A Figueira foi o meu novo destino. Quem estava colocado em Coimbra foi para a Figueira e os da Figueira malharam com os costados em Elvas, em pleno Alentejo profundo.
Dei conta de um certo rancor nos olhares do Valdo e do Valeriano e julguei adivinhar logo onde estava a origem dos erros na colocação dos aspirantes a oficiais milicianos.
O meu quartel era um Centro de Adaptação de viaturas. Passei a conduzir o Jipe Willis, o Jipão, a GMC, a Morris Tractor, o camião Barreiros e o inesquecível Unimog diesel. A este último veículo chamávamos o Gafanhoto pela luta que dava por ser muito instável, em virtude da desproporção altura-largura. Era também uma espécie de comandante de pelotão auto, juntamente com o Almada, o meu colega de quarto. Curiosamente também ocupara o quarto do quartel do Porto, juntamente com o Pincariço, o Valeriano e mais dois de cujos nomes não me recordo. Depois havia os monitores, soldados já feitos e os cabos, que davam instrução aos recrutas em fase de adaptação a outro tipo de viaturas, ligeiras e pesadas. Confesso que foi um trabalho que me deu grande gozo, não só na tarefa de fiscalizar os circuitos das escolas de condução, mas também na condução de viaturas pesadas, tais como o Barreiros e os Unimog. Falando ainda da estrutura, acima de mim e do meu colega de quarto, o Almada, estava o Morais, um alferes bacano que era adjunto do comandante de Bateria, um capitão miliciano carismático e controverso que tratava geralmente os soldados por "ó meu paneleiro", embora fosse o primeiro a correr em defesa deles quando fosse caso disso.Dei conta de um certo rancor nos olhares do Valdo e do Valeriano e julguei adivinhar logo onde estava a origem dos erros na colocação dos aspirantes a oficiais milicianos.
Aventurei-me pela cidade logo no primeiro dia, a seguir ao "toque à ordem" e tive a sorte de encontrar um refúgio. Era um snack localizado na marginal, donde se avistava o extenso areal e o mar. Fiquei tão fascinado com o local que o tempo passou na esplanada sem dar por ele. O pôr do sol foi um espectáculo magnífico. Não esperava, verdade se diga.
Entretanto arrefeceu e refugiei-me no interior do snack, jantando numa mesa junto à vidraça que ligava com o exterior a todo o comprimento. O horizonte estava vermelho e anunciava que o crepúsculo tinha chegado.
À esquerda do balcão, rodeado de bancos altos giratórios, havia uma máquina de discos. Não resisti à tentação de pôr uma moeda e escolher “I’m sorry”, a minha canção preferida. A Brenda Lee, com a sua voz doce, trazia-me recordações de tempos perdidos e tragados pelo deus menor.
Comi um bitoque com um ovo a cavalo e acompanhei com Grão Vasco tinto. A sobremesa foi arroz doce. Para rematar a refeição, bebi um café.
Fiquei ainda mais algum tempo a saborear o silêncio da noite naquele snack quase às escuras. Voltaria lá muitas vezes
Foi tão grande a fascinação por esse meio envolvente que nessa mesma noite comecei a imaginar uma novela que tinha como personagem principal um desencantado da vida que também se chamava Mário.
Nasci nesse mesmo fim de tarde nos "Os longos dias azuis" e o meu amigo Ildefonso passou para o papel esta passagem da minha vida, tal como fizera a outras e viria a fazer no futuro, duma forma tão real que, por vezes, as nossas identidades se fundiam.
O janeiro foi excepcionalmente ameno e azul a tal ponto que passava as tardes na esplanada, logo a seguir ao toque à ordem. Sentia-me bem naquele recanto acolhedor. Livre para deixar soltar a imaginação.
Foi assim que “Os longos dias azuis” começaram a tomar forma...
As chávenas repousam, lado a lado, vazias.
Patrícia, voltada para a rua, contempla as nuvens negras que parecem formar uma linha de continuidade com o mar cinzento. Apenas o levantar de uma ou outra onda quebra a imagem formada. Uma gaivota desce, em voo picado, até à ondulação e, por momentos, contacta a superfície espumosa, procurando o peixe aventureiro que subiu demasiado. Depois, saciado o apetite, volta a ascender no ar carregado de ozono. Patrícia segue a evolução da ave e boceja. À volta estão as outras mesas, brilhantes como antracite; de frente, o balcão circular que tem bancos esguios por todo o percurso; do lado direito e mais ao fundo, a máquina de discos, silenciosa. De resto o snack está mergulhado num torpor de uma tarde abafada de Maio, tão característica de F... como, também, indolente. Os dias quentes ainda não chegaram e domina um estado intermédio, que não tem pretensão de inclinar para um qualquer dos extremos.
