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A meio da manhã, desloquei-me extraordinariamente a uma cidade a norte, distanciada de uma meia dezena de quilómetros.
Neste momento estou sentado numa esplanada e tenho por companhia uma chávena de café sem o mesmo, a ausência de um copo meio de água, um caderno pautado e um lápis afiado, pronto a desbravar o terreno. Motivado pelos sinais da crise económica e financeira que se avizinha almocei baratinho. Arroz de couves e três postas de pescada frita, acompanhados de uma salada de alface e tomate que aconcheguei com uma taça de vinho tinto. Para rematar, um pudim de ovos que me habituei desde há muito tempo a chamar pudim flan. Quanto ao café, guardei para o beber na esplanada onde me encontro neste momento. O ambiente que me rodeia não é dos melhores. Não vale sequer meia dúzia de palavras. Em frente há uma rua de sentido único onde o movimento dos carros é lento, tão lento que alguns automobilistas desesperam e apitam como se aquele momento de desabafo fosse o remédio santo para o desanuviamento do trânsito. E isso incomoda, quero acreditar. Os comentários dos utilizadores da esplanada vão nesse sentido. Mas não desisto de escrever. Ganhei calo quando, em tempos recuados, estudava à noite no há muito extinto café Chiado. Lembro-me nomeadamente das complexas fórmulas de estrutura da cadeira de Química Inorgânica gerida pela omnipresente na altura, professora Branca, e das sebentas que preenchi com frases científicas tiradas das folhas só por uma questão de melhorar a concentração quando a noite já ia alta e o cansaço era notório. De vez em quando, a funcionar como interlúdio, já que as emissões de televisão ainda não tinham sido iniciadas, o olhar fixava-se num indivíduo sentado numa mesa próxima que subitamente ria-se como que para dentro de si e também subitamente se calava, ficando muito sério a olhar vagamente em frente como se nada tivesse acontecido. Isso era bom para mim. De imediato mergulhava nas folhas e entrava noutro mundo bem mais realista e produtivo. Estava nesse tempo distante a preparar o meu futuro.
Esqueço por momentos as folhas onde escrevo e a vista alonga-se para a placa em frente que tem inscrito o nome da rua. Alves Redol.
Não interessa explicar o motivo por que me desloquei para norte, nem, tão pouco, o que me levou a procurar esta esplanada. Volto atrás na última parte. Posso explicar que estou à espera de alguém e, enquanto espero, aproveito para escrever sobre um caso passado há dias em Lisboa com um casal amigo, mais precisamente no centro comercial Vasco da Gama. Tal como me foi contado, acrescento. Quase que juro.
Foi uma coisa que mexeu muito com os dois no fim de tarde, especialmente com a Vera, mais sensível que o companheiro no momento em que sofreram o embate que vou contar daqui a poucas linhas.
Acontece que o destino de ambos era o casino, mas passaram antes pelo centro comercial onde ela fez uma compra. Uns sapatos pelos quais se enamorou ao primeiro olhar e que lhe custaram os olhos da cara.
«Agora vamos comer alguma coisa.»
«São quase seis e meia. Tens razão. É boa hora, Vera.»
Ele comeu favas guisadas com entrecosto de porco preto e também chouriço e ela um tornedó de porco com batatas fritas. As favas estavam boas, mas o tornedó nem por isso. A Vera achou a carne rija e deu a provar ao companheiro que admitiu que esta fora passada em excesso. Daí, segundo ele, a sensação de estar rija. Como resultado, mal pegou na carne e nas batatas e limitou-se a comer um pouco do entrecosto que ele deitou para o seu prato.
A certa altura a atenção do Ricardo centrou-se num indivíduo vestido com um casaco castanho-amarelado de bombazina em bom estado que olhava fixamente para a mesa onde estavam. Não havia qualquer objeto importante exposto sobre a mesa, como tinha acontecido uma vez em que alguém, sem que os dois dessem por isso, roubara, num momento único de magia, o telemóvel que a Vera comprara semanas antes por mais de quatrocentos euros.
Então o que lhe chamou a atenção do desconhecido?
