostrar a todos os seus dotes futebolísticos, ou ele não fosse o jogador que mais golos marcava no pátio da escola. Marcou treze golos num jogo contra uma equipa de um ano muito abaixo do seu. Esclarecendo, a sua equipa era do sexto ano do liceu e os adversários pertenciam ao segundo ano. Portanto, não passou de um jogo de bater em mortos, mas o resultado e os golos marcados por ele tiveram realce no jornal "O Facho", com conexões à Mocidade Portuguesa, de que já se desligara a partir do terceiro ano quando terminou a obrigatoriedade de frequentar as atividades.
Os conhecimentos e amizades do tio Carolino tinham permitido o empréstimo daquela quinta agradável, razão porque só a família e mais duas, das amizades do seu tio, tiveram acesso à mesma. O dono pôs à disposição dos visitantes mesas compridas em pinho, já marcadas pelos rigores dos muitos inversos a que tinham sido expostas, bem como cadeiras. Tinham chegado pouco depois das nove porque o seu tio dizia que o dia passado na serra devia ser bem aproveitado. A família de Mário, assim como a Manuela e a mãe, foi de táxi e foram precisas duas viagens porque havia dois passageiros em excesso e o taxista receava ser autuado caso fosse intersetado por uma brigada da polícia de trânsito. Apesar da hora, o calor já começava a apertar e o dia prometia aquecer (e bem) as orelhas, como se dizia na gíria popular.
Por mais voltas que desse à cabeça, agora que a poeira do tempo nublou grande parte dos acontecimentos já passados, Mário só se lembrava de quatro coisas. O almoço em que se juntaram os farnéis das três famílias, o baile a seguir ao almoço, o jogo do ringue e o regresso a pé pela estrada, serra abaixo, com uma paragem obrigatória na "Quinta dos Amores", já perto da cidade onde José Régio viveu grande parte da sua vida e criou o seu "Cântico Negro".
Comecemos então pelo almoço. Mário estranhou que a Manuela comesse muito pouco e insistiu com ela para que comesse mais, a ponto da mãe, uma senhora que ele adorava, pela sua bondade e simpatia e pela confiança sem limites que depositava na filha, dizer que desde criança ela era uma niquenta e passava um martírio para que comesse. Que ele não se preocupasse. Ela não morria [1].
Talvez uma hora depois foi o baile, abrilhantado pelo aparelho de rádio com gira-discos do tio Carolino. Foi a segunda vez e última que Mário teve a sua namorada nos braços.
Já perto do lanche, alguém alvitrou que se jogasse o "mata". Mas para que esse jogo se concretizasse, tinham que dispor de um ringue. Mário não lembra de quem era o ringue. Talvez fosse da filha "do Rijo", uma jovem que mais tarde entrou na célebre disputa de lugares, juntamente com a Simone e outra, numa certa noite no Cine-Parque, onde havia cinema ao ar livre. Foi a Simone quem teve o privilégio de se sentar ao lado do Mário. A Simone do "inverno do seu descontentamento". A Simone que desviou o seu destino e que ele tanto amaldiçoou. Podia ter vindo daí o efeito boomerang. Mas este desvio aconteceu em 1962 e agora corria o ano de 1959. Era setembro e faltava pouco tempo para o Mário começar as aulas na Faculdade de Ciências. Lisboa esperava-o de braços abertos. Lisboa que o deslumbrava e atraía. Lisboa onde ia perder-se no futuro. E perder a Manuela para sempre.
O "jogo do mata", com uma final "épica" entre o jovem Mário e a sua namorada, podia ter tido um desfecho diferente noutro mundo, mais consentâneo com o seu dever cavalheiresco de que tanto se orgulhava. Aconteceu numa tarde muito quente de setembro de 1959, algures na serra de S. Mamede, nas imediações da quinta do Rosal. Mário e Manuela eram adversários. Alguém escolheu as equipas ou foram eles que decidiram não estar do mesmo lado do campo de batalha. Campo de batalha, sim, porque o jogo ia ser renhido.