O companheiro de Patrícia agita paulatinamente o copo meio de água, sem que esta ultrapasse a linha que delimita o bordo superior. É mais a atitude de ausência do que a monotonia de um puzzle. Ela deixou de seguir a gaivota e voltou-se para o companheiro. Do voo premeditado de uma ave e do movimento de rotação de partículas de água, dentro de um espaço que as confinou, ficou só a reminiscência de tempo inútil que se consome como areia fina que passa no crivo de malhas constantes.
Homem e mulher deixaram as ocupações para se olharem com algum interesse. Era um absurdo pensar que estavam ocasionalmente sentados na mesma mesa. Mas nas suas expressões havia algo de estranho. Os olhos dela, claros, contrastavam com o rosto moreno, por natureza. No Inverno e no Verão todo o seu corpo era moreno. O mesmo não se podia dizer dos seus olhos, que passavam por diversas tonalidades claras, sendo cinzentos, azuis, verdes. Ele igualava-se a si próprio: o mesmo rosto, a aparência pendular de homem pensativo, a pouca verbosidade de todos os dias. Patrícia fora comunicativa, entusiástica. Mas o tempo e a presença dele encarregaram-se de esfumar, lentamente, aquela vitalidade preciosa que a tornava sempre jovem. De repente, deu consigo triste, reservada. Os primeiros sintomas tinham surgido no começo do ano. A erva ruim germinara da semente do contágio e proliferara com rapidez. Nada havia a fazer. Sentia-se vazia. Ausente. Talvez por isso, olhavam-se como se fosse a primeira vez que se encontravam, tentando descobrir no ar as feromonas que já não existiam.
O tempo vai correndo devagar, sem alterações sensíveis no campo que depende dele. Também, devagar, as nuvens vão tomando a configuração de monstros idealizados por génios maquiavélicos. Ora são figuras horrendas de hidras de múltiplas cabeças, ora tentáculos viscosos que tudo parecem agarrar.
«As tardes são mais longas...»
Há muito que o Morais tentava convencer-me a sair da messe de oficiais e a tomar as refeições numa pensão. Em parte concordava com ele. Só se comia bem na época balnear, quando os militares, no ativo ou não, e as suas respetivas famílias, tomavam as refeições principais na messe. Eram os chamados para-quedistas, que caíam de repente na messe e atrasavam muito o serviço. Em contrapartida, havia dois pratos ao almoço e a qualidade melhorava a olhos vistos. Depois havia outro contratempo que não se podia evitar. Entrava o comandante e logo todo o mundo se levantava. A seguir vinha a mulher do comandante. Nova agitação na sala. Depois a filha, trintona, sempre de olho nos aspirantes novos. Toca a levantar outra vez. O bacalhau assado no forno esfriava e perdia a graça.
Que olhares mais inflamados, os dela!
«Não me levarás comigo!» admiti logo, convicto.
Claro que não ia ter uma ligação com a charmosa mas envelhecida filha do comandante para um jovem como eu. Os sorrisos eram provocantes até ao limite e precisava de defender-me bem. Não era isso que me preocupava. O que pretendia era deixar de frequentar a messe. Talvez me saísse um pouco mais caro e o dinheiro fazia-me falta para algumas coisas.
Para alcançar a fama a contar histórias, algumas delas verdadeiras?
Se um dia viesse a acontecer era com o António. Ninguém iria recordar o protagonista.
Novo acesso de tosse. Tudo bem.
Um amigo tinha-me pedido para ver o que se passava com um livro de poemas que mandara imprimir numa tipografia da cidade. Acedi. O dono era simpático e tive a ideia de lhe perguntar se queria imprimir um livro de contos. Claro que estava a tentar satisfazer um pedido do António.
«Não vejo qualquer inconveniente, meu bom amigo. Até tenho muito prazer.»
«Muito obrigado pela sua atenção, senhor Cardoso. Só queria pedir-lhe mais um favor...»
«Já sei o que me vai pedir. Respondo que sim. Pode pagar-me a prestações. Sei das dificuldades que vocês, jovens, têm.»
