A espuma do tempo, situada entre o acessório e o fundamental, devia ser resistente, não se desvanecer, aos poucos, à medida que era atropelada por outra que chegava com todos os ingrediente para ser uma paixão duradoura, mas que não passava de mais espuma a esvair-se em nada, como acontece com a espuma das ondas do mar. A água vai e volta e a espuma fica a borbulhar, mas só por momentos. O mesmo acontece com as grandes paixões se não se transformarem em amor ou ódio. Só assim não são esquecidas.
A curta prosa que se segue situa-se entre o acessório e o fundamental e diz respeito a uma paixão que tinha todos os ingredientes para se consolidar. Não aconteceu porque ela não teve força suficiente para se separar da sua heroína (1). Essa paixão cedo deu lugar a outras num curto espaço de tempo, permanecendo algures entre o acessório e o fundamental, bem como as outras. Mas marcou-me mais por outro motivo. O sentimento de culpa. Se quisesse lutar na altura contra essa sua heroína, e se a vencesse, e se mesmo a espuma do tempo fizesse mais tarde o seu papel ingrato, talvez hoje não estivesse aqui a recordá-la. Ou porque a heroína venceu a batalha por diversos motivos, como, por exemplo, aliar-me a ela; ou porque fiquei bem comigo e as paixões que se seguiram desempenharam o papel perfeito para que foram criadas.
No meio de tantas paixões que o vento levou, pergunto... porque foi que nenhuma delas teve motivo para se transformar em amor e ódio?
A resposta tem que ser procurada mais atrás onde ainda hoje existe uma espuma que solidificou e continua a existir. Quimicamente é possível obter uma espuma desse tipo, mas o processo não foi químico, apesar das reações intensas por que passou. O cadinho que as recebeu não teve reagente suficientemente poderoso para separar o binário amor-ódio que coexistiu e ainda hoje persiste embora cada um esteja presente em mundos diferentes. Isto para quem acredita em universos paralelos, um deles é invisível e coincidente com o nosso. Eu sei que é matéria complexa que os céticos não aceitam. Mas não me preocupo. E fico ansioso quando o amor, o ódio e eu ficarmos do mesmo lado. Portanto, os três em contacto e numa luta imortal.
Até lá...
«Fundimos os pensamentos num sonho azul que caiu no cadinho que foi ao lume até mudar de cor. Mas alguma coisa falhou. Paixão a mais. Sal que deixei precipitar no tubo de ensaio do ciúme.»
«Olá, sonhador das alquimias!»
«Lembras-te? Estavas afónica. Não querias falar comigo e inventaste essa de estares afónica. Pronto. Caso encerrando. Vamos a outro assunto, Esfinge.»
«Quem? Vou poupar as palavras.»
«E as minhas estão gastas.»
«Alguma vez nos encontrámos?»
«Talvez. Está afónica?»
«Eu?»
«Terei que esperar uma eternidade?»
«Não é eterno? Então pode esperar.»
«Diga-me ao menos o seu nome.»
«Tenho outro nome. Compreende? Não posso dizer.»
«Está a fugir...»
«Há muito.»
«Quanto tempo? A Terra tem mais de quatro mil milhões de anos e você é mais nova. Logicamente.»
«Mas sou eterna.»
«Linhas cruzadas.»
«Como?»
«Esfinge! Sei que és tu...»
«Desculpe. Há cruzamento de linhas...»
«Sim. Quando te vejo há sempre cruzamento de linhas. É essa a tragédia.»
«Vou desligar.»
«O telefone não tem fio.»
«Como é possível?»
«Tudo é possível. Basta imaginar. Podemos até trocar as intenções. Queria desligar, não era?»
«Pois.»
«Promete não desligar?»
«Prometo.»
«Então desligo eu.»
«Porquê?»
«Chama-se Esfinge?»
«Não.»
«Pouse o telefone. Espero uma chamada urgente.»
«Mas...»
«Desculpe. Prometi esperar.»
«Por quem?»
«Por ela.»
«Enquanto espera, vou apresentar-me. Chamo-me Esfinge e sou do azul.»
«Por favor, desligue.»
«Só um minuto.»
