quarta-feira, 17 de maio de 2023

A residencial

   


A princípio, estranha-se. Depois entranha-se. Já sabia. De facto entranhou-se uma mistura indescritível de esboços de recordações. Lentamente. Porque a entrada tinha um estrangulamento. Ou crivo, se quiserem chamar. E logo a seguir, um estuário diferente dos estuários normais. Um estuário de recordações paradas, suspensas, à espera de uma ordem para entrarem em cena.

Há dias e dias. Uns bons, outros menos bons e outros antes pelo contrário. Este é um desses. Adivinhem? Qualquer dia serve para me encaminhar para a residencial sénior, algures na zona da avenida de Roma, lá para sul, que tem fama de não ser só habitada por seres vivos, como também por aqueles que nunca foram vistos pela maior parte dos utentes ou dos familiares visitantes. Enquanto me aproximo, penso se é bom começar com chorinhos e lamentos. Tenho razão para isso. Foram muitos anos de estagnação. Mas ninguém mandou deixar-me ir no canto da sereia. À falta de melhor, os lamentos servem de ponte para chegar ao destino. Devia ter sido mais esperto. Desta vez paguei caro. Fui um joguete nas mãos de um certo diabo de saias. Mas resta-me a consolação de crer que ela também vai pagar, se é que não começou já a pagar. É só uma questão de tempo. Vai pagar e com juros.
«Ninguém pode fazer-lhe mal.» Disse-me em tempos uma vidente que deitava cartas.
É cá que se paga tudo e se recebe o troco. Até hoje o efeito boomerang nunca falhou.
É uma injustiça contar os tostões e ela os milhares. Mas nem sempre foi assim. Ela contava os tostões e eu ajudei-a a ultrapassar esses tempos difíceis. E não só. Fui o fiel da balança que controlou o seu desequilíbrio ainda antes de ser desprezado quando já não precisava de contar os tostões. E é por aí que também passa parte do seu pecado.

"Estou em Lisboa. Cheguei depois do almoço. O calor apertava, mas sentia-me bem. O meu destino era Alvalade. Ia receber prémios do totoloto a algumas agências. Fruto das sociedades.
Tudo correu dentro da normalidade. Como sempre, aliás. Apenas tive um pequeno problema numa agência da avenida da Igreja.
«Este recibo não tem prémio.» Disse-me a funcionária.
«Veja melhor.»
Admirei-me da minha resposta ser tão seca. Aliás, ultimamente tenho andado um pouco agreste. Talvez seja do calor que não é próprio da época. Ou não?
«Desculpe, vi mal.»
«Ah!»
Depois de resolver os problemas daquela zona, não resisti à tentação de passar pela tua rua. Vi o carro. À sombra. Bem arrumado.
Como conseguiste partir nessa viagem?
Olhei para a marquise. Tudo normal. Até parecia que estava gente em casa. Senti um nó na garganta. Foi uma sensação estranha que não sei explicar. De ausência. De sabor amargo. Como se algo de bom tivesse acabado. E afinal passávamos por uma espécie de interlúdio. Antes ele tivesse acabado com a tua viagem.
Pensei em ti, na cama vazia. Vazia de ti. De nós. Quem sabe, até quando. Tu em viagem, porque não podias suportar a solidão (?), e eu à tua porta, sem ti, com a minha solidão porque estavas ausente. Era irónico! Deliciosamente irónico. É o que penso hoje.
Aquilo que fizeste foi espontâneo ou pura rotina, portanto uma atitude já repetida mais que uma vez?
Afastei-me depressa, não fosse a desgraçada da saudade apertar mais. Tinha que seguir o teu conselho. Tinha que gostar ainda mais de mim. A vida era uma passagem e era preciso aproveitá-la. Uma sequência de slides que, com frequência, perdiam a continuidade. Não valia a pena sonhar. Tinhas razão. Os sonhos não passavam de sonhos. A realidade era outra. Uma espécie de premonição amarga.
O calor continuava a apertar, mas decidi fazer ainda a segunda parte do circuito. Azimute? Estados Unidos. Tinha mais prémios a receber em duas agência, uma delas na Suprema.
Mas seria que procurava apenas receber os prémios?