Ricardo observou-o melhor. Não devia ter mais que quarenta anos. Tinha cabelo castanho-alourado, frisado e usava uma barba curta, razoavelmente tratada. Os olhos sobressaíam nitidamente da parte restante do rosto que não conseguiu fixar. Tinham um tom castanho-esverdeado e estavam muito salientes.
«Posso levar o prato?» pediu à Vera.
Então era isso. O prato. Estava desvendado o mistério do seu olhar insistente para a mesa. O homem tinha fome.
Apanhada de surpresa, demorou a responder.
«Claro... claro que sim!»
Ato contínuo, o homem com olhos de peixe levantou o prato e a lata preta de Coca-Cola zero, agradeceu em voz muito baixa e virou costas à mesa, indo sentar-se numa mais afastada.
Ficaram a olhar um para o outro.
«Essa agora!» exclamou o Ricardo.
«Nunca me aconteceu uma coisa destas...» disse ela, de olhos arregalados.
«Há muita fome por aí, Vera. E eu a desconfiar do homem... Viste bem os olhos dele?»
«Que tinham os olhos...?»
«São olhos de peixe. Deve sofrer de hipertiroidismo.»
Pobreza envergonhada, pensou, ao mesmo tempo que levava automaticamente as duas mãos aos bolsos do casaco castanho.
O silêncio é rei e senhor. A Vera ainda não caiu em si e o companheiro parece flutuar noutro mundo.
Pouco depois irão falar da crise. Quanto ao chefe, este, cada vez mais otimista a sobressair do pessimismo geral, continua inexplicavelmente a subir de popularidade nas sondagens e tratamento de dados que vão sendo feitos pelas empresas da especialidade. Tem mais qualidades de encantamento que um encantador de serpentes. Não é lógico, mas é verdade. Outra coisa: se fosse jogador de futebol era alcunhado de especialista dos especialistas em rasteiras. Com ele ninguém estava seguro.
O desemprego e o défice por enquanto estão assim assim. Mas a inflação vai alta e continua a subir de forma incontrolável e, segundo o encantador, a culpa é só da crise mundial. O país foi arrastado pelas ondas sucessivas da maré negra que começou por soprar do lado leste. Não há nada mais terrível do que a guerra. Tirando esta, tudo está controlado. Isto segundo ele. Não. Não vai subir os impostos. Nem pensar em anular o subsídio de Natal. Antes pelo contrário. Até já deu meia pensão de avanço aos coitadinhos dos reformados. Ou foi uma forma de pagar menos do que devia no futuro próximo? Bom, no que diz respeito a este caso bicudo está tudo esclarecido. Preto no preto e mais não digo mais porque já foi tudo dito (e esclarecido para quem quis destapar os ouvidos). Tudo ou quase tudo o que havia a dizer.
Pobre do meu Portugal! Para onde vais, triste de ti?
Depois de procurar nos bolsos do casaco durante quase um tempo infinito, o Ricardo puxa da carteira e retira uma nota de cinco euros que dobra religiosamente em quatro.
«Bem que parecia que tinha esta nota. Esteve no bolso e depois guardei-a.»
«O que foi?» perguntou a companheira.
Não responde e limita-se a olhar em frente, para a mesa onde pensa que está sentado o homem com olhos de peixe.
«Não pode estar a acontecer!» admite a evidência, desalentado.
Está lá a mesa mas já não está o homem.
Levanta-se. Sente-se observado. Uma mulher sentada numa mesa ao lado sorri para ele. Não é que pensa. O seu sorriso nada tem a ver com o sorriso da sereia. Provavelmente assistiu à cena e o olhar dela mostra pena por o "benemérito" ter fracassado na entrega da nota de cinco euros.
«Vamos andando?» pergunta à companheira.
«Ainda estou toda arrepiada por causa daquele homem!»
«E eu chateado...»
«Porquê?»
«Queria dar cinco euros ao homem e já não o vejo.»
«Paciência» diz ela. «Vamos comer um gelado? Agora pago eu.»
«Fiquei enfartado com as favas. Come tu que eu provo um pouco.»

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