Lara
Mário continua a contar as suas histórias, mergulhando, determinado, em direção ao centro nevrálgico onde se localizam as mesmas. Mas o passado remoto escondeu-se nos escaninhos do subconsciente e nada, mesmo nada, tem poder suficiente no momento para fazer retornar memórias esquecidas. Sabe disso e muda de estratégia numa tentativa de ludibriar essas mesmas memórias que parecem estar bem guardadas. Tudo é uma questão de tempo. As palavras certas, ou as imagens, agora desfocadas, acabarão por emergir. Até lá, deslocaliza para a ribalta as histórias do final dos anos oitenta e também dos anos noventa que afirma terem acontecido. Só ele sabe porque o seu real e o seu fictício se entrelaçam num amplo abraço...Telefonou-me há poucos minutos uma colega a dar-me uma notícia que já esperava há algum tempo. Não fiquei admirado. Sim, chocado. Não esperava que acontecesse tão cedo.
Uma prima sua, também minha colega, contou-me tudo sobre o caminho sem retorno que a Lara tinha tomado como opção. O refúgio na religião. O isolamento. A solidão. Como ela se foi degradando com o decorrer dos dias, sem o mínimo desejo de viver, nitidamente à espera que o fim chegasse e o mais depressa possível.
Nos últimos dias de vida já não abria a porta a ninguém. Deixava que se acumulasse o lixo em casa. Saía, furtivamente, à noite para fazer algumas compras no supermercado só para sobreviver porque a sua religião de origem proibia o suicídio. Segundo a prima-tutora o caso estava grave e andavam a ver se conseguiam entrar em casa, pois o cheiro que vinha do interior era insuportável e a própria porteira há uns dias que não sabia nada dela.
Nem sequer a porteira tinha a chave da porta. Quando se esquecia da chave em casa era preciso chamar um técnico da Fábrica de Chaves do Areeiro. E aconteceu mais que uma vez.
Recordo-me da gravação que fizemos, a meu pedido, em julho de 1988. Nesse tempo ainda estava lúcida e as sua células cinzentas funcionavam na perfeição. Fiquei encantado com a cultura, o poder de raciocínio e a extrema bondade que brotava daquele ser de Deus.
Como podia aquela mulher brilhante, com tanta força anímica e fé em duas religiões, aparentemente um contrassenso, chegar a tal extremo?
Tinha razão quando lancei aquela hipótese à prima da Lara. Encontraram-na morta, já com o corpo em estado de decomposição. Provavelmente morreu por inanição.
Telefonei há minutos ao Alfredo, o meu companheiro habitual dos velórios e funerais. Vou encontrar-me com ele ao meio-dia. Nessa altura o corpo já estará na capela. À uma é a missa e depois o corpo será cremado. Uma derradeira vontade sua. Sem abandonar a sua religião de sempre, aderira também, em consciência, ao Budismo e daí ter pedido a cremação do seu corpo grosseiro. Quanto à missa, justificava-se porque, como me confessou em 1988, nesse tempo ainda muito lúcida e com algum desejo de viver, nunca deixara nem deixaria de ser católica. Talvez uma estranha forma de ser budista. Não sei. Sou pouco entendido em religiões. Ela sim. Era uma estudiosa e profunda conhecedora.
Ontem saí depois do almoço, com a força do calor. Dei uma grande volta a receber prémios das sociedades do totoloto e andei à procura de uma agência que afinal era perto do prédio onde morava a Lara e, por este motivo, lembrei-me dela. Sabia do seu estado físico e psíquico e no momento senti remorsos por não a ter ajudado quando ela mais precisava, preferindo respeitar o seu desejo de privacidade.
Cheguei exausto a casa e tomei um duche. A Princesa Bolinhas, nesta altura ainda deste mundo, miava muito, solicitando, à sua maneira, a minha assistência. Queria comer.
«Queres papinhas?»
Ainda miou mais. Então aqueci a pescada no micro-ondas e fui até à sala. Pouco depois a gata miou outra vez. Reflexo condicionado pelo toque da campainha. Era habitual ter essa reação.
«Já sei...»
Fiz-lhe uma festa, preparei-lhe a pescada e apontei para o prato.
«Come.»
Ficou a olhar para mim. Tive que dar-lhe na boca o primeiro pedaço de peixe. Era o costume. Nunca começava a comer sem aquele cerimonial da primeira colherada. Fatal como o destino (1).
O meu jantar era peixe assado e decidi acompanhá-lo com vinho branco.
Vinho branco?, e ainda por cima gelado?
Que ideia mais bizarra! Costumava beber vinho tinto às refeições. Agora, branco, nem por sombras. Aquela ideia dava para pensar.
Foi já com mais de meia garrafa bebida, o que não era normal, que tocou o telefone. Atendi e o meu semblante modificou-se logo. Era uma colega a dar-me a notícia da morte da minha amiga Lara.
Primeiro foi o Álvaro. Depois a Catarina (2). Agora a Lara. Os três eram sócios do nosso clube de investimento. Já morreram e os corpos foram para S. João, curiosamente pela ordem inversa dos valores das suas participações na sociedade, agora em fase de dissolução devido à crise de 1987.
As duas primeiras mortes foram anunciadas por fortes sinais. Esta não. Mas todas foram mortes trágicas: acidente, suicídio, inanição. Todas estas mortes e muitos casos estranhos aconteceram ao longo de sete anos, amaldiçoados pelo inevitável deus menor.
Era uma e meia da tarde de vinte e oito, quando o corpo físico e o duplo etérico de Lara foram destruídos, no mesmo momento, no forno crematório do cemitério do Alto de S. João. Se o mundo astral é tão real como o mundo físico, a Lara estava nesse momento a despertar nas regiões inferiores desse mundo.
A sua morte não foi pacífica. Morreu fora do momento determinado. Antecipou a partida e não a critico por isso. Ela era um fardo que nem sequer se arrastava e, como fardo, ficou inanimada e impossibilitada de se alimentar. Não se suicidou. Pura e simplesmente desistiu de viver porque a vida já não fazia sentido para ela há muito tempo. Talvez já estivesse a acontecer na altura em que fizemos uma gravação que considerei ser de importância capital porque andava obcecado com o sobrenatural.
Admirava-a muito. Uma mulher derrotada que falava com desenvoltura e de uma forma tão maravilhosa. E também com entusiasmo, o que me baralhou.