O desejo forte de se superiorizarem um em relação ao outro, num frente a frente entre um "homem-leão" e uma "mulher-carneiro", teve como corolário o abandono sucessivo dos outros jogadores que talvez se tenham empenhado pouco com segundas intenções.
O "mata" era um jogo do ringue muito simples. Os dois grupos oponentes colocavam-se de um e doutro lado de uma linha previamente traçada e logicamente tinham que ser em igual número. O objetivo consistia em atirar o ringue para o outro lado da linha de modo a atingir um jogador da outra equipa. Este podia agarrar o ringue, mas morria e saía do jogo se não o segurasse bem, permitindo que caísse. Ou então desviava-se de forma a não ser tocado. O jogo acabava quando não havia mais jogadores de um dos lados do campo.
Mário possuía a a força consigo e a arte de saber esquivar-se à trajetória fatal do ringue, embora tivesse jogado pouco até então, uma vez que o jogo era mais próprio de raparigas. Quanto à Manuela era favorecida pela experiência num jogo específico das raparigas e também por alguma leveza e engenho. Assim, estavam reunidos os ingredientes para uma final emocionante.
Por acaso ele ganhou. Arriscou algumas vezes, talvez mais por exibicionismo, ao agarrar com um salto o ringue em rota de colisão com o seu corpo, quando podia esquivar-se com relativa facilidade. Ela tentou fazer o mesmo para não ficar atrás. Após luta assanhada, a certa altura a Manuela não conseguiu segurar o ringue que vinha rodando e deslocando-se veloz, após um arremesso com força inusitada. Facto consumado. Fim da refrega.
Ai dos vencidos!
Ficaram a olhar um para o outro após aquela luta que mais parecia de vida ou de morte. Ele, exibindo um ar triunfante, inchado como peru. Ela, muito séria, vencida mas não convencida como era apanágio de mulheres do signo Carneiro. Os jovens enamorados tinham-se defrontado pela primeira vez como acérrimos adversários.
Mas o que estaria em jogo? O futuro? Não. A teimosia. O orgulho. A vaidade. A força de querer vencer a todo o custo. Pelo lado do Mário havia a força. Pelo da Manuela, a teimosia. Um retrato perfeito que viria a reforçar-se no futuro e que em nada seria benéfico para os dois..
Talvez houvesse de ambas as partes uma marcação de terreno. Um sinal indicador a dizer de que lado estava o poder.
E se ele tivesse querido perder?
O "jogo do mata", com uma final "épica" entre o jovem Mário e a sua namorada, podia ter tido um desfecho diferente noutro mundo, mais consentâneo com o seu dever cavalheiresco de que tanto se orgulhava. Aconteceu numa tarde muito quente de setembro de 1959, algures na serra de S. Mamede, nas imediações da quinta do Rosal. Mário e Manuela eram adversários. Alguém escolheu as equipas ou foram eles que decidiram não estar do mesmo lado do campo de batalha. Campo de batalha, sim, porque o jogo ia ser renhido.
O desejo forte de se superiorizarem um em relação ao outro, num frente a frente entre um "homem-leão" e uma "mulher-carneiro", teve como corolário o abandono sucessivo dos outros jogadores que talvez se tenham empenhado pouco com segundas intenções.
O "mata" era um jogo do ringue muito simples. Os dois grupos oponentes colocavam-se de um e doutro lado de uma linha previamente traçada e logicamente tinham que ser em igual número. O objetivo consistia em atirar o ringue para o outro lado da linha de modo a atingir um jogador da outra equipa. Este podia agarrar o ringue, mas morria e saía do jogo se não o segurasse bem, permitindo que caísse. Ou então desviava-se de forma a não ser tocado. O jogo acabava quando não havia mais jogadores de um dos lados do campo.
