sexta-feira, 12 de maio de 2023

A Esfinge tinha uma heroína

 


A Esfinge era uma mulher enigmática e perigosa. A sorte sorriu-me 
porque Alguém lá em cima gostava muito de mim. 



UM COMEÇO
Já escrevi muita coisa sobre acontecimentos estranhos, mas parece que o tema não se esgota. Os casos, ocorridos comigo ou não, entrelaçam-se de forma complexa, cruzam-se, emaranham-se. Por vezes, comportam-se como autoestradas em viadutos desnivelados, chegando mesmo a dar a ideia que vão entrar em colisão. Por isso, é muito natural que apareçam parcialmente repetidos em histórias já contadas. E ainda bem porque fica sempre algo por contar, pouco importante para mim, no momento, mas esclarecedor para quem lê. 

Entrando propriamente na história, ela chamava-se Esfinge. Claro que o nome não tinha qualquer relação com o enigmático monumento do planalto de Gizé situado em torno da pirâmide do filho de Keops. Apenas uma semelhança a pôr em evidência: era uma mulher enigmática. Nas frases que dizia. Na vida escondida que levava. Na inconstância do relacionamento pessoal.
Nunca foi do azul e, para mal dos meus pecados, tinha uma amante e eu não sabia. Coisas da vida.
Mas essa história de ser ou não ser do azul tinha muito que se contar neste caso. Deslizei alternadamente em dois mundos: o azul e o negro. Só por uma questão de sorte não me perdi no negro, o mais negro que se podia imaginar. Tive a sorte pelo lado. Apenas a sorte e mais nada.
Conheci-a há muitos anos, mas conservo ainda na mente a imagem esbatida de uma mulher magra, de corpo bem feito e beleza do rosto só prejudicada por um nariz afilado. Tinha uma voz doce e pausada que prendia a atenção. Raras vezes usava calças, talvez para realçar a beleza das pernas. E já me esquecia... tinha uns bonitos olhos de amêndoa!
Como há sempre um começo para tudo, escolho este, que nunca mais foi apagado da mente, porque no fundo, está relacionado com a hipotética amante que tinha. 
Vi a Esfinge pela primeira vez na secretaria da escola. Tinha ido tratar de um assunto que não me ocorre e carece de importância para ser recordado e fiquei chocado com o que vi. Ela chorava. As lágrimas caíam com abundância pelo seu rosto. Pensei que não havia motivo para tanto choro. Acabara o estágio e não tinha sido reprovada.
Alguma falta injustificada?
Não. Devia ser uma coisa mais grave. E era. Só mais tarde descobri.
Mas quem era eu para adivinhar?, e, principalmente, que interesse tinha, pois mal a conhecia?
Por esse motivo não perguntei à visada a causa das lágrimas que se desprendiam em cascata daqueles bonitos olhos de amêndoa. Limitei-me a encolher os ombros em pensamento e fui tratar do assunto que me levou à secretaria.

O FURACÃO
Um furacão avançava, ameaçador, sobre nós. Havia muita gente naquele barracão. Do interior do barracão vi uma nuvem isolada no céu azul que julguei ser a causa do furacão. A primeira reação que tive foi de êxtase. Não se assistia todos os dias ao nascimento de um fenómeno tão maravilhoso e com tanta energia acumulada que iria, mais tarde, culminar com a descarga destruidora à sua passagem.
Avisei as pessoas. Não conhecia ninguém, nem sabia o que estávamos a fazer ali. O meu aviso foi recebido com indiferença. Mas tinha a certeza que ia acontecer.
Aproximei-me da porta. Embora ainda distante, o furacão parecia avançar, ameaçador, no rumo certo. Estava fascinado com a beleza do espetáculo e deixei-me ficar a ver. A apreciar. Mas o perigo espreitava. Devia chamar à razão aquela gente indiferente. Fechei a porta e atirei-me para o chão de terra batida. Os outros imitaram-me. Finalmente pareciam tomar consciência do perigo que os espreitava.
Senti a passagem do furacão. Os efeitos foram nulos. Ninguém sofreu a mínima beliscadura. Inclusivamente o barracão ficou intacto.
Não terá passado de uma alucinação?
Tive a resposta mais tarde, já no exterior do barracão. Nos sonhos são segundos ou frações de segundo quando se passa de uma sequência para outra.
Chovera com abundância e havia lama por todo o sítio. Vi uma casa pequena e um carro. O carro estava danificado e a casa intacta. As pessoas começaram a lamentar-se. De facto, tinha passado um furacão por aqueles sítios.

ESTÁVAMOS NA MESMA ONDA?
Na sexta-feira passei pela avenida Alexandre Herculano e entrei na Ática ao descobrir na montra que havia livros em saldo. Comprei um livro sobre Alquimia (lembrei-me da Esfinge) e outro mais ou menos do género. Como não tinha dinheiro suficiente, deixei a compra em suspenso e saí da livraria. Atravessei a avenida fora da passadeira e dirigi-me a uma ATM do Banco Português do Atlântico situada mesmo em frente.
A mensagem que recebi deixou-me perplexo. Não pagava por falta de cobertura. Entrei no estabelecimento bancário e encaminhei-me de imediato para o balcão dos levantamentos. Ouvi o ruído característico do processamento das máquinas. Logo de seguida um dos empregados disse:
«Terminais em off
Os processamentos tinham cessado. O próprio caixa confirmou-me:
«Foi mesmo agora. Tem de esperar um pouco.»
Por acaso fui atendido rapidamente. O saldo tirado do meu cartão serviu de documento comprovativo de liquidez. Saí a pensar que as coincidências eram mais que muitas relativas às máquinas que ficavam off só com a minha presença.
E a histórias da esferográficas que desapareciam e apareciam de novo no mesmo sítio?
E todo o resto que não vou repetir?
No último dia de aulas antes das férias de Natal houve uma pequena festa nas turmas da experiência. Eu, o Alfredo, o Raul, o Jesuíno e a Florbela Gaspar acabámos a comemoração na minha casa. A conversa pendeu, inevitavelmente, para a Parapsicologia. Formaram-se dois blocos: de um lado, eu, a Florbela e o Raul; do outro, curiosamente, os homens das Letras. Contudo, o Jesuíno, o mais renitente de todos, acabou por falar de um estranho caso passado com um casal amigo e, pela descrição que fez, admitiu a existência de mundos paralelos. A incoerência do meu colega fez-me lembrar a frase:
«Eu não acredito em bruxas, mas a verdade é que elas existem...»
Falou-se também do livro "Vida depois da vida". Na altura em que o Jesuíno tentava rebater as minhas convicções, ouvi o Raul dizer em voz baixa:
«Já estive em duas... Comigo já aconteceu. Passei duas vezes para o outro lado.»
E a Esfinge...?
Era uma mulher enigmática. Por isso chamei-lhe Esfinge. Entre outras coisas, disse que fazia Alquimia. Mas queria deixar a Alquimia para se dedicar totalmente à Astrologia. A sua primeira paixão.
Há dias, quando saímos da escola, fez-me uma confissão:
«Vou ganhar juízo e voltar às origens...»
Astrologia?
Perguntei-lhe o que queria dizer com aquela frase. Limitou-se a sorrir e tive que ficar com o seu sorriso doce como único para poder decifrar o enigma. Talvez não fosse a Astrologia. E não entendi o que queria dizer com "origens".
Confessou-me que também se dedicava à fotografia. Mas a referência que fez, era, de certa maneira, estranha.
«Fazemos fotografia...»
Mas ela disse-me que vivia só!
Aquele fazemos já não era a primeira vez que saía da sua boca.
Pertencia a um grupo hermético?
Foi a partir daí que cresceu o desejo de me aproximar mais dela para a conhecer melhor e também porque começava a sentir uma atracção fatal por ela. Coisa quase comum quando conhecia um "rabo de saias".
Não sei da cassete que lhe emprestei, dos poemas, da opinião sobre os dois livros de contos que lhe ofereci, etc. Cheguei mesmo a perguntar-lhe e respondeu-me que tinha ouvido um pouco a cassete. A seguir, o silêncio. A fuga. O ar de comprometida. O começo da constância dentro da inconstância que era ela.
Esta relação monótona não vai para a frente?
Calma, Mário. A vida é curta. Olha bem para o caminho...
O mês de janeiro foi calmo. Sem história.
Chegou fevereiro. Nessa altura não sabia quem era ou quem queria ser: se o Mário, que seguia, no snack vazio, o voo fatal da gaivota, vivendo o sonho do regresso de Patrícia, se o outro que parecia ser, que tinha tudo o que não queria e que procurava tudo o que não tinha. Um paradoxo já habitual na minha insaciedade.
Já não tinha a Manuela comigo, agora a companhia era o fantasma dos meu dias cinzentos. O fardo do remorso. A razão da longa caminhada através de estradas sempre desertas.
Não podia desligar-me do mistério de uma mulher que me disse, uma noite, que era eterna.
Sem dar conta do que estava a acontecer, deixei a Esfinge, uma mulher perigosamente enigmática, entrar na minha vida.
«Como soubeste que eras eterna?»
Sorriu misteriosamente e demorou a responder.
«Li num livro...»
«Ah!, num livro. E que livro?»
«Isso agora não posso dizer!»
Conversa só para me tapar os olhos. E eu deixei.
Tocou para o intervalo e disse que tinha sede. Acompanhei-a ao bar. Não havia ninguém. Serviu-se de um copo de água e bebeu de uma vez. Fiquei à espera que acrescentasse mais alguma palavra. Bebeu a água e eu não bebi mais nenhuma palavra sobre a sua revelação bombástica sobre a eternidade.
E ficou por ali. Apenas lera num livro. Aliás, ainda não tinha a certeza de ser eterna.
Em que ficamos Esfinge?
«Disse por dizer.» Emendou.
Mas em fevereiro comecei a entrar ao de leve nos seus circuitos labirínticos. Uma reunião que tivemos na sala dos profes­sores foi muito importante para definir o rumo a tomar e também para me lançar na senda das descobertas perigo­sas.
Nesse dia sentia-me cem por cento negativo. Um daqueles dias em que só me apetecia desabafar. O Alfredo mostrava um ar de enfado, parecendo só estar á espera que o tempo passasse. A Mafalda não reagia, como de costume, pois acabava de sair de uma depressão das fortes, daquelas de caixão à cova. Portanto estava mais muda que uma rocha e não era pessoa capaz para ouvir os meus desabafos, se fosse caso para os ter. Só a Esfinge parecia dar atenção ao meu discurso negativo.
«Tu não acreditas…»
De um momento para o outro descobri que falar com a Esfinge era o mesmo que entrar na dimensão em que só cabíamos os dois. Finalmente abria-se uma brecha no seu castelo fortificado.
«Enganas-te. Penso até que nós estamos na mesma onda. Mais próximos do que julgas.»
O seu rosto exótico, de princesa egípcia, iluminou-se. Julguei ver nele todo um mundo de promessas. Imaginei-a, na cama, mexendo-se como uma cobra. Não era bonita, mas tinha algo de sensual que me perturbava. O andar de uma mulher que sabia mexer com tudo o que tinha. E ela se tinha tudo, estava ali, naquela cama virtual, à minha espera, seminua. Era só avançar e tomar o território de assalto. Sem armas. Com simpatia e sedução.
Foi tudo muito rápido. O Alfredo quebrou o encanto com uma das suas intervenções imprevisíveis e deixei logo de ver a Esfinge a contor­cer-se na cama e tudo o mais, como quase a chegar ao sétimo céu.
«Nunca sonhaste estar numa ilha deserta?»
Intervenção à maneira do Alfredo e balde de água fria que quase me gelou. Já não havia cama. Nem a Esfinge ondulando que nem uma cobra e eu, feito predador, a tentar saltar-lhe para a espinha.
Onde queria o Alfredo chegar?
«Não. Confesso que nunca sonhei com uma ilha deserta. Até porque não gosto de viajar de barco e assim não existe o perigo de naufragar. De facto as ilhas desertas não me apoquentam. Sonho muito é com comboios. Comboios que passam e nunca param na gare onde estou, à espera. Mas com ilhas, nunca. Nunca sonhei. E julgo que não vou sonhar nos próximos dias.»
Ficava na gare a vê-los passar. Havia sempre um túnel à minha direita. Talvez simbolizasse a impossibilidade de conhecer o futuro.
A certa altura o Alfredo afastou-me da mesa.
«Vai fumar um cigarro.» Pensei.
Mas não.
«Anda comigo à Secretaria. Preciso de ajuda. Temos que levar um projector de slides para a sala A.»
Esbocei um gesto de pegar na pasta.
«Deixa ficar a pasta. Já voltamos...»
A Esfinge ficou só.
Demorámos alguns minutos a guardar o projector no armário da sala. Depois, subimos a escadaria que dava para a sala. A meio caminho cruzámo-nos com a Esfinge. Esboçou um sorriso que me pareceu cúmplice. Cumplicidade com quem? Claro que com o Alfredo. Pura sugestão? Franzi o nariz. Desconfiei que estavam a preparar alguma marosca.
«Vou à Secretaria. Já volto.» Disse ela.
Outra que vai à secretaria…
Por que razão não foi ao mesmo tempo que nós?
Continuámos a conversar sobre banalidades até que se fizeram horas de irmos embora. Ofereci-lhe boleia. Aceitou, mas logo de seguida pareceu lembrar-se de uma coisa e já não quis ir comigo. 
Ainda fui com o Alfredo a uma livraria que ficava perto. A certa altura, mostrou-me um livro relacionado com o Diabo.
Ilha deserta. Diabo. Tentativa de sugestão, de novo?
Ouvi em silêncio e fiquei a pensar.
Estaria a relacionar o livro com a Esfinge?
Voltei à escola, mas não entrei. Atravessei o pátio em direção ao parque de estacionamento. Procurei de relance e não vi o carro. Mas lembrei-me logo a seguir que o carro estava na parte superior, junto ao campo de basquetebol.
Quando entrei em casa, dei comigo a olhar para a pasta que deixei à entrada, no hall, em cima de uma cadeira. Muito estranho! Não deixava de olhar para a pasta. Estava com pressentimentos indefinidos e, nesse caso, o melhor era forçar o consciente a deixar sair o seu prisioneiro de poderes quase infinitos.
Abri a pasta e logo concluí que tinha razão. Entre outras coisas, havia no interior uma estranha embalagem prateada que identifiquei como papel de alumínio. Era de forma rectangular e muito espalmada. Franzi o sobrolho.
Eu tinha razão, eu tinha razão!
Abri-a, com cuidado. Vi então um pó branco, muito fino, demasiado fino para ser açúcar. Mexi no pó mas desisti logo de o provar. Digamos que foi um erro crasso.
Droga?, era mesmo droga?