«Os minutos são preciosos. Sou eterno. Não posso esperar mais.»
«E se eu for a Esfinge?»
«Mentira. Ela dizia que era do azul, mas profanou o meu laboratório para roubar a essência. O sal precipitou e escondeu a última verdade. Nunca saberei se tinha olhos tristes que tanto me encantaram ou aqueles olhos de amêndoa que me iludiram.»
«Que faço ao telefone?»
«Como quer que o telefone seja real se prolongámos o fio para além do azul?»
«Ia caindo do banco!»
«Não viste que te trocaram o banco por outro mais baixo?»
«A mente reativa é que teve a culpa.»
«Ionesco?»
«Não. Desligaram a mente analítica e disseram: desce como de costume...»
«Quando a cabeça não tem juízo, o corpo é que paga. Vou ter juízo. Deixo a alquimia e regresso às origens.»
«Astrologia?»
«O corpo é que paga.»
«Não entendo.»
«O mesmo se passa comigo.»
«Mas nós estamos na mesma onda! Foste tu que disseste que estávamos na mesma onda. Lembras-te?»
«Prefiro não me lembrar e dizer que não entendo.»
«Quem tirou o banco? Dei uma queda aparatosa quando quis descer dum banco, para trás, sem ver onde metia os pés. Foste tu?»
«Ninguém tirou o banco. O chão é que estava um pouco mais longe. Só isso. Uma questão de erro da mente analítica. O chão estava mais longe. Pronto. Não te aleijaste?»
«Sou o homem de borracha. Saí sem uma beliscadura depois de uma queda de anos-luz!»
«E eu sou a Branca de Neve...»
«Acredita. Foi mesmo milagre. Desculpa, tenho de substituir a palavra por outra. Sorte. Fatalidade.»
«Como?»
«O chão é que podia ter aberto a sua boca enorme de predador. Sim, fatalidade. Fatalidade é destino, é sorte. Boa ou má sorte.»
«Agora já entendi. Olha lá...»
«Sim?»
«Desculpa não ter aparecido naquele dia. É que não foi possível. Borrei a pintura, não foi?»
«Se não apareceste... Ou melhor: se chegaste tarde, nunca mais chegaste.»
«Onde ouvi essa?»
«Foi na mente reativa, quando o banco foi trocado ou o chão fugiu para baixo. Ela regista tudo. É pena que seja pouco organizada. Mas é lá com ela. Dá-se bem no meio do caos.»
«Vamos ao que interessa.»
«A iniciação.»
«O bloqueio. Tu é que disseste que querias ser iniciado.»
«O Artista é que disse que valia a pena. A propósito: ele entrou no teu laboratório secreto e viciou os reagentes. Diz-me que entrou, que manipula todos os tubos de ensaio e que já não posso levar ao fogo o cadinho da paixão. Diz-me que não estou errado, que os ácidos reagiram docemente com as bases e resultou um pó branco que não devo tomar. Foste tu, não foste?»
«Fui.»
«Porquê?»
«Porque estamos na mesma onda!»
«Nunca estivemos. Eu estou em ondas curtas. E tu?»
«No passado.»
«Sim. Vieste do passado remoto e foste tragada pelo presente. De uma vez para sempre. Não resultou. Sabes bem que não resultou.»
«Mas então existi!»
«Se estás a rebuscar nas cinzas do comboio do futuro, como podes ter existido?»
«Não o entendo. O meu comboio do futuro está em cinzas. Chamas por mim e depois não me queres. Dizes que também não tive passado. Esqueces o que fomos e dizes que não pode haver futuro! Mas eu penso que sim. porque eu sou tudo para ti. O passado, o presente e o futuro. E manipulo universos.»
«Desengana-te. És apenas a Esfinge.»
«Pergunta-lhe.»
«A quem?»
«A ela. Quem sou. Quando está assustada, o que faz?»
«Foge...»
«Inevitavelmente. Mas porquê?»
«Deixa isso. Não sabes saltar?»
«...?»
«Eu dou cambalhotas à retaguarda. Era a minha especialidade na tropa. A propósito: já ouviste falar na Borsic?»
«Nesse tempo era a gaivota...»
«E no copo que rodopiava no snack?»