Mário possuía a a força consigo e a arte de saber esquivar-se à trajetória fatal do ringue, embora tivesse jogado pouco até então, uma vez que o jogo era mais próprio de raparigas. Quanto à Manuela era favorecida pela experiência num jogo específico das raparigas e também por alguma leveza e engenho. Assim, estavam reunidos os ingredientes para uma final emocionante.
Por acaso ele ganhou. Arriscou algumas vezes, talvez mais por exibicionismo, ao agarrar com um salto o ringue em rota de colisão com o seu corpo, quando podia esquivar-se com relativa facilidade. Ela tentou fazer o mesmo para não ficar atrás. Após luta assanhada, a certa altura a Manuela não conseguiu segurar o ringue que vinha rodando e deslocando-se veloz, após um arremesso com força inusitada. Facto consumado. Fim da refrega.
Ai dos vencidos!
Ficaram a olhar um para o outro após aquela luta que mais parecia de vida ou de morte. Ele, exibindo um ar triunfante, inchado como peru. Ela, muito séria, vencida mas não convencida como era apanágio de mulheres do signo Carneiro. Os jovens enamorados tinham-se defrontado pela primeira vez como acérrimos adversários.
Mas o que estaria em jogo? O futuro? Não. A teimosia. O orgulho. A vaidade. A força de querer vencer a todo o custo. Pelo lado do Mário havia a força. Pelo da Manuela, a teimosia. Um retrato perfeito que viria a reforçar-se no futuro e que em nada seria benéfico para os dois..
Talvez houvesse de ambas as partes uma marcação de terreno. Um sinal indicador a dizer de que lado estava o poder.
E se ele tivesse querido perder?
Naquele dia, não. Mas certamente não ganhou o jogo noutro universo paralelo e depois talvez tudo tenha sido diferente. Por exemplo, submeteu-se à sua vontade, para não falar da teimosia, e foi mais condescendente, ignorando a fatalidade de poder vir a ser pássaro numa gaiola dourada. Se ela gostava assim, que assim fosse. Psicologicamente talvez essa gota de água, que era a vitória contra Mário, fosse benéfica para ela. Não lhe custava nada aprender a perder quando era preciso e ceder perante o empenho do objeto amado. Afinal tinham jurado amor eterno e ele não queria perder esse amor tão desejado. Mas a cedência de Mário não chegava para ela vencer a doença que a tomaria repentinamente de assalto na flor da juventude. Talvez que nesse universo houvesse um relógio diferente e que o rio da sua vida fluísse mais lentamente.
Mário abriu os olhos. Sentia-se atordoado. Aquela história dos universos paralelos era interessante, mas muito escorregadia e inconsequente. Se eles existiam era lógico que os visse, o que na realidade nunca aconteceu. Até agora.
Devias ter perdido o jogo a favor da tua amada, Mário.
«Hoje dou-te razão. Fui estúpido. Só quis mostrar de que lado estava a força.»
E enganaste-te outra vez depois daquele dia em que ela se sentiu traída. Duas vezes foi demasiado.
«É passado. Nada posso fazer agora.»
Encolheu os ombros e esticou as pernas…
Foi um dia longo e muito agradável para Mário. Sentiu-se feliz porque teve sempre ao lado a sua Manuela. Apenas naquela pouco mais de meia hora do "jogo do mata" as coisas não correram como deviam ter corrido.
Mário venceu em toda a linha. Tinha o amor da Manuela e ganhara o jogo com um golpe certeiro do ringue. Com inusitada força o ringue partiu na direção da Manuela e esta optou por tentar segurá-lo. E o ringue fugiu-lhe das mãos. Devia ter-se desviado. mas ela era uma mulher do signo Carneiro.