Foi há muito tempo e parece que ainda aconteceu ontem.
Regressando ao mundo astral, e estando a despertar naquele momento, que tipo de consciência o seu corpo astral vai adquirir?
Ainda não abandonou o mundo material. É provável, pois não viveu todo o tempo que lhe estava destinado. Assim, vai pairar nas camadas inferiores do mundo astral durante o tempo que ainda necessitava de viver para cumprir as restantes missões que lhe estavam destinadas. Talvez que venha um dia a interferir com um sensitivo como eu sou... se ambos desejarmos muito!
E fi-lo. Mas, para minha surpresa, a Lara foi a revelação e não eu. Uma revelação agradável.
Comecei por ler a versão original de um poema enigmático a que dei o nome de Promontório.
Ouviu com muita atenção.
«A. M. Fonseca... não sabia desta sua vocação (3)!»
Foi pródiga em elogios. Considerei que tais elogios só tinham a ver com delicadeza e amizade. Não podia ser outra coisa. Era uma mulher educada, de bom senso e muito sensível a lidar com as pessoas. Não queria, de forma alguma, magoar-me.
Alguém entrou primeiro. Perdidos lutámos com pontas aguçadas que não causam dor mas permanecem. No céu azul as gaivotas voam no cinzento.
Bem sabes... sou o promontório do continente imenso que foste. Não passo de uma franja do teu gigantismo. No teu Universo dominaste galáxias,
esgrimiste a palavra e amaste o tédio. A minha memória sangra de tanto recordar e te desconhecer.
Quem és tu deles?
A luta é feroz e sem tréguas. Estremeço, mas não caio. Morro todos os dias e todos os dias renasço, prisioneiro do mistério do tempo.
E os oitos?
Nesse tempo não suspeitava de ti, nem via a Esfinge a fugir para outras órbitas.
Nunca assumiste e a luta continuou. Os teus guerreiros multiplicaram os sinais.
Pobre de mim e do sonho azul...
Sou um grão ínfimo do teu gigantismo. Não sei quem és e quem trouxeste.
Vejo-te em mil facetas nos palpites duma roleta que nunca mostra o número. Os meus neurónios sangram e apagam luzes aos poucos até se extinguirem todos os números de Deus.
Quem eras?
Conheço-te no voo da gaivota que perdeu o rumo; no sonho do prisma que o corpo de luz inundou. Conheço-te na mulher de vermelho que trouxe do passado uma mensagem obscura. Conheço-te na Esfinge que devora cá dentro.
Conheço-te também na magia dos oitos, na utopia do Império, na solidão, no tédio, no oculto.
Quem eras?, que escorregaste por mim e gastaste os meus olhos a ver o mundo que não tiveste?
Vê a última verdade pelo promontório que sou; e... mesmo que seja utopia lança enfim ao mar as personagens que nunca deixaram vir à superfície toda a grandiosidade que não assumiste!
Esquecemos promontórios e atirámo-nos com gosto à esgrima das palavras. Foi então que aconteceu um momento fantástico que eclipsou todos os fenómenos que tinham passado por mim, porque o verdadeiro fenómeno era ela, Lara, uma mulher de meia-idade, interessante, a quem a vida foi madrasta.
Nesse tempo, agarrada a duas tábuas de salvação, o cristianismo e o budismo, acreditava que a sua cruzada estava longe de chegar ao fim.
Pouco a conheci, mas conheci-a muito nas duas, três horas que passámos em sua casa às voltas com as palavras e os mistérios que as mesmas tentaram decifrar. E conheci-a pouco porque, meses depois daquele encontro na sua casa, começou a evitar-me e a isolar-se de todos os colegas e amigos.
Podia ter-me aproximado mais dela e dar-lhe o apoio que precisava, mas não quis violar a sua privacidade. Não estou isento de culpa. Há sempre muito que fica por fazer e pouco fiz para adiar a sua inevitável partida para o azul constelado do céu, onde se perdeu.
9 de julho de 1988. A gravação…
«Não há na altura uma espécie de um choque?»
«Pode haver. Pode haver na altura. O corpo astral regressa a si e o Mário ou continua a dormir, ou até acorda. E há muita gente, segundo aquele autor, como você, que não é consciente no astral que pode trabalhar aí para fazer o bem.»
«Embora não tenha consciência. Concordo. Isso dará algum cansaço?»
«Deve dar a sensação de quem não dormiu bem. Mas o que eu ia a dizer... Houve um tempo que, enquanto rezava à noite, pedia a Deus que não me deixasse perder tempo a dormir e que me fizesse trabalhar no meu corpo astral. Claro que acordava muito cansada. Não é agora que, por causa dos comprimidos, acordo cansada. Nunca fui consciente no astral. Sonhos astrais não tive. Mas aquele homem faz descrições pormenorizadas. Podem visitar-se pessoas de quem se gosta, ver como as pessoas estão, se estão bem, se estão mal...»
«Mas a pessoa não tem consciência...»
«Quem é verdadeiramente consciente no astral sabe muito bem como agir e fazer muito bem. Quem me diz a mim que o seu corpo astral não está muito desenvolvido? A memória não é coisa que seja importante. A memória é o resultado de muito treino. Tenho muita pena desse livro, mas desapareceu. Eles ensinavam a pessoa a sair do seu corpo, a ver-se pairando acima do seu corpo e depois sair para várias missões. O livro é muito interessante.»
«Recordo-me de uma coisa que considero um enigma e que está relacionada com um acordar súbito, precedido pelo barulho do trabalhar da arca frigorífica que tenho na cozinha. Com se estivesse mesmo em cima da arca nesse momento e afinal estava deitado na cama.»
«Como se sentisse uma vibração?»
«Não, não. Senti o ruído da arca a trabalhar. Parecia que estava na cozinha. Ao mesmo tempo ouvi um disparo e acordei. Tive a ideia que era o disjuntor. Uma avaria qualquer.»
«Mas não houve...?»
Interrompi-a e prossegui a minha narração.
«Acendi a luz. Não havia problema numa fase. Era capaz de ser na outra. Fiquei na dúvida, mas sem saber porquê não me levantei. Deixei-me ficar pregado à cama. Mas estava de facto virado de barriga para o ar. E pronto, voltei-me para o outro lado e adormeci outra vez. De manhã, quando me levantei, fui à cozinha e a arca estava a trabalhar. Ah! Agora me lembro. Depois do disparo ouvi trabalhar a arca. A arca deixou de funcionar e depois pareceu-me ouvi-la trabalhar de novo. Não fui ver. Ou não tive vontade de levantar-me, ou não consegui. Admiti uma hipótese: terei passado por ali? É uma coisa parva!»