«O senhor caiu do céu.»
«Não me faça cair que parto-me todo. Tenha pena da minha idade, senhor aspirante Mário!» ironizou.
Foi tudo muito simples, como já contei. O bom do homem disse que sim e assim nasceu o livro por alturas de abril.
Foram dias que nunca mais esquecerei. A entrega do manuscrito do António. A composição tradicional. O entusiasmo com a revisão de provas. A impressão feita em folhas grandes que depois se dobravam, formando pequenos fascículos. A capa. O livro feito.
O que mais me impressionou na primeira fase foram os conhecimentos da língua portuguesa do operário compositor.
«Olhe, senhor Mário. Tem escrita a palavra "núvens". Não leva acento.»
«Tem a certeza?»
«Absoluta.»
«Acredito. Agradeço que corrija e também todo o texto. E não precisa de consultar-me. A sua experiência vale ouro.»
Na maior parte dos dias desse época troquei o snack pela tipografia do senhor Cardoso. Até que o "meu livro" nasceu…
E o que veio a seguir?
Tudo começou em mais um dia azul de agosto. Eu e o Morais tínhamos combinado almoçar na praia.
Comprámos um polvo na praça e preparámos o pitéu. O polvo foi cozido na casa onde ele estava hospedado.
«Devias alugar um quarto numa casa como esta. Não pago muito mais e tenho serventia de cozinha. Além disso, a velhota que me alugou o quarto deita-se muito cedo e calmamente posso trazer para cá uma garota de ocasião. Ela tem o sono muito pesado. Toma sempre um comprido para dormir.»Comprámos um polvo na praça e preparámos o pitéu. O polvo foi cozido na casa onde ele estava hospedado.
«E depois?»
«Depois, o quê?»
«Os vizinhos e a velha? Deve levantar-se cedo, como todas as velhas.»
«Não há vizinhos.»
Era verdade. A casa tinha um só piso. Depois, se a garota saísse de madrugada não havia qualquer problema…
«Claro que não tenho interesse que elas durmam cá. Saem sempre a meio da noite e não há mais problemas.»
«Elas? Não é a tua namorada?»
«Isso é outra história. A Francisca é um caso complicado e tenho que ter muita paciência para conseguir levar a água ao meu moinho. Olha, destapa a tampa do tacho que está a deitar água por fora. Mais um quarto de hora e o polvo está cozido.»
A namorada era um caso complicado?
Provavelmente jogava à defesa e ele queria marcar golos.
Um quarto de hora volvido o polvo estava cozido.
«Queres ver como se faz, Mário?»
O garfo entrava com facilidade nos tentáculos do polvo.
Mandava a tradição juntar ao polvo uma cebola. Parece que dava a cor avermelhada que o tornava agradável à vista. Ou talvez fosse sinal de alarme para o polvo não ser cozido de mais e ficar seco. Culinária não era a minha especialidade na altura.
Fiquei a pensar no Morais.
A namorada era a sério ou não passava de um simples passatempo de verão?
«Que horas são, Mário?»
«Meio dia e um quarto.»
«Boa hora para sairmos. Era bom não demorarmos muito tempo. O problema não reside no polvo, mas nas batatas. Ficam intragáveis se requentarem.»
«Tens razão. Só falta fazermos uma coisa antes de irmos para a praia. Comprarmos uma garrafa de tinto. Do carrascão. É um vinho mais barato e sei de um sítio onde é mesmo bom. Fica no caminho. Vamos nisso, Morais?
«Um almoço destes sem bom vinho não é nada.»
«Ainda bem que concordas.»
Alugámos uma barraca na praia para nos resguardarmos dos efeitos do sol. Quanto ao polvo estava saboroso e eu tinha razão em relação ao vinho. Não era nada mau. Um carrascão com bouquet.
«Onde descobriste esta especialidade, Mário?»
«Ora, um dia apeteceu-me comer uma sande de chouriço e beber um copo e entrei ao calhas na taberna onde há pouco comprámos o vinho. Gostei do vinho e é tudo.»
«Sandes de chouriço?»
«Sande porque está no singular.»
«Está-se sempre a aprender.»
O Morais primava pela boa disposição e não podia ver um “rabo de saias”. Tinha sempre anedotas atualizadas e sabia contá-las picantes, sem pressa e com arte. Eu, pelo contrário, era amorfo e gostava mais de ouvir. Se me calhasse contar uma anedota, fazia-o em poucos segundos, sem a mínima graça, como quem desejava livrar-se de uma batata quente. Só queria que o relato da dita anedota acabasse depressa.