«Com a Patrícia em frente ao Mário. E então?»
«Vejo que te lembras. Decoraste a lição. Sabes uma coisa?, havia bancos altos junto ao balcão.»
«E as gaivotas picavam para a rebentação das ondas.»
«O céu estava azul.»
«Os dias é que eram azuis!»
«E longos. Longos dias azuis...»
«Ainda são longos?»
«Sim.»
«A mente reativa é que teve a culpa.»
«Ionesco?»
«Não. Desligaram a mente analítica e disseram: desce como de costume...»
«Quando a cabeça não tem juízo, o corpo é que paga. Vou ter juízo. Deixo a alquimia e regresso às origens.»
«Astrologia?»
«O corpo é que paga.»
«Não entendo.»
«O mesmo se passa comigo.»
«Mas nós estamos na mesma onda! Foste tu que disseste que estávamos na mesma onda. Lembras-te?»
«Prefiro não me lembrar e dizer que não entendo.»
«Quem tirou o banco? Dei uma queda aparatosa quando quis descer dum banco, para trás, sem ver onde metia os pés. Foste tu?»
«Ninguém tirou o banco. O chão é que estava um pouco mais longe. Só isso. Uma questão de erro da mente analítica. O chão estava mais longe. Pronto. Não te aleijaste?»
«Sou o homem de borracha. Saí sem uma beliscadura depois de uma queda de anos-luz!»
«E eu sou a Branca de Neve...»
«Acredita. Foi mesmo milagre. Desculpa, tenho de substituir a palavra por outra. Sorte. Fatalidade.»
«Como?»
«O chão é que podia ter aberto a sua boca enorme de predador. Sim, fatalidade. Fatalidade é destino, é sorte. Boa ou má sorte.»
«Agora já entendi. Olha lá...»
«Sim?»
«Desculpa não ter aparecido naquele dia. É que não foi possível. Borrei a pintura, não foi?»
«Se não apareceste... Ou melhor: se chegaste tarde, nunca mais chegaste.»
«Onde ouvi essa?»
«Foi na mente reativa, quando o banco foi trocado ou o chão fugiu para baixo. Ela regista tudo. É pena que seja pouco organizada. Mas é lá com ela. Dá-se bem no meio do caos.»
«Vamos ao que interessa.»
«A iniciação.»
«O bloqueio. Tu é que disseste que querias ser iniciado.»
«O Artista é que disse que valia a pena. A propósito: ele entrou no teu laboratório secreto e viciou os reagentes. Diz-me que entrou, que manipula todos os tubos de ensaio e que já não posso levar ao fogo o cadinho da paixão. Diz-me que não estou errado, que os ácidos reagiram docemente com as bases e resultou um pó branco que não devo tomar. Foste tu, não foste?»
«Fui.»
«Porquê?»
«Porque estamos na mesma onda!»
«Nunca estivemos. Eu estou em ondas curtas. E tu?»
«No passado.»
«Sim. Vieste do passado remoto e foste tragada pelo presente. De uma vez para sempre. Não resultou. Sabes bem que não resultou.»
«Mas então existi!»
«Se estás a rebuscar nas cinzas do comboio do futuro, como podes ter existido?»
«Não o entendo. O meu comboio do futuro está em cinzas. Chamas por mim e depois não me queres. Dizes que também não tive passado. Esqueces o que fomos e dizes que não pode haver futuro! Mas eu penso que sim. porque eu sou tudo para ti. O passado, o presente e o futuro. E manipulo universos.»
«Desengana-te. És apenas a Esfinge.»
«Pergunta-lhe.»
«A quem?»
«A ela. Quem sou. Quando está assustada, o que faz?»
«Foge...»
«Inevitavelmente. Mas porquê?»
«Deixa isso. Não sabes saltar?»
«...?»
«Eu dou cambalhotas à retaguarda. Era a minha especialidade na tropa. A propósito: já ouviste falar na Borsic?»
«Nesse tempo era a gaivota...»
«E no copo que rodopiava no snack?»
«Com a Patrícia em frente ao Mário. E então?»
«Vejo que te lembras. Decoraste a lição. Sabes uma coisa?, havia bancos altos junto ao balcão.»