Malditas sociedades no totoloto que só davam prejuízo e trabalho! Ninguém me ajudava. Era eu quem preenchia os boletins. Neles ia o meu "infalível" sistema gerado pelo computador. Uma ova! O sistema ou a falta de sorte, Qual deles contribuía mais para o fracasso?
Precisava de andar mais. De martirizar o corpo. De transpirar, para libertar as energias que se acumulavam em excesso.
Fui a pé da tua rua até à Suprema. Depois de receber os prémios, entrei no Centro Roma e desci até ao último piso. Procurei na discoteca um disco do Vinícius. "Apelo" (Soneto da Separação) e "Eu sei que vou te amar". Eram para ti. Quando regressasses da viagem.
Encontrei o que queria. Mentiras? E de quem? Tudo seria confirmado no futuro.
De facto, como já me tinham dito, o ar naquele piso era impróprio para consumo. Senti uma pressão enorme no peito. Não me alarmei porque já sabia a causa. Se não soubesse antecipadamente teria sido uma porra de grande pânico ou assim.
Não compreendo o motivo que te levou na viagem. Se foi impulso. Se quiseste prender-me mais na tua teia. Tiveste muito tempo para desistir, mas foste sempre em frente. Dirás que nunca forcei. Achas que devia forçar?
Afinal, eu não era a coisa mais querida que tinhas na tua vida, ou a segunda coisa mais querida. Não passava de um ingénuo apanhado numa ratoeira fatal. Ingénuo. Não passava de um ingénuo. Um principiante. Tinha ainda muito para aprender. Sabias prender-me, amar-me na cama. Para mim não era novidade. Nem para ti. Não o disseste, mas digo agora por nós dois.
Ontem dormi que nem um justo. Calcula? Das onze da noite, às oito da manhã.
E tu?, tens dormido bem?
Sabes uma coisa?, neste momento penso que não somos nós, afinal, a construir o futuro. Há certas coisas que não acontecem porque nós queremos, ou porque as videntes leram no destino.
Por exemplo, o motivo que te levou a viajar.
Foi sempre a distância que ditou o meu futuro e que me atirou mais que uma vez, para o deserto.
Hoje estou a ser cáustico. E posso ser ainda mais cáustico e não quero. É que estou de novo no deserto, onde os catos picam e o ambiente escaldante sufoca. A propósito de deserto, o meu amigo Ildefonso já reescreveu aquele conto de que já te falei, "Eternamente em Encanto".



Aliás, tem escrito muito ultimamente porque o meu desespero é um bálsamo para ele. Em situações como esta eu perco e ele ganha. Valha-lhe a paciência que tem. Merecia que lhe dessem mais valor.
Quando voltas?"

É fácil adivinhar no que deu o nosso envolvimento, dias mais tarde, quando regressou da viagem. Mais uma vez deixei-me ficar num campo minado de paixão. E era inevitável acontecer o que aconteceu. Os cardos começaram a invadir os canteiros onde proliferavam as túlipas. Tudo claro como límpida é a água pura. Só que eu não vi que as águas onde nadava estavam turvas. E agora, a frio, penso que não devia ter procurado aquela mulher quando regressou da viagem. Mas foi fatal o encantamento, ou teia, que me prendeu o raciocínio. Nunca mais fui o mesmo. E, infelizmente, nenhuma madrugada de viragem sorriu para mim. Foram anos perdidos. Como sempre, ou quase sempre, este tipo de histórias começam no paraíso. Mas não é essa a história que quero contar. Nunca a contarei na totalidade. Só algumas franjas obscuras. Como esta...

Dentro de minutos vou entrar na residencial. Faltam pouco mais que vinte passos. Não sei se faço bem em entrar. Mas já entrei, pronto. Acho que cortaram algumas árvores desde a última vez que cá estive. Coitado do senhor Mário. Um poeta sem palavras no papel, sonhador contemplativo das árvores. Mais ninguém conheceu melhor do que eu aquele homem que transmitia amor às árvores. Talvez fosse eu num futuro não muito longínquo, já quando as palavras se tinham gasto.
Uma dezena de anos antes ainda as suas pernas enfraquecidas deixavam que caminhasse na mata densa do seu bairro até um certo banco que estava sempre à sua espera.
