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vida é um jogo. Muitas vezes um jogo perigoso e de consequências imprevisíveis para o futuro. Talvez não seja o caso. Mas fica o aviso à navegação.
Quem é que nunca jogou?
Não estou a referir-me, por exemplo, ao póquer de cartas, em particular ao bluff, ou póquer fechado, um jogo fundamentalmente baseado em por a nu as cinco cartas que os adversários escondem, no momento, no sangue frio que permite ao jogador não revelar uma boa mão ou um bluff nas cartas que lhe foram atribuídas pelo acaso e também na sorte (boa sorte) de cada um. Ao mesmo tempo, é preciso saber perder, deitando as cartas abaixo quando não há jogo, ter a clarividência que aconselha o jogador, no momento certo, a não arriscar ou a ir em frente. A vida é um jogo, mas estou a falar de um jogo sem cartas e não do jogo referido atrás. Portanto, nem “a mesa chora”, nem o “repico”, nem o “vou a jogo” ou "estás a fazer ," com hipótese de pedir uma, duas, ou até novas cartas, nem um "porra!, como me deixei enganar?", nem a análise fria e profunda da expressão facial de um qualquer dos jogadores adversários.
Mas então de que jogo se trata?
Aconteceu há alguns anos. Nesse tempo, Mário estava numa encruzilhada sem mesmo saber da existência dessa metáfora que era o jogo da vida ou a vida ser um jogo. Talvez porque era jovem, impulsivo, adepto incondicional de surfar no aleatório. Como dizia a saudosa Doris Day, "que sera sera". E foi. Para bem ou mal dele.
Ora o nosso contador de histórias, nessa altura um aluno universitário da Faculdade de Ciências, para melhorar a sua qualidade de vida e também para não sobrecarregar o seu pai, decidiu alinhar num projeto na tentativa de aumentar o número de explicandos de Matemática e Físico-Químicas. Não tinha muita esperança de conseguir ter na sua "carteira" mais clientes (não é por acaso que escrevo esta palavra, "carteira"), mas quis o destino que assim não fosse e por isso, só por isso, foi lançada uma semente à terra para germinar no futuro. Talvez fosse prejudicar um pouco mais os estudos na Faculdade que, na altura, não iam nada católicos. mas precisava de mais capital para poder visitar a sua namorada que vivia em Estremoz. Ora as viagens, a estadia de alguns dias numa pensão que comportava só dormida e pequeno almoço, as refeições e tudo o mais que vinha naturalmente a seguir porque não permitia, machista ou não, que a Manuela pagasse o que quer que fosse, todos esses extras não podiam ser pagos com a semanada que o pai lhe podia dar. Já bastavam as despesas com a pensão em Lisboa, folhas para a cadeira de Química Inorgânica, sebentas, esferográficas, cafés, leite Vigor, etc... Aliás, estava a chegar a altura de se tornar mais responsável e independente. Isto é soltar uma espécie de "grito do Ipiranga" financeiro.
Entretanto, um mês antes iniciara a construção de uma "ponte" de ligação entre o antes e o depois. Foi há muito tempo, mas parece que estava no café Fortunato quando decidiu responder a um anúncio onde pediam colaboradores para a Companhia de Seguros Ultramarina. Tempos depos foi chamado a prestar provas Português e Matemática. Muito simples para um universitário. Demasiado simples. Foi chamado dias depois para o emprego, mas não aceitou. Ganhava praticamente o dobro em explicações.
Parece que estou a vê-lo. Aquele magrizelas engravatado e de fato cinzento era ele. Hoje tem mais quinze quilos em cima e continuará a ter mais, até entrar na curva descendente rumo ao "ninguém cá fica para amostra". Diga-se que comia muito bem na altura. Devia ser hiperativo ou ter a solitária. Nada lhe fazia proveito.
«Que nojo, Mário!»
De repente tudo muda. Um interlocutor hipotético dirige a palavra a Mário. Talvez um visionário.
«E o que vês agora, meu amigo?»
«Estamos nas férias de Natal e estudo Matemáticas Gerais com a Inês. Ou melhor, dou-lhe explicações. Ela nunca irá atinar com os artifícios que são aplicados nos difíceis exercícios de limites de sucessões. Autênticas obras de arte que tenho de criar. Julgo-me talhado para esse tipo de exercícios. Ela, não. É burra.»
«Cada um nasce para o que nasce. Achas que é um tempo perdido?»