TERRENOS PANTANOSOS
Uns dias antes tinha falado numa aula de Formação sobre o uso e o abuso de drogas lícitas e ilícitas.
Seria uma brincadeira dos alunos?
Por vezes, no intervalo, saía e deixava a pasta sobre a cadeira junto à secretária.
Desisti da ideia. Os alunos, não. Vigiavam-se uns aos outros. Aquilo era uma brincadeira vinda doutro lado... ou outra coisa. Talvez um convite. Na brincadeira via o Alfredo. Mas no convite só podia estar a Esfinge da voz doce. Era quase certo.
Uma noite, em plena aula fizera a apologia do LSD, ao falar de umas experiências que tinham sido feitas em laboratórios americanos. Não esclareceu, no entanto, que tipo de experiências eram essas. Seguiu-se uma discussão acalorada entre nós, em presença dos alunos, mais atentos do que nunca. Ataquei o assunto a fundo ao dar conta que ela estava a pisar terrenos perigosos e podia arrastar consigo algum aluno. Era preciso não deixar dúvidas aos alunos sobre o perigo desse poderoso alucinogénio que dava origem a viagens para mundos longínquos, que se transformavam, a partir dum certo momento, em pesadelos terríveis. Os próprios viajantes só queriam regres­sar e se chegavam longe já não conseguiam. Muito complicado.
Que ideia era a sua...?
«... estamos na mesma onda.»
Lembrei-me que tínhamos comido na véspera uma tarte, como era da praxe quando ingressava um novo professor (neste caso uma professora) nas aulas do curso nocturno e a dita tarte vinha embrulhada em papel de alumínio.
A mesma prata que terá servido para guardar o pó, pensei.
Quando eu e o Alfredo fomos à Secretaria, a Esfinge ficou só. Ou melhor: em frente à pasta que o meu colega teimara para não levar para baixo. Aí também ele era suspeito. Pouco depois cruzámo-nos com ela nas escadas. O seu sorriso cúmplice dirigido para o Alfredo chamou-me a atenção.
Pobre Esfinge! Mesmo que estivesse a fazer-me inconscien­temente mal, de todo em todo seria destruída. Preferia que ela fosse a Patrícia a fazer comigo a longa travessia do deserto vermelho. Longa travessia que tanto me desencantou mas que também me atraiu. Uma travessia inóspita e própria de um Mário que matou a fatalidade logo à nascença. Mas os caminhos da Esfinge também não eram os meus.
Mais tarde desencadeei uma ação subversiva com o objetivo de fazer saltar o coelho da toca. Falei com a pessoa certa e tive quase a certeza que se encarregaria de veicular a conversa até à Esfinge.
No dia seguinte houve uma reunião de professores na biblioteca. Depois da reunião fiquei a conversar junto às escadas com um colega. Pelo canto do olho observei que ela se aproximou de nós, até que ficou a um metro de distância, à espera. Percebi que queria falar comigo.
Já não ouvia a voz monocórdica o meu colega. Espreitava-a pelo canto do olho.
Queria justificar-se?
Melhor era fingir que não a tinha visto e simular dar atenção ao discurso dele. Todo eu era concentração no que se passava do lado direito. Sentia que ela começava a perder a paciência. Sorri para dentro. Sorri ainda mais quando a Esfinge encolheu os ombros e desandou pelo corredor fora. Como sensitivo que me orgulho de ser, tive a certeza que ela ia pior que uma barata. Gozei. É verdade. Mas nunca virei a saber o que queria de mim naquele dia. Talvez que quisesse dar uma justificação sobre o caso do pacote espalmado. Por exemplo, negar que era a autora da provocação. Ou então, hipótese menos provável, assumir que era a autora da brincadeira de mau gosto.
Encontrei ainda o Alfredo à saída da escola.
«Já compraste o livro do Diabo?» perguntei com ar de gozo.
«Qual livro do Diabo?» fingiu não se lembrar.
«Não brinques comigo...»
Já me esquecia. Dei uma boleia para casa à Lara e a conversa incidiu no paranormal. Falámos de espiritismo. Perguntou-me se já tinha visto alguma coisa ou ouvido vozes interiores e falou também na escrita automática. Não queria aprofundar o espiritismo, garantiu. A mãe fora espírita e sofrera bastante.
Entre outras coisas, confessei-lhe que já tinha avançado demasiado no fenómeno do paranormal e era preciso parar, nem que fosse para tomar fôlego. Paradoxalmente, ao mesmo tempo, estava nostálgico dos tempos em que abri cortinas após cortinas.
O dia seguinte foi sábado. Um dia que nunca mais vou esquecer, nem que viva cem anos!
«Quanto tiveres noventa e nove terei eu cem anos...»
Interferência do passado remoto. Que saudades desse tempo!