«E as gaivotas picavam para a rebentação das ondas.»
«O céu estava azul.»
«Os dias é que eram azuis!»
«E longos. Longos dias azuis...»
«Ainda são longos?»
«Sim.»
«Até quando?»
«Só a eternidade é mais longa!»
«Gostava de voltar um dia ao snack. O Mário ainda lá está a ver as gaivotas a planarem no céu. À espera. À espera da sua Patrícia. Um dia, a cadeira em frente ficou vazia e a Patrícia nunca mais apareceu. O símbolo do seu desencantamento.»
«A Patrícia? Nunca a vi.»
«Gostava de voltar um dia ao snack. O Mário ainda lá está a ver as gaivotas a planarem no céu. À espera. À espera da sua Patrícia. Um dia, a cadeira em frente ficou vazia e a Patrícia nunca mais apareceu. O símbolo do seu desencantamento.»
«A Patrícia? Nunca a vi.»
«Mas a Manuela existiu!»
«Estamos a falar sem nos conhecermos. É talvez a força do hábito. Quanto mais falo contigo menos te conheço. Não sei se és o Mário dos negócios fracassados, ou o outro que se esconde atrás de ti. Feitas as contas, são três.»
«Eu também não... A quem devo a honra?»
«Chamo-me Esfinge.»
«Esfinge?»
«Sim. Já fui do azul. Lembras-te?»
«Já foste do azul! Estranha forma de te apresentares. Só uma mulher foi do azul. Agora já não sonha. Nem sequer atravessa desertos vermelhos. Vive na noite e dizem que chora. Mas nunca a ouvi chorar. Essa, sim. Foi do azul. Ficou no passado remoto. Ninguém mais será do azul.»
«Se assim é, nem sequer existo. Também fiquei no passado remoto. Temos que lá ir. Deve ser bom encontrar o passado. Corrigir muita coisa que resultou mal. Evitar as guerras. Os terramotos.»
«Os terramotos, não. São fenómenos terríveis da Natureza e, como tal, inevitáveis. Só os destinos podem ser alterados. O teu nascimento, por exemplo.»
«Não devia ter nascido.»
«Porquê?»
«Por causa do pó branco!»
«Podemos atrasar o teu nascimento. Basta um segundo e já não encontras o homem que te levou nas viagens.»
«Fazes isso por mim?»
«Por ti faço tudo. Só há uma coisa...»
«Que coisa?»
«Estamos em passados distintos. Abranda a velocidade da tua onda para que a minha a agarre.»
«Assim?»
«Está bom. Quando disser três, mergulhas.»
«Calçada?»
«Talvez seja melhor voarmos. Abre bem os braços. Isso. Não tenhas medo. Estamos a sonhar. Não vês que estamos a sonhar?»
«Tenho medo de acordar. O sonho é demasiado belo! Voar!, quem me dera saber voar! Ser livre. Não ter amarras, nem fantasmas brancos que sugam a vida. Voar! Foi sempre o meu sonho... Pronto. Já abri os braços. Se calhar, queres agarrar-me. Conheço o truque. Os homens são todos iguais. Envolventes. Fatalmente envolventes.»
«Tu é que foste envolvente. O pó que me deste não era a minha heroína. Essa, voou sem norte... Como posso agarrar-te se estamos em ondas diferentes e se eu não te vejo nem tu me vês? Confia em mim. Vá. Lança-te no espaço quando contar até três.»
«Tenho medo. Pode ser mais uma viagem!»
«Eu não faço viagens. Bem sabes que somos diferentes. Aqui não há lugar para as alucinações. Mas tenho outra ideia...»
«Outra ideia?»
«Apanha aquela gaivota que está a olhar para nós.»
«Não vejo a gaivota!»
« Faz de conta que vês. No azul...»
«Ah!, no azul... Agora recordo. As gaivotas voavam no azul celeste. Pronto. Já agarrei a gaivota. Estou a voar alto. É maravilhoso voar assim!»
«Olha...»
«Sim?»
«Estamos no passado.»
«No mesmo passado?»
«Na mesma onda. Não me vês? Eu vejo-te. Dá-me a mão. Assim... Gosto do contacto da tua pele. É suave. Os teus olhos?, deixa que os recorde. Foi há tanto tempo que os vi!»
