Voltando à Figueira...
Nesse fim de manhã dei ordens ao condutor para regressar a pé ao quartel e deambulei de jipe pela marginal, entregue aos meus pensamentos, pensamentos esses que me levavam sempre para fora do limiar da realidade. Não tinha culpa. Sempre fui assim e nada havia a fazer.
Encostei o jipe à berma da estrada, hesitei um pouco e acabei por saltar para o chão. Sentia-me entorpecido e precisava de exercitar as pernas.
Encostei o jipe à berma da estrada, hesitei um pouco e acabei por saltar para o chão. Sentia-me entorpecido e precisava de exercitar as pernas.
«Vou andar um pouco a pé.» Decidi.
Precisava também de arrumar as ideias porque um novo "rabo de saias" tinha entrado bruscamente na minha vida sem ao menos um convite prévio, depois daquele dia em que eu e o Morais combinámos almoçar na praia polvo cozido com batatas. Foi uma ideia que pôs logo de parte a hipótese de tomarmos banho depois do repasto. E então o Morais falou-me de uma surpresa que tinha preparado. A surpresa chamava-se Maria José, era natural de Portalegre e entrou bruscamente nos meus dias azuis e cinzentos passados na Figueira, cem por cento por causa do livro do António, indevidamente apropriado pela minha pessoa. De facto "Os longos dias azuis" funcionaram na perfeição como uma ponte.
Ao aproximar-me do passeio reparei melhor no aspeto do muro. Afinal, não era branco, mas sim, cinzento. Olhei em frente. O mar parecia um lago e estava cinzento porque não havia sol. Resisti à tentação de tirar os sapatos e as meias para sentir o frio da água ao molhar os pés.
Como frio estava o corpo de Manuela. Uma interferência que nada me agradou.
Àquela hora os carros da tropa já tinham recolhido ao quartel e as mulheres dos tabuleiros almoçavam na praia, em grupo, retirando, colher após colher o pouco do guisado que havia na lancheira porque a jorna não dava para muito. Fiquei a vê-las, por momentos. Uma delas acenou-me. Era a Alma. Atraía-me. Talvez um dia...
Ao aproximar-me do passeio reparei melhor no aspeto do muro. Afinal, não era branco, mas sim, cinzento. Olhei em frente. O mar parecia um lago e estava cinzento porque não havia sol. Resisti à tentação de tirar os sapatos e as meias para sentir o frio da água ao molhar os pés.
Como frio estava o corpo de Manuela. Uma interferência que nada me agradou.
Àquela hora os carros da tropa já tinham recolhido ao quartel e as mulheres dos tabuleiros almoçavam na praia, em grupo, retirando, colher após colher o pouco do guisado que havia na lancheira porque a jorna não dava para muito. Fiquei a vê-las, por momentos. Uma delas acenou-me. Era a Alma. Atraía-me. Talvez um dia...
Afastei-me, sentindo com mais força no rosto a brisa que soprava do lado do mar. Logo a seguir risquei um fósforo e acendi um cigarro. Fumava mais para passar o tempo do que por vício. Em certos momentos sentia necessidade de aspirar uma longa fumaça que não chegava a engolir, expulsando, de imediato, o fumo intruso que nunca me dominaria. Tinha a certeza.
Continuei a andar ao acaso, até que parei. Uma muralha colocada de topo foi a causa. Intrigava-me. Aquilo parecia um porto de abrigo. Aproximei-me mais. Então avistei um velho barco ancorado. Alguns homens, pendurados por cordas, pintavam-no, como se fosse coisa importante que não era, no meu ponto de vista. Pensei que era uma operação de cosmética tardia. Segundo a minha opinião de leigo, aquele barco só tinha condições para ser desmantelado. Mas era a minha opinião, que pouco ou nada valia.
Tentei descobrir que tipo de barco era aquele.
«É um bacalhoeiro. Encalhou.»
Olhei, admirado, para o homem que fez o comentário. Tinha adivinhado o meu pensamento.
«Encalhou? Mas não está ancorado? E o que fazem aqueles homens a pintarem um barco condenado?»
Observei melhor. O barco parecia adornado. Tanto pior para ele. A minha hipótese prevalecia. Estava pronto a ir para a sucata.
«Vai desencalhar na maré cheia. Daí a poucas horas...»
«Ah! Oxalá.»
O homem cheirava a peixe que tresandava. Talvez fosse do avental de plástico.
«Tenho estado a observá-lo» disse o homem, já entrado na idade. «Li na sua cara espanto e ignorância. Desculpe, não estou a querer ofendê-lo. O senhor não pertence aos da nossa laia. É militar.»
«Não faz mal. Estou a gostar de o ouvir. Continue, por favor.»
«Este barco encalha e desencalha todos os anos.»
«Coisa estranha!» pensei.
A camisa do velho exposta ao sol feria a vista. Devia ser pescador de muitas fainas e preparava-se talvez para mais uma.
«Engana-se.»
«O quê?!...»
«Já não vou voltar ao mar.»
O velho adivinhou de novo o meu pensamento.
«E porquê?»