«Por acaso não. Até dá jeito. Assim, faço revisões e tento aperfeiçoar os meus artifícios para os exercícios mais complexos sobre limites. Repare no meu à-vontade. Domino a matéria, mas vou ser surpreendido na frequência a seguir às férias do Natal com um sete. Nem mais nem menos. Constava entre os estudantes mais imaginativos que quem via as provas costumava usar a cama do quarto como sistema de aferição. Atirava-as ao ar e as que caíam em cima da cama eram classificadas com nota positiva. Ai das que iam parar ao chão! Quanto às que aterram em cima do penico tinham nota alta. Vá lá acreditar em coisas do arco-da-velha?»
«Muito me contas. Mas talvez não tenhas razão. Não interessa. E quem é a jovem que está contigo? Não é a Inês, pois não? Aparenta ser pessoa inteligente.»
Ele, na pujança da vida, estava lado a lado com a Inês, uma mulher interessante que nem por isso o atraía. Mas era a Gina a quem se referia o seu interlocutor. Acabava de chegar e a sua atenção concentrou-se nela. A Gina frequentava História na Faculdade de Letras e costumava assistir às explicações, claro que à margem dos conteúdos.
Um dia foi ter com ela à Cidade Universitária.
São águas passadas que deixaram marcas ténues. Aliás, já contou o caso que teve com a Gina. Se é que pode chamar caso (1).
Avançando um mês, ele e duas amigas mais velhas lembraram-se de formar um grupo de explicações. Puseram anúncios nas montras de algumas lojas da vila. Ficou combinado que o Mário dava explicações de Matemática e Físico-Químicas e elas encarregavam-se do Inglês, Português e História. Mas não era bem uma sociedade. Cada um trabalhava para si. Só estiveram juntos no anúncio e na distribuição de cartões publicitários que conseguiram colocar nas monstras de algumas lojas da vila.
Duas ou três explicações era coisa curta para satisfazer as viagens a Estremoz, foi o que pensou. Mas surgiram mais explicandos e a sua situação financeira mudou radicalmente. Já dormia no quarto alugado na travessa de S. Sebastião, na pensão da "Aninhas morte lenta".
Entretanto as explicações iam bem. Já tinha dinheiro mais que suficiente para visitar a sua namorada de Estremoz.
«Era sobre o concurso da Companhia de Seguros que gostava de falar.» Esclareceu a personagem imaginária. «Repara bem, Mário...»
«Ah sim. Estou numa sala a prestar uma prova escrita de Matemática, juntamente com uma vintena de candidatos. Acho-a demasiado fácil. E não podia ser de outra forma, pois as questões propostas estão ao nível do segundo ano do liceu. Antes fiz a prova de Português que me correu bem, exceto a redação. Nunca fui grande espingarda, Céus! Como sou magro! Nem me reconheço...»
«Adiante. Que estás a ver agora?»
«Uma sala. Já foi ali o meu quarto. Dou explicações a grupos de jovens. De dois a quatro. Dar explicações a grupos foi uma boa ideia. Rendeu muito mais e poupei tempo.»
«Continua...»
«Logo à entrada, à esquerda, está a minha secretária com tampo de vidro. Na gaveta do meio guardo as cartas da Manuela. Dia em que não receba uma, é dia em que fico insuportável.»
«Há quatro mesas e quatro cadeiras onde se instalam os explicandos. Do lado esquerdo da janela, e ao canto, vê-se um quadro em ardósia apoiado num cavalete que o tio Mourinho foi descobrir no sótão da sua loja de móveis. Um rapaz está junto ao quadro. Tem o giz apoiado na ardósia. Dir-se-ia que acabou de ter uma cãibra e que os dedos ficaram presos. A realidade é outra. O desgraçado é mais duro que um penedo. Estou quase a perder a paciência. O que me vale é lembrar-me que estou a ser pago e tenho que fazer todos os possíveis e impossíveis para lhe abrir a mente. Vá lá, “penedo”, tem dó de mim! Vou perder a paciência não tarda um fósforo. O calino é salvo no último momento porque acabam de tocar à campainha. Faço um sinal para os meus explicandos aguardarem e vou abrir a porta. É o carteiro. Sou todo sorrisos. De repente o céu tornou-se azul, mesmo que continue cinzento. Uma carta da Manuela...»
«Puro engano, Mário. A carta é da Companhia de Seguros Ultramarina.»