A PROVA REAL
Aconteceu a seguir ao jantar, quando fui à casa de banho. Fiquei a olhar o fundo da sanita. O líquido estava vermelho. Aquilo devia ser um sinal. Líquido vermelho.
Porquê?
Lembrei-me de uma folha com algumas frases que a D. Flora me tinha dado em tempos.
«Vai ver que descobre quem é a pessoa...»
«Como assim?»
«São mágicas.»
«Ah!»
Não me desmanchei, mas achei que aquilo era um tremendo disparate.
«Depois digo-lhe se deu resultado.»
Talvez tivesse razão. Para provar que ela tinha razão só faltava descobrir quem pusera o pó branco na pasta.
Decorria o intervalo entre duas aulas e conversávamos animadamente na sala do Conselho Diretivo. Não me recordo do tema da conversa, nem interessa recordar. O que interessa é o facto da Esfinge ter aparecido, apressada, quase em cima do toque de entrada. Nem sequer deu as boas noites aos colegas. Sentou-se logo a meu lado e disse, de chofre:
«Ando com dores nos rins.»
Olhei-a, abismado. Veio ter comigo. Sem mais nem menos...
«Urinaste sangue?»
«Não.»
«Provavelmente deste algum jeito ou fizeste um esforço maior...»
Falou-me de um atelier onde fez grandes arrumações e pinturas. Concordou comigo. As dores vinham daí. De facto fez muitos esforços. Achei curioso. Muito curioso aquilo que sentia nos rins. Era inevitável fazer a ligação entre o embrulho prateado, o líquido vermelho da sanita e a dor de rins que confessou ter. O embrulho que ela meteu, à socapa, dentro da minha pasta. Era isso. Os conselhos da D. Flora tinham sido providenciais.
(«Quando quiser descobrir uma verdade, faça esta reza por três vezes: "Antes que eu te visse, já Deus te viu; leva o que deixas... leva o que deixas... leva o que deixas... Vai no teu dono!"»)
Isto aconteceu há uns meses e fiquei incrédulo na altura. Tinha chegado o momento de experimentar. Ao ser alertado por uma amiga para o perigo do embrulho estar dentro de casa, pois, segundo ela, alguém podia ter feito magia negra, lembrei-me das rezas da D. Flora e deitei o pó misterioso na sanita. De seguida fiz a reza. Três vezes.
Não acreditei que pudesse acontecer alguma coisa, mas o certo é que aconteceu. A Esfinge confessou ter problemas nos rins. Coincidência ou não, dava-me o direito de pensar que só ela podia ter sido a pessoa que colocou o embrulho na minha pasta.
Um dia, perguntou-me qual a ideia que fazia de iniciação.
Pensei que estava ligada a um grupo secreto. Talvez por causa do pensamento que tive, bloqueei um pouco e não devo ter dado a resposta que ela queria.
Fez outra pergunta: o que pretendia com o espiritual? De novo o bloqueio. Se eu soubesse...
Respondi com três dúvidas:
· Eu provocava o insólito?
· Algum ente material?
· Espiritual?
Falou-me ainda em auditoria solitária como algo bastante difícil de fazer e só conseguida com pessoas em estádios avança­dos. Achava que deviam ser duas pessoas a fazer auditoria, cada uma extravasando para a outra que tinha no seu interior. Fiquei na dúvida. O barulho da aula não me deixava concentrar. Depois, foi sentar-se no seu lugar e fiquei a pensar nas últimas palavras que disse.
Era talvez um convite.
Nós dois a fazermos psicanálise era demasiado bom para acontecer. Mas ela ofereceu-me o pó branco. Queria arrastar-me para o boqueirão!
Não lhe perdoava. De maneira alguma.
Mas qual é o mundo da Esfinge?
Haverá alguém escondido na sombra, à espera?
O que me atrai, pode ser o tal mundo escondido para lá da porta, que não atinjo. Talvez que a Esfinge esteja a ser manipulada, ao mesmo tempo, em dois mundos: no da sociedade secreta e no outro, onde alguém, que chora (dizem), vai dominando à sua volta a seu belo prazer, e tendo por objectivo final apenas a vingança. Esta última ideia está talvez a transformar-se, pouco a pouco, em obsessão. Creio até que foi soprada.
Sei que a Esfinge vai sempre estar longe de mim, aprisionada nas suas viagens. Mas, antes que a perca, tentarei fazer uma viagem em que tenho que saltar no momento exacto, depois de sorver as carícias dos ácidos purificadores da mistura que ferve no cadinho que é uma estrada sem regresso.

LABORATÓRIO SECRETO
Reunimo-nos numa sexta-feira de julho para decidirmos as notas finais.
Observei a Esfinge, furtivamente, enquanto preenchia parâmetros relativos aos alunos. Era o ladrão em contagem decrescente.
«Tem um ar egípcio...»
Não era bonita. Digamos, exótica.
Acabada a reunião, fiquei ainda a preencher uma última ficha. A certa altura, apanhando os outros distraídos, disse-lhe que já estava pronto para fazer a tal experiência da dianética.
Tínhamos uma mente analítica que correspondia ao consciente e uma mente reactiva que registava tudo o que ia acontecendo à nossa vida, mas de forma inconsciente. O mais difícil era recuar no tempo até às origens ainda dentro do ventre materno.
Não comentou as minhas palavras. Preferiu ser equívoca, exibindo um meio sorriso. Pareceu esboçar a fuga habitual, virando-se para os colegas e descarregando um mau humor forçado:
«Não consigo concentrar-me com o barulho que fazem. Ainda vou trabalhar para a sala dos professores!»
«Não há assim tanto barulho como isso.» Disse o Alfredo.
Claro que não saiu da sala. A estratégia de fuga era mais dirigida a mim do que aos outros.
Ainda tivemos outra reunião e nessa mostrou-se mais serena. Com um senão. Queixou-se de dores na coluna e num dedo.
Talvez tenha acusado o toque quando saímos todos ao mesmo tempo sem esperar por ela.
Juntou-se a nós já fora da escola. Achei estranho porque costumava sempre a ser a primeira a desaparecer. Não fazendo o mínimo reparo, continuei a mostrar-me algo indiferente. Depois de um lanche adiado (queriam tomar chá e eu sorri para dentro; para mim e para o Alfredo só se fosse “chá de parreira”), cada um preparou-se para seguir o seu caminho. Entretanto aproveitei para comprar a senha do passe.
Ficaram perto, a conversar sobre não sei o quê. Ao mesmo tempo que mostrava ter uma certa firmeza com ela, também não a queria perder.
Mas que podia fazer, se a Esfinge olhava para mim com tanta insistência?
Não entendia o que os seus olhos de amêndoa diziam.
Interroguei-a, também com os olhos. Impunha-se um braço de ferro até quase aos limites. A resposta dela não se fez esperar.
«Vou mandar revelar um rolo...»
Nada tinha a ver com isso. Ela que fosse. Estava saturado das suas indecisões. De avanços e recuos.
Desta vez era um avanço. Da próxima já sabia que tudo voltava à estaca zero. Mas hesitei porque a Esfinge continuava a olhar para mim, suplicante. Talvez fosse a última oportunidade.
Atravessámos a avenida para o outro lado. Ela entrou na casa de fotografias e eu fiquei cá fora, à espera.
Pouco depois veio ao meu encontro. Gostei do seu sorriso.
Apanhámos o mesmo autocarro para casa. Logo à entrada, deixou cair a carteira e espa­lhou uma série de papéis pelo chão do autocarro. Foi uma situação algo caricata. Depois de apanharmos os papéis procurámos lugares sentados e ficámos frente a frente, seguindo dessa forma a viagem. O diálogo foi vivo. Não me recordo do que falámos. Uma coisa é certa: só dei conta quando chegámos à Fonte Nova. Continuámos a conver­sa por mais algum tempo num passeio central. Falámos outra vez de auditoria. Parecia-lhe que devia haver três pessoas e não duas. Sempre que a via levar as mãos ao pescoço e fazer trejeitos de dor, preparava a despedida. Mas era ela que continuava a falar, apesar das inúmeras vezes que levou as mãos às costas e ao pescoço. Aquelas dores não estariam relacionadas com sintomas de abstinência de qualquer droga?
A certa altura, a propósito da auditoria, a Esfinge disse:
«Tenho medo de magoar-te.»
«Magoar-me com quê?»
«Ora... com as minhas interpretações.»
Suspeitei que estava a referir-se a outra coisa.
Já era tarde quando nos despedimos. Tarde no tempo e na oportunidade que tinha perdido. Pareceu-me que não queria ir-se embora. Desta vez foi ela que me fez o convite para a seguir. Li nos seus olhos de amêndoa que queria que acontecesse alguma coisa. Preferi esperar outra oportunidade. Naquele dia não dava. Eram quase horas do jantar e, ao mesmo tempo, gostei sempre de trilhar os caminhos mais tortuosos porque o que é fácil nunca me deu gozo.
Provavelmente não voltaria a ter uma oportunidade como essa.
Combinámos fazer a experiência da dianética. A iniciativa partiu dela. Afinal parecia que íamos ser três: eu, ela e uma pessoa entendida em assuntos insólitos.
Suspeito que pertence a um grupo hermético e vou tentar entrar nesse grupo. Para quê nem eu próprio sei. Se é perigoso ou não. Estou a atirar-me de cabeça para um grande molho de brócolos.
Não sei se é ela que me atrai ou se é o insólito que gira à nossa volta. Mas parece-me que vou ficar só, mais tarde ou mais cedo. Sinto que me vai escapar como uma enguia e vou ficar dentro de mim a abraçar o vazio, repetindo as palavras do costume, como se estivesse em presença dum facto consumado:
«Deixa arder...»
É o momento da alma arder em labaredas alucinatórias.
Abrem-se e fecham-se os escaninhos da mente reactiva. Os olhos alcançam a planície despida. Os ouvidos canalizam ruídos sem significado. Os dedos apalpam saliências invisíveis. O mundo não é mais que um cão fornicador que, consumado o ato, mija na campa que tem as frestas de onde vejo os astros do meu descontentamento. Saturno escarnece da escuridão. A lua só brilha do lado da face oculta. Sugo o meu próprio tutano e devoro toda a indiferença que os outros deixaram como resto. Vejo a minha vida como uma ilha sem regresso e os sonhos que tenho, quando estou acordado, são tão irreais que parece que estou sonhando a dormir. Há de ser sempre assim. O vazio. O irreal. O devorar impiedoso sempre mais para o fundo, como se fosse um buraco negro de mim.
O tempo esgotou-se. Estou farto de esperar. De certeza que a Esfinge vai fugir. As férias estão a chegar e depois não sei onde encontrá-la. Aliás, escondeu-se na sua concha e eu vou esconder-me também. E depois, digo:
«Que interessa esperar? Melhor será existir...»
São quase oito horas.
E a Esfinge?
Claro que faltou ao encontro. Tinha prometido e faltou. Devo, no entanto, cair em mim. Não posso exigir que cumpra promessas. Ela terá as suas razões. Só ela sabe. Se tem medo de assumir. Se há outro motivo.
Há poucos minutos perguntei-lhe se podia conversar comigo. Desculpou-se. Falou em pintar, ou coisa parecida.
Não entendi.
Eram sete da noite quando eu comecei subir as escadas da escola. Vinha cansado, mas satisfeito. Tinha uma folha de papel para entregar à Esfinge. Era uma simples folha com cerca de mil e duzentos carateres impressos que talvez se pudessem transformar numa chave para enfim abrir o cofre dos segredos tão ciosamente guardados pela mulher mais enigmática que conheci até hoje.
Saltava de um mundo para o outro. Só queria dar uma vista de olhos e poder abarcar a realidade que estava oculta e tinha cheiro a promessas de eternidade. Por outro lado, também sonhava com a viagem prometida pela dona Ima, através de um mundo de luz, serenidade e beleza, diferente doutro mundo absurdo que associava à Esfinge.
Mas qual dos mundos me atraía mais?
A ideia anterior foi soprada por alguém. Assim como Einstein recebeu de alguém superior a teoria da Relatividade, Moisés foi chamado por Deus à montanha para receber as tábuas da Lei e assim poder salvar o Homem. O paradoxo estava à vista. Einstein foi um pacifista e também o mentor básico da bomba que destruiu Hiroxima; Moisés, quando desceu do monte com as tábuas, sentiu-se traído pelo seu povo e seguiu a determinação de Deus, ordenando a execução de todos os idólatras, traindo por sua vez um dos mandamentos do Seu Pai. Mais tarde seria criada na Idade Média a Santa Inquisição.
Nas profundezas do homem há sempre duas forças antagónicas em luta, cujas tensões se vão acumulando até às mais graves consequências, revertendo no aniquilamento total. Melhor será encontrar o poder no outro mundo oculto para controlar no futuro o primeiro salto. É urgente temperar a ambição. Modificar o Homem. Absorver as vibrações positivas e caminhar com determinação ao longo da estrada que pode levar aos territórios da eternidade. Depois, regurgitar a ciência acumulada. Aprender a controlar os efeitos negativos, optando por não seguir a criatividade ambígua de Einstein, ou não ser o cordeiro imolado por Moisés.
A Esfinge sabe que quero ser o ladrão dos seus tesouros acumulados. Talvez por isso, foge para aquilo que chama os lados da eternidade. Mas também já a vi remexendo no meu laboratório secreto como um buraco negro que quer absorver todas as galáxias que se aproximaram demasiado. Há muitas pistas falsas. Muitos laboratórios ocultos. O caminho é um labirinto e isso fascina-nos.
Ela sabe que sou o ladrão que sonda os seus tesouros. Foge logo ao primeiro sinal de perigo, mas não consegue afastar-se de vez. Há qualquer coisa em mim que a atrai. Também anda a tentar descobrir o meu laboratório secreto. Talvez já o tenha profanado.