«Pode ter passado por onde quer que tenha passado... que tenha interessado passar.»
«E o estalo seria talvez o reencontro do corpo astral com o corpo físico.»
«E o despertar ao mesmo tempo. Sabe que, para além do corpo astral, ainda há o corpo...»
Não conseguiu lembrar-se no momento. Continuou.
«O outro corpo é o búdico. O corpo búdico, que vem ao encontro das doutrinas do oriente, que é um corpo em que nós atingimos a consciência dele quando já não voltamos a este mundo. Admitindo a teoria da reencarnação vimos várias vezes a este mundo para esgotar as nossas experiências, completar o que ficámos a dever e criar karma positivo e que é aquilo que você faz quando tem um desgosto e faz bem a quem lhe fez mal. Há milhentas situações. Ou então também pode acumular karma negativo, reagindo mal, procedendo mal contra a lei natural para não estar a falar em moral cristã e esse karma negativo vai provocar uma sobrecarga de vidas no futuro. Eu tiro esta conclusão terrível: afinal o purgatório é aqui.»
«Eu também tenho essa ideia. As contas pagam-se cá.»
«Pagam-se aqui. As pessoas já nascem no seio de uma família que tem um condicionalismo tal que lhe proporcionam determinadas experiências a que reagem bem ou mal. Reagir bem até pode ser suposto à dor e à tristeza, com alegria no sentido de ajudar, e tudo aquilo que fizermos de bem dá a possibilidade de gastarmos o nosso karma negativo. Vamos evoluindo e começa-se por ter consciência do corpo astral. Vou buscar um livro que fala dos diferentes corpos do homem. Peço-lhe que não mo perca...»
Enquanto me passava o livro para as mãos, falava dele, dos diferentes corpos do homem. Depois, continuou:
«Quando desencarnamos, a melhor coisa que temos a fazer é virarmos as costas imediatamente a seguir ao enterro, porque nós, depois de morrermos, ainda estamos conscientes, vemo-nos ali deitados, vemos as pessoas a chorar. A seguir devemos ascender, desaparecer. Porque a pessoa pode ter ficado com problemas. Imagine que a pessoa morre e roubou um objeto e queria dar a outra. E ela gosta muito dessa pessoa. Fica presa no astral inferior. Não sei se sabe que há um astral superior e um astral inferior. Então fica presa nesse mundo e é horrível. Imagine você que tem um vício, como o meu, de fumar. Vai passar ao pé das pessoas que fumam para tentar aspirar, embora isso não seja possível, o odor do tabaco. Isso é uma reencarnação que vai ter como resultado imenso sofrimento e em que a pessoa pouco evolui. Portanto, o interessante é passar ao astral superior. Aí encontra auxílio. Auxílios espirituais, apoios...»
«Os amigos que estão à espera...»
«São os amigos, são os espíritos que estão absolutamente vocacionados e que fizeram um pedido espiritual para se dedicarem à evolução dos irmãos.»
«E depois não atravessam um túnel? Não se fala de um túnel? Isso é uma teoria, não é?»
«Isso não é uma teoria, é uma experiência. É do livro “Vida depois da Morte”.»
«Já li esse livro e também “Vida depois da Vida”.»
«Também li os dois. São experiências que vêm corroborar essas coisas todas. Há o caso de um senhor que foi atropelado e não se considerava morto. Os espíritos levaram-no, mas passou por um sofrimento horrível. Houve outros casos. Casos de morte aparente em que viram o seu corpo físico cá em baixo. Outros pairaram sobre ele e viram médicos e enfermeiros a tratarem da reanimação. Houve outros casos em que pessoas de família foram ter com eles e disseram:»
«Ainda não chegou a tua vez...»
«Há um homem que tem essa morte aparente e é obrigado imediatamente a carregar um camião com pedras pesadíssimas. Isto no corpo astral. Ele vê tudo negro e partimos do princípio que seria um homem com muitas dívidas a pagar. Um carteiro que esteve em estado de morte aparente e viu uma espécie de figura angélica luminosa que veio ter com ele e lhe sorriu, e sentiu-se de tal maneira bem que, quando a figura lhe apontou que ele tinha que voltar para trás, sentiu uma desilusão enorme. Então, o que ele afirma agora a pés juntos é que não tem medo nenhum da morte e até deseja que a sua vida seja tão rica como a que teve depois de desencarnar. Mas é um preceito deixar imediatamente as lágrimas da mãe e do pai e dos filhos e seguir. O “Livro dos Mortos do Tibete” é muito interessante. Tem um conceito que me ficou cá dentro: segue a luz mais branca e a mais forte. Quer dizer que o corpo astral, vendo-se perante... Imagine que tem três túneis à sua frente. Um que tem menos luz e que parece não o encandear muito. A pessoa tende a ir por aí. Outro tem um bocadinho mais. Ainda lá vai. Mas aquele que deve seguir é o que tem a luz que cega. A luz que cega mesmo.»
«Lembrei-me daquele... ou sonho, ou realidade que tive quando fui fazer uma viagem a Estremoz. Já lhe contei o caso do caixão com muita luz (4)?»
«Que viu com muita luz.»
«Pois. Que interpretação é que poderá dar a isso?»
«Olhe...»
Não a deixei falar.
«Para já, não sei se estava acordado, se dormia. Tenho a ideia que acordei e vi aquilo. Que não pude reagir.»
«Uma coisa: viu o caixão vazio?»
«Vazio. Completamente. Sabe qual foi a interpretação que eu dei, mas mais tarde? Depois pode dar a sua. A minha missão em relação à Manuela...»
«A Manuela foi a sua primeira namorada. Já me disse.»
«Tive antes paixonetas, mas aquela foi a grande paixão e também o grande amor da minha vida.»
«É verdade que anda ainda às voltas com ela?»
«Sim. E a dona Ima, uma vidente que respeito muito, disse-me que vou lembrar-me dela até ao fim da minha vida! Mas a interpretação que dei é que ela já não precisava de mim porque tinha muita luz.»