Três da tarde. Sentia-me quase a adormecer. Efeitos de uma refeição pesada e também do álcool.
«Tenho uma surpresa para ti.» Disse ele a certa altura.
Franzi o sobrolho. Tudo o que vinha do Morais era imprevisível.
Respondi com o silêncio, mas fiquei mais acordado.
«Não reages?»
Reagi.
«Então o que temos?»
«Adivinha?»
«Bem gostava de ser bruxo!»
Fiz uma careta à curiosa da barraca do lado. Virou o olhar de imediato.
«Encomendaste sobremesa. E já sei o que é: uma das tuas amigas da noite. Uma, não. Duas. Mas cuidado que estamos a fazer a digestão. Sabes que o polvo demora muitas horas a ser digerido?»
«Quase acertaste. Pelo menos no número.»
«Então o que poderá ser? Não me digas que andas feito com a filha do comandante!»
«Cala-te com isso. Só de ouvir falar dela até perco a tusa.»
«Já andaste de volta dela? Olha que não é feia. Só é pena ter a idade que tem.»
«Essa mulher não faz o meu género. Além disso, acho que é uma mulher desesperada. Ela tem mais de trinta anos e a idade tornou-a uma predadora perigosa.» Disse o Morais.
«Perigosa?»
«Pois. Com a idade que tem não deseja outra coisa senão casar. Depois, ser filha do comandante não ajuda. É quase uma missão impossível tirar proveito da situação e fugir. Mas olha, apesar de tudo parece que o peixe já mordeu o isco.»
«Não me digas! E quem é o infeliz?»
«O Martinez.»
«Ah sim. Não tenho pena dele. Sabe muito bem o que está a fazer e porque quer fazer. Mas esse já está mobilizado.»
«Então é golpada.»
«Bruxo!»
Completamente despassarado. E sempre perdido de sono.
Contaram que esse inconsciente adormeceu nos exercícios finais de Vendas Novas à beira de um obus catorze que troava que nem um desalmado. E aquela besta continuou a dormir como se nada estivesse a acontecer!
Acreditei na informação do Morais. Pelo pouco que vi dele no quartel era bem possível ter acontecido tal como contava. Agora meter-se com a filha do comandante, ávida de carne fresca, mas sonhando com vestidos brancos até aos pés, era demasiada areia.
«E o namoro está oficializado. Já vi os dois pombinhos na rua acompanhados da mãe. Mais ainda: disseram-me que o lorpa já entra na casa do comandante.»
«Chama-lhe lorpa. Come a namorada e esquece a porra de vida que o espera quando bater com os cornos no Ultramar.»
Compreendia a atitude dele. Era mais um aproveitamento da situação do que amor declarado. Provavelmente foi apanhado, como eu, a meio do curso. Só que era pior. O seu destino ficava incerto por ter sido mobilizado. Não sabia se regressava do Ultramar, com vida ou estropiado. Nós, os rodoviários do curso do Valdo, tínhamos melhor sorte. Havia a certeza de ninguém ser mobilizado. Agora os desgraçados de Artilharia, muitos dos quais eram meus amigos, tinham o destino traçado. Três, quatro meses no quartel mobilizador e a incerteza do amanhã. Bem fazia ele em aproveitar. Para a frente, Martinez!
Era vê-los partir, os da Artilharia. Já poucos restavam da fornada de janeiro e algumas das notícias que vinham dos que já tinham sido mobilizados não eram nada animadoras.
«Bem faz ele, coitado. Na incerteza do amanhã, ao menos goza enquanto é tempo.»
A filha do comandante. É verdade. Uma vez apanhou-me em falso.
«Tens razão. Mudando de assunto, lembrei-me daquele dia em que o Almada te convidou e a mais três para irem a umas Caves...»
«Nem me fales disso!»
«Então...?»
«Fomos muito bem, mas voltámos muito mal.»
Primeiro foi a visita às caves. Não vou perder tempo com descrições para quem já sabe como são e como não são, até porque já não me lembro. Aliás, foi um dia para esquecer. Provámos tudo e mais alguma coisa. Não fiz contagem, mas foi muito e do bom. Seco, meio-seco, doce, bruto, reserva especial. Principalmente, “eu sei lá”. Foi uma mistura alargada de paladares, acompanhados da degustação de pão e conservas de atum e sardinha. Mas a prevenção não chegou para estancar o avanço inevitável dos vapores etílicos.