«Acabas de ser admitido como funcionário a título eventual e deves apresentar-se ao serviço no primeiro dia do próximo mês. Faltam poucos dias...»
«Ah!»
Então e a Manuela?
«E não vou aceitar.»
«Bem sei. Mas, porquê?»
«O ordenado que me oferecem é de mil e duzentos escudos e já estou a ganhar quase três mil nas explicações. Três mil escudos permitem-me fazer extravagâncias tais como pagar uns lanches a amigos. Além de poder comprar alguma roupa e de me sentir mais à vontade nas estadias em Estremoz.»
«As explicações são sazonais e incertas, bem sabes. Feitas as contas, a diferença entre os ganhos não será tão grande como isso.»
«Talvez. Quanto ao emprego, este é precário. Acho que fiz bem em não aceitar.»
«Tens a certeza?»
«Não tenho a mínima dúvida. Estou a ganhar mais que o dobro com as explicações e os explicandos novos continuam a aparecer. Achei um filão, meu amigo!»
«Tudo é relativo. Acredita numa coisa. Se tiveres um bom desempenho no trabalho podes ficar como efetivo. Depois, vais subir de categoria, subir, subir sempre... sei lá até onde! Pensa, Mário, no futuro que desprezaste.»
Atirou-lhe um argumento de peso.
«Mas o meu objetivo é acabar o curso.»
«Bem sei. No mínimo acabas o curso em quatro anos. Se te deres bem no emprego e se as promoções vierem, ficarás noutra situação. Queres ver?»
As imagens da sala de explicações que lhe foram mostradas tornaram-se nubladas, até que desapareceram de vez. Vê-se a entrar num gabinete confortável, para não falar em luxuoso. Leva uns papéis na mão. Muito provavelmente foi chamado pelo chefe de serviços. Tem a certeza que vai arrastar-se penosamente como subalterno por muito tempo.
«Talvez te enganes. O que vem a seguir comprova a minha previsão. Tu não foste chamado ao chefe de serviços. Na verdade és o chefe de serviços. Tiraste vários cursos de formação e até estás quase a ser promovido a um cargo mais alto, ligado à gestão. Diretor de departamento, ou isso. Neste momento em que te vês a entrar para o gabinete, o dito curso universitário de quatro anos já não faz parte dos teus projetos. Puseste o curso de parte porque a tua carreira profissional está imparável. Ao mesmo tempo, fizeste aplicações financeiras que estão a render bom dinheiro. É o que eu vejo…»
«Será que noutro universo atravessei um portal e tive algum êxito materialista considerável?»
Sim. Provavelmente está a acontecer o êxito do tal cavalheiro elegante da Maré Vazia (2) e não vai faltar-lhe dinheiro que gastará até ao último centavo para alimentar os seus caprichos e, principalmente, a vaidade. Carros caros, mulheres caras, vivências loucas que nunca imaginou ter. Uma ambição sem limites. E quando se ganha menos do que se gasta, o que pode acontecer no futuro? Luvas. Lavagem de dinheiro. Corrupção.
«Meu Deus! Antes este mundo! Então... e o amor?»
A eterna busca.
«Não vejo amor. Ou alcançavas o êxito materialista, ou então o lugar para o amor.»
«Ou nada. Mas é uma injustiça clamorosa não se poder ter as duas coisas!»
«Concordo contigo. Não se pode ter alcançar tudo na vida, Mário…»
«Acredito.»
«Ficaste dececionado?»
«Sim.»
«Então, seja. Neste mundo és um sentimental que põe o amor acima de tudo. Ao mesmo tempo, o amor e uma cabana não vai convencer a mulher que te está destinada. Acredita. Falta a estabilidade que nunca lhe poderás dar senão em efémeros períodos de tempo. E eu não estou a influenciar-te na decisão final porque já aconteceu tudo e ninguém pode ir ao passado para o alterar.»
«Se é verdade existirem mundos paralelos, então sou um desencantado perdido entre esses mundos alternantes. Um pária galático. Nunca terei o que quero e o que tenho não quero.»
«Tens razão.»
«E a Manuela?»
«Morreu cedo, bem sabes.»
«Mas num desses mundos pode não ter morrido.»
«Mário, o teu mundo é este. Só quis lembrar a provável existência de um mundo materialista em que podias ter evoluído e rejeitaste…»
«Não existem portais que ligam universos?»