«Bem. Sabe o que é que se passa? É o seguinte: como o Mário tem ouvido falar, nós temos uma aura. Até os russos já a fotografaram e chamaram efeito de Kirlian. Todos os corpos físicos, ou materiais mesmo, têm uma cercadurazinha com uma luz muito ténue. Quando chega às pessoas, e os russos nas pessoas não conseguiram fotografar, a aura é maior. A aura é colorida e cada cor tem um significado simbólico. Por exemplo, o vermelho escuro é uma paixão, mas uma paixão má. É uma inclinação extremamente sensual. Depois, há os tons neutros entre os tons castanho e o cinza. São dificuldades ou defeitos que as pessoas têm na vida e que não conseguiram ultrapassar ainda. O amarelo é uma cor muito boa. Aparece normalmente à volta da cabeça e se esse amarelo é muito intenso indica que a pessoa tem uma vida espiritual muito desenvolvida. O seu espírito está já muito evoluído. Admita o Mário, e Deus o livre, que tem uma mania, um vício qualquer. Esses vícios projetam na aura uma imagem pequena. Eu já vi isto num cartaz oriental e não comprei o cartaz! Apareciam na aura pequenas figuras, de pessoas que odiava, por exemplo com as quais não tinha tido ocasião de se reconciliar ou não tinha querido reconciliar-se. Ora bem, voltando atrás, essa aura, que é uma coisa interessante que me chamaram a atenção, acontece que os resplendores dos santos, sabe, aqueles resplendores de prata que eles têm não são mais do que a representação da aura, que era uma ideia que estava no espírito dos primeiros cristãos e que se veio a perder; mas não se perdeu a ideia de pôr um resplendor em volta do santo. Não é só em volta da cabeça que nós temos. Vem dos pés até acima. E portanto, à medida que você... e agora vem a ideia da serpente a morder a sua própria cauda... nós aparentemente somos todos pedaços de Deus, a caminho de Deus. Separámo-nos por vontade do próprio Deus que mandou essas criaturas, ou seja, Ele mesmo ter experiências através delas, e então os espíritos, conforme as circunstâncias, reagem, bem ou mal. Eles precisam de ganhar experiência e de reagir sempre bem a toda e qualquer experiência. Se fazem isso mesmo, portanto reagem bem às experiências da vida. Mesmo nos desgostos a sua aura reflete isso e a parte amarela da aura começa a ficar cada vez maior e então depois, na altura em que desencarnam vão ter experiências no astral e nos outros corpos também para digerirem a experiência desta vida. Depois de terem passado por um período de aperfeiçoamento e de felicidade, em que, segundo se diz, depois de morrerem as pessoas podem juntar à sua volta pessoas amigas. E se estiverem muito cansadas podem fazer uma espécie de repouso com os duplos das pessoas que amam ou que amaram. Quer dizer: apresentam-se, não os próprios espíritos, que esses estão na sua evolução normal, e nem você os pode interromper. Admita-se essa rapariga de quem tanto gostou... que um dia, visto numa situação de ter que repousar, pode viver com o duplo dessa pessoa...»
«Agora comecei a pensar na Esfinge (5).»
«Isto da Esfinge é que não sei o que é. Uma pessoa que você conhece?»
«Dá-me a ideia que não bate certo. Andamos sempre a jogar ao gato e ao rato. Mas tão depressa sou eu o gato, como ela.»
«Ah!»
«Quando um está interessado, logo o outro não está, compreende? É uma espécie de desencontro.»
«E também uma atração.»
«Sim, uma atração. Só que a dona Ima, conhecedora do caso, disse-me um dia que nunca conseguiria nada dela porque tinha medo de mim.»
«Mas tem medo de si, porquê?»
«Respondeu que não sabia.»
«Bem, talvez seja uma experiência por que você terá que passar. Mas como lhe ia dizendo dessas experiências, ao espírito é-lhe mostrado o conjunto de circunstâncias em que vai reencarnar outra vez e o espírito passa por um momento de agonia indescritível porque não quer reencarnar, pois são mostradas as dificuldades que vai ter porque tem que passar pelo processo do parto, pelos traumas da adolescência e porque tem que passar ainda por outras experiências.»
«A pessoa pode reencarnar, digamos, no ponto zero?, ou num certo nível?»
«No ponto zero, não! Sempre no ponto adiante. Ele faz... digamos assim... ele capitaliza. Estou a falar do corpo desencarnado. Não lhe estou a falar do seu agora. Pode estar a ser influenciado por outros corpos astrais. Mas isso não é... Dão-lhe a visão do que vai ser a sua vida, das dificuldades que vai ter e então o espírito, que está quase num estado de glória, sente-se deprimido e reencarna, e, ao reencarnar, vai ter novas experiências, mas não volta para trás. Parte sempre do ponto de aperfeiçoamento em que está para ir para diante.»
«Nunca vem para trás. Nunca vai reencarnar, por exemplo, num cão?»
«Não. Há teorias que dizem isso. Não julgue que não. Por exemplo, os gregos, que tiveram essa noção de reencarnação, diziam que o homem podia reencarnar num lobo ou num cão...»
«É porque esta história que eu passei...»
«Do cão?»
«Eu nunca vi uma coisa assim! Um animal que não conhece uma pessoa pode segui-la meia dúzia de passos, se a pessoa não diz nada. Se lhe tivesse dado qualquer coisa de comer... mas não. Não lhe fiz nada! Ele seguiu-me. Pura e simplesmente, seguiu-me. Tal como eu tinha seguido a Manuela da primeira vez que a vi. Fiz o paralelismo entre as duas coisas. É uma imagem do que se passou, mas ao contrário. Inclusivamente, o cão foi sentar-se ao meu lado esquerdo no banco do jardim.»
«Ao pé de si.»
«Deitou-se. Eu queria dizer... deitou-se. E considerei que o cão era eu.»
«Ah!, era você...»
«Em sentido figurativo, claro. O cão estava ao meu lado. No lado direito. Eu sentava-me no banco sempre desse lado e ela ficava do outro. Depois apareceram os outros dois cães. Não gostei.»
«Vieram buscá-lo. Isso é interessante.»
«Não gostei. E tanto que não gostei, que, quando um cão se afastou de cena e o outro ficou a olhar fixamente na nossa direção, o meu salta logo para o chão e aproxima-se dele. Então, dou-lhe um grito. Ele fica quieto e olha para mim, como quem quer dizer que tem que ir!»