Entretanto anoitecera. Agora desciam, de mãos dadas, pela berma da estrada que os ia conduzir à cidade. Certamente trocaram palavras de amor e apertaram mais as mãos. Ambos queriam que o tempo parasse. Não. Não houve sequer um beijo. A mãe da Manuela tinha uma confiança sem limites na filha e o Mário nem sequer esboçou uma tentativa. Aquele amor estava destinado a ser platónico até ao fim do fim.
Seria que a Manuela gostava muito do Mário?
Entrando no campo das metáforas, afinal o "jogo do mata" ainda ia a meio, sem ser agora verdadeiramente um jogo. Ringue para cá, ringue para lá. Pouco faltava para o efeito boomerang manifestar toda a sua força e poder irresistível de retorno.
E assim, veio outro setembro...
Meio da tarde. De novo em setembro. Ia acontecer na cidade de Portalegre do Alto Alentejo cercada...
Eu e o Justino descíamos a rua do Comércio, também chamada rua Direita, mas na verdade muito torta, como é habitual acontecer nas terras que têm uma rua com esse nome. Conversávamos sobre assuntos banais. Ao mesmo tempo que falava, ia olhando em frente, aparentemente concentrado nas pessoas que subiam a rua. Um velho hábito que tinha.
«Mais pareces uma ventoinha, Mário. Fazes-me confusão.»
«Não sei de que estás a falar...»
Tinha consciência de me sentir nervoso. Só não sabia porquê.
«As pessoas do signo Escorpião é que são assim. Antes de entrarem numa sala onde está muita gente, olham para todo o lado, desconfiados. Só depois é que se aventuram a entrar.»
Um comentário que não entendi. Sentia-me nervoso, apenas.
«Eu não estou desconfiado» desculpei-me. «É a minha forma de ser.»
Também não fazia sentido a última parte da resposta.
Foi então que a vi. Lembrei-me de imediato do encontro que tínhamos combinado para tentarmos reatar uma relação adormecida. Face ao que tinha acontecido com a Simone, estava já num outro jogo depois das cartas terem sido baralhadas e distribuídas. Era um novo tempo e ia magoar a Manuela mais uma vez. Tempo passageiro, mas real.
Como me esqueci totalmente do que tínhamos acordado?
Em vez de me penitenciar deitei as culpas para quem tinha as costas largas e não podia responder-me à letra ou então não queria. E assim lamentei a minha triste sorte. Deus não existia, ou fazia de conta, ou então fora substituído pelo deus menor. O verdadeiro Deus falava comigo e não me ia abandonar num momento tão decisivo como aquele.
Ou estava enganado?
Será que alguma vez Deus me ouviu ou falou comigo?
Desta vez a Manuela não tinha aquele olhar triste que tanto me impressionou. Sorria, feliz, e vinha ao meu encontro. Eu também me aproximei.
(«Talvez pressintas mal e eu estou convencida que pressentes mesmo mal. Para ti é metafísica, dizes. De acordo. E para mim?, pergunto. Demasiada subtilidade, talvez também metafísica; é por isso que eu digo: abstrais imenso e não deixas penetrar um pouco no teu espírito. Queres distinguir o real do fictício. E qual é o teu real? E qual é o teu fictício?»)
Pouco depois estávamos frente a frente, sorridentes e felizes de nos encontrarmos de novo. Mas foi só um momento. Foi só um momento feliz, seguido de outro horrível e eterno, como eterna será a minha sensação de culpa. Porque só então me lembrei do compromisso. Imperdoável ter-me esquecido. Um mês inteiro. Não conseguia encontrar explicação.
Se pudesse desaparecer por um buraco que não existia, ou se tivesse poderes para fazer desaparecer a Simone e o novo destino que veio atrás dela com o estranho envolvimento de agosto!
Passado aquele momento de sentimentos e emoções indescritíveis nada seria comparável no futuro.
Afinal quem fui no mês de agosto?
Se não tivesse sido seduzido pela Simone, naquele momento em que ficámos frente a frente, eu e a Manuela estaríamos envolvidos no processo de reconstrução dum futuro a que agora era impossível chegar porque a realidade era outra.