«E esse banco de que fala, senhor Mário, onde fica?»
Um Mário a falar com outro Mário.
«Pois. Tinha uma história.»
Não me revelou o local. Até podia ser aquele.
«Como todos os bancos. Eu também me lembro de um.»



«Sim, tem razão. Há sempre um banco destinado a contar uma história de amor. Mas infelizmente é mudo. Adiante. Depois passei a escrever poemas. As árvores inspiravam-me. As palavras saíam com naturalidade. Parecia magia. Era mesmo magia. Acho que ela estava presente e ditava-me as palavras.»
Havia uma ela que lhe ditava as palavras, admiti. Porque numa história de bancos entra sempre uma ela.
«E essa história..., senhor Mário?»
Ignorou a pergunta.
«Olhe, como é lindo ver os raios de sol a baterem nas folhas! Ah! Uma que acabou de cair! Reparou, meu amigo?»
«Mais que uma, senhor Mário. Mas esta parecia ser especial. Estava a despedir-se do senhor. Compreendo o motivo porque passa aqui grande parte do seu tempo.»
As folhas que via cair eram muitas. O maroto do senhor Mário devia ter sido cá um pinga-amor!
«Tempo? O tempo já não está comigo, meu caro.»
«Como assim? Por enquanto ainda pode controlar o seu tempo» e emendei: «oxalá por muitos anos...»
«A propósito, alguém morreu cá esta noite.»
«Disseram-lhe?»
«Ouvi dizer. As minhas pernas já perderam a força, mas felizmente ainda oiço bem. O velho truque de um caquético como eu sou. Pus-me à escuta. Ainda não perdi todas as faculdades e procuro tirar partido das que me restam, compreende?»
«Engenhoso.» Pensei.
Não o interrompi.
«Sabe que as pessoas que são levadas para o último piso nunca voltam vivas para baixo?»
Já me tinham falado nisso. O último piso era uma espécie de estação de espera para a última viagem. Aquela viagem que todos nós receamos porque não sabemos qual é o destino, ou se tem destino. Se há vida para além da morte. Somos filhos do universo, átomo a átomo. É fatal tendermos para ele, também átomo a átomo, penso. Mas nem isso é certo.
«Não me diga!»
«É verdade. Levam-nas para lá quando estão a morrer. Os familiares pagam bem para se livrarem dos seus entes moribundos que só representam um empecilho. Ah!, outra folha que caiu!»
«Então, senhor Mário? Há muitas folhas a cair.»
Sortudo! Teve uma vida cheia.
«Mas esta era especial!»
Talvez tivesse razão.
«Ah!, quem era?»
«Mais um sinal de despedida. Nunca mais a vou ver...»
«Quem?»
A expressão do olhar, perdido para lá do gradeamento daquela prisão dourada, exibia muito amor, infelizmente já sem retorno.
«Como se chamava ela?»
«Alice.»
«Um bonito nome, senhor Mário. Doce.»
«Sim. Quer ouvir…?»
E começou a contar a história da sua Alice...
Voltando ao comentário do senhor Mário sobre os doentes que não voltavam do último piso, falava-se dos mistérios que aí ocorriam. Era voz corrente dizerem que traziam os mortos em macas, escadas abaixo, na calada da noite. E não eram poucos. Além de alguns residentes, já muito debilitados, pessoas endinheiradas traziam moribundos de fora. Um negócio das arábias para os sócios da residencial e também para o médico que assinava as certidões de óbito. Não que fosse ilegal, penso. O caso dos mortos. Mas conseguia-se ler muito nas entrelinhas.
Foi então que a recordação de um dos nossos muitos diálogos se interrompeu.
«O meu querido professor!»
«Beatriz!»
«Que bons ventos o trazem?»
«Não são saudades, acredite. Apenas lembrei-me de passar por aqui.»
«Ainda bem que o fez. A velhota era simpática e gostava muito do senhor. Mas, desculpe-me dizer, a doutora não o merecia. O senhor é um bom homem. Acredito que vai ter melhor sorte.»
«Ninguém é santo, Beatriz.»
«Mesmo assim as suas penas são leves.»
Outra história dentro da história.
«Como está a sua irmã?» perguntei.