«...»
«A vida é mesmo assim. Meses depois de termos acabado o namoro, a Manuela escreveu-me a propor uma oportunidade para reatarmos. Algum tempo depois, quando tudo parecia encaminhado para a reconciliação e para nos encontrarmos de novo em Portalegre, surgiu um obstáculo. Outra mulher.»
«Arranjou outra namorada.»
«Sim, outra namorada.»
Contei resumidamente que a Simone estava na casa dos meus pais a convite da minha irmã. Tentei reagir à sedução dessa mulher e não consegui. Um dia até fiz a mala e fui para a estação de camionagem, pronto a ir para qualquer sítio. Mas desisti. Não consegui resistir.
«Tivemos à chegada a Portalegre uma receção especial na casa da mãe dela. Eu e o meu primo Justino não comemos nada. Não sei porquê. Sempre desconfiei que havia qualquer coisa estranha da parte da mãe dela para ficar preso como fiquei. Até admiti que era bruxa.»
«O filtro do amor!» ironizou a minha colega.
«Qualquer coisa assim. O que é certo é que, enquanto passei férias em Portalegre, também estive preso, sem sentir que estava. Fui enfeitiçado por essa mulher, a tal que me desviou o destino.»
«Ah!»
«... e na tarde do dia seguinte à chegada, ia a descer a rua do Comércio quando encontrei a Manuela junto a uma farmácia. Sorridente. Feliz. Fiquei para morrer. Se tivesse um buraco à frente tinha-me metido pelo buraco adentro. Sabia a confusão em que me metera e, no fundo, gostava muito dela. Estava já envolvido com a outra e não podia ser... Ainda por cima disse-me:»
«Logo à noite quero fazer uma visita aos teus tios.»
«Tinha combinado com a outra irmos ao cinema e ela ia ter a casa dos meus tios. Resultado: encontraram-se as duas!»
Nada fiz para evitar o encontro, diga-se em abono da verdade.
«Ah, sim? Essa mulher tinha boas unhas...»
Mas tocou poucas baladas comigo!
«Gostava de mim e até parece que ficou chalada quando acabei bruscamente o namoro. Mas como ia dizendo, foi um pesadelo que tive quando elas se encontraram na casa dos meus tios. A Manuela esteve pouco tempo, claro. Encaixou o golpe com muita dignidade e educação. E digo-lhe uma coisa... o setembro passou-se e, quando vim para Lisboa, acabei logo o namoro com a Simone.»
«E ela consentiu isso? Não foi atrás de si? Finalmente, você era um "D. Juan"!»
Sorri.
«Naquela altura, talvez.»
«Tinha as suas experiências, claro.»
«Era. Para os casos que passavam pela frente. Entretanto a outra oportunidade perdeu-se. Nunca mais reatámos.»
«Mas o Mário disse-me que tinha visto a Manuela num Banco.»
«Vi-a mais que uma vez. O mundo dá muitas voltas!»
«E não se falaram? Não tiveram conversa nenhuma?»
«Não.»
Depois falei do tempo das confusões, dos muitos caminhos cruzados.
«Se tivesse casado com ela...»
«...estava viúvo. Coitadinha, morreu de...»
«Cancro, penso eu. Estas coisas... nunca se sabe. Há quem diga que o cancro é uma doença psicossomática.»
«Diz-se que sim.»
«Mas são coisas imponderáveis. Agora, o que está, já está. De qualquer maneira, depois ainda tivemos dois encontros importantes.»
«Olhe, suspenda um bocadinho para ir buscar o livro.»
Fizemos uma pausa. Pouco depois a Lara apareceu com um livro que queria emprestar-me. O homem e os seus corpos, de Annie Besant. Começou a falar da autora.
«Era jornalista. Ia para as estações do metropolitano de Londres onde dormia aquela gente pobre. Ia lá fazer bem, contactava e tudo mais. Além disto, foi recebida na maçonaria branca e chegou ao grau trinta e três da maçonaria. E ela aqui do que é que fala? Precisamente dos corpos do homem e das funções de cada um. Vai dar muita importância a este livro. Deixe-me só pôr o nome para você não se esquecer que é meu.»
«Não me esqueço, não me esqueço.»
«Estava na minha mesa-de-cabeceira. Eu não lhe disse? Leve e leia-o porque é precioso.»
«Leio, leio. O mais curioso é que só agora consegui interpretar determinados fenómenos que aconteceram em 1976. Em maio, de um momento para o outro, comecei a sentir-me mal. Foi em casa do Rui Albano, à noite. Lembra-se dele?»
«Lembro-me perfeitamente dele. Era professor de Desenho. O senhor tinha umas sobrancelhas muito carregadas e parecia que andava sempre de mau humor.»
«Exatamente. De repente senti uma pressão no peito e um cansaço enorme. Talvez também angústia. Dias mais tarde, como a sensação de cansaço se mantinha, fui a uma médica do centro de saúde. A tensão arterial estava um pouco alta. Nada mais de especial. Mandou-me fazer análises e um eletrocardiograma. As análises estavam boas, mas o eletrocardiograma acusou insuficiência coronária, tanto em repouso como na prova de esforço. Passei então por uma fase de grande angústia e só há pouco tempo é que comecei a libertar-me dela.»
«E não voltou a fazer eletrocardiogramas?»
«Vários. Nunca mais nenhum exame acusou insuficiência coronária.»
Resumindo: da primeira vez que senti a irregularidade nas batidas do coração, com batidas ritmadas e uma fora do contexto, como se o coração já não batesse mais, passei uma noite em branco, esperando a chegada da amiga morte.
Logicamente não chegou, nem sequer assomou ao postigo. Entretanto a Tomélia, uma amiga dos meus tempos de menino e moço, que é médica, recomendou-me um médico que trabalhava no hospital da minha terra. No dia seguinte fui ao hospital e procurei o tal médico. Não estava. Acabei por falar com outro que me convenceu a ir ao seu consultório. Resumindo ainda mais, para finalizar: o médico disse que era tudo uma questão nervosa, mas não me convenci. Fiz então uma prova de esforço no tapete rolante e consegui resistir dezassete minutos, o que foi uma proeza, segundo ele disse mais tarde. Para me confundir ainda mais, uma vidente chamada Verónica admitiu a hipótese de um encosto como causa dos meus aparentes problemas do coração e admitiu ser um homem. Não deu mais pormenores. Claro que não acreditei.
