domingo, 21 de maio de 2023

Maré vazia

 

C

hegaram os dois ao mesmo tempo. Ele e ela. Os eternos. Aqueles que se juntam sempre. Ou nem sequer ficam juntos. Os eternos pediram café e o empregado trouxe o café, obviamente para mesas diferentes.
cavalheiro elegante, onde está?
No lugar de sempre. Nada mudou desde que se tornou o executivo dinâmico. Aprecia a vida burguesa, os exercícios de musculação, as mulheres bonitas (loiras ou morenas, tanto faz), as farras até horas mortas, o póquer. Sabe explorar o lado bom da vida e manobra-o dentro dos limites da privacidade. É um homem ativo. Tem os minutos controlados e não pode desperdiçar (é uma ideia) momentos com fins lucrativos em devaneios que não deixam recordações. Mas vive. Vive o bom e o mau. Assiste às reuniões importantes, onde pode ou não falar. Expõe as suas hipóteses. Impõe-se. Tem êxitos financeiros e também fracassos. Sobe muitas vezes as escadas do êxito para, mais tarde, as descer, cambaleante. Mas não quebra. Aprendeu a mentir como um bom político que se preza e assim sabe sempre como dar a volta ao texto.
Dirige uma empresa de sucesso, mas quando a noite vai alta, desce a calçada da solidão, acompanhado de estar só. Tem horas para tudo. Até para faltar a um compromisso. É verdade.

Quem não faltou uma, duas vezes, ou mais ao dever?
Sabe quanto vale e o que foi. Que partiu do nada e construiu a sua riqueza à custa da força de vontade e teimosia. Que dedicou dias inteiros aos meandros do negócio, dias debruçado sobre o evoluir do lucro, o crescimento de algo tão importante para si como a promessa de mais um ser humano nos torrões de Deus; dias indecisos, sombrios, em que se venceu a si próprio e deparou, desagradado, com o ente humilhante do seu interior. Sabe ter batalhado duramente e que caiu por terra, mais do que uma vez, vencido, entregue à voracidade dos predadores. Que foi calcado, desprezado e não sucumbiu, nunca foi traído pelos momentos de fraqueza. Saltou da vala que lhe abriram e voltou a lutar. Voltou ao palco da comédia, perfeitamente certo do seu papel, apto a receber dos outros os aplausos pela melhor interpretação. O esforço redundou numa estrada que percorreu e o fez conhecer o êxito. Bastou a estrada, a primeira visão da verdade que procurava. O resto não demorou. Com passadas precisas ergueu os edifícios à sua beira, construiu os jardins que disfarçaram o lado miserável dos projetos e criou também um mundo novo, à parte.
Ainda hoje continua na sua estrada, alternando com ascensões e quedas, rumo a um destino sem fim e que nunca será de todo o desejado. Aliás já notou e sente-se ferido.
Ferido?..., como, se foi tornado invulnerável nos mil e um golpes que lhe vibraram e todos com a resposta adequada?
Forçosamente queria afastar a ideia. Tinha um ponto fraco. No fundo era como todos, estando no direito de esconder, até de si próprio, a origem de uma lança que o torturava. Aliás todos os sonhadores como ele tinham um ponto fraco: a inconstância diária, ou a negação à continuidade. Por isso tudo e algo mais, nunca completariam a sua obra-prima. Faltava sempre algo; afinal algo que é finalidade e que não seria finalidade se fosse atingido.

Tinha varrido todo o café com um olhar rápido e agudo. Algumas das pessoas presentes, que pouco ou nada lhe diziam, aproveitaram o momento para o cumprimentarem. Inclinou ligeiramente a cabeça, sem expressão, e não viu qualquer mensagem num único olhar. Só rotina,  a simples necessidade de cumprimentarem o cavalheiro elegante que vestia um vulgar fato cinzento.
Sem saber o que fazer puxou dum cigarro e acendeu-o, paulatinamente. Depois, largando repetidas fumaças, criou figuras complexas que se desvaneceram, aos poucos, no teto.
«Estava a pensar nisso. Mas tudo o que fizeste deixou marcas.»
Tudo deixa marcas. O que é bom e o que é mau.
E valerá a pena deixar marcas?
«Vale. E vale na medida em que hoje és alguém e fizeste-te a ti próprio. Sabes o que eras? Muito pouco. E quem aceitaria muito pouco de ti? Mas surgiu a transformação: multiplicaste a probabilidade boa por um coeficiente elevado. Agora é a altura de seres apreciado devidamente.»
Sobressaltou-se.
Quem falava com ele?