«A morte é uma situação de mudança inevitável. Com deve saber, estamos todos entre a vida e a morte desde que nascemos. Uns mais para o lado da vida. Outros menos. O seu caso. O meu caso.»
Tentei adivinhar o que se passava, mas ele é que trazia o dom consigo.
«Bem. Confesso que estou baralhado. O senhor tem um dom estranho.»
Fingiu não ouvir o comentário.
«Cheguei à minha foz. Já me restam poucas marés. As vivas, essas já lá vão. E não voltam, quer tenha ou não a força do desejo comigo.»
A história era comum, pensei. O velho tinha uma doença ruim e quanto a isso não havia nada a fazer. Setenta, setenta e cinco anos de sonho e tudo se acabava em breve. Era a lei natural da vida.
«Engana-se no seu palpite. Não tenho nenhuma doença grave.»
«Mas, meu amigo, eu não falei em voz alta para me ouvir!» Ignorou o meu comentário.
«Chamo-me Antoine Roquetin. Nasci em França. O meu pai era um pescador francês e a minha mãe, uma portuguesa da Costa de Lavos. Sabe onde é?»
«Muito bem. Jantei lá, num bar-restaurante à beira-mar, na noite a seguir à minha apresentação como militar nesta terra simpática, muito acolhedora. Fizeram-nos uma festa de receção e tive a oportunidade de comer uma bela caldeirada e depois uns... não me lembro agora o nome.»
«Machinhos.»
«Isso mesmo. Os machinhos fritos são deliciosos.»
O velho puxou de um pacote com tabaco de onça e sacou uma mortalha da pequena embalagem que as continha. A seguir, sem pressas, colocou o tabaco sobre a mortalha começou a enrolar um futuro cigarro. Dei-lhe lume.
«Obrigado pela atenção, senhor militar . O meu pai morreu no mar quando eu tinha cinco anos. Sem meios, a minha mãe voltou à Costa de Lavos. Fiz-me homem muito cedo e o mar adotou-me. Não conheço outra vida.»
«Então... e já não faz mais viagens?»
O olhar do velho Antoine, à medida que ia falando, alongava-se pelo mar adentro e transfigurava-se a olhos vistos. Queria compreender mas faltavam-me dados.
«Estou velho. Descartaram-me. Já não me querem para a faina do bacalhau. É uma vida muito dura e as forças começam a faltar-me. E o que me resta? Não sei fazer mais nada!»
«O senhor Antoine tem histórias para contar aos netos. Já viveu muito. Aposto que apanhou alguns sustos no mar.»
«Não tenho netos. Nunca me juntei com uma mulher.»
«Mas as histórias...»
«Sim. A voz do mar já me contou muitas histórias e vi companheiros serem chamados por ele. Vou acabar os restos dos meus dias a sonhar com essas histórias. Às vezes passam-me ideias esquisitas pela cabeça e tento logo afastá-las. Mas um dia vai acontecer...»
«Não pense nisso. E se comprar um barquito?»
«Agora foi você quem adivinhou. É mesmo isso que vou fazer. Quero morrer aos poucos. E oxalá um dia, quando as últimas forças me faltarem, o barco me leve para o largo, cada vez mais para o largo... onde o meu pai espera por mim.»
O velho transfigurou-se outra vez.
«Mas o fim demora a chegar. Antes disso, este bacalhoeiro, que vai desencalhar na próxima maré cheia que está quase a acontecer, tem à sua espera a última viagem. Vão todos para o fundo do mar. Tive um sonho ruim.»
Olhei para o barco ancorado e vi-o também no fundo do mar. Coisa estranha. Era uma visão terrível que à viva força quis apagar. Não!, aquele homem tentava sugestionar-me. Devia reagir ao seu poder de sugestão.
«Também já viu o mesmo que eu.»
«Oh!»
Coisa mais estranha estar em sintonia com ele. Fiquei a pensar. Não havia volta a dar.
Virei-me para ele e afirmei:
«A única certeza de agora é que o barco está ancorado.»
«Será?»
Olhei para o cais e já não vi o barco.
«Então...»
Virei-me para o velho.
«O barco desapareceu como que por encanto. E também os homens que estavam a pintá-lo! Isto é magia.»
«Desculpe, dá-me lume?»
Risquei um fósforo na lixa da caixa e estendi o braço.
«Aqui tem, senhor Antoine. Mas...»
O homem que me pedia lume nada tinha a ver com Antoine, o velho marinheiro.
Tentei descobrir que tipo de barco era aquele.
«É um bacalhoeiro. Encalhou.»
Olhei, admirado, para o homem que fez o comentário. Tinha adivinhado o meu pensamento.
«Encalhou? Mas não está ancorado? E o que fazem aqueles homens a pintarem um barco condenado?»
Observei melhor. O barco parecia adornado. Tanto pior para ele. A minha hipótese prevalecia. Estava pronto a ir para a sucata.
«Vai desencalhar na maré cheia. Daí a poucas horas...»
«Ah! Oxalá.»
O homem cheirava a peixe que tresandava. Talvez fosse do avental de plástico.