Uma jovem muito envergonhada que também frequentava as aulas da noite para adultos e que sentia uma atração misteriosa por mim. Chamava-a muitas vezes ao quadro e nem por isso deixava de mostrar as faces rosadas, sinal que ficava bloqueada pela presença do seu professor.
«A Mafalda está bem. Falamos muitas vezes no senhor.» 
Não comentei. Lembrei-me de algo que acontecia quase todas as noites, depois das aulas. Saía com o carro do parque de estacionamento e entrava na avenida. Pelo retrovisor via a cena do costume. O carro da Beatriz seguia lentamente atrás do meu. Parava nos semáforos e depois cortava à direita, continuando pela avenida do Brasil. Era o momento da separação já que o carro dela, onde seguia também a irmã, ia descer a avenida. Nunca entendi o motivo daquela curta perseguição. Ou não quis entender.
«A Mafalda sempre tirou o curso de mecânica de automóveis?»
«Não. Agora é estafeta. Tem uma moto.»
«É perigoso.»
«Vá dizer-lhe, doutor.»
Vi-a mais que uma vez perto da casa da avenida do Brasil, junto à moto, a comer umas sandes que eram o seu almoço.
«Porquê ali, próximo do prédio onde eu morava?» 
Resolvi nunca aprofundar. Às vezes era melhor fingir de morto.
Fomos interrompidos por uma auxiliar.
«Beatriz, chamam-na ao quarto 10.»
«Tenho que ir. Gostei muito de o rever, doutor.»
«Igualmente, Beatriz. Dê por mim um beijo à Mafalda.»
«Claro que dou. Ela vai ficar feliz quando souber que o vi. Estamos muito gratas ao doutor.»
«Ora, Beatriz não fiz nada de especial.»
«Não diga isso.»
«Olhe uma coisa, Beatriz, se alguma vez encontrar a doutora não lhe diga que me viu.»
«Não digo, não. Aliás, já não vem cá desde que a mãe partiu. Sabia que a mãe da doutora faleceu?»
«Sim.»
E estava de visita à residencial, porquê?
«Tenho que ir, doutor. Se precisar de alguma coisa, disponha...»
«Obrigado, Beatriz.»
Voltei-me para trás e olhei para o banco vazio onde costumava sentar-se o poeta das árvores, gesto que não passou despercebido à Beatriz.
«O senhor Mário morreu há seis meses. Não desfazendo, era um velhote muito simpático.»
Estremeci sem saber porquê.
«Ah sim. Pobre homem...»
Antes de começar a subir a escadaria em mármore que levava ao primeiro piso dos residentes seniores, lembrei-me do engenheiro, um homem franzino, enfraquecido pela sua idade avançada. Nos tempos em que ia muitas vezes à residencial, tinham-me dito que caíra duas vezes da cama e teimou sempre que alguém o empurrou. A filha, uma mulher quarentona, loira, baixa e gordinha, mas mesmo assim interessante, que visitava o pai quase todos os dias, investigou o caso e chegou à conclusão que tudo não passava de um delírio do pai. Talvez tivesse razão, pensei na altura.
Uma noite, quando me dirigia ao segundo piso, vi o engenheiro sentado num sofá. Cumprimentei-o e ele fez-me um sinal. Compreendi que queria falar comigo.
«Importa-se de me levar ao quarto? Já chamei uma auxiliar que passava perto e fingiu que não me ouviu.»
«Com todo o prazer, engenheiro.»
Pressenti que o ancião precisava de desabafar. E não me enganei. Junto à porta do quarto entrou em modo de confissão.
«O corrimão está solto. Eles querem matar-me, sabe?»
«Fique descansado que vou tratar do assunto.»
E ajudei-o a entrar no quarto.
«Já me atiraram duas vezes da cama abaixo.» Confessou.
«Eu sei. Disseram-me. E como foi que aconteceu?»
«Pois, fui empurrado» confessou. «Querem matar-me.»
Ignorei aquela confissão.
«Se não é indiscrição, quanto paga pelo quarto?»
Portanto, não era um dos utentes que fizera um contrato vitalício. Um negócio da China, diga-se, para a administração.
«A minha filha é que sabe.»
«Que viva muitos anos, senhor engenheiro.»