LABORATÓRIO SECRETO



No meu laboratório secreto
de provetas invisíveis e sais inodoros
crio as noites de maré cheia
com rostos de maré vazia.
Pedaços de sonho esmagados
no almofariz do subconsciente
e diluídos na crueza do real
experimentam fumos multicores
que desaparecem na clepsidra do acontecer.

No meu laboratório secreto
há explosões incontroladas
que devoram o desejo de eternidade.
Agitam-se os tubos de ensaio
trocam-se misturas incompatíveis
nos cadinhos que vão ao fogo
purificar a verdade que não é a última.

No meu laboratório secreto
procuro a órbita do teu afastamento
e a fenolftaleína não dá sinal que existes
noutro tempo e noutro espaço.

No meu laboratório secreto
faço a purificação no vazio da noite;
os ácidos esmagam docemente as bases
em espuma que violenta as areias da praia
e que logo se desvanece.
Vejo nos teus olhos de Esfinge
poções satânicas que vigiam
as profundezas onde os neurónios governam.

No meu laboratório profanado
os ácidos diluíram os sonhos de ontem
e criaram monstros materialistas
que devoram pelos caminhos do amanhã.
Mas no fundo do amanhã
o hidrogénio irá encher
balões rumo à eternidade
até que um dia chegarei aos anos-luz
dos sonhos diluídos onde nascem outras estrelas…



23 DE AGOSTO
De manhã surgiram os primeiros sintomas duma crise não anunciada: uma certa insegurança e peso na nuca. Pensava ir a Lisboa e fui mesmo, mas não como tinha sido programado. A Virgínia, uma amiga residente na vila da praia, ia fazer compras ao Continente de Alfragide e assim eu aproveitava a boleia. Tudo muito bem combinado, só que, sem saber porquê, logo a seguir ao almoço entendi que devia ir de autocarro. A decisão que tive foi de pura teimosia e provocada por uma questão de “lana caprina”, talvez forjada inconscientemente. Nada lógica.
Entretanto perdi o autocarro. Ainda o vi partir. Irritado, consultei os horários. Havia um outro três quartos de hora depois, pelo que resolvi ir via Sintra. Poupava, aparentemente, meia hora. Isto aparentemente, porque a viagem durou mais tempo. Segui um trajeto complicado: autocarro, comboio e outra vez autocarro.
O autocarro partiu com poucos passageiros. Pude escolher um lugar nos assentos da frente, do lado direito. Tudo normal à partida. Mas comecei logo a sentir-me mal. Não sei explicar. Aquilo veio de repente e apanhou-me de surpresa. Talvez estivesse relacionado com a intranquilidade e irritação permanente em que me mantinha. O mais estranho é que não havia um motivo forte para tamanho vendaval.
A crise agudizou-se e comecei a ter pensamentos negativos, sintomas fortes de bloqueio que me levaram a pensar logo em doenças paralisantes como tromboses e doenças quejandas. Ao mesmo tempo estava prisioneiro naquele autocarro.
Não passava de uma alucinação?
O que quer que fosse tinha uma grande força, a ponto de sentir o autocarro baloiçar, como se o mesmo estivesse a atravessar o mar alto e a enfrentar uma forte ondulação. Por coincidência via o mar em grande extensão. Estava à minha direita. Calmo como um lago. Mas a sugestão, ou o quer que fosse, parecia levar-me para longe, à mercê de forte ondulação.
Parecia que estava a acontecer. Uma sugestão poderosa que tinha a força de quase verdade, que me entonteceu desde os primeiros momentos que a senti e que durou ainda alguns minutos que me pareceram longos. Queria desistir. Voltar para trás. Sentia-me absolutamente “dominado”.
Entretanto, o autocarro foi-se enchendo pelo caminho, à medida que ia parando. Já não sentia a ondulação. Apenas estava inseguro, como naquele dia em que, através das janelas da casa da praia, vi o mar muito perto, mais perto do que o costume. O lugar à minha direita nunca foi ocupado, o que considerei muito estranho, pois era dos melhores lugares e logo à disposição de quem entrava.
Porquê?
Boa pergunta. Havia duas respostas: talvez estivesses ocupado, ou então não gostassem de ver o meu rosto…
Já no comboio continuei a ter os mesmos sintomas de insegurança. Ao mesmo tempo, parecia que não tinha força nos braços, principalmente no braço esquerdo. A nuca, mais pesada do que o habitual, era a fronteira do estranho vazio que sentia no interior.
Fiquei ainda mais desorientado com a chegada de algumas pessoas barulhentas. O barulho ecoava cá dentro com rara intensidade. Felizmente que os barulhentos saíram quase a seguir. Voltou a calma. Só eu não me sentia calmo. Aquela viagem era interminável e desconfiava já que o seu fim nunca chegava. Era a viagem daqueles que partiram rumo ao desconhecido, sem bilhete de retorno.
Para o cúmulo das coincidências, tive uma surpresa no comboio.
Em julho tentei contactar uma pessoa e não consegui. A tal pessoa que julgou ter descoberto a imortalidade.
Surgiu no comboio a feliz (ou infeliz) hipótese desta história não acabar, quando, já perto do Cacém, entrou uma aluna do Curso Experimental Noturno, de nome Albina. Fiquei apreensivo. E mais ainda, quando, por coincidência, veio sentar-se ao meu lado. Estava acompanhada de uma amiga cujo rosto não fixei. Certamente que ela ia notar o transtorno na minha mente.
Dei-lhe um toque ligeiro com o braço.
«O senhor doutor!»
Pronto, estou feito! Quem me mandou chamar-lhe a atenção?
Talvez até não conseguisse falar. Desconfiava que o meu estado de saúde era grave, mas senti um grande alívio ao verificar que estava normal no falar e que ela não deu conta das complicações que se passavam na mente do seu professor de Matemática. Uma estranha equação de raiz impossível.
A certa altura, para meu espanto, a Albina disse:
«Encontrei, em julho, a doutora Inês no Continente...»
«A Inês...! A doutora Inês?»
Ah!, Ana Inês! Por que fugiste?
A coincidência da minha aluna encontrar a Esfinge no Continente!
«Tem piada! E eu que ando há tempos a tentar saber do seu paradeiro. Queria entregar-lhe um livro que me emprestou. De forma alguma queria ficar com ele.» Justifiquei-me.
Claro que não queria entregar-lhe livro algum pelo simples motivo que não havia livro.
«Mas eu tenho o telefone dela!»
Procurou e voltou a procurar. Tinha duas agendas e não encontrava o número do telefone dela. Enervei-me. Aproximava-se a estação de Benfica e eu ia sair. Ela continuava à procura e também estava a ficar nervosa, mas para o lado do impaciente.
Foi mesmo à conta. O que tinha que acontecer não podia ser evitado. Aquilo era coisa forte. Demolidora. Deixara-me indefeso.
Já em casa telefonei para as informações e voltei a ter dificuldades. Lá consegui saber a morada.
«Mas é um atelier!» disse a telefonista.
Que tinha eu a ver com isso?
Nesse instante, sem saber porquê, lembrei-me da Felícia e do Paulo, a aluna que reprovei e o aluno que estava apaixonado por ela e me pediu, já perto do fim do ano, para a passar. Era um aluno exemplar em comportamento e atenção. De raciocínio lento, mas seguro. 
Tive o cuidado de não ser brusco e expliquei-lhe pacientemente a razão por que ia reprovar a namorada. Pareceu entender.
«Estou agarrado a ela!»
«Compreendo, Paulo. Mas bem vê...»
No fim do ano letivo os alunos fizeram uma festa e ele viu-a a dançar com outro. A partir daí começou a ter um comportamento estranho, segundo testemunharam os colegas.
Houve mais acontecimentos que não interessa contar. Só mais uma coisa: ela não teve um comportamento digno e o Paulo deu-lhe uma resposta imprevista; deixou-lhe uma mensagem de despedida e enforcou-se.
Dispus-me a fazer a ligação para a Esfinge.
Atelier?
Ela falou uma vez de um atelier a propósito da célebre dor nos rins.
Não consegui discar os números. Estava de novo bloqueado.
Afinal nada fazia melhorar o meu estado de espírito. Parecia possuído. Era o termo. Deitei-me tarde. Tinha escrito e o ato de escrever dera-me algum alívio. Foi como que um desabafo.
Às quatro da manhã acordei de repente com um problema no braço esquerdo. Entrei logo em pânico. Não o sentia. Era a tão anunciada e não desejada trombose, pensei. Não. Claro que não. Conseguia ouvir-me. Apenas o braço estava dormente. Por coincidência, o esquerdo.
Levantei-me cedo. Continuava a sentir-me mal. A ideia era sempre a mesma:
«Não sei se vou conseguir...»
Telefonei à dona Ima a pedir-lhe ajuda. Para meu azar, a velha senhora tinha um problema no pé e não podia vir a minha casa. Eu que fosse lá.
«Não vou conseguir. Não sei se consigo.»
«Claro que consegue! Apanhe um táxi.»
Combinámos às duas e meia.
Comecei a melhorar depois do telefonema. Por uma questão de segurança apanhei um táxi. Estava quase normal quando entrei na sua casa.
Sugestionou-me positivamente só pelo telefone?
Encontrei logo a explicação para as melhoras que senti quando me disse que teve que se deitar depois do telefonema que lhe fiz. Fiquei perplexo. Deu-me a entender que aquilo passara para ela.
Contei-lhe tudo. Falei da Esfinge. Do meu interesse nela. Ouviu serenamente e pouco adiantou.
«Aquilo, o que era?» perguntei.
«Não sei. Era uma coisa muito ruim.»
Regressei à casa da praia.
Nunca descobri o que aconteceu naquele dia…