«A Manuela morreu em 1974. Não se pode considerar que tenha sido uma morte... enfim...»
Interrompeu-me.
«Pacífica.»
«Pouco pacífica.»
A seguir, relatei o caso da cassete suspensa.
«Foi o primeiro sinal de mudança.»
«E a cassete continha o quê?»
«Apostas proibidas de totoloto.»
«Apostas proibidas.» Repetiu, pensativa.
Mudou o rumo da conversa.
«A minha mãe era médium e teve que desistir.»
Já sabia.
Uma vez, em fevereiro de 1988, levei de carro a Lara a casa. Tínhamos estado numa reunião de escola e era já noite. A conversa que tivemos pelo caminho incidiu no paranormal. Falámos de espiritismo. Perguntou-me se já tinha visto alguma coisa ou ouvido vozes interiores e falou também na escrita automática. Não queria aprofundar o espiritismo. A mãe fora espírita e sofrera bastante com isso.
Entre outras coisas, confessei-lhe que já tinha avançado demasiado no fenómeno do paranormal e era preciso parar, nem que fosse para tomar um pouco de fôlego. Paradoxalmente, ao mesmo tempo, estava nostálgico dos tempos em que abri cortinas após cortinas.
No dia seguinte tive um problema semelhante ao que me aconteceu, mais tarde, com "a mulher de vermelho". Com uma diferença... começou ainda em Lisboa, de manhã, teve outro ponto alto no café do Norte e prolongou-se pelo resto do dia.
(continuação da gravação com a Lara...)
«Voltando ao tal caso do caixão com muita luz, que interpretação é que poderá haver para isso?»
«Bem, um caixão com muita luz... um caixão com muita luz mesmo. Muita luz dentro...»
«Vazio. Tenho a impressão que se via o fundo do caixão. Mas não tinha nada lá dentro.»
«Podemos imaginar, por exemplo, que seja o caso dela, depois de você ter atuado e ter mandado dizer missas.»
«E de ter ido a Estremoz. Julgo que fui chamado por ela.»
«Mas olhe, isso para mim não tem assim tanta estranheza. Não sei se o Mário sabe que existem imensas músicas escritas por Chopin através de uma médium, não só o Chopin, parece que também o Liszt e o Mozart. Mas de Chopin tenho a certeza que há mais valsas e mais noturnos que foram ditados a uma médium psicográfica. E ele mesmo se identificou como sendo o Chopin. Não sei o que é feito dessas músicas, nem se são tocadas nem se deixam de ser tocadas. Mas isto foi o que encontrei num livro de espiritismo...»
«Mas isto que está aqui não foi ditado. Estou convencido.»
Referia-me ao Promontório.
«Não. Não creio, não sei... não faço ideia. Parece-me que será você mesmo, não é? Isso não. Havia de ser ditado, porquê?»
Uma pergunta que devia ter considerado como desafio e não considerei.
Também pergunto aqui: porquê?
«Eu quando escrevo essas coisas, é sempre assim: “tá, tá, tá”. Sem traços nos “tês”.»
«Mas ainda escreve?»
«Há muitos anos que não escrevo. Prometi não escrever e não vou faltar à promessa.»
A quem?
«Isso deve dar um desgaste muito grande.»
«Dava-me um desgaste muito grande e não apanhava boas comunicações. Apanhava as comunicações de espíritos inferiores e então lá de S. Paulo disseram-me que não escrevesse mais.»
Afinal não prometeu a si própria.
«Uma pessoa pode escrever?»
«Pode. Mas custa muito. Aconselharam-me que não escrevesse, ou então que fosse desenvolver a minha capacidade mediúnica. Teria que ir para o Brasil e a minha vida estava muito complicada, muito cheia de desgostos e muita coisa... e então resolvi deixar de escrever. Deixei de escrever de facto. Mas volvidos uns anos, depois de 74... aí para 76, em que estava com uma dificuldade em escrever um trabalho de investigação, voltei a escrever. Não sei se já lhe disse que faço meditação transcendental...»
«Talvez...»
«A meditação transcendental é uma meditação de inspiração budista. Eu tinha lido um livro em que o autor diz que há um eu, o nosso eu superior que já estará em contacto com os corpos muito acima do nosso e que todos nós precisávamos de um guru, ou seja, de uma autoridade que nos soubesse amparar e fazer desenvolver. Estava eu a fazer aquela meditação, e veja as coisas em que uma pessoa pode cair, e veio-me de dentro a noção de que estava um guru presente.»
«Não viu nada?»
«Não. Era uma espécie de voz...»
Partida do subconsciente?
«... interior.»
«Interior. Eu sou o teu guru. Calcule o que me aconteceu. Eu, que estava motivadíssima, começo a chorar, assim de mansinho. Mas calei-me. Porque ele aconselhava que a pessoa fosse extremamente humilde, se calasse e esperasse. E então essa espécie de voz (não sei se aquilo era uma voz) disse-me:»
«Escreve.»
«Não lhe digo nada. Estive quinze dias na posse de espíritos que não sei se foram maus ou bons pois eu só fazia disparates.»
Afastada a hipótese do subconsciente.
«Mas não fazia nada de jeito?»
«Escrevi assim montes de coisas. Não dormia praticamente. E então essas comunicações não diziam respeito ao meu trabalho. Diziam respeito a pessoas da minha família, pessoas que me queriam mal, que me fizeram mal, coisas do meu passado, coisas do meu presente. Passava horas naquilo e não dormia nada. Finalmente, quando pensei que iam começar a ajudar-me, no sentido de esclarecerem-me certos pontos, comecei a escrever disparates e o traço começou a fazer assim: "tz... tz... tz...".»
Influência de alguma alucinogénio?
«Eu disse assim:»
Bateu com as mãos na mesa.
«É a última vez!»
Nunca imaginei que a Lara pudesse ter um gesto violento.
«... que me fez sofrer tanto! Eu chorei tanto! Afligi-me tanto! Estar a perder tempo no meu trabalho e não poder deixar de escrever. Eram folhas às dúzias.
A altas horas da noite deitava-me um pouco, para depois outra vez voltar a escrever aquilo! De maneira que me lembrei logo do brasileiro:»
«Não faça mais isso.»
«Não. Não faço.»