Mesmo que fosse rico espiritualmente, por exemplo um poeta, gostariam mais do poeta do que dele. Era essa a tragédia.
«Seria bom para ti esqueceres o passado que quase te devorou. Sabes muito bem que duas paralelas não podem afastar-se, mas também não se encontram.»
Não falou desse passado, mas, se fossem por ali, as paralelas podiam estar juntas mas mantinham sempre a identidade própria...

«Tens razão. Juntas e distantes.»
Fixou a atenção na mulher que ocupava uma mesa em frente. Notou-lhe a intensidade dos olhos claros. Não indagou o motivo porque eles o queimavam.
Lutou sempre só. Atingiu o sucesso mas trouxe à luz o desencantamento pelo único fadário ajustável não se ter concretizado. Desobstruiu a via impraticável e assentou nela os alicerces daquilo que mais desejava no mundo materialista. Aumentou a escala o mais possível e criou música suprema, mas nunca viu convergir no seu foco todas aquelas multidões galvanizadas. Se um dia perdesse o conforto do seu mundo dos cifrões, nada mais ia restar porque agora só tinha sonhos materialistas. Os outros sonhos nasciam e morriam. Todos os dias. Sempre iguais.

«Queres dizer que sempre estiveste só.»
Tive uma janela ampla, bem sei. Quando existe um amor verdadeiro temos sempre uma hipótese.
Deu conta que já falava com a voz. A sua companheira das horas más.
«Essa hipótese existiu.»
Sim. Mas ela fez-me um ultimato e, sabes bem, nunca gostei de ser pressionado. Bem sei que fui estúpido. O orgulho não a trouxe de volta. Depois, cometi outro erro grave. Julguei que era fácil esquecê-la e não foi bem assim. Inconscientemente, deixei-me arrastar pela força livre da torrente, embalado pelas aspirações materialistas. A teia amorosa que me envolvia escondeu-se nos meandros do subconsciente. Hoje tenho tudo, ou quase tudo. Mas perdi-a, percebes?
«Deixa o passado em paz. Mulheres interessantes não te faltam. Por exemplo, a dona daqueles olhos claros que não perdes de vista. É fácil. Levanta-te e vai ter com ela. Se quiseres tens ali o teu próximo destino.»
O outro destino ficou longe. Nunca mais a verei.
«Esquece. Não sejas parvo. Já reparaste que ela ainda não desviou o olhar?»
A obsessão continua viva. Quero de volta o que deitei fora.

«Assim não vais longe. O que deitaste fora já outro agarrou, percebes?
Agora estás noutro tempo.»
Fazes-me rir. Lembras aquela frase cretina: a vida não para. É certo, a vida não para. Quando corre, só um caso fatal a detém. Mas quando a verdadeira finalidade morre e dá lugar a novos cenários que se limitam a ocupar um espaço tornado oco?
Ela era a meta a atingir e tu deste-me em troca dinheiro e banalidades. Negativismo de outra mulher que me usou e seguiu os caminhos que mais lhe convinham. Preferiu o chá com as amigas. A canasta e o boomerang. Viver os dias sem um programa estabelecido, na ânsia da incógnita, da surpresa. Falar de fulana e sicrana. Fulana foi bafejada pela sorte, vejam: casou, tem carro, tem tudo... até tem amante.
E sicrana?

Bom, é melhor não falarmos dela. Coitada da pequena! Casou com um estranho que não tem onde cair morto. Mas, caso curioso, dizem que é feliz!
E no meio disto tudo o que é que faço?