O NOME DA ROSA
Nome da Rosa foi o pretexto para mais um encontro com a Esfinge, de novo na casa do Artista. Tanto insisti com ela que me telefonou um dia para assistir a um filme. Foi tudo combinado em cima da hora. Tática, pensei. Íamos ver um filme policial passado na Idade Média. Depois de assistirmos ao filme passaríamos à discussão. Tudo normal, pensei.
A Esfinge recebeu-me com charme. Sentámo-nos no sofá em frente à televisão e tivemos uma conversa banal. Senti-me bem. Gostava do sorriso dela. Envolvente. Sem medo. Parecíamos hipnotizados. Nada mais existia à nossa volta. Agradava-me o olhar meigo, envolvente. A sua voz doce, baixa, cada vez mais baixa…

«Ia caindo do banco!»
«Não viste que te trocaram o banco por outro mais baixo?»
«A mente reativa é que teve a culpa.»
«Ionesco?»
«Não. Desligaram a mente analítica e disseram: desce como de costume...»
«Quando a cabeça não tem juízo, o corpo é que paga. Vou ter juízo. Deixo a alquimia e regresso às origens.»
«Astrologia?»
«O corpo é que paga.»
«Não entendo.»
«O mesmo se passa comigo.»
«Mas nós estamos na mesma onda! Foste tu que disseste que estávamos na mesma onda. Lembras-te?»
«Prefiro não me lembrar e dizer que não entendo.»
«Quem tirou o banco? Dei uma queda aparatosa quando quis descer dum banco, para trás, sem ver onde metia os pés. Foste tu?»
«Ninguém tirou o banco. O chão é que estava um pouco mais longe. Só isso. Uma questão de erro da mente analítica. O chão estava mais longe. Pronto. Não te aleijaste?»
«Sou o homem de borracha. Saí sem uma beliscadura depois de uma queda de anos-luz!»
«E eu sou a Branca de Neve.»
«Acredita. Foi mesmo milagre. Desculpa, tenho de substituir a palavra por outra. Sorte. Fatalidade.»
«Como?»
«O chão é que podia ter aberto a sua boca enorme de predador. Sim, fatalidade. Fatalidade é destino, é sorte. Boa ou má sorte.»
«Agora já entendi. Olha lá...»
«Sim?»
«Desculpa não ter aparecido naquele dia. É que não foi possível. Borrei a pintura...»
«Se não apareceste... Ou melhor: se chegaste tarde, nunca mais chegaste.»
«Onde ouvi essa?»
«Foi na mente reativa, quando o banco foi trocado ou o chão fugiu para baixo. A mente reativa regista tudo. É pena que seja um pouco desorganizada.»
«Bem, vamos ao que interessa.»
«A iniciação.»
«O bloqueio. Tu é que disseste que querias ser iniciado.»
«O Artista é que disse que valia a pena. A propósito: ele entrou no teu laboratório secreto. Diz-me que entrou, que manipula todos os tubos de ensaio e que já não posso levar ao fogo o ca­dinho da paixão. Diz-me que não estou errado, que os ácidos reagiram docemente com as bases e resultou um pó branco que não devo tomar. Foste tu, não foste?»
«Fui.»
«Porquê?»
«Porque estamos na mesma onda!»
«Nunca estivemos. Eu estou em ondas curtas. E tu?»
«No passado.»
«Sim. Vieste do passado remoto e foste tragada pelo presente. De uma vez para sempre. Não resultou. Sabes bem que não resultou.»
«Mas então existi!»
«Se estás a rebuscar nas cinzas do comboio do futuro, como podes ter existido?»
«Não o entendo. O comboio do futuro está em cinzas. Não tenho futuro. Chamas por mim e depois não me queres. Dizes que também não tive passado. Esqueces o que fomos e dizes que não pode haver futuro! Mas eu digo que sim. Eu sou tudo. O passado, o presente e o futuro.»
«Desengana-te. És a Esfinge.»
«Pergunta-lhe.»
«A quem?»
«A ela. Quem sou. Quando está assustada, o que faz?»
«Foge...»
«Inevitavelmente. Mas porquê?»
«Deixa isso. Não sabes saltar?»
«...?»
«Eu dou cambalhotas à retaguarda. Era a minha especialidade na tropa. A propósito: já ouviste falar na Borsic?»
«Nesse tempo era a gaivota...»
«E no copo que rodopiava no snack?»
«Com a Patrícia em frente ao Mário.»
«Vejo que te lembras. Decoraste a lição. Sabes uma coisa?, havia bancos altos junto ao balcão.»
«E as gaivotas picavam para a rebentação das ondas.»
«O céu estava azul.»
«Os dias é que eram azuis!»
«E longos. Longos dias azuis...»
«Ainda são longos?»
«Só a eternidade é mais longa!»
«Gostava de voltar um dia ao snack. O Mário ainda lá está a ver as gaivotas a planarem no céu. À espera. À espera da sua Patrícia. Um dia, a cadeira em frente ficou vazia e a Patrícia nunca mais apareceu. O símbolo do seu desencantamento.»
«Mas a Manuela existiu!»
«Estamos a falar sem nos conhecermos. É talvez a força do hábito. Quanto mais falo contigo menos te conheço. Não sei se és o Mário dos negócios fracassados, ou o outro que se esconde atrás de ti. Feitas as contas, são três.»
«Eu também não... A quem devo a honra?»
«Chamo-me Esfinge.»
«Esfinge?»
«Sim. Já fui do azul. Lembras-te?»
«Já foste do azul! Estranha forma de te apresentares. Só uma mulher foi do azul. Agora já não sonha. Nem sequer atravessa desertos vermelhos. Vive na noite e dizem que chora. Mas nunca a ouvi chorar. Essa, sim. Foi do azul. Ficou no passado remoto. Ninguém mais será do azul.»
«Se assim é, nem sequer existo. Também fiquei no passado remoto. Temos que lá ir. Deve ser bom encontrar o passado. Corrigir muita coisa que resultou mal. Evitar as guerras. Os terramotos.»
«Os terramotos, não. São fenómenos terríveis da Natureza e, como tal, inevitáveis. Só os destinos podem ser alterados. O teu nascimento, por exemplo.»
«Não devia ter nascido.»
«Porquê?»
«Por causa do pó branco!»
«Podemos atrasar o teu nascimento. Basta um segundo e já não encontras o homem que te levou nas viagens.»
«Fazes isso por mim?»
«Por ti faço tudo. Só há uma coisa...»
«Que coisa?»
«Estamos em passados distintos. Abranda a velocidade da tua onda para que a minha a agarre.»
«Assim?»
«Está bom. Quando disser três, mergulhas.»
«Calçada?»
«Talvez seja melhor voarmos. O sonho comanda a vida. Abre bem os braços. Isso. Não tenhas medo. Estamos a sonhar. Não vês que estamos a sonhar?»
«Tenho medo de acordar. O sonho é demasiado belo! Voar!, quem me dera saber voar! Ser livre. Não ter amarras, nem fantasmas brancos que sugam a vida. Voar! Foi sempre o meu sonho. Pronto. Já abri os braços. Se calhar, queres agarrar-me. Conheço o truque. Os homens são todos iguais. Envolventes. Fatalmente envolventes.»
«Tu é que foste envolvente. O pó que me deste não era a minha heroína. Essa, voou sem norte... Como posso agarrar-te se estamos em ondas diferentes e se eu não te vejo nem tu me vês? Confia em mim. Vá. Lança-te no espaço quando contar até três.»
«Tenho medo. Pode ser uma viagem!»
«Eu não faço viagens. Bem sabes que somos diferentes. Aqui não há lugar para as alucinações. Mas tenho outra ideia...»
«Outra ideia?»
«Apanha aquela gaivota que está a olhar para nós.»
«Não vejo a gaivota!»
« Faz de conta que vês. No azul.»
«Ah!, no azul... Agora recordo. As gaivotas voavam no azul. Pronto. Já agarrei a gaivota. Estou a voar alto. É maravilho­so voar assim!»
«Olha...»
«Sim?»
«Estamos no passado.»
«No mesmo passado?»
«Na mesma onda. Não me vês? Eu vejo-te. Dá-me a mão. Assim... Gosto do contacto da tua pele. É suave. Ainda não tinha dado conta. Os teus olhos?, deixa que os recorde. Foi há tanto tempo que os vi!»
«De que cor eram os olhos de Patrícia?»
«Azuis, verdes, cinzentos. Da cor do mar.»
«Oh!»
«Mas tu não és a Patrícia!»
«Chamo-me Esfinge.»
«E tentaste profanar o meu laboratório secreto com a força misteriosa do pó branco.»
«Tenho medo! O passado vai tragar-nos. Está tudo escuro! Não me largues a mão.»
«É tarde. Já não podemos voltar atrás. É muito tarde.»
«Sinto frio. As ruas estão desertas. Não oiço ruídos. Não há ninguém no passado. Sinto tanto frio!»
«Frio, não direi. Fresco. Está fresco.»
«Fresco?»
«Tenho a sensação que já te conhecia, mas também há mira­gens nestas ruas que não existem. O futuro tragou-as. E agora onde vou procurar-te? Só queria ver-te durante um segundo...»
«Vais fazer-me mal?»
«Não tenhas medo. Estamos no passado e ainda não nasceste. Eu ando por aí. Algures. Se me encontrar, posso alterar o meu destino. E também o teu.»
«Algures é finalidade?»
«Boa pergunta. Mas agora chegou o momento. Vês aquele boqueirão?»
«Vai tragar-nos!»
«Não tenhas medo, estrela. Estou aqui. Ao teu lado.»
«Que sensação estranha! Já não sou a Esfinge. Perdi a minha identi­dade e estou a fundir-me com alguém, num orgasmo muito longo...»
«Entrámos no boqueirão. É o efeito da queda. A queda é longa. Eterna.»
«Eu também sou eterna.»
«A morte também é eterna, diz antes assim.»
«Está escuro. É assim que se morre?»
«Não sei. Nunca morri. Pelo menos não me lembro. Tu é que já morreste uma vez.»
«Enganas-te, sou a Esfinge. Não te recordas?»
«Era só para confirmar. Sabes...?»
«Sim?»
«Chegámos.»
«E então?»
«Não consegui encontrar-te.»
«E a ti, encontraste-te...?»
«Ainda não. Mas vai acontecer!»
«Já não sei quem sou!»
«Lembras-te do pó branco?»
«Que pó? Ajuda-me! Não sei de que estás a falar. Tenho frio! Dói-me tudo. O corpo. A alma. Está muito escuro aqui. É assim...?»
«... que se morre?»
«Não te vejo! Onde estás?»
«Aqui. Mas já não vale a pena...»