Parece que estou a ver o Alexandrino de perfil, sentado numa cadeira, braços caídos, a rir que nem um perdido. De repente, largou uma golfada de uma mistura de contrastes. Um perfeito arco daqueles que se descreviam na Artilharia quando do lançamento de um obus. Ficou-lhe bem porque era da especialidade. Mas ele é que não ficou nada bem. As náuseas provocadas pelo espetáculo balístico do Alexandrino ditaram o fim do repasto. Se continuássemos naquele desassossego das provas não sei o que podia acontecer.
«Ainda tenho um bruto de estalo» disse, em ar de gozo, o Almada. «Vou abrir.»
«Tu não abres mais merda nenhuma, meu grande sacana!» avisou o Cabral, com a voz perturbada. «Queres é ver a malta bêbeda.»
«Pronto, pronto, gordinho...»
Ainda estávamos na sala quando o Carmona começou a ficar amarelo. Logo a seguir, branco, como a cal da parede.
«A casa de banho é ao fundo. Depressa, borrachão! Não me cagues mais esta sala.»
Fim de festa. Hora do regresso. Não havia mais secos nem especiais para ninguém.
Parámos ainda num café da Mealhada para beber uma bica. Erro fatal.
«Maldita bica!» desabafei mais tarde.
Só podia ter sido a bica porque o vinho era inofensivo. Havia sempre um bode expiatório.
Da outra vez deitei as culpas para o L34.
«Quem foi a besta que se descuidou desta maneira tão primitiva?» perguntou o Almada, receoso que tivesse acontecido como no caso da anedota todos nós nos enganámos.
O Cabral tinha uma dor de barriga das fulminantes. Prevaricadora. Confirmado cem por cento com o cheiro nauseabundo a gás sulfídrico que invadiu barbaramente o interior do carro.
O Almada travou a fundo e mandou o Cabral sair. Receava pelo pior.
À direita havia uma vinha e o desgraçado do gordinho desapareceu nos mistérios da noite. Entretanto a conversa continuou alegre. Continuou, continuou e o Cabral não aparecia.
Um apito estridente e eis que surgiu, todo ele feito guerreiro, com uma mão nas calças a cair e a outra segurando um calhau.
«Aquele fulano enlouqueceu?» preocupou-se o Carmona.
Rimos da situação caricata do desgraçado Cabral, receoso que o carro abalasse.
Largou o calhau e entrou no carro. Havia uma explicação para a presença do pedregulho. À falta de papel higiénico…
«Maldito vinho que deu a volta toda! Foi por baixo e por cima...»
«Porquê o calhau? E as parras das videiras?» perguntou alguém.
«Ah! Pois é. Não me lembrei das parras.»
«Estás bonito, minha besta quadrada!» gozou o Almada.
Risada quase geral. O Alexandrino dormia no lugar da frente e eu passava por uma fase má.
Aguentava-me?
Resposta imediata mal o carro arrancou. Aquilo veio de repente e foi a minha vez de entrar em cena.
Numa ação quase impossível do tipo James Bond atirei-me para a porta e abri-a, gritando:
«Para! Para!»
Tive a sorte pelo meu lado porque o Carmona segurou-me. Ao mesmo tempo que o carro parava, comecei a vomitar para o alcatrão.
«Este gajo é louco! Para para e nem sequer deixou parar o carro...»
Foi assim que caiu por terra o quarto guerreiro. O último herói.
Finalmente chegámos ao quartel.
Entrámos pelo portão da messe e da casa do comandante. Não tinha dado ainda meia dúzia de passos vacilantes quando dei de caras com um sentinela que achei logo não estar dentro dos parâmetros. Não hesitei em dar-lhe uma ensaboadela. Os outros só riam.
Foi então que apareceu a filha do comandante, acompanhada pela mãe. Fez-se silêncio. Eles deixaram de rir e eu calei-me de imediato.
Apanhado em flagrante delito, tentei endireitar-me. Ela sorriu e passou por nós.
No dia seguinte, pelas oito da manhã estava na parada. Na ausência do comandante de bateria e do meu amigo alferes Morais fui eu quem apresentou o agrupamento ao comandante. Sentia-me mais nas nuvens do quem em terra. Maldita dor de cabeça!