Mergulho no mundo dos negócios. Quanto ao resto, só sei criar à minha volta situações que levam a paixões sem freio, esperanças vãs, desencantos. Tudo ficou controlado e previsto por ti até ao último pormenor. Se o quiseres: calculado habilmente. A outra verdade ficou por terra.
O destino à minha medida, onde está?
«Fui o culpado, dizes tu. Mas quem sou para me acusares?»
Quem és tu…? Boa pergunta para quem fala sozinho. Esquece que esta situação é virtual.
«Mas a mulher única ainda existe!»
Balelas. Deitei-a fora...
«Procura outra. Pode não estar longe!»
Aqueles olhos claros?
Terá o narrador suspendido o fluir ininterrupto no visor panorâmico onde vai construindo a trama. Tê-lo-á parado propositadamente. Quem sabe até se com um fim, se pretendendo transformar as palavras em algo real que substitua as ilusões perdidas.
«Não, ela nunca será destruída. Existe algures. Queres mesmo encontrá-la? Se quiseres, tens que pagar a fatura. É o preço.»
Estou farto de pagar faturas!
«Vais continuar a viver esta vida e viverás outra também, quando encontrares a porta que lhe dá acesso. E quando acontecer, a tua vida vai mudar.»
De que porta estás a falar?

«Não te preocupes...»

Quando lhe disseram que horas eram ficou admirado. O tempo passou a correr.
Anoiteceu.
Levantou-se da mesa e deu algumas passadas de um lado para o outro. Depois deteve-se junto da janela que dava para a rua.
«Jogo um ás; se não tiveres, tiras duas... Esplêndido, tiraste mesmo!»
«Que infortúnio! Vou somar mais pontos.»
As vozes femininas que ouvia vinham da mesa em frente. As senhoras entretinham-se com um jogo inofensivo quando o ponto não custa caro: o boomerang. E a sorte do jogo era como esse objeto que os australianos usam, que tão depressa está nas mãos do atirador como em qualquer outra parte. Mas existiam jogos mais emocionantes e perigosos, alguns de azar puro, outros cujo êxito dependia da perícia e sorte do jogador. Devia-se também tomar em conta a frieza de quem sabia arriscar, de modo que não se denunciasse em qualquer reação. Um ligeiro indício era o bastante para deitar por terra uma jogada que se afigurava boa. Era preciso ter sabedoria e arte para enganar o adversário, variando constantemente de tática.
«Faço hipótese; como não?»
O adversário convencia-se que estava numa boa ocasião para fazer bluff.
«Vou com cinquenta.»
«Dobro.»
«Isso é póquer.»

Voltou-se, algo admirado. Na sua frente estava a Cristina. Aquele hábito que tinha de falar alto levava, por vezes, a consequências desagradáveis.
«Como?» perguntou.

«Nunca me disseste que jogavas póquer.»
Fitou-a, mal-humorado.
Porque havia de revelar segredos a uma estranha que vivia consigo?
O facto de ter ouvido a frase passava a ser considerado como um sinal muito sério. Um escaninho do seu interior lançava um aviso que não devia descurar: cuidado!
«Hoje estás esquisito.»
«Porquê?»
«Não sei, falas alto; não é costume.»

Esteve para lhe perguntar:
«E o que é costume?»
Encolheu os ombros. A sua pergunta só implicaria discussão e ele odiava discussões. Preferia dar razão, sem chegar a reagir. Havia muitas formas de terminar com uma discussão. Contudo, tragar o veneno e conservá-lo, sem uma válvula de segurança, não era nada aconselhável.
«Bom, quando vamos embora?»

«Já?» admirou-se.
Sentiu o sangue subir-lhe à cabeça. Conteve-se. Afinal, era justo o desejo da Cristina ficar; como o de ele.
«Vou continuar por aqui. Se quiseres, vai andando.»
Ele foi. Ela ficou. Chamava-a o boomerang. As amigas. E quando não eram ambos, tratava-se do chá, ou das festas de caridade. E quando nada disso havia, ele não estava. Nunca estava. Tinha serão. Serão no escritório.
«Deste-me uma carta a menos, Cristina.»

«Desculpa, filha.»
Um nome doce, o seu. Gostou dele quando a mãe o disse, um dia, ao telefone:
«Não, a Cristina não está.»