A Esfinge olhava-me, transtornada.
«Que aconteceu, Mário?»
«Não sei do que estás a falar.»
«Estavas ausente.»
Era tão agradável estar com ela!
Foi então que fiquei contrariado. Apareceu na sala um sujeito forte, baixo, de olhos azuis, penetrantes, aparentando ser alemão. O encanto quebrou-se. Não sabia porquê, mas pressenti que me despedia dela.
«O Carlos Faria...»
«Muito prazer.»
O cinismo próprio destes momentos de cortesia, já que a realidade era bem diferente. De facto, não tivera o mínimo prazer em conhecê-lo e antipatizara com ele logo à primeira vista. Achei-o uma pessoa obsessiva. Depois, à viva força queria que descêssemos até ao atelier. A própria Esfinge ficou contrariada. Notei no seu rosto uma expressão azeda. Aqueles minutos a sós confirmavam que estávamos naquele momento na mesma onda. Uma das poucas vezes.
Queria descer as escadas até ao estúdio.
«O Carlos jantou cá connosco. É um amigo de longa data.»
Que tipo de amigo?
Voltou a insistir para descermos. O olhar fixo em mim parecia ordenar:
«Nem mais um minuto juntos!»
Descemos então. Naqueles momentos a sós tive a mesma sensação da outra vez. Ela estava vulnerável.
Bebeu demasiado vinho ao jantar?
Só se fosse água. Estivemos muito perto um do outro e o hálito que recebi nada tinha a ver com o álcool.
«Queres cheirar o álcool?»
Interferência de um poeta que controlei de imediato.
Tu, sim... bebias como uma esponja! Por causa do tédio?
Aconteceu um caso estranho no atelier. Enquanto eu falava com o Artista, o Faria chamou a Esfinge para um canto e ficaram, junto a uma secretária, numa conversa que parecia ter a ver com negócios. Sim. Eram negócios. A Esfinge abriu a gaveta da secretária que estava junto deles e tirou uma nota de cinco contos que entregou de imediato ao amigo. Em troca, este deu-lhe um minúsculo embrulho. Então era isso. Negócios pó branco.
Lembrei-me do primeiro encontro que tivemos no atelier.

Nessa noite estavam no atelier o Artista, ela e uma jovem que contava um sonho que tivera. Infelizmente para ela o sonho ficou incompleto.
«Volta a sonhar...» Disse o Artista.
Quando a jovem do sonho incompleto se foi embora, a Esfinge ocupou o banco dela. Assim, estava mais próxima. Só nessa altura dei conta que estava toda vestida de azul e descalçara os sapatos. Parecia mais nova.
«Não sabia que fumavas.»
Tinha-a visto pegar num cachimbo já com o tabaco metido. Começou a calcar com os dedos e depois acendeu-o. Não gostei do cheiro.
«Só fumo nestes momentos.» Respondeu, sorrindo.
A que momentos se referia?
«Estás pálida!»
Parecia que falava para uma namorada.

Tinham acabado o negócio. Já estavam junto de nós.
«Podemos ir para cima. Bem disse que demorava pouco.»
Mas nada seria como dantes. O encanto fora mesmo quebrado e as honras da conversa foram feitas entre mim e o homem dos olhos azuis alucinados. Estranhamente, dei conta que tínhamos os mesmos gostos. Até ao ínfimo pormenor, como se houvesse ali o dedo de alguém que me conhecia. Quando ele afirmou que era do Belenenses, aí desconfiei que andava o dedo da Esfinge. Não consegui atingir o alcance daquela tentativa de identidade. Algum processo de regressão que foi abortado?
O Artista esteve ausente enquanto conversámos. Seguiu-se o filme. No sofá estávamos sentados três: eu, a Esfinge e o Artista. À minha esquerda ficou o sinistro Carlos Faria.
Já quase no fim do filme notei que se passava algo de anormal do meu lado direito. Foi o olhar insistente do Faria que me alertou. Não quis virar-me. Limitei-me a olhar pelo canto do olho. De facto ela estava com a cabeça encostada ao ombro do dono da casa.
Lembrei-me do famigerado negócio.
Aquela noite foi mesmo muito estranha. Vimos o filme mas não foi discutido, ao contrário do que tinha sido combinado. Seguiu-se uma espécie de interrogatório do tipo pidesco feito pelo gordo. Fui respondendo. Nada tinha a perder, mas não sabia onde ele queria chegar. Uma coisa é certa: a Esfinge e o outro nunca interferiram. Escutavam em silêncio, mais parecendo serem membros de um júri que observavam para poderem, de seguida, avaliar.
«Agora é que você estragou tudo!»
«Porquê?»
«Não digo...»
Coisa estranha!
Tinha falado de objetos que apanhava do chão, de associações que fazia e dos célebres triângulos que travavam.
Onde falhara?
Nunca saberia.
«Vejo sete...» Disse uma vez a dona Ima.
A minha entrada para o grupo tinha sido proibida. Penso que tiveram medo. Não conheciam muito bem a razão que me levava a querer entrar para o grupo. Pela droga não era. Nem eu sabia que atração me levava àquela casa. Se a Esfinge, se o desejo de conhecer por dentro um grupo hermético. O certo é que corri sérios riscos.
A Esfinge acompanhou-me até à porta.
«Desculpa. Não pude ajudar-te...»
«Não tiveste culpa.»
«Pois não. Se quiseres, podemos falar um pouco. Eles estão lá para dentro...»
Outra vez aquele sorriso meigo e envolvente!
«Achas que vale a pena?»
«Podemos falar do futuro.»
«Haverá futuro para os dois?»
«Nunca se sabe.»
Aquele sorriso envolvente!
«Mário! Foge quanto antes...»
Foi um sinal de alarme do meu subconsciente, ou a voz veio doutro lado?

«Fundimos os pensamentos num sonho azul que caiu no cadinho que foi ao lume até mudar de cor. Mas alguma coisa falhou. Paixão a mais. Sal que deixei precipitar no tubo de ensaio do ciúme.»
«Olá, sonhador das alquimias!»
«Estavas afónica. Não querias falar comigo e inventaste essa de estares afónica. Pronto. Caso encerrando. Vamos a outro assunto. A Esfinge...?»
«Poupei as palavras.»
«E as minhas estão gastas.»
«Alguma vez nos encontrámos?»
«Talvez. Está afónica?»
«Eu?»
«Terei que esperar uma eternidade?»
«Não é eterno? Então pode esperar.»
«Diga-me ao menos o seu nome.»
«Tenho outro nome. Compreende? Não posso dizer.»
«Está a fugir...»
«Há muito.»
«Quanto tempo? A Terra tem mais de quatro mil milhões de anos e você é mais nova. Logicamente.»
«Mas sou eterna. Logicamente...»
«Linhas cruzadas.»
«Como?»
«Esfinge! Sei que és tu...»
«Desculpe. Há cruzamento de linhas...»
«Sim. Quando te vejo há sempre cruzamento de linhas. É essa a tragédia.»
«Vou desligar.»
«O telefone não tem fio.»
«Como é possível?»
«Tudo é possível. Basta imaginar. Podemos até trocar as intenções. Queria desligar, não era?»
«Pois.»
«Promete não desligar?»
«Prometo.»
«Então desligo eu.»
«Porquê?»
«Chama-se Esfinge?»
«Não.»
«Pouse o telefone. Espero uma chamada urgente.»
«Mas...»
«Desculpe. Prometi esperar.»
«Por quem?»
«Por ela.»
«Enquanto espera, vou apresentar-me. Chamo-me Esfinge e sou do azul.»
«Por favor, desligue.»
«Só um minuto.»
«Os minutos são preciosos. Sou eterno. Não posso esperar mais.»
«E se eu for a Esfinge?»
«Mentira. Ela era do azul e profanou o meu laboratório para roubar a essência. O sal precipitou e escondeu a última verdade. Nunca saberei se tinha olhos tristes que tanto me encantaram ou aqueles olhos de amêndoa que me iludiram.»
«Que faço ao telefone?»
«Como quer que o telefone seja real se prolongámos o fio para além do azul?»