«E consegui, com muita força de vontade, não escrever. Porque, ao mesmo tempo que escrevemos, sentimos uma espécie de companhia. Alguém que se está a exprimir através da nossa mão.»
«Nós estamos a ser dominados, no fundo.»
Nós?
«Estamos a ser dominados.»
«É por isso que eu digo: quando escrevo estas coisas não sei...»
De novo apresentei a minha dúvida sobre a autenticidade do Promontório.
«Não... Isto não é escrita psicográfica. De maneira nenhuma. É a sua letra. Eu nem sequer escrevia com a minha letra. Era uma letra corrida. Assim... alta... E olhe que eu, inclusivamente nestas coisas que escrevi, escrevi muitos palavrões, que me diziam, que me ditavam para a mão. Agora tenho dificuldade em escrever, mas é uma dificuldade resultante dos remédios que tomo.»
«Lamento...»
«Obrigada. Mas queria dar-lhe um conselho. Só pode ser para seu bem. Tem que selecionar as pessoas a quem vai contar essas coisas insólitas que lhe acontecem. Tem que selecionar porque depois aparecem coisas desagradáveis. Nestas coisas da minha escrita automática só contei a uma Judite, de Germânicas, que estava lá na escola e tinha uma série de problemas desagradáveis com o marido. E então ela pediu-me e eu fiz duas folhas e não deu assim grande coisa. Deu negativo para ela. Queria saber determinadas respostas sobre o marido e estava a dar tudo negativo. De maneira que deixei de vez.»
«Podem dizer-me que estou doido, não é?»
«Evite falar.»
«Estou na fase da seleção. O tempo do deslumbramento está a passar. A necessidade de contar tudo o que me acontece fora do normal já não é tão premente.»
«E tente não aprofundar. Essas coisas são perigosas. Podem fazer mal às pessoas. E ainda por cima apanhamos influências baixas, percebe? Se nós apanhássemos os espíritos do Centro de São Paulo, sempre com pessoas do mesmo desenvolvimento espiritual e moral e todas pessoas de alto coturno, sob o ponto de vista espiritual, então seria muito bom!»
Interrupção curta para mudar de cassete...
«Acontece que, depois das coisas acontecerem, sinto que há em mim capacidades aumentadas.»
O chamado sexto sentido.
«Olhe, eu pessoalmente devo dizer-lhe que tive um traumatismo enorme quando vim do estrangeiro por causa de uns problemas com pessoas horrorosas que encontrei. Inclusivamente, estive internada em duas casas de repouso. Tive que fazer um tratamento muito sério. Mas noto também que a minha perceção espiritual, e outras coisas no género, aumentaram. Ao passo que a resistência diminuiu. Tanto que canso-me facilmente a fazer coisas do tipo profissional. Mas, se estiver a meditar, por exemplo na minha meditação transcendental...»
«Não se cansa.»
«Nem pensar!»
«Por exemplo, agora?»
«Estou ótima. Estamos na mesma corrente, julgo. A minha meditação melhorou imenso. A capacidade de conhecer coisas de natureza filosófica também melhorou. Notei nas minhas histórias da Filosofia, que é uma coisa de que gosto muito de ler. O que é que notei mais? Notei que a rezar tenho uma concentração maior.»
«É uma coisa que eu não consigo. Embora acredite em Deus, não consigo rezar. Mas sinto-me bem nas igrejas.»
«Sente-se bem nas igrejas, não sente? Passei por fases de quase ateísmo. De complicações. De uma pesquisa de Deus. Foi uma coisa angustiante que durou nove anos. Uma procura de Deus. Uma coisa incrível porque o Deus que a religião me dava já não estava a dar para mim. E então toquei em tudo o que possa imaginar. Toquei em espiritismo. Toquei e li. Toquei até em vodu branco. Tudo em busca de uma solução. E onde é que encontrei a minha verdadeira alegria? Encontrei no budismo!»
Apontei para um dos recantos da sala.
«Vi ali uma imagem há um bocado...»
«É Buda de Burma. Uma antiguidade autêntica. Faço sempre ali a minha meditação. Cheguei a um ponto em que sou, digamos, uma cristã-budista. Naquilo em que a doutrina não encalhou com a cristã, faço uma meditação de origem budista. Há padres católicos que o fazem e sei que os irmãos beneditinos da Alemanha tinham mandado vir um guru indiano para os ensinar a meditar e a dizer os mantras, aquelas palavras que se dizem para acalmar, porque toda a meditação tem um mantra. Nós temos um mantra pessoal. Eu tenho duas sílabas que não posso revelar. Então concentro-me em frente do Buda e repito as frases até conseguir o silêncio do pensamento. Ou seja: o nada.»
«Mas... não está pensando...?»
«Eu estou à vontade. Depois vêm os pensamentos.»
«Não há um vazio?»
«Há! Mas é uma maravilha! A gente vai repetindo aquele mantra pacientemente. Primeiro temos que fazer uma descontração. Depois, repete-se o mantra à medida que vêm chegando os pensamentos. Sem esforço nenhum voltamos a introduzir o mantra e a certa altura perdemo-lo. Só há uma sensação de paz e de uma escuridão, uma escuridão agradabilíssima. Uma coisa fantástica! Um bem-estar incrível!»
«Quanto tempo consegue...?»
«Aguento o máximo de cinco minutos e é já muito bom. Lá vêm os pensamentos outra vez e lá vem o mantra. Portanto, é isto que fazemos durante vinte minutos. Houve um homem na Índia que é um santo, não tenho dúvida, que tinha um centro de espiritualidade. Sabe o que é?»
«Não.»