«Talvez. Mas corres o risco de encontrar outro ainda pior. Por exemplo, aquele universo onde vieste a casar com a Simone.»
«Ah!, a Simone.»
«Sabias que ela ainda pensa em ti?»
«Pouco me interessa. Essa mulher alterou o meu destino. Só desejo que vá para as profundezas do inferno. Mas, estou a lembrar-me…»
«Diz.»
«Esta hipótese dos multiversos tem alguma base de apoio, alguma consistência?»
«Admito que sim. Mas quem sou eu?»
«Quem és tu, senão uma parte de mim?»
«Adivinhaste.»
«Deixas-me sonhar?»
«É contigo. Mas é muito provável que este teu sonho não comande a vida.»
«Não faz mal. Pior do que a vida já me fez é quase impossível.»
«Não te queixes.»
Se eu puder libertar as palavras que o pensamento criou, as livres e as proibidas, então o nosso amanhã talvez tenha, algures, uma ponte para nos ligar e possa esconder, também algures, o abismo que nos afastou. E assim, no dia em que te vir a correr ao meu encontro, entre o verde das searas ondulantes e a beleza do vermelho das papoilas, quero ter a força de um deus, tomar-te nos braços e fugir contigo para sempre no mítico cavalo alado que certamente está à nossa espera.
Mas não será assim. Esse amanhã, a acontecer, é a miragem que nos une, cada um na sua margem focando o horizonte, onde o meu futuro continua à espera de acontecer o desejo que tive sempre.
Se pudesse correr ao teu encontro e os relógios parassem, estando os dois no presente, o meu tempo continuaria para lá do teu que, entretanto, há muito tinha ficado para trás.
Não temos o mesmo tempo nem teremos, pois eu fui sempre hoje e serei amanhã e tu és só de ontem!
Mas há quem diga que o teu tempo parou para assim finalmente me poderes amar. Desconfio, mas aceito. Só que neste universo não aconteceu nem vai acontecer.
Há quem diga também que nos encontrámos noutro tempo, mas nesse tempo eu vi-te passar e nem sequer olhaste para trás. Pelo contrário, ainda noutro tempo, fui eu que parti à procura de novas madrugadas, não por vingança, mas porque "alguém" quis que partisse. E ainda há quem diga que, noutros tempos, muitas outras situações foram criadas só para nós, que estivemos unidos ou separados, em que aconteceram tempos de amor, de paixão e de ódio. Tempos em que vi-te passar e as feromonas não deram o sinal. Tempos de circunstância, parvos de "(olá, como estás?". Tempos de desencontro por uma questão de segundos. Tempos dos dois sem os dois. Enfim, eu e tu já fomos e seremos protagonistas reais que tiveram e terão destinos diversos em cada universo possível dentro de um número infinito de universos onde continuam, em todos os "hoje", a ocorrer os nossos destinados encontros e desencontros.
Não tivemos sorte neste único universo de que nos lembramos existir. Eu e tu, sempre ligados pela força do pensamento inconsciente, sem sabermos um do outro. O azul constelado do céu levou-te para sempre na viagem e se agora me recordo, de nada vale recordar.
Noutro universo haverá uma realidade diferente. Talvez que a caminhada ocorrida em união tenha sido mais prolongada, embora também nessa vivência não nos lembremos das outras.
E assim ad aeternum...
Neste universo nascido da grande explosão, tão vasto, tão diverso, onde a gravidade ainda comprime as poeiras e acende as estrelas e as galáxias se formam, se expandem, se afastam umas das outras, por força da energia negra, como será que duas estrelas, a minha e a tua, se vão unir nos confins da distância se vão ficar cada vez mais afastadas?
Lutámos, à nossa escala, contra a inflação e a gravidade e acabou por vencer a primeira. Partiste cedo e eu fiquei por cá.
Sabes uma coisa?, gostava de encontrar a fórmula que permitisse o equilíbrio entre estas duas forças antagónicas que são a inflação e a gravidade, e nos unisse e desse sentido às nossas vidas. Uma espécie de fórmula de Deus. E aqui vou esbarrar com o muro do costume. Deus não fala comigo. Só me envia sinais de culpa e esses não aceito de todo, porque acredito que há de haver um outro universo mais justo onde fui quem queria ser e não quem fui obrigado a ser. Um universo onde Alguém sinta a amor por nós.
Ah se eu pudesse encontrar-te de novo naquele tempo que foi o tempo que deixei fugir!"
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