Os erros pagam-se caros. Ela era a mulher certa e agora namorava a mulher errada. Não percebi que o nosso destino ia ser desviado talvez para sempre por uma mulher que me enfeitiçou. E ali estava ela. E ali estava eu. Erro fatal pensar que tinha um compromisso com a Simone quando o outro, mais antigo, falava de feromonas cujo efeito duraria até à eternidade, se é que a eternidade existe para lá da morte física.
Falhei redondamente na análise que fiz. Era tudo muito simples. Bastava substituir uma variável por outra e seguir os passos normais de resolução de uma equação possível e determinada. Tinha também que levar em conta a hipótese da amarração.
Não me lembro das frases que trocámos. Apenas sei que a Manuela quis, à viva força, visitar a minha família e não tive coragem para dizer-lhe que namorava com a Simone. Mais um erro incrível que tentei remediar propondo que a visita fosse no dia seguinte, mas ela insistiu em ir nessa noite. Então engendrei um esquema porque havia um problema bastante complexo de resolver. A Simone ia ter comigo a casa dos meus tios porque íamos ao cinema. Se ela chegasse mais tarde e a Manuela mais cedo, talvez que não se encontrassem. Talvez.
Marquei então as horas. Não deu resultado porque uma chegou mais cedo e a outra mais tarde. Mesmo assim fui um fraco, pois tentei ainda esconder-lhe a verdade.
Ela chegou e mal houve tempo para conversarmos. Tinha jogado com o tempo e falhei. A outra já estava a bater à porta, o que considerei muito estranho. Julgo que alguém a avisou que nós íamos ao cinema.
Quem?
Talvez a minha irmã. Ou outro alguém. Talvez Deus.
A Manuela compreendeu logo o que estava a passar-se e, cumpridas as formalidades dos cumprimentos aos meus tios e à minha avó Maria, deu uma desculpa e saiu.
Foi assim que desapareceu da minha vida. Quanto à Simone não passou de um joguete do destino para me afastar da Manuela. Gostava de mim, mas eu não gostava dela. Tivemos um verão escaldante e pouco mais. Em fins de outubro acabou tudo. Lógico. A nossa relação foi só nuvem que passou. Mais nada senão fumo denso que me tapou o discernimento e serviu para me afastar de vez da Manuela. Nem o dinheiro da Simone constituiu um incentivo para fingir que a amava.
Não contactei mais tarde a Manuela porque o Leão é assim. Não gosta de perder nem a feijões. E, na incerteza, não arrisca. Assim, perdi-a de vez sem tentar a aproximação.
Depois veio em força o inverno do meu descontentamento. Um inverno com novas madrugadas a augurarem dias aparentemente azuis, mas com umas pinceladas fortes de cinzento escuro.
Ainda depois, a Manuela partiu para longe num barco que estava destinado a permanecer ancorado, à minha espera. Mas fez-se ao largo e seguiu na viagem que talvez tenha querido seguir. Cumpria-se o efeito boomerang que podia ter vindo sabe-se lá donde e porquê.
Mário abriu os olhos. Sentia-se atordoado. Aquela história dos universos paralelos era interessante, mas muito escorregadia e inconsequente. Se eles existiam era lógico que os visse, o que na realidade nunca aconteceu. Até agora.
Devias ter perdido o jogo a favor da tua amada, Mário.
«Hoje dou-te razão. Fui estúpido. Só quis mostrar de que lado estava a força.»
E enganaste-te outra vez depois daquele dia em que ela se sentiu traída. Duas vezes foi demasiado.
«É passado. Nada posso fazer agora.»
Encolheu os ombros e esticou as pernas…
Foi um dia longo e muito agradável para Mário. Sentiu-se feliz porque teve sempre ao lado a sua Manuela. Apenas naquela pouco mais de meia hora do "jogo do mata" as coisas não correram como deviam ter corrido.