«É um centro onde há um guru. Então vêm pessoas aprender a doutrina e quando não tem meios de subsistência são os discípulos que lhe trazem a comida, que lhe trazem a fruta, que lhe trazem o arroz, porque eles não comem carne. Havia um guru que já morreu há bastante tempo e que escreveu uma coisa muito importante para mim quando andava nestes meus problemas... porque depois de abraçarmos o budismo, é uma coisa que custa muito sobretudo no país onde estamos porque não temos amparo espiritual. Se nós tivéssemos um templo budista, um centro budista, como havia em Inglaterra, tinha o seu interesse. Mas eu li o seguinte: "Nunca deixes a tua religião de origem porque, saindo dela, sais da civilização em que foste criado e saindo da civilização em que foste criado nunca mais encontrarás o equilíbrio." Portanto, o que fiz? Mantive as meditações. De resto já expliquei inclusivamente a padres. Eles acham bem. E há padres que as fazem. Quando vou ao confessionário não confesso a minha crença na reencarnação porque não ofendo Deus em nada, e eu li, além disso, em vários livros que dizem que a crença na reencarnação se perdeu algures entre as primeiras comunidades cristãs e os primeiros concílios de Roma. E havia crença de reencarnação no Evangelho. Não creio que ofenda Deus e então considero-me uma cristã. Mas não queira saber. Voltei outra vez ao catolicismo, não me importo saber dos dogmas, não quero saber se Nossa Senhora foi virgem ou não foi virgem quando deu à luz. Não quero saber absolutamente nada. Mantenho-me na pureza daqueles textos de Teosofia. Sabe o que é? Eu fui membro da sociedade teosófica. A Teosofia é o estudo de Deus e, também, o estudo das religiões comparadas. É o meu hobby. Havia uns livros de Teosofia que focavam a missa de uma maneira especial. Muito interessante. Quando o padre estende as mãos para fazer a consagração da hóstia e do vinho, todos nós, pessoas da assembleia, devíamos concentrar o nosso espírito e pedir a Deus que descesse através daquelas mãos e santificasse aquilo que nós vamos tomar a seguir. Já nem sequer me importa saber se Deus está ali em carne e osso, importa-me simplesmente... como é que hei de dizer?, concentrar-me na espiritualidade. Rezo com imensa fé e faço meditação, e leio textos budistas, e fico feliz da vida. Aliás é uma aproximação que se vai passando cada vez mais, dando grandes mostras no Brasil uma grande aproximação entre o budismo e o cristianismo. Portanto, eu vou sempre à missa. Todos os domingos vou à missa, mas faço uma meditação. Isso faço. A minha meditação transcendental. Há um centro para os lados de Belém onde ensinam. Porque, por exemplo, se quisesse ser tão simpática e lhe ensinasse a fazer meditação transcendental, não podia. Estou proibida. Tem que ser um professor de meditação transcendental.»
«Mas voltando às capacidades intelectuais, estou convencido que, ao contrário do que se diz, que as células nervosas vão morrendo e as pessoas perdem determinadas capacidades, dá-me a ideia que há outras zonas do cérebro que vão sendo...»
«... ativadas. Também me dá a impressão.»
«Estou convencido que a programação no computador ajudou-me.»
Onde falo da resolução de problemas de programação bastante complicados.
«Está na fase boa.»
«Inclusivamente creio que consegui contrariar uma previsão da dona Ima em relação à Esfinge:»
«Nunca conseguirá aproximar-se...»
O futuro dirá.
«Então?»
«Eu gostava de fazer com ela uma permuta de conhecimentos e convenci-a a levar-me a uma determinada pessoa de quem ela falou e que não sei quem é. Vamos ver o que vai acontecer. No fundo são só uns testes.»
«Mas testes de quê? De coisas espirituais? Tenha cuidado, Mário!»
«Continuo sem saber verdadeiramente o que ela faz. Julgo que está dirigida para o bem, mas não sei como trabalha, quais são as suas verdadeiras intenções. Como é que ela trabalha. Em que é que trabalha. Só tenho medo duma coisa: a atração física que sinto por ela.»
«Física?»
«Física, sim. Porque sempre que falamos vejo os seus olhos brilharem muito.»
«Não será que a senhora tem os olhos brilhantes?»
Brilhante! O comentário de Lara.
Onde confesso o meu receio da Manuela estar por detrás da Esfinge.
«Mas você vive, no fundo, uma saudade... uma coisa espantosa por essa Manuela!»
Adeus, Lara…
O Alfredo afastou-se logo. Lembrei-me do Álvaro e senti vontade de descer a alameda que partia do topo da capela. Era uma descida muito acentuada e o calor apertava. Não receei a ideia de subir mais tarde aquela ladeira. Essa ou outra com maior declive.
Demorei um pouco a encontrar o jazigo. A fotografia já não estava no mesmo sítio. Mas era a mesma. De alguém sorridente e descontraído que a morte levara antes de chegar o seu tempo. A mãe, depois de morta, quis que ele fosse mais cedo para junto de si. Ofereceu-lhe o “objecto” da morte. Um automóvel novo e potente!
Senti uma paz de espírito enorme e desejei que ele estivesse bem na eternidade, ou em suspensão, à espera de um novo regresso (se fosse possível) à estrada da vida que lhe fora madrasta.
O destino juntou no mesmo cemitério os três sócios de um grupo de investidores em ações o obrigações que eu e um amigo movimentávamos na Bolsa: ele, a Catarina e a Lara. Finalmente formavam um grupo maioritário. Contra as minhas treze posições, os três detinham quinze posições, mas agora a sociedade estava dissolvida. E uma coisa é certa: a conta não está ainda fechada, pois não foi possível entregar o cheque à Lara. Nunca abriu a porta ao carteiro. Portanto, estava já na sua base de negação.
Voltei para cima. A subida era difícil e o calor apertava. O Alfredo estava no exterior da capela a fumar um cigarro. Deu-me a entender que havia mais calor lá dentro.
Esperámos pelo fim da missa. Contornei a capela e fiquei do lado poente, à sombra, encostado à parede da capela. Em frente ficava o forno. Dois homens ligados à empresa funerária falavam da cremação do corpo. Um perguntava ao outro quem iria cremar o corpo.
«Eu não sou. São os coveiros...»
Fiquei com os olhos pregados ao chão. Acabava de ver um botão pequeno, de duas casas. Era branco. Segundo a Lara, os botões brancos davam sorte.
Coincidência?
Já depois da missa, e enquanto faziam os preparativos para encaminharem o caixão para o forno crematório, soube que a Lara estava morta há quinze dias quando entraram em casa dela. Houve necessidade de os bombeiros fazerem uso de máscaras pois o corpo encontrava-se em adiantado estado de decomposição. Inevitavelmente, os corpos material e etérico em fase irreversível.
«Espera, Mário...»
Voltei-me. Era o Alfredo. Trazia também consigo uma lágrima rebelde.
«Também não gosto destes momentos.»
«Pois não.»
«Já tenho saudades dela...»
«Então vamos. Não podemos fazer mais nada pela nossa colega e amiga.»
Quando chegar a minha vez, esperarei por ti no futuro, Lara, minha amiga! Acredita que não tenho medo.

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