«De que cor eram os olhos de Patrícia?»
«Azuis, verdes, cinzentos. Da cor do mar.»
«Oh!»
«Mas tu não és a Patrícia!»
«Pois não. Chamo-me Esfinge...»
«... e tentaste profanar o meu laboratório secreto com a chave misteriosa do pó branco.»
«Tenho medo! O passado vai tragar-nos. Está tudo escuro! Não me largues a mão.»
«É tarde. Já não podemos voltar atrás. É muito tarde.»
«Sinto frio. As ruas estão desertas. Não oiço ruídos. Não há ninguém no passado. Sinto tanto frio, Mário!»
«Frio, não direi. Fresco. Está fresco.»
«Fresco?»
«Tenho a sensação que já te conhecia, mas também há miragens nestas ruas que não existem. O futuro tragou-as. E agora onde vou procurar-te? Só queria ver-te durante um segundo...»
«Vais fazer-me mal?»
«Não tenhas medo. Estamos no passado e ainda não nasceste. Eu ando por aí. Algures. Se me encontrar, posso alterar o meu destino. E também o teu.»
«Algures é finalidade?»
«Boa pergunta. Mas agora chegou o momento. Vês aquele boqueirão?»
«Vai tragar-nos!»
«Não tenhas medo. Estou aqui. Ao teu lado.»
«Que sensação estranha! Perdi a identidade e estou a fundir-me com alguém, num orgasmo muito longo...»
«Entrámos no boqueirão. É o efeito da queda. A queda é longa. Eterna.»
«Eu também sou eterna.»
«A morte também é eterna.»
«Está escuro. É assim que se morre?»
«Não sei. Nunca morri. Pelo menos não me lembro. Tu é que já morreste uma vez.»
«Enganas-te, sou a Esfinge. Não te recordas?»
«Era só para confirmar. Sabes...?»
«Sim?»
«Chegámos.»
«E então?»
«Não consegui encontrar-te.»
«E a ti, encontraste-te...?»
«Ainda não. Mas vai acontecer!»
«Já não sei quem sou!»
«Lembras-te do pó branco?»
«Que pó? Ajuda-me... Não sei de que estás a falar. Tenho frio! Dói-me o corpo. A alma. Está muito escuro aqui. É assim...?»
«... que se morre?»
«Não te vejo! Onde estás?»
«Estamos a falar sem nos conhecermos. É talvez a força do hábito. Quanto mais falo contigo menos te conheço. Não sei se és o Mário dos negócios fracassados, ou o outro que se esconde atrás de ti. Feitas as contas, são três.»
«Eu também não... A quem devo a honra?»
«Chamo-me Esfinge.»
«Esfinge?»
«Sim. Já fui do azul. Lembras-te?»
«Já foste do azul! Estranha forma de te apresentares. Só uma mulher foi do azul. Agora já não sonha. Nem sequer atravessa desertos vermelhos. Vive na noite e dizem que chora. Mas nunca a ouvi chorar. Essa, sim. Foi do azul. Ficou no passado remoto. Ninguém mais será do azul.»
«Se assim é, nem sequer existo. Também fiquei no passado remoto. Temos que lá ir. Deve ser bom encontrar o passado. Corrigir muita coisa que resultou mal. Evitar as guerras. Os terramotos.»
«Os terramotos, não. São fenómenos terríveis da Natureza e, como tal, inevitáveis. Só os destinos podem ser alterados. O teu nascimento, por exemplo.»
«Não devia ter nascido.»
«Porquê?»
«Por causa do pó branco!»
«Podemos atrasar o teu nascimento. Basta um segundo e já não encontras o homem que te levou nas viagens.»
«Fazes isso por mim?»
«Por ti faço tudo. Só há uma coisa...»
«Que coisa?»
«Estamos em passados distintos. Abranda a velocidade da tua onda para que a minha a agarre.»
«Assim?»
«Está bom. Quando disser três, mergulhas.»
«Calçada?»
«Talvez seja melhor voarmos. Abre bem os braços. Isso. Não tenhas medo. Estamos a sonhar. Não vês que estamos a sonhar?»