Mário venceu em toda a linha. Tinha o amor da Manuela e ganhara o jogo com um golpe certeiro do ringue. Com inusitada força o ringue partiu na direção da Manuela e esta optou por tentar segurá-lo. E o ringue fugiu-lhe das mãos. Devia ter-se desviado. mas ela era uma mulher do signo Carneiro.
Entretanto anoitecera. Agora desciam, de mãos dadas, pela berma da estrada que os ia conduzir à cidade. Certamente trocaram palavras de amor e apertaram mais as mãos. Ambos queriam que o tempo parasse. Não. Não houve sequer um beijo. A mãe da Manuela tinha uma confiança sem limites na filha e o Mário nem sequer esboçou uma tentativa. Aquele amor estava destinado a ser platónico até ao fim do fim.
Seria que a Manuela gostava muito do Mário?
Entrando no campo das metáforas, afinal o "jogo do mata" ainda ia a meio, sem ser agora verdadeiramente um jogo. Ringue para cá, ringue para lá. Pouco faltava para o efeito boomerang manifestar toda a sua força e poder irresistível de retorno.
E assim, veio outro setembro...
Meio da tarde. De novo em setembro. Ia acontecer na cidade de Portalegre do Alto Alentejo cercada...
Eu e o Justino descíamos a rua do Comércio, também chamada rua Direita, mas na verdade muito torta, como é habitual acontecer nas terras que têm uma rua com esse nome. Conversávamos sobre assuntos banais. Ao mesmo tempo que falava, ia olhando em frente, aparentemente concentrado nas pessoas que subiam a rua. Um velho hábito que tinha.
«Mais pareces uma ventoinha, Mário. Fazes-me confusão.»
«Não sei de que estás a falar...»
Tinha consciência de me sentir nervoso. Só não sabia porquê.
«As pessoas do signo Escorpião é que são assim. Antes de entrarem numa sala onde está muita gente, olham para todo o lado, desconfiados. Só depois é que se aventuram a entrar.»
Um comentário que não entendi. Sentia-me nervoso, apenas.
«Eu não estou desconfiado» desculpei-me. «É a minha forma de ser.»
Também não fazia sentido a última parte da resposta.
Foi então que a vi. Lembrei-me de imediato do encontro que tínhamos combinado para tentarmos reatar uma relação adormecida. Face ao que tinha acontecido com a Simone, estava já num outro jogo depois das cartas terem sido baralhadas e distribuídas. Era um novo tempo e ia magoar a Manuela mais uma vez. Tempo passageiro, mas real.
Como me esqueci totalmente do que tínhamos acordado?
Em vez de me penitenciar deitei as culpas para quem tinha as costas largas e não podia responder-me à letra ou então não queria. E assim lamentei a minha triste sorte. Deus não existia, ou fazia de conta, ou então fora substituído pelo deus menor. O verdadeiro Deus falava comigo e não me ia abandonar num momento tão decisivo como aquele.
Ou estava enganado?
Será que alguma vez Deus me ouviu ou falou comigo?
Desta vez a Manuela não tinha aquele olhar triste que tanto me impressionou. Sorria, feliz, e vinha ao meu encontro. Eu também me aproximei.
(«Talvez pressintas mal e eu estou convencida que pressentes mesmo mal. Para ti é metafísica, dizes. De acordo. E para mim?, pergunto. Demasiada subtilidade, talvez também metafísica; é por isso que eu digo: abstrais imenso e não deixas penetrar um pouco no teu espírito. Queres distinguir o real do fictício. E qual é o teu real? E qual é o teu fictício?»)
Pouco depois estávamos frente a frente, sorridentes e felizes de nos encontrarmos de novo. Mas foi só um momento. Foi só um momento feliz, seguido de outro horrível e eterno, como eterna será a minha sensação de culpa. Porque só então me lembrei do compromisso. Imperdoável ter-me esquecido. Um mês inteiro. Não conseguia encontrar explicação.