E fiquei a vê-lo entrar no quarto. A seguir, por um descargo de consciência, coloquei uma mão na parte do corrimão junto ao quarto. O homem tinha razão. Na verdade estava solto. Afinal não havia alucinação nas queixas do engenheiro.
Apressei-me a avisar a administração.
«Fique descansado, doutor Mário, que vamos já tratar disso.»
Curiosamente demoraram mais de um mês para fixar o corrimão.
Queriam vender o quarto, já que este estava alugado? 
Um negócio da China, pois o quarto voltava à posse da administração da residencial logo após o falecimento do utente.
Continuei a subir as escadas. Foi então que aconteceu o impensável. O engenheiro estava sentado no sofá e sorria para mim.
«Viva, senhor engenheiro.»
Olhava para mim, muito sério. Tantos anos de solidão não disfarçadas naquele rosto vincado pelas rugas! Senti que devia dirigir-lhe algumas palavras. Saber, por exemplo, se já tinham tentado mais uma vez empurrá-lo da cama abaixo.
Então, aproximei-me. E ilusão das ilusões. O sofá estava no sítio do costume, mas o engenheiro, esse não. Não o vi lá.
«Mas...»
Encolhi os ombros e continuei a subir as escadas até que cheguei ao último piso.
A mãe da minha companheira tinha sido uma das residentes. Uma queda acidental incapacitara-a de tal modo que não restou outra hipótese senão a filha instalá-la na residencial, por sinal nada barata. Por outro lado, aquela mulher que nem sequer acreditava na idoneidade da filha e que se deslocava de banco para banco com um saco de plástico cheio de notas de contos, para ver qual deles dava a taxa de juro mais alta, logo após o acidente, desinteressou-se de tudo. Da casa e dos depósitos a prazo. Contas chorudas depositadas em vários bancos, diga-se em boa verdade. Coincidência ou não, foi também o tempo da viragem no nosso relacionamento.
Não pude evitar um sorriso irónico ao lembrar-me. Que nó cego, meu Deus!
«Mário...»
Quem me chamava com uma voz fraca, sussurrante?
Tinha terminado a subida ao segundo piso e estava junto ao quarto 23.
«Bom, não bebi muito ao almoço.» Pensei.
Então, vi-a. A anciã, apoiada numa bengala de cabo prateado, caminhava na minha direção, sorridente.
«Afinal... ela está viva?» perguntei, confundido. «Será...?»
Mas não completei a frase porque estava a falar para o éter. A visão esfumou-se logo. Não entendia porque estavam a acontecer coisas estranhas naquela residencial que já tinha sido maternidade.
«Essa agora!»
Abri a porta do quarto.
«Que se passa contigo, Mário?» interroguei-me.
«Quem procura?»
Fixei o olhar em frente.
«Ninguém em especial. Desejo-lhe uma boa tarde. E peço desculpa.»
Era uma auxiliar da residencial. No momento tratava da higienização ao quarto.
«Mas eu conheço o senhor!»
«É natural. Vinha cá muitas vezes.»
Ia jurar que tinha visto a velhota à porta do quarto! A expressão do seu rosto não deixou margens para dúvidas. Pareceu-me que queria falar comigo. Talvez tivesse uma revelação importante para fazer. Mas porquê? Teve todo o tempo em vida e não o fez.
«Já me lembro. Há uns anos falámos sobre coisas estranhas que aconteceram antes deste lar existir. Nesse tempo havia aqui uma maternidade.»
«Também me estou a recordar da senhora. Mas continue que aguçou-me o interesse.»
«As enfermeiras mais antigas contam casos estranhos de visões, principalmente de mulheres que morreram durante o parto. Isto é medonho à noite. Nem queira andar por aqui de noite, senhor! Há quem já tenha apanhado chapadas e empurrões. Uma colega minha até foi rasteirada, calcule. Quando trabalho à noite ando sempre em sobressalto. Nunca se sabe...»
«E porque será?»
«Penso que houve negligência em vários partos.» 
«Serão os espíritos errantes dessas parturientes que morreram no parto?»
«Não sei, senhor.» 
«E já aconteceu com utentes que foram empurrados da cama para o chão?»
«Está a falar do engenheiro?»
«Sim.»
