quarta-feira, 17 de maio de 2023

Cântico fatal

 


Vi-a sentada num rochedo, desnuda, olhando o mar, triste, abandonada, esquecida. Perguntei-lhe o que fazia sentada naquele rochedo.
Maliciosa... fingindo tristeza, queixou-se, sussurrando com doçura: 
«Estou presa, acorrentada.» 
«Então que fizeste de mal?»
«Nada.»
«Nada?»
«Bem... eles dizem que traí o amor.»
«E eles quem são?»
«Eles. Não importa. Acusam-me de ter traído o meu mar.»
«O teu mar?»
«Sim. O mar que era tudo para mim.»
«E que também tira tudo.»
«Este não!, acredita.»
«Ah... Era especial para ti.»
Olhou-me com certa malícia e chamou-me com o olhar. Não sei porquê, mas senti-me em perigo.
«Estou presa e fascinada pelo verde-azul do meu mar, esse verde-azul do teu olhar.»
«Ah! Mas eu não sou o teu mar!»
«Agora, já não.»
«Como assim? Que me lembre...»
«Já estou habituada. Mas eras, sim. Fui abandonada por ti. Agora sou uma pobre sereia sem rumo. Estou só.» 
«Tens o mar.»
«O meu mar és tu.»
«Não. Não sou o teu mar!» repeti. «Nem quero olhar para os teus olhos.»
O magnetismo daquela olhar metia-me receio. Ao mesmo tempo, fascinava-me. Um estranho dilema que me fazia pensar. Que mal lhe teria feito? Mas não seria tudo encenação sua?
«Que estranha atração! Está a chegar a mim um mar de desejos.»
De repente, alguém a meu lado fala comigo, abraça-me, sorri com doçura. Impossível! Eu e ela, muito juntos, abraçados, carentes, sonhadores, a olhar o mar que nos fascina. Então, mergulho no mar do olhar e beijo as colinas suaves dos seus seios. Deixo as mãos. Movo as mãos. Mas na onda que se espraia pela areia vejo a espuma que se desfaz...
Aquela onda que varreu a praia cantou baixinho. Arrastou-me com doçura. Perdi-me de mim. Fiquei no seu mar. Foi por pouco que não me perdi na magia daquele momento.
«Que música é esta?, que desejo estranho é este?»
«Sou eu que te estou a chamar...»
«Não!, não quero mais acreditar na magia desse olhar.»

O rochedo continua por lá, mas não a vejo, a sereia. Foi tudo um sonho!, quero acreditar. Mesmo que tenha sido um sonho é importante esse sonho não acordar. Vou fugir. Afastar-me para bem longe da melodia daquele olhar. Tem que ser de vez. Não importa a música que me fascina. O desejo e o não desejo de ouvir o seu canto fatal. A sua nudez alva e sedutora. O erotismo duma entrega falsa que um dia me fez naufragar.
É melhor partir de vez. Ser pássaro para voar veloz, bem longe das areias douradas desta praia encantada. E rumar para lá do céu azul, longe do seu olhar, onde o mar das sereias não pode alcançar...

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