«Tenho medo de acordar. O sonho é demasiado belo! Voar!, quem me dera saber voar! Ser livre. Não ter amarras, nem fantasmas brancos que sugam a vida. Voar! Foi sempre o meu sonho... Pronto. Já abri os braços. Se calhar, queres agarrar-me. Conheço o truque. Os homens são todos iguais. Envolventes. Fatalmente envolventes.»
«Tu é que foste envolvente. O pó que me deste não era a minha heroína. Essa, voou sem norte... Como posso agarrar-te se estamos em ondas diferentes e se eu não te vejo nem tu me vês? Confia em mim. Vá. Lança-te no espaço quando contar até três.»
«Tenho medo. Pode ser mais uma viagem!»
«Eu não faço viagens. Bem sabes que somos diferentes. Aqui não há lugar para as alucinações. Mas tenho outra ideia...»
«Outra ideia?»
«Apanha aquela gaivota que está a olhar para nós.»
«Não vejo a gaivota!»
« Faz de conta que vês. No azul...»
«Ah!, no azul... Agora recordo. As gaivotas voavam no azul celeste. Pronto. Já agarrei a gaivota. Estou a voar alto. É maravilhoso voar assim!»
«Olha...»
«Sim?»
«Estamos no passado.»
«No mesmo passado?»
«Na mesma onda. Não me vês? Eu vejo-te. Dá-me a mão. Assim... Gosto do contacto da tua pele. É suave. Os teus olhos?, deixa que os recorde. Foi há tanto tempo que os vi!»
«De que cor eram os olhos de Patrícia?»
«Azuis, verdes, cinzentos. Da cor do mar.»
«Oh!»
«Mas tu não és a Patrícia!»
«Pois não. Chamo-me Esfinge...»
«... e tentaste profanar o meu laboratório secreto com a chave misteriosa do pó branco.»
«Tenho medo! O passado vai tragar-nos. Está tudo escuro! Não me largues a mão.»
«É tarde. Já não podemos voltar atrás. É muito tarde.»
«Sinto frio. As ruas estão desertas. Não oiço ruídos. Não há ninguém no passado. Sinto tanto frio, Mário!»
«Frio, não direi. Fresco. Está fresco.»
«Fresco?»
«Tenho a sensação que já te conhecia, mas também há miragens nestas ruas que não existem. O futuro tragou-as. E agora onde vou procurar-te? Só queria ver-te durante um segundo...»
«Vais fazer-me mal?»
«Não tenhas medo. Estamos no passado e ainda não nasceste. Eu ando por aí. Algures. Se me encontrar, posso alterar o meu destino. E também o teu.»
«Algures é finalidade?»
«Boa pergunta. Mas agora chegou o momento. Vês aquele boqueirão?»
«Vai tragar-nos!»
«Não tenhas medo. Estou aqui. Ao teu lado.»
«Que sensação estranha! Perdi a identidade e estou a fundir-me com alguém, num orgasmo muito longo...»
«Entrámos no boqueirão. É o efeito da queda. A queda é longa. Eterna.»
«Eu também sou eterna.»
«A morte também é eterna.»
«Está escuro. É assim que se morre?»
«Não sei. Nunca morri. Pelo menos não me lembro. Tu é que já morreste uma vez.»
«Enganas-te, sou a Esfinge. Não te recordas?»
«Era só para confirmar. Sabes...?»
«Sim?»
«Chegámos.»
«E então?»
«Não consegui encontrar-te.»
«E a ti, encontraste-te...?»
«Ainda não. Mas vai acontecer!»
«Já não sei quem sou!»
«Lembras-te do pó branco?»
«Que pó? Ajuda-me... Não sei de que estás a falar. Tenho frio! Dói-me o corpo. A alma. Está muito escuro aqui. É assim...?»
«... que se morre?»
«Não te vejo! Onde estás?»
Como era no outro tempo em que te tinha em sonhos que morriam ao anoitecer?
Não me lembro.
Como era a tua voz de adolescente?
Não me lembro.
Como era o teu olhar que, na noite de O Nome da Rosa, passou por mim, tal meteoro de que perdi o rasto?