«Aí o caso foi outro. Os fantasmas não têm culpa. Foi uma coisa bem diferente.»
«Acha que sim?»
«Não posso dizer mais, compreende? Bom, senhor, tenho que continuar com o trabalho nos quartos. Tive muito gosto em falar consigo.»
Só uma coisa. Aquela mulher que me contou sobre os casos insólitos na residencial, ainda no tempo em que era maternidade, tinha-se apresentado na altura como enfermeira. Não percebo porquê.
«E eu também gostei de falar com a senhora. Apenas uma pergunta: o engenheiro...?» 
«Esse senhor já faleceu.» 
«Pois. parece que disseram-me em tempos. Então até um dia. E cuidado com as rasteiras...»
«Tomo nota. Vá com Deus.» Disse, sorrindo.
Comecei a descer as escadas. Ao chegar ao patamar em frente ao quarto do engenheiro não consegui evitar olhar para o sofá.
«Felizmente que foi só uma visão.»
Pouco depois estava no hall.
«Posso ser útil?»
«Obrigado, menina. Estou de saída. Vim só ver a minha tia.»
Já no exterior, encaminhei-me para o portão, mas estaquei de imediato.
«Vejamos... está ali alguém.»
O olhar fixou-se num velho sentado num banco que olhava fixamente para uma árvore frondosa. Os raios solares rompiam a custo entre a densidade de folhas e ramos. Mesmo ao jeito para os poemas do senhor Mário.
Aproximei-me.
«O poeta das folhas das árvores!» pensei.
«Posso sentar-me ao seu lado, senhor Mário?»
«Claro, meu amigo.»
«Não nos víamos há muito tempo.»
Demorou a responder.
«É verdade. Talvez uns oito anos. Não, sete. Olhe-me para aquelas folhas! Como elas resplandecem...»
«E os seus poemas?, tem feito muitos?»
«Estão ali.» Disse, apontando para a árvore em frente.
«Ah sim.»
Estava desvendado o mistério dos poemas. Cada folha que caía era um novo poema. Ou talvez fosse sempre o mesmo.
«Estive há dias com a sua sogra. Ou foi ontem? Agora perco a noção do tempo. Ela gosta muito de si. Quer que dê algum recado?»
Ia para responder, mas engasguei-me. Todo eu estava eletrizado dos pés à cabeça. Finalmente consegui dizer algumas palavras.
«Também gostava muito da velhota. Tinha mais confiança em mim que na filha, sabe?»
«É natural. O senhor tem um bom coração. Pena ela ser tão forreta!» comentou.
«Eu sei.»
«A filha é que deve agora viver à grande e à francesa. Afinal de contas, guardado está o bocado... meu bom amigo.» Disse o poeta das folhas caídas das árvores.
«Que lhe faça bom proveito. Aliás, herdou da mãe.»
«Tem razão. Mas foi ingrata.»
«O problema não está só aí. Mas adiante.»
«É melhor esquecer. Ela tem muito dinheiro mas não vale a ponta de um chavo.»
Sorri. Afinal concordava com ele.
«Olhe...»
«Sim?» 
Mais um poema!
«Que bela folha a cair, amarelecida pelos desígnios do outono! Cansou-se de viver, sabe? O mesmo está a acontecer comigo.»
«Quanto custa a solidão, amigo Mário?» pensei.
Pareceu adivinhar o pensamento.
«E o meu amigo?»
«Diga, senhor Mário?»
«Pelos vistos regressou para alimentar a sua solidão...»
«Sim e não. Eu explicou já. Olhe, outra folha!»
«Ah! Elas não param de cair. Não tarda que seja eu.» 
«Não diga isso. Tem ainda muitos dias pela frente.» 
«Engana-se. Quero ir ter com ela...» 
«A sua Alice?» 
«Sim. Já é tempo do reencontro.» 
«E os poemas?» 
Sorriu. Naquele sorriso estava escrito o preço de uma longa solidão. 
«Posso ajudá-lo?»
Virei-me. Era a jovem que encontrara à saída da residencial.
«Veio mesmo a tempo» menti. «Como é que se sai daqui?»
«O senhor está pálido. Parece que viu um fantasma. Vou já buscar um copo de água açucarada.»

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