SEMEAR PARA COLHER
Acho importante voltar quinze dias atrás…
À viva força queria encontrar-me com a Esfinge. Tanto insisti que recebi um telefonema. Eram dez da noite. Às onze estava a entrar no atelier. Éramos quatro: eu, ela, o Artista, dono do atelier e da casa onde ela vivia e também uma jovem chamada Fatinha.
Insisti na eternidade como tema de conversa. Cheguei à conclusão que estavam convencidos que tinham atingido a eternidade. Reforcei a ideia que faziam parte de um grupo esotérico, quando o Artista me contou uma estranha história de ficção científica. A certa altura disse que duas raças digladiavam-se pela supremacia da Terra.
«Estamos a perder a batalha...»
Que batalha?, e de que lado estavam?
Arrumei-o logo na prateleira certa.
Acrescentou que as pessoas enlouqueceram. Era preciso avisar. Fazer qualquer coisa para inverter a situação.
«Já reparou como as pessoas se comportam na rua? Umas dão saltos e outras fazem as coisas mais incríveis. E depois há ainda as guerras... os cogumelos...»
Cogumelos. Já bastava ter havido dois nos anos quarenta. Era desses cogumelos que o visionário estava a falar.
Éramos nós os esclarecidos?
Pouco depois, deu-me a ler as primeiras páginas da Bíblia e pediu que lesse com muita atenção. Assim fiz, embora não soubesse qual era o seu objetivo. Sugestionado ou não, encontrei uma incongruência. Notei o ar de satisfação dele. Era a primeira pessoa que dava conta. E depois, havia Deus e o senhor Deus. Como se fossem dois.
E a Fatinha?, qual era o seu papel?
Era franzina. Aparentava ter pouco mais de quinze anos e tinha alguns traços de indiana. Fiquei admirado quando falou em conduzir o carro. De seguida deduzi que estava ali para falar ao Artista de um sonho que relatou mais que uma vez e nunca chegou ao fim. Estive mesmo para pedir-lhe que continuasse mas não era nada comigo. Acontecia sempre haver um desvio provocado por uma intervenção inoportuna da Esfinge.
À terceira vez, ele disse para a jovem:
«Volta a sonhar.»
Como se fosse possível.
Aquilo talvez fosse um código relacionado com a droga.
Sonhar. Voar. Viagem. Inclinava-me para viagem...
Talvez fosse encenação. Quanto à Esfinge, pouco falou. Estava sentada em cima de uma mesa. Descalça. Fumando cachimbo e olhando-me com muitos sorrisos meigos e simpatia. Não consegui identificar o cheiro do cachimbo. Era demasiado suave. Mas ela deu duas ou três fumaças e pouco mais. Não suspeitei que fosse droga porque senti a noite demasiado azul. Tão azul como a Esfinge, que vestia calças azuis e uma camisola azul de mangas curtas. Vi-lhe o rosto pálido, olheirento, e não desconfiei que a palidez fosse devida ao famigerado pó branco.
«Estás muito pálida!»
«Estive ocupada. Não fiz praia neste verão.»
Justificação natural.
A sala era retangular. Um móvel comprido isolava os fundos, onde estava uma estante metálica, esta encostada à parede, a toda a largura. Entre outros objetos, recordo um par de sapatos em cerâmica, de dimensões algo exageradas.
Quando a Fatinha saiu, a Esfinge ocupou o seu lugar e ficou na minha frente. Mostrava já um ar cansado, embora se esforçasse ainda por sorrir. Comecei a abreviar.
O Artista deu a entender que valia a pena iniciar-me. Sorri, agradado. Então sempre havia hipóteses de entrar no desejado grupo hermético.
Despedi-me logo a seguir, não sem antes me ter vendido uma ficha denominada “cabala nº 4” e relacionada com a numerologia. Falou também de engramas e cientologia. Vendeu-me a ficha por cento e trinta escudos. Nem mais nem menos. Disse que tinha necessidade de mendigar o preço. Claro que não mendigou. O preço da ficha até era exagerado.
Quando saí, fiquei com a ideia que devia voltar. Precisava de confirmar muita coisa. Até porque não houve a tal dianética.
Outra coisa que o Artista disse: apesar do homem poder dominar o destino, não há nada pior que o tédio. E para o combater, há que existir sempre uma motivação. Concordei. No dia em que o destino for controlado, a vida deixa de ter razão para existir.
E a Esfinge?
Desconfio que tem uma relação com ele. De outra maneira não me fazia acenos para logo fugir. É que as indecisões têm sempre uma causa.
Navegava num mar de incertezas.
O Artista falou de sofrimento. Segundo ele, para um artista produzir (foi a palavra que usou) tinha que sofrer. A novidade que introduziu era que o sofrimento devia ser controlado, à medida. Mas controlar o sofrimento era o mesmo que controlar o destino. Era também apologista de que devíamos ultrapassar o nosso nascimento, quem sabe se para encontrar a encarnação anterior.

No domingo a seguir ao encontro, depois do almoço apeteceu-me conhecer melhor o bairro onde a Esfinge morava, provisoriamente. Já tinha comprado há quase um ano um andar não muito longe dali e, por graça, eu e o Raul oferecemo-nos para montarmos os candeeiros.
Estava um dia quente. Não sabia muito bem o que andava a fazer por aqueles sítios. Nem sequer pensava que a ia encontrar por acaso. Apenas quis conhecer melhor o bairro.
Tive uma ideia ao lembrar-me da história de um homem que "semeava dinheiro para depois colher".
E como fazia?
Muito simples: baixava-se, fingindo apertar o atacador do sapato, e deixava ficar uma moeda no chão. Tudo sem dar nas vistas. O resultado estava à vista. Multiplicava o dinheiro semeado por um número inteiro aliciante.
Experimentei, incrédulo. Não pude evitar um sorriso irónico. Era parvoíce, mas, que diabo! Ainda podia fazer todas as experiências que entendesse.
Fui prudente. Comecei com uma simples moeda de um escudo. Mais adiante, encontrei uma nota de cem escudos. Bom, não podia ter sido melhor para começar. Depois foi a vez de deixar no chão uma moeda de cinco escudos. Estava a ser mais audacioso. O resultado viu-se. Em frente ao atelier, achei uma moeda de cinquenta centavos. Fator de multiplicação invertido.
Nova tentativa. A última. Onde achei a moeda de cinco tostões ficou uma moeda de vinte escudos. Procurei, procurei. O tempo passou. Era coincidência a mais. Claro que não acharia mais dinheiro. Mas era obra descobrir dinheiro por duas vezes depois de ter semeado as moedas.
Ainda em relação à morte trágica do Paulo, estive a conversar com uma auxiliar da escola e extraí novos dados:
Eles não se namoravam. O Paulo gostava muito dela e vivia obcecado com a ideia que a amiga andava com outro.
Quanto à Felícia considerava-o apenas amigo.
Um dia disse-lhe:
«Não me dás os parabéns?»
Ficou atrapalhado e perguntou-lhe se fazia anos.
«Vou-me casar em outubro.»
Era mentira. Dizia aquilo para se livrar dele.
O Paulo pôs as mãos na cabeça e começou a andar para trás e para diante, algo preocupado. Depois, voltou-se para ela e perguntou-lhe:
«Não vais errar?»
E a conversa ficou por ali.
Dias depois ofereceu-lhe um copo que tinha o nome dele gravado. Foi a empregada auxiliar que serviu de intermediária.
Telefonou-lhe no mesmo dia a perguntar se tinha gostado do copo. Ela respondeu que sim, que tinha gostado.
«Vais receber um postal e nunca mais me verás...»
«Porquê?»
«Depois saberás.»
Enforcou-se. Quando o encontraram, o corpo estava negro.
Era responsável e trabalhador, mas não vivia feliz. Em casa não havia diálogo. Sentia um vazio enorme na sua vida, vazio esse que a Felícia nunca poderia preencher. Deixou a namorada por sua causa. Deixou também a própria vida.
«A Felícia “agarrou-me”!»
A Felícia foi chamada à polícia mais do que uma vez porque o nome dela estava espalhado pela casa do Paulo.
Talvez movida pelo remorso de lhe ter dado esperança, embora lhe dissesse que o via apenas como um amigo, começou a vê-lo em muitos sítios.
«Está ali o Paulo! Ali!, sentado no sofá!»
Ao vê-la tão transtornada, a mãe levou-a a uma vidente. À saída, a mãe da Felícia, a vidente e o marido desta ficaram a conversar no cimo das escadas. De súbito, este último caiu pela escada abaixo, Ou pôs um pé em falso, ou foi empurrado por alguém. Felizmente que não aconteceu nada de mal.
Depois, a vidente falou com a voz do Paulo:
«Ele estava à minha frente. Não me deixava falar consigo.»
Uma encenação perfeita da vidente para extorquir mais dinheiro?, ou ele queria mesmo falar com mãe da Felícia?
Ainda outra frase:
«Levo a Felícia atravessada na garganta. Ela era a rapariga dos meus sonhos!»
A mãe da Felícia garantiu que foi verdade. Era a voz do Paulo.
«Vê-o em todo o lado. Está muito transtornada!»

ERA UMA VEZ... A ESFINGE
Chamava-se Esfinge e afirmava que era eterna. Talvez. Mas nunca foi do azul. Vista de perfil, tinha um ar egípcio. Era uma mulher sensual. Sempre que me lembro dela, fico na dúvida. De seguida, encho-me de remorsos. Não sei se alguma vez me estendeu a mão, pedindo ajuda. Não me lembro (é cómodo). Foi há muitos anos. De qualquer maneira, agora é tarde. O seu sol já deixou de brilhar há muito nas alturas. Nem sei se já mora do outro lado da porta.
Conheci-a no mês em que as folhas das árvores, amarelecidas, se esqueceram de viver. Tinha olhos de amêndoa e fugiu de mim. Para longe. Dizem que a viram, perdida, nas viagens do pó branco, a caminho das terras rubras do ocaso, bem longe do azul profundo e constelado. Levou-a a sua heroína!