Visitas a caves particulares ou outras que tais, nunca mais. Juro pelas alminhas...
O Carmona está mobilizado. Admirei-me porque tinha estado com ele há pouco tempo. Já sabia e não me disse nada. Fiquei triste com a notícia. Era mais um amigo que partia para o Ultramar.
«Ainda ontem deu-me uns desenhos para ilustrarem contos do meu livro. O sacrista estava com cara de caso, mas não atingi. Ando obcecado com o raio do livro e o resto passa-me ao lado.»
«É verdade, o teu livro... Está adiantado o trabalho na tipografia?»
O meu livro?
Continuava a mentir na perfeição, usurpando o lugar do meu amigo António. Mas ser escritor era outra coisa. Gozava de um estatuto incontornável.
«Penso que vai sair dentro do prazo previsto. Um dos desenhos do Carmona que ilustram os contos mostra um homem nu, com uma lança, a virar costas a um polvo. Claro que é tudo simbólico. Acho que o desenho está muito bem concebido para o tema.»
«E sobre a capa?, o que é que resolveste?»
«Ficou o projeto do meu primo Justino. É o melhor. No meu ponto de vista, claro. A capa vai ficar com um aspeto cinematográfico. Os rostos dum homem e duma mulher que deixam transparecer um certo dramatismo. Mário e Patrícia? Mário e Manuela? Ainda não sei. Só dois rostos que traduzem o desencontro na Terra de um homem e uma mulher ou de um homem e duas mulheres.»
«Logo duas! Onde ficamos?»
«Isso gostava de saber...»
«És um gajo muito complicado!»
«A quem o dizes...»
Qual é o teu real e qual é o teu fictício?
Saíamos logo a seguir ao toque à ordem. Foram também connosco mais três camaradas de Artilharia: o Alexandrino, o Carmona e o Cabral, todos eles condenados à roleta russa das mobilizações. Comprámos conservas e pão, a contar com o embate contra um adversário poderoso que era o álcool.
Com o Almada a carregar no prego a fundo, demorámos pouco tempo a chegar à Mealhada e desta vez não parámos para comer leitão, pois o fim era outro.Primeiro foi a visita às caves. Não vou perder tempo com descrições para quem já sabe como são e como não são, até porque já não me lembro. Aliás, foi um dia para esquecer. Provámos tudo e mais alguma coisa. Não fiz contagem, mas foi muito e do bom. Seco, meio-seco, doce, bruto, reserva especial. Principalmente, “eu sei lá”. Foi uma mistura alargada de paladares, acompanhados da degustação de pão e conservas de atum e sardinha. Mas a prevenção não chegou para estancar o avanço inevitável dos vapores etílicos.
Parece que estou a ver o Alexandrino de perfil, sentado numa cadeira, braços caídos, a rir que nem um perdido. De repente, largou uma golfada de uma mistura de contrastes. Um perfeito arco daqueles que se descreviam na Artilharia quando do lançamento de um obus. Ficou-lhe bem porque era da especialidade. Mas ele é que não ficou nada bem. As náuseas provocadas pelo espetáculo balístico do Alexandrino ditaram o fim do repasto. Se continuássemos naquele desassossego das provas não sei o que podia acontecer.
«Ainda tenho um bruto de estalo» disse, em ar de gozo, o Almada. «Vou abrir.»
«Tu não abres mais merda nenhuma, meu grande sacana!» avisou o Cabral, com a voz perturbada. «Queres é ver a malta bêbeda.»
«Pronto, pronto, gordinho...»
Ainda estávamos na sala quando o Carmona começou a ficar amarelo. Logo a seguir, branco, como a cal da parede.
«A casa de banho é ao fundo. Depressa, borrachão! Não me cagues mais esta sala.»
Fim de festa. Hora do regresso. Não havia mais secos nem especiais para ninguém.
Parámos ainda num café da Mealhada para beber uma bica. Erro fatal.
«Maldita bica!» desabafei mais tarde.
Só podia ter sido a bica porque o vinho era inofensivo. Havia sempre um bode expiatório.
Da outra vez deitei as culpas para o L34.
Regressámos ao carro e a viagem recomeçou com grandes cantorias e vivas por tudo e por nada. E palavrões à mistura. As vozes eram muito altas e ninguém ouvia ninguém.
Surgiu um sinal de alarme.«Quem foi a besta que se descuidou desta maneira tão primitiva?» perguntou o Almada, receoso que tivesse acontecido como no caso da anedota todos nós nos enganámos.