Não me lembro.
E a atração que negaste, teimosamente?
Foi ontem. Não me lembro.
Fugiste. Nunca mais vi os teus olhos de amêndoa, nem ouvi a tua voz doce que falava de eternidade. Tinhas receio de magoar-me. Preferiste o inverno. Trocaste o destino certo pelo pó branco dos teus voos de regressos amargos e agora estás longe. Num refúgio a que não posso chegar porque afinal nunca fui o teu herói. Desde que te perdi, as minhas memórias foram-se apagando, aos poucos, lembrando as luzes do mundo que também se apagaram quando o computador descobriu todos os nomes de Deus.
Desde que te perdi, não me lembro se os teus lábios sabiam a morangos silvestres, se tinhas ar egípcio. Se...
Foi ontem e não me lembro. Apenas me recordo que fugiste com a tua "heroína".
Agora que atingi a ilha onde vivem outras Esfinges que acenam convites carnais, perfilando-se no horizonte existencial, chego a pensar que sou insensível e até admito que talvez não tenhas existido. Sim. É melhor. Depois, foi o começo de um longo inverno. As palavras que poupaste. A desculpa para nunca mais te procurar.
Estavas afónica; lembras-te que fechaste a porta do diálogo?
Eu, não. Esqueci tudo. O teu sonho de eternidade. O meu laboratório secreto que profanaste. Tudo o que veio de ti.
Lembras-te daquela tarde de julho que marcou o início da nossa paixão escaldante que se apagou no dia seguinte?
Também não me lembro.
«Queres voar comigo?» perguntaste um dia.
«Como assim?»
Admiti que também ia connosco a tua "heroína" e mostrei um ar de mau perdedor.
«Só os dois.»
«Mas...»
Na dúvida, segui-te. Mas reparei que havia uma barreira entre os dois e disse que não. E então disseste que iam fugir. Tu e ela.
«Para onde?»
O medo ganhou coragem e disse outra vez que não. Que não queria jogar nesse tabuleiro dúbio. Valente medo!
«Experimenta.»
«Quero saber...»
«Joga.»
«Talvez.»
«Princípio do terceiro excluído.»
«Ela?»
«Não. O talvez.»
Então o espaço envolvente transformou-se num imenso tabuleiro de xadrez com peças vivas, prontas a sacrificarem-se. Todas réplicas nossas. Todas num jogo fatal. Havia já muitas vidas nossas levadas pelo jogo. Tínhamos que parar. Mas o jogo estava imparável.
A certa altura, disseste, em ar de desafio:
«Cheque ao rei!»
«O rei sou eu? Não me lembro.»
Tinha sido apanhado de surpresa na teia, mas, antes de ficar preso para sempre, tive uma ideia de recurso.
«Cavalo a esconder o rei.»
«Muito bem. Boa jogada. Mas esse cavalo não pode ficar aí. Repara que ele tem asas. Vai levar-nos pelo universo fora.»
«Ah!»
«E agora?» perguntou.
Não me lembro, mas parece atingi o objetivo do teu sorriso irónico. O teu olhar esfíngico. Hermético. Doce, mas hermético. De nada servia esconder o rei. A torre era a jogada final. O desejo disse-me que devia beijar esses teus lábios sensuais que sabiam a morangos silvestres. Não me lembro se o beijo se concretizou. Se tudo o que esqueci não passou de um jogo virtual.
«Então, adeus.»
Parece que foi o que disse.
«Nossa!» exclamou um dia a "Fadinha da Lagoa Azul" (2). «Adeus é para sempre...»
Foi então que caí em mim e permiti que fugisses para lá da minha coragem. Podia ter-te salvo. Não o fiz. Não o fiz porque me esqueci de ti. Paixões são espuma do tempo.
Se ainda sinto remorsos?
Não sei. Provavelmente estão escondidos.
Podia salvar-te dos malefícios do maldito pó branco e esqueci-me dele e de ti.
É fatal continuar a esquecer tudo o que recordo algumas vezes com saudade.
Podia salvar-te dos malefícios do maldito pó branco e esqueci-me dele e de ti.
É fatal continuar a esquecer tudo o que recordo algumas vezes com saudade.

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