«Não se volta a encontrar o objeto que foi nosso e ficou perdido no imaginário do desencantamento!»
«Ou nunca tivemos o objeto que só existiu na imaginação dos construtores de sonhos...»
«As palavras que dissemos ficaram por dizer.»
«Poupei as palavras.»
«Poupaste as palavras? Não. Gastaram-se inutilmente. A culpa... ou a sensação de culpa.»
«Quis dizer-te...»
«Sim?»
«Esquece.»
«Os teus olhos!, ia jurar que falaram.»
«Os olhos não falam. Estás a confundir-me com outra.»
«Não falam, pronto. Dizes que não falaram. Quem sou eu?»
«Estou preocupada. E se eles falaram? Podem ter dito coisas horríveis.»
«Horrivelmente belas. Estavas afónica. Lembras-te?»
«Fugi.»
«Por caminhos sem regresso. Ficaste algemada na noite branca. E sabes muito bem que sou do azul. Só faço viagens no azul. Por isso defendeste-me da voragem do algoz que me fez o tal interrogatório pidesco. Estavas com a cabeça encostada no ombro do outro, mas ainda tiveste um resto de escrúpulos para fazer um sinal de não concordância com a minha entrada no grupo que nada tinha de hermético. Eu é que via o grupo de uma forma distorcida.»
«Estamos na mesma onda. Também sou do azul.»
«Agradeço a tua ajuda. Assim como me fizeste entrar no grupo, também decidiste, por motivos não muito claros, que saísse. Quanto a seres do azul, foi uma tremenda mentira. A minha onda beijou as areias vermelhas de uma ilha desolada que te acolheu.»
«Mas... disseste que os meus olhos falaram!»
«Posso saber de quê?»
«Ainda estou afónica.»
«Vês?»
«O quê?»
«Nunca podia resultar. Até os olhos fingiram. Eram uns olhos de amêndoa que eu quis roubar. Quis ser o teu ladrão e não deixaste. Que tenho de teu?
Uma mão cheia de desencantamento. Antes fossem utopias e um buraco negro tragasse a viagem inimaginável pelo mundo do absurdo.»
«Os olhos eram meus!»
«Naquela noite, antes de me apresentares o porco do alemão? A quem os roubaste? Não podiam ser teus. Eram demasiado belos para serem teus...»
«Acaso sou feia?»
«Tens um ar egípcio.»
«É mau ter um ar egípcio?»
«Voltemos aos olhos. Quando falaram, fugiste.»
«Fugi. Tive medo.»
«De quem eram os olhos?»
«Se te disser, juras que não vais à minha procura?»
«Juro. Ou melhor: prometo. Depende da resposta. E nada resolves em fugir. Já sei que o teu castelo está escondido entre as nuvens. Por mais alto que esteja, vou lá chegar. Nem que dure uma eternidade. Bem sabes que também sou eterno. O meu tempo não tem tempo e o teu está condicionado pelo pó branco.»
«Então já sabes? Confesso que profanei o teu laboratório secreto, onde misturavas os ácidos com as bases. Os ácidos beijavam docemente as bases e os cadinhos iam ao fogo purificar o ódio. Procurei o filtro do amor sem qualquer resultado. Apenas encontrei o salgado da paixão que me secou a voz. Não tive coragem de pedir-te ajuda. É esse o meu drama. O segredo da pedra filosofal não falava de pó branco. Sim. Profanei o teu laboratório e por isso fugi.»
«A fenolftaleína traiu-te.»
«Roubei a essência.»
«E essa espécie de cicuta...? É muito tarde para perguntar se gostaste. Se era o que querias.»
«Estou confusa. Não sei quem entrou cá dentro e me domina ainda. Num momento vivo a eternidade e na eternidade abraço o pesadelo.»
«Que vale mais? O outro lado da porta...?»
«Não venhas ao meu encontro.»
«Porquê? Deixa que descubra nos teus olhos!»
«Não são os meus olhos. Roubei-os.»
«Estamos num círculo vicioso. Já sei o que vais dizer a seguir. Que estás afónica e que os teus sinais são pistas falsas. Mas deixa que te fale pela última vez. Pelo telefone. Sim? Tinhas uma voz tão doce, tão indefesa!»
«A Esfinge?»
«Espere um momento.»
«Posso esperar uma eternidade.»
«Também é eterno?»
«Sou.»
«A Esfinge não pode falar. Está afónica.»
«É pena, Esfinge...»
«Como aconteceu? Não sei. Estou afónica. Olha, procurei-te há dias.»
«Men...ti...ra! Como posso acreditar?»
«Mais tarde telefono.»
«Não. Não pode ser mais tarde. É um equívoco telefonares mais tarde. Os avanços e recuos que fizeste, traíram-te. Roubaste a fórmula mas tenho um duplicado que aperfeiçoei. Esse sonho já não existe. O azul já não é azul e o céu não está onde o víamos.»
«Mas eu sou a Esfinge! Há um equívoco. Deliras!»
«E quem é a Esfinge?»
«...»
Silêncio cúmplice de uns olhos de amêndoa.
«Estás triste? Descobri-te. Não tenhas receio, estrela. És o meu cordão umbilical. Afinal foste tu quem me salvou naquela noite do “Nome da Rosa”!»

A ESFINGE TINHA UMA HEROÍNA
Cheguei à escola por volta das onze. Dirigi-me logo para a sala dos computadores. O meu outro mundo.
A clientela habitual começou a chegar. O ambiente modificou-se logo na sala. Os alunos que se tinham inscrito no curso de Logowriter sentiam-se entusiasmados com a ideia genial de mandarem numa obediente e simpática tartaruga virtual. Podiam fazer tudo o queriam dela, até torná-la invisível aos seus olhos e aos de quem observava. Eu próprio tinha em mãos um ambicioso projeto de jogo que já ia muito avançado e que prometia ter êxito se não houvesse interferências negativas, que aliás já adivinhava estarem a formar-se como habituais nuvens negras que ensombravam o meu poder de imaginação.
Os alunos começaram a digerir com rapidez a ficha que lhes tinha distribuído, tal era a ânsia de passarem de imediato à ação. Respirava-se a magia das rotações, dos avanços e recuos, deixando rasto ou não, das rotinas, dos repeat e das shapes. As tartarugas repetiam as ordens dadas pelos alunos. O Logowriter ditava as leis. Não se ouvia um ruído na sala. A magia das mensagens para uma tartaruga simpática que nunca mostrava cansaço ou aborrecimento, nem que se repetisse mil vezes a mesma ordem, transportava-nos, professores e alunos, para um outro mundo. E o mais importante é que os alunos aprendiam a gostar da Geometria que detestavam.
O ambiente era este quando apareceu a Lina. Estranhei o seu sorriso malicioso. Trazia um enigma para eu decifrar.
«Adivinha...»
Claro que não adivinhei.
«Vai à sala de professores...»
«Que se passa?»
«Vai...»
Subi para lá das nuvens quando me disse quem estava na sala de professores e tinha perguntado por mim.
«A vender roupa, calcula! Está a fazer-me concorrência!»
«A Esfinge?!...»
Passei por todos os estados, como se percorresse as estações do ano. Sobressalto. Indiferença. Desorientação. Determinação.
Quando fiquei frente a frente com ela, senti logo que o tempo era outro.
Deu-me a entender que as coisas não iam bem financeiramente. A casa continuava por mobilar. Praticamente só dormia lá, confessou. Pareceu-me que mantinha os contactos com os amigos do atelier. O famigerado Artista continuava a violar a porta do seu laboratório secreto.
Desta vez justificou o silêncio durante este tempo todo com casos de saúde relacionados com o pai que tinha uma doença grave de deformação óssea.
Que disse de importante?
Que eu estava mais evoluído. Notei admiração no seu rosto, naqueles expressivos olhos de amêndoa que ontem tanto me encantaram. Em traços largos e algo confusos, porque queria abranger tudo em pouco tempo, descrevi a minha trajetória paranormal toda baseada numa teoria nova: o triângulo que bloqueava. Falei do tempo sem tempo. Da saída quase repentina do Projeto.
Mas já estava a falar do futuro. Longe do tempo da Esfinge.
E ela?
Sempre a mesma. Fechada na sua concha. Misteriosa.
«Espero que não demore uma eternidade a voltar a ver-te...»
Sorriu. Disse que voltava à escola.
«Onde te posso encontrar?»
«Se quiseres telefonar...»
«E atendes o telefone?» perguntei, já noutra onda.
«Claro que sim. Tens o meu número do telefone, não tens?»
«Pois tenho.»
«Então...?»
«Sim, vou telefonar-te. Olha uma coisa...?»
«Diz, Mário.»
«Aquele teu amigo gordinho e mal educado... que é feito dele?»
Referia-me ao sinistro alemão.
«Não sabes?»
«Não sei o quê?»
«Morreu.»
Apesar de tudo sempre era um filho de Deus.
«E morreu com quê?»
«De um enfarte fulminante.»
Overdose. Provavelmente.
«Bem me parecia.»
«Bem te parecia o quê?»
Aquela noite da nota de cinco contos…
Ganhaste juízo?
«Deixa. Não interessa. Já passou. E tu...?»
«Eu sinto-me bem. Só os problemas da coluna não me deixam.
«E os rins?»
«Porque perguntas? Nunca tive problemas nos rins!»
O pó branco, Ana! Escolheste ir com a tua heroína…
Fez-se silêncio. Um ruído do silêncio que só nós dois ouvimos.
«Tenho que ir, Mário.»
«Se esperares cinco minutos dou-te uma boleia. Para onde vais?»
«Para a praça de Espanha, apanhar um autocarro.»
«Levo-te lá. Vou só dizer à Lina.»
«Obrigada. Tens algum caso com a Lina?»
«Calcula como são os boatos. Até o Raul já me perguntou. Lá por trabalharmos juntos nos horários e sermos amigos…»
E muitas vezes de porta trancada…
«Ah sim. Perguntei por perguntar.»
«Estás perdoada.»
Desta vez não recusou a boleia. Quanto a este encontro de surpresa, não me soube nem a pouco nem a muito porque já tinha apanhado outra onda.
Nunca mais vi a Esfinge.

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