Se pudesse desaparecer por um buraco que não existia, ou se tivesse poderes para fazer desaparecer a Simone e o novo destino que veio atrás dela com o estranho envolvimento de agosto!
Passado aquele momento de sentimentos e emoções indescritíveis nada seria comparável no futuro.
Afinal quem fui no mês de agosto?
Se não tivesse sido seduzido pela Simone, naquele momento em que ficámos frente a frente, eu e a Manuela estaríamos envolvidos no processo de reconstrução dum futuro a que agora era impossível chegar porque a realidade era outra.
Os erros pagam-se caros. Ela era a mulher certa e agora namorava a mulher errada. Não percebi que o nosso destino ia ser desviado talvez para sempre por uma mulher que me enfeitiçou. E ali estava ela. E ali estava eu. Erro fatal pensar que tinha um compromisso com a Simone quando o outro, mais antigo, falava de feromonas cujo efeito duraria até à eternidade, se é que a eternidade existe para lá da morte física.
Falhei redondamente na análise que fiz. Era tudo muito simples. Bastava substituir uma variável por outra e seguir os passos normais de resolução de uma equação possível e determinada. Tinha também que levar em conta a hipótese da amarração.
Não me lembro das frases que trocámos. Apenas sei que a Manuela quis, à viva força, visitar a minha família e não tive coragem para dizer-lhe que namorava com a Simone. Mais um erro incrível que tentei remediar propondo que a visita fosse no dia seguinte, mas ela insistiu em ir nessa noite. Então engendrei um esquema porque havia um problema bastante complexo de resolver. A Simone ia ter comigo a casa dos meus tios porque íamos ao cinema. Se ela chegasse mais tarde e a Manuela mais cedo, talvez que não se encontrassem. Talvez.
Marquei então as horas. Não deu resultado porque uma chegou mais cedo e a outra mais tarde. Mesmo assim fui um fraco, pois tentei ainda esconder-lhe a verdade.
Ela chegou e mal houve tempo para conversarmos. Tinha jogado com o tempo e falhei. A outra já estava a bater à porta, o que considerei muito estranho. Julgo que alguém a avisou que nós íamos ao cinema.
Quem?
Talvez a minha irmã. Ou outro alguém. Talvez Deus.
A Manuela compreendeu logo o que estava a passar-se e, cumpridas as formalidades dos cumprimentos aos meus tios e à minha avó Maria, deu uma desculpa e saiu.
Foi assim que desapareceu da minha vida. Quanto à Simone não passou de um joguete do destino para me afastar da Manuela. Gostava de mim, mas eu não gostava dela. Tivemos um verão escaldante e pouco mais. Em fins de outubro acabou tudo. Lógico. A nossa relação foi só nuvem que passou. Mais nada senão fumo denso que me tapou o discernimento e serviu para me afastar de vez da Manuela. Nem o dinheiro da Simone constituiu um incentivo para fingir que a amava.
Não contactei mais tarde a Manuela porque o Leão é assim. Não gosta de perder nem a feijões. E, na incerteza, não arrisca. Assim, perdi-a de vez sem tentar a aproximação.
Depois veio em força o inverno do meu descontentamento. Um inverno com novas madrugadas a augurarem dias aparentemente azuis, mas com umas pinceladas fortes de cinzento escuro.
Ainda depois, a Manuela partiu para longe num barco que estava destinado a permanecer ancorado, à minha espera. Mas fez-se ao largo e seguiu na viagem que talvez tenha querido seguir. Cumpria-se o efeito boomerang que podia ter vindo sabe-se lá donde e porquê.
[1] Morreu aos trinta e dois anos e Mário nunca conseguiu descobrir a verdadeira causa da sua morte.

.jpg)

Sem comentários:
Enviar um comentário