«Tenho estado a observá-lo» disse o homem, já entrado na idade. «Li na sua cara espanto e ignorância. Desculpe, não estou a querer ofendê-lo. O senhor não pertence aos da nossa laia. É militar.»
«Não faz mal. Estou a gostar de o ouvir. Continue, por favor.»
«Este barco encalha e desencalha todos os anos.»
«Coisa estranha!» pensei.
A camisa do velho exposta ao sol feria a vista. Devia ser pescador de muitas fainas e preparava-se talvez para mais uma.
«Engana-se.»
«O quê?!...»
«Já não vou voltar ao mar.»
O velho adivinhou de novo o meu pensamento.
«E porquê?»
«A morte é uma situação de mudança inevitável. Com deve saber, estamos todos entre a vida e a morte desde que nascemos. Uns mais para o lado da vida. Outros menos. O seu caso. O meu caso.»
Tentei adivinhar o que se passava, mas ele é que trazia o dom consigo.
«Bem. Confesso que estou baralhado. O senhor tem um dom estranho.»
Fingiu não ouvir o comentário.
«Cheguei à minha foz. Já me restam poucas marés. As vivas, essas já lá vão. E não voltam, quer tenha ou não a força do desejo comigo.»
A história era comum, pensei. O velho tinha uma doença ruim e quanto a isso não havia nada a fazer. Setenta, setenta e cinco anos de sonho e tudo se acabava em breve. Era a lei natural da vida.
«Engana-se no seu palpite. Não tenho nenhuma doença grave.»
«Mas, meu amigo, eu não falei em voz alta para me ouvir!» Ignorou o meu comentário.
«Chamo-me Antoine Roquetin. Nasci em França. O meu pai era um pescador francês e a minha mãe, uma portuguesa da Costa de Lavos. Sabe onde é?»
«Muito bem. Jantei lá, num bar-restaurante à beira-mar, na noite a seguir à minha apresentação como militar nesta terra simpática, muito acolhedora. Fizeram-nos uma festa de receção e tive a oportunidade de comer uma bela caldeirada e depois uns... não me lembro agora o nome.»
«Machinhos.»
«Isso mesmo. Os machinhos fritos são deliciosos.»
O velho puxou de um pacote com tabaco de onça e sacou uma mortalha da pequena embalagem que as continha. A seguir, sem pressas, colocou o tabaco sobre a mortalha começou a enrolar um futuro cigarro. Dei-lhe lume.
«Obrigado pela atenção, senhor militar . O meu pai morreu no mar quando eu tinha cinco anos. Sem meios, a minha mãe voltou à Costa de Lavos. Fiz-me homem muito cedo e o mar adotou-me. Não conheço outra vida.»
«Então... e já não faz mais viagens?»
O olhar do velho Antoine, à medida que ia falando, alongava-se pelo mar adentro e transfigurava-se a olhos vistos. Queria compreender mas faltavam-me dados.
«Estou velho. Descartaram-me. Já não me querem para a faina do bacalhau. É uma vida muito dura e as forças começam a faltar-me. E o que me resta? Não sei fazer mais nada!»
«O senhor Antoine tem histórias para contar aos netos. Já viveu muito. Aposto que apanhou alguns sustos no mar.»
«Não tenho netos. Nunca me juntei com uma mulher.»
«Mas as histórias...»
«Sim. A voz do mar já me contou muitas histórias e vi companheiros serem chamados por ele. Vou acabar os restos dos meus dias a sonhar com essas histórias. Às vezes passam-me ideias esquisitas pela cabeça e tento logo afastá-las. Mas um dia vai acontecer...»
«Não pense nisso. E se comprar um barquito?»
«Agora foi você quem adivinhou. É mesmo isso que vou fazer. Quero morrer aos poucos. E oxalá um dia, quando as últimas forças me faltarem, o barco me leve para o largo, cada vez mais para o largo... onde o meu pai espera por mim.»
O velho transfigurou-se outra vez.
«Mas o fim demora a chegar. Antes disso, este bacalhoeiro, que vai desencalhar na próxima maré cheia que está quase a acontecer, tem à sua espera a última viagem. Vão todos para o fundo do mar. Tive um sonho ruim.»
Olhei para o barco ancorado e vi-o também no fundo do mar. Coisa estranha. Era uma visão terrível que à viva força quis apagar. Não!, aquele homem tentava sugestionar-me. Devia reagir ao seu poder de sugestão.
«Também já viu o mesmo que eu.»
«Oh!»
Coisa mais estranha estar em sintonia com ele. Fiquei a pensar. Não havia volta a dar.
Virei-me para ele e afirmei:
«A única certeza de agora é que o barco está ancorado.»
«Será?»
Olhei para o cais e já não vi o barco.
«Então...»
Virei-me para o velho.
«O barco desapareceu como que por encanto. E também os homens que estavam a pintá-lo! Isto é magia.»
«Desculpe, dá-me lume?»
Risquei um fósforo na lixa da caixa e estendi o braço.
«Aqui tem, senhor Antoine. Mas...»
O homem que me pedia lume nada tinha a ver com Antoine, o velho marinheiro.

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