«Que pena! Sabe, minha senhora, tinha combinado estar com ela às onze. E é quase meio-dia.»
A mãe:
«Pois é... é pena. A Cristina não está.»
Ou estava?
Uma birra da menina, talvez. Ou então, problemas de dores menstruais. Gases. Fosse lá o que fosse. Não era bruxo. Se fosse bruxo nunca tinha embarcado naquela viagem absurda.
Deu consigo a sorrir com amargura. A Cristina. A mulher a quem não contava os sonhos com outras mulheres, ou a objetividade de outros serões que se prolongavam pela noite fora.
«Vou a jogo.»
«Quinhentos.»
Porque foi que gostou sempre das lutas difíceis?

Um dia aconteceu. A Cristina foi convincente. Hipnotizou-o. Saiu do seu mundo para entrar no dela. Canasta, chá, tertúlia. Nenhuma ponta onde se pegar. Achou mesquinho, vazio de sentido, sem motivação. Porque odiava toda essa vida, porque odiou sempre os affaires das meninas bem, mascaradas, que diziam, frivolamente, talvez que sim talvez que não. Odiou os seus penteados cheios por vaporizações de lacas e outros artifícios. Odiou as mulheres que achavam tudo horripilante. Odiou as meninas, como a Cristina, que se transformaram em mulheres e que viveram sempre afastadas dos parâmetros mínimos. Agora tinha o troco devido. Os dias eram sempre monótonos. Cinzentos. A vontade de desaparecer ganhava força.
Noutros tempos debruçava-se apaixonadamente sobre a dissecação da existência, chegando a várias conclusões lógicas prontas a serem incorporadas na voz universal. Agora nada lhe interessava. O próprio trabalho tinha o significado de profanação. Bastava aplicar o chamado vil metal em transações e aguardar os resultados na cadeira giratória, fingindo que fazia contas.
A Cristina também vivia no seu mundo. Aliás, nunca o deixou. E ele era um pária. Um deslocado. Com o ar contemplativo do bom samaritano, deixava-a viver. Tinha onde afogar os meus anseios.
«Vou no escuro...»
«A mesa chora...»
Voltou a frequentar os meios mal iluminados, os recantos dos whiskys duplos que entorpeciam. Quando precisava, apaixonava-se pela Lola, uma mulher sensual que tinha tristeza nos olhos e abrigo no corpo tépido. Viveria eternamente com ela se não fosse mulher só para alimentar os seus momentos negros.

O café ficou quase vazio. A mulher dos olhos claros está inquieta. Ele não se cansou ainda de fazer espirais com as sucessivas fumaças que vai deixando pelo ar. Também deu conta de que estava ficando só (há muito). Consultou o relógio. Era quase meia-noite. Àquela hora onde estava normalmente?
Não interessava.
Levantou-se e o seu olhar cruzou-se com a mulher dos olhos claros.
«Já reparaste?»
Em quê?
«É talvez a oportunidade de que te falei.»
E que faço?
«Fala com ela. Repara que também está só.»
Achas que resulta?
«Logo vês.»
cavalheiro elegante compôs, com cuidado, o nó da gravata e preparou-se para a abordagem. Aproximou-se.
«Ainda aí?»
«Quando pretendemos algo...»
Fixou-a dum modo estranho.
«Mas quem é você?»
Uma pergunta vulgar. Conhecia novas caras todos os dias. Muitas passavam ao lado. Vidas que não atingiram um só objetivo. Vidas que desempenharam o papel principal na cama sem ter acontecido poesia.
E nenhuma foi marcante!
Resposta que sabia de cor.
«Alguém.»
«Chega-me. Também sou alguém.»

«É quanto basta, a existência. O resto já não me interessa.»
«Então, vamos. Também me interessa a existência.»
O homem do fato cinzento deu passagem à dona dos olhos claros. Lá fora, olharam-se, ainda algo hesitantes. A lua sorriu-lhes com malícia e  sentiram-se mais à-vontade. Depois caminharam, lado a lado, até desaparecem por uma das muitas portas da noite.
«Desculpa, enganei-me. Esta também não te realiza. Só é diferente porque tem olhos claros.»
Deixa-me, já ninguém me realiza!
«Se é assim, então nada feito, companheiro. Depois de saciares o teu apetite erótico, volta para a Cristina. Olha, diz-lhe que acabaram os serões. Por enquanto. Tudo depende dela...»
Sabes quanto tempo já se passou depois de ter deixado a Cristina?
«Então...?»
Estou à espera que a porta certa se abra…

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