O Cabral tinha uma dor de barriga das fulminantes. Prevaricadora. Confirmado cem por cento com o cheiro nauseabundo a gás sulfídrico que invadiu barbaramente o interior do carro.
O Almada travou a fundo e mandou o Cabral sair. Receava pelo pior.
À direita havia uma vinha e o desgraçado do gordinho desapareceu nos mistérios da noite. Entretanto a conversa continuou alegre. Continuou, continuou e o Cabral não aparecia.
Um apito estridente e eis que surgiu, todo ele feito guerreiro, com uma mão nas calças a cair e a outra segurando um calhau.
«Aquele fulano enlouqueceu?» preocupou-se o Carmona.
Rimos da situação caricata do desgraçado Cabral, receoso que o carro abalasse.
Largou o calhau e entrou no carro. Havia uma explicação para a presença do pedregulho. À falta de papel higiénico…
«Maldito vinho que deu a volta toda! Foi por baixo e por cima...»
«Porquê o calhau? E as parras das videiras?» perguntou alguém.
«Ah! Pois é. Não me lembrei das parras.»
«Estás bonito, minha besta quadrada!» gozou o Almada.
Risada quase geral. O Alexandrino dormia no lugar da frente e eu passava por uma fase má.
Aguentava-me?
Resposta imediata mal o carro arrancou. Aquilo veio de repente e foi a minha vez de entrar em cena.
Numa ação quase impossível do tipo James Bond atirei-me para a porta e abri-a, gritando:
«Para! Para!»
Tive a sorte pelo meu lado porque o Carmona segurou-me. Ao mesmo tempo que o carro parava, comecei a vomitar para o alcatrão.
«Este gajo é louco! Para para e nem sequer deixou parar o carro...»
Foi assim que caiu por terra o quarto guerreiro. O último herói.
Finalmente chegámos ao quartel.
Entrámos pelo portão da messe e da casa do comandante. Não tinha dado ainda meia dúzia de passos vacilantes quando dei de caras com um sentinela que achei logo não estar dentro dos parâmetros. Não hesitei em dar-lhe uma ensaboadela. Os outros só riam.
Foi então que apareceu a filha do comandante, acompanhada pela mãe. Fez-se silêncio. Eles deixaram de rir e eu calei-me de imediato.
Apanhado em flagrante delito, tentei endireitar-me. Ela sorriu e passou por nós.
No dia seguinte, pelas oito da manhã estava na parada. Na ausência do comandante de bateria e do meu amigo alferes Morais fui eu quem apresentou o agrupamento ao comandante. Sentia-me mais nas nuvens do quem em terra. Maldita dor de cabeça!
Visitas a caves particulares ou outras que tais, nunca mais. Juro pelas alminhas...
O Carmona está mobilizado. Admirei-me porque tinha estado com ele há pouco tempo. Já sabia e não me disse nada. Fiquei triste com a notícia. Era mais um amigo que partia para o Ultramar.
«Ainda ontem deu-me uns desenhos para ilustrarem contos do meu livro. O sacrista estava com cara de caso, mas não atingi. Ando obcecado com o raio do livro e o resto passa-me ao lado.»
«É verdade, o teu livro... Está adiantado o trabalho na tipografia?»
O meu livro?
Continuava a mentir na perfeição, usurpando o lugar do meu amigo António. Mas ser escritor era outra coisa. Gozava de um estatuto incontornável.
«Penso que vai sair dentro do prazo previsto. Um dos desenhos do Carmona que ilustram os contos mostra um homem nu, com uma lança, a virar costas a um polvo. Claro que é tudo simbólico. Acho que o desenho está muito bem concebido para o tema.»
«E sobre a capa?, o que é que resolveste?»
«Ficou o projeto do meu primo Justino. É o melhor. No meu ponto de vista, claro. A capa vai ficar com um aspeto cinematográfico. Os rostos dum homem e duma mulher que deixam transparecer um certo dramatismo. Mário e Patrícia? Mário e Manuela? Ainda não sei. Só dois rostos que traduzem o desencontro na Terra de um homem e uma mulher ou de um homem e duas mulheres.»
«Logo duas! Onde ficamos?»
«Isso gostava de saber...»
«És um gajo muito complicado!»
«A quem o dizes...»
Qual é o teu real e qual é